Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
147/21.0PCSTB.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: PROVA INDIRETA
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: De acordo com o artigo 349º, do Código Civil, “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”, admitindo-se as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, como se extrai do artigo 351º do mesmo.
E é perfeitamente possível o recurso à prova indirecta ou indiciária para chegar à convicção que formou o tribunal a quo, pois esta prova (que se distingue da prova directa) é admitida no nosso ordenamento jurídico também no âmbito do processo penal – cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 11/12/2003, Proc. nº 03P3375; 07/01/2004, Proc. nº 03P3213; 09/02/2005, Proc. nº 04P4721; 04/12/2008, Proc. nº 08P3456; 12/03/2009, Proc. nº 09P0395 e de 18/06/2009, Proc. nº 81/04PBBGC.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt e também o Ac. do Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, que decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 127º, do CPP, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal –assim também o Acórdão deste mesmo Tribunal nº 521/2018, de 17/10/2018, que pode ser lido no respectivo sítio.

A prova indirecta reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, da lógica, do raciocínio indutivo e inferência, extrair uma ilação quanto ao tema da prova.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o nº 147/21.0PCSTB, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de …– Juiz …, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi o arguido AA condenado, por sentença de 21/03/2023, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a) e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 6 meses, acompanhada de regime de prova, assente em plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, que deverá observar a vertente de sujeição a um acompanhamento especializado ao nível da problemática da violência doméstica e na condição de o arguido, pelo prazo de um ano, se afastar da vítima BB, sendo que a proibição de contacto é por qualquer meio, seja directamente, seja por interposta pessoa e sob todas as formas (proibição der contactos telefónicos, presenciais e/ou por redes sociais), incluindo a proibição de o arguido se aproximar ou deslocar à residência da vítima ou ao seu local de trabalho, exceptuando-se os contactos estritamente necessários para tratar de assuntos relativos ao filho comum, CC.

Foi ainda condenado o arguido na pena acessória de proibição de contacto com a vítima BB, pelo período de um ano, exceptuando-se os contactos estritamente necessários para tratar de assuntos relativos ao filho comum, CC.

Mais foi condenado o arguido no pagamento a BB (também constituída assistente nos autos) da quantia de 1.250,00 euros, a título de reparação, ao abrigo do estabelecido nos artigos 82º-A, do CPP e 21º, da Lei nº 112/2009, de 16/09, a que acrescem juros de mora contados desde a data da decisão até efectivo e integral pagamento.

2. O arguido não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1. Não é despiciendo, para o caso concreto, fazer uma breve analise do artigo 152º do Código Penal começando por analisar qual o bem jurídico protegido pela norma.

2. O intuito do legislador foi, sem sombra de dúvidas, salvaguardar dignidade humana e a integridade física, nas suas vertentes de saúde física, psíquica, mental e emocional.

3. A violência doméstica é o tipo legal como bem jurídico mais multimodo e amplo.

4. A disseminação desta prática deste tipo de crime, bem como o alarme social que causa levou a que o legislador optasse por tornar a violência doméstica um crime publico.

5. Tal serviu, entre outros, para reforçar a convicção na sociedade e nos agressores que não estamos perante uma questão da vida privada e que a prática de violência conjugal ou familiar não é socialmente aceite ao contrário daquilo que poderia suceder há umas décadas atrás.

6. O que se passa no seio familiar é um problema de todos quando está em causa a dignidade humana ou o bem-estar físico num contexto de especial vulnerabilidade ou dependência da vítima, não podendo este fator ser dissociado da tipologia em causa de forma o poder diferenciar das condutas que o compõem e que são por si só tipificadas criminalmente (injurias, ameaças, ofensas à integridade física).

7. Estamos perante um crime de execução livre, cabendo ao julgador enquadrar ou não as condutas praticadas na tipologia de violência doméstica devendo, para tanto ter em conta quer a reiteração quer a intensidade das mesmas.

8. No que respeita à reiteração tem sido opção praticamente unanime na nossa jurisprudência que não há necessidade da mesma para estarmos perante um crime de violência doméstica.

9. Torna-se assim preponderante nesta qualificação a intensidade da conduta.

10. Estando perante um crime doloso torna-se, também, necessário o conhecimento e vontade não só da conduta, mas do resultado, ou seja, perante um impropério verbal como de chamar a vítima de “maluca” quis o arguido injuriá-la ou fazê-la sentir diminuída, humilhada e vexada.

11. “(...) o crime de violência doméstica visa, acima de tudo, acautelar situações de vivência conjugal e/ou familiar (...)assente numa especial vulnerabilidade da vítima, fruto da sua dependência emocional e/ou económica no agressor, produza comportamentos violentos, reiterados e de difícil destrinça em termos de momentos concretos, levando a que os comportamentos do agressor possam ser agrupados numa “única” actuação criminógena que acaba por pôr em causa todo o suporte psíquico e físico da vítima.” acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do Proc. 689/19.7PCRGR.L1-3 em 21-10-2020

12. Ou, II - O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças.

III - O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus tratos”.” Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do Proc. 663/16.PBCTB.C1 a 7.2.18

13. Reportando-nos à sentença em crise dir-se-á que, em suma, o tribunal deu como provado que entre 2011 e 2014 o recorrente dirigiu à assistente, uma única vez, as seguintes expressões: “Maluca... vai ao Médico.... vai-te tratar”; “Não penses nisso, aquela mulher serve só para dar umas fodas”; “Não vales um caralho”; “O mais velho é meu filho, mas aquele pequenino que ali está não sei se é meu filho ou não”

14. Entre Janeiro e Agosto de 2021, por duas vezes: “Filha da Puta.... vaca... dormes com todos, tens amantes”;

15. A 9 de Março: “Se eu perder a cabeça não vais ficar cá para contar a história...não me tires do sério se não perco a cabeça”;

16. Deu como não provado que o arguido, aqui recorrente, tenha tido comportamento agressivos para com a ofendida e discutido sem razão que o justificasse (alínea a) da matéria de facto dada como não provada), bem como que as expressões suprarreferidas tivessem sido proferidas mais do que uma vez.

17. Da conjugação destes dois factos, recorrendo às regras da experiência, será lógico depreender que as expressões proferidas, surgiram em contextos específicos de uma altercação mútua entre o casal conjugal.

18. Ainda que se possa considerar censurável a conduta do arguido de forma alguma os factos apurados assumem por si só, ou no seu conjunto, uma gravidade tal que permita concluir no sentido de uma situação que traduza tal intensidade.

19. Esta destrinça torna-se assaz relevante na medida em que estes comportamentos por si, fora da relação conjugal, têm relevância penal.

20. Torna-se assim, imprescindível a determinação dos restantes elementos, nomeadamente a intensidade da conduta para que o arguido possa ser condenado pelo crime que vinha acusado

21. A Sentença tem, como requisito essencial, entre outros o dever de fundamentação. (art. 205º da CRP, e do art. 374º n.º 2 do código do Processo Penal).

22. A douta sentença procede à fundamentação fazendo uma sumula das declarações do arguido e da assistente, bem como das testemunhas dizendo que se socorreu das regras da experiência comum e de uma presunção natural para determinar os factos provados e não provados, não logrando explicar concretamente o que o leva a essa conclusão.

23. Por tudo o supra exposto, essa explicação tornar-se-ia essencial para que a sentença pudesse cumprir o seu fim.

24. Não se pode assim, considerar que tenha sido dado cumprimento à exigência legal de fundamentação constante do n.º 2 do art. 374º do CPP.

25. A fundamentação não deverá assim ser uma sumula da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, mas sim uma sumula das razões da convicção do tribunal através do exame crítico das provas que serviram para formar essa convicção.

26. A sentença determina que “ Resulta da matéria de facto dada como provada, que os actos aí descritos, perpetrados pelo arguido, ao longo de um período de, pelo menos, nove anos, compreendido entre data não apurada do ano de 2011 e o mês de Março de 2021, causaram à vítima BB, de modo repetido, como foi propósito do arguido, humilhação e sofrimento, violando o dever de a respeitar como pessoa, como cônjuge e como mãe dos dois filhos comuns do casal, tendo-lhe o arguido dirigido, ao longo do referido período, expressões humilhantes e atentatórias da sua dignidade, ofendendo-a na sua honra e consideração, e, numa ocasião, já após a separação do casal, no dia 9 de março de 2021, ameaçado a vítima, afectando-lhe, deste modo, o bem estar psíquico, humilhando-a e intimidando-a, o que logrou.”, quando tal facto não decorre da conjugação dos factos dados como provados e dos factos dados como não provados.

27. Seria assim necessário que esta linha de raciocínio fosse fundamentada e devidamente explicada de forma a que a douta sentença logra-se obter toda a sua função nomeadamente a de o arguido, ou qualquer cidadão comum, compreender de forma clara o raciocínio e a decisão do tribunal.

28. “Esta exigência, que constitui um reforço da estruturação formal da sentença, permite ao julgador que explique aos destinatários da sentença e à comunidade em geral, o processo de formação da sua convicção, ou seja, a razão porque decidiu da forma que deixou consignada, ou seja, a explicitação do “substrato racional que conduziu a que a sua convicção se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova”, importando que a fundamentação convença os seus destinatários pela bondade e força da sua argumentação, assente em critérios lógicos e regras de experiencia comum.(...) Em síntese diremos que a fundamentação cumpre a sua função quando o julgador enuncia de forma clara e inequívoca o raciocínio que segui na formação da convicção, ou seja, as operações lógicas seguidas que permitam perceber “como” e “porquê” o tribunal decidiu da forma que deixou consignada, assim demonstrando que não procedei a uma ponderação de provas arbitrárias, ilógica ou violadora de regras de experiência comum” Acórdão proferido pela 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do Proc. 56/06.2 GC ALQ.L1

29. Estamos a falar de um relacionamento de quase duas décadas e meia em que, num período de 10 anos, o arguido proferiu cerca de 8 expressões injuriosas à ofendida.

30. Se reforçamos o facto de tal comportamento ser, ainda assim, censurável, não podemos discordar na qualificação jurídica do mesmo.

31. Mais contraditória se torna, e no nosso modesto entendimento incompreensível, a douta sentença recorrida, quando se coloca como contrapeso do crime pelo qual o arguido vem condenado, o crime pelo qual foi absolvido.

32. Nesse caso o douto tribunal a quo faz o raciocino no sentido de que por se tratar de um acto isolado não estamos perante um crime de violência doméstica quando, em momento anterior refere expressamente que “E estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não”

33. No que respeita ao elemento subjectivo dado como provado nos pontos 17 e 18 dos factos dados como provado, o douto tribunal a quo diz que se socorreu de uma presunção natural de acordo com as regras da experiência comum.

34. Ora, no entender do tribunal qualquer pessoa que no âmbito de uma relação conjugal injurie a outra está a praticar um crime de violência doméstica e não um crime de injúria o que, como se demonstrou, não corresponde à realidade jurídica deste tipo de crime, pelo que nunca poderiam estes dois pontos ser dados como provados.

35. Quer-nos antes parecer que, a integrar algum ilícito criminal estaríamos antes no âmbito de um crime de injurias p e p pelo artigo 181º do Código do Penal e/ou de ameaça p e p pelo artigo 153º do mesmo diploma.

36. No que respeita à injuria somente dizer que estando no âmbito de um crime que depende de acusação particular o que não sucedeu.

37. Relativamente à ameaça sempre se dirá que, ainda assim, não se encontram demonstrados os elementos objetivos desse ilícito criminal.

Nestes termos e nos demais de direito deve a presente sentença:

a) declarada nula por falta de fundamentação, no que respeita ao crime de violência doméstica e darem-se como não provados os factos 17) a 18) dos factos dados como provados absolvendo-se o arguido do crime de violência doméstica;

b) revogada e absolvendo-se o arguido do crime de violência doméstica;

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pelo seu não provimento.

5. Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Nulidade da sentença por falta de fundamentação.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento.

Enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente.

2. A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

1. O arguido e a ofendida BB, casaram, um com o outro, em … 1997, tendo, a partir do mês de Novembro de 1998, fixado casa de morada de família na residência sita na Praceta …, em ….

2. Deste relacionamento, resultou o nascimento dos dois filhos de ambos: DD, nascido em … 2002; e CC, nascido em ….2008 (menor de idade).

3. A partir do ano de 2011 e até ao dia 6 de Janeiro de 2021, era usual o arguido dirigir à ofendida BB as seguintes expressões humilhantes: “Maluca…Vai ao médico…Vai- te tratar”, o que fazia, em média, uma vez em cada três meses.

4. Numa data não concretamente apurada, mas situada no decurso do mês de Novembro de 2014, a ofendida descobriu que o arguido mantinha uma relação extraconjugal, e confrontou o marido com esta facto, o que motivou uma discussão verbal entre ambos, ocorrida no interior da casa de morada de família.

5. No decurso desta discussão, o arguido disse à ofendida BB: “Não penses nisso, aquela mulher serve só para dar umas fodas!”.

6. Numa data não concretamente apurada, mas situada no decurso do mês de Maio ou de Junho do ano de 2020, a ofendida BB comunicou ao arguido que pretendia o divórcio.

7. No dia 18 de Dezembro de 2020, quando a ofendida BB se dirigia para a casa de banho do imóvel, foi impedida, pelo arguido, de prosseguir a sua marcha, tendo este, para o efeito, utilizado a sua superioridade física, bloqueando a passagem.

8. Neste contexto, surgiu no local o filho de ambos, DD, que se colocou entre ambos, solicitando ao progenitor que “se acalmasse”.

9. Acto contínuo, o arguido desferiu um empurrão sobre o corpo do ofendido DD.

10. Numa ocasião situada em data não concretamente apurada, mas situada no período compreendido entre o dia 20 de Dezembro de 2020 e o dia 6 de Janeiro de 2021, o arguido dirigiu à ofendida BB a expressão “não vales um caralho”.

11. No dia 25 de Dezembro de 2020, no interior do imóvel supra descrito, e na presença do menor CC, o arguido dirigiu à ofendida aa seguintes expressões “O mais velho é meu filho, mas aquele pequenino que ali está não sei se é meu filho ou não!?”.

12. Em 6 de Janeiro de 2021, o arguido abandonou a casa de morada de família, passando a residir em domicílio distinto.

13. Mesmo após esta separação de facto do casal, em datas não concretamente apuradas, mas situadas no período compreendido entre o mês de Janeiro e o mês de Agosto de 2021, o arguido, em pelo menos duas ocasiões, dirigiu à ofendida BB as expressões “filha da puta…vaca…dormes com todos…tens amantes”.

14. O arguido mantém a chave da residência que partilhou com a ofendida, entrando na mesma, sempre que quer, e à hora que quer, e numa ocasião, situada em data não concretamente apurada, mas contemporânea ou posterior ao dia 9 de Março de 2021, no interior do imóvel, dirigiu-lhe a expressão “Se eu perder a cabeça não vais ficar cá para contar a história…não me tires do sério se não perco a cabeça”.

15. Ao ouvir esta expressão, a ofendida BB temeu pela sua vida e integridade física.

16. A ameaça e injúrias supra descritas ocorreram no interior da residência dos ofendidos e na presença dos dois filhos do casal, e, relativamente às situações ocorridas até à data de 7 de Maio de 2020, quando ainda ambos eram menores de idade, e, dessa data em diante, no período de menoridade do filho mais novo do casal, CC.

17. O arguido agiu da forma supra descrita, bem sabendo que reiteradamente dirigia à sua mulher BB expressões humilhantes, e, numa ocasião, uma expressão atemorizadora, que a fez temer pela sua vida e integridade física, debilitando-a psicologicamente, cerceando a sua liberdade pessoal, prejudicando-a no seu bem-estar psicossocial, ofendendo-a na sua dignidade humana, pondo em causa a sua paz e sossego e atentando contra a sua intimidade e liberdade.

18. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente em todas as suas ações, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal, não se coibindo de agir como agiu.

19. A vítima BB possui, como habilitações literárias, o 9.º ano de escolaridade.

20. Exerce, desde há cerca de dezasseis anos, a actividade profissional de operadora de 400,00.

21. Vive em casa própria, na companhia dos dois filhos, DD e CC.

22. O arguido AA é filho único, tendo o seu processo de desenvolvimento e socialização decorrido genericamente em …, com excepção de dois anos (11 13 anos) em que, por motivos da actividade laboral do pai, viveram nos …, sendo o ambiente familiar caracterizado pela harmonia e estabilidade, com o envolvimento de ambas as figuras parentais no seu processo educativo.

23. O pai do arguido, militar de carreira na Força Aérea na classe de …, foi sempre o principal sustento do agregado familiar, cujos rendimentos, acima da média, permitiram a satisfação das várias necessidades do agregado, para o que a progenitora também contribuía com alguns rendimentos não fixos, resultantes de trabalhos de costura.

24. O arguido iniciou o seu percurso escolar em idade própria, tendo estudado até aos 19 anos de idade, abandonando os estudos durante a frequência do 12.º ano de escolaridade, que não chegou a concluir.

25. O arguido, que desde a idade dos 15 anos, tinha o hábito de trabalhar nos períodos das férias escolares, iniciou o seu percurso laboral com a idade de 19 anos, na área fabril,

26. Após a separação de BB, o arguido mudou-se para casa da sua progenitora, onde continua a residir, sendo o agregado constituído pelo próprio e a progenitora, contribuindo o arguido para a economia doméstica, mediante o pagamento da alimentação e da conta de electricidade.

27. O arguido continua a assegurar o pagamento da amortização da dívida relativa à habitação ainda pertença do casal, e paga, a título de prestação de alimentos devida ao filho

28. O divórcio do arguido AA e de BB teve lugar em Dezembro de 2022.

29. O arguido AA não tem condenações averbadas no respectivo registo criminal.

Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):

a) – que após a ofendida ter descoberto que o arguido mantinha uma relação extraconjugal, e confrontou o marido com esta facto, as discussões verbais entre ambos passaram a ocorrer uma vez por mês;

b) – que o arguido tivesse dirigido à ofendida BB a expressão a que é feita referência em 5., em mais de uma ocasião;

c) - que entre os meses de Maio e Outubro de 2020, o arguido desvalorizou esta pretensão da ofendida, referindo-lhe que “ mantinha amantes “, e dirigindo-lhe reiteradamente as seguintes expressões “ Tens vida dupla…não tens vergonha de andar no café a beijar na boca e a dares fodas…como é que foste capaz…não tens vergonha de andares com três gajos ao mesmo tempo…não viste que eles só te queriam para foder…eles nunca vão deixar as mulheres para ficar contigo…os teus filhos vão saber a mãe que têm!”;

d) – que, para além da ocasião a que é feita referência no ponto 7., o arguido em alguma outra ocasião tivesse referido à ofendida BB “não vales um caralho”;

e) – que no dia 18 de Dezembro de 2020, em hora não apurada, o arguido chegou à residência visivelmente alcoolizado, e ao verificar que a ofendida BB mantinha conversa telefónica, perguntou desde logo “com quem estava a falar ?”, afirmando que esta “tinha amantes” e que “iria descobrir tudo, porque tinha um colega de trabalho que é um hacker que iria apurar tudo o que fazia”;

f) – que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 9., o arguido tivesse desferido mais do que um empurrão sobre o corpo do ofendido DD;

g) – que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 9., a violência do impacto do empurrão levou a que o menor DD fosse projectado, num primeiro momento contra o parapeito de uma das janelas do imóvel, e num segundo momento, contra um bengaleiro existente no local, que acabou por se quebrar;

h) – que, seguidamente, o arguido desferiu um soco num armário existente no local, conduta que levou a que o ofendido DD, temesse pela sua integridade física;

i) – que, em resultado destas condutas do arguido, o ofendido DD sofreu dores na zona lombar, sem necessidade de assistência médica ou hospitalar;

j) – que, para além das duas vezes a que é feita menção em 13., o arguido em alguma outra ocasião tivesse dirigido a BB a expressão “filha da puta…vaca…dormes com todos…tens amantes”;

k) – que, para além da situação a que é feita menção em 14., o arguido em alguma outra ocasião tivesse dirigido à vítima BB a expressão “Se eu perder a cabeça não vais ficar cá para contar a história…não me tires do sério se não perco a cabeça”;

l) – que no dia 18 de Janeiro de 2021, em hora não apurada, o arguido regressou ao domicílio descrito em 1., iniciando uma discussão verbal com a ofendida BB, no decurso da qual aquele munindo-se do seu telemóvel pessoal, atingiu com este objecto, a cabeça de BB;

m) – que o arguido controla as rotinas diárias da ofendida, e contacta as amigas desta, com a finalidade de saber onde esta se encontra e com quem está;

n) – que o arguido, utilizando para o efeito o seu telemóvel com o n.º …, envia reiteradamente mensagens para o telemóvel da ofendida BB, via SMS, Messenger e Watswapp, tanto dia, como de noite, as quais possuem conteúdo humilhante e atemorizador, conforme melhor se retira dos documentos juntos de fls. 62 a 73, colocando em causa a paz e o sossego da mesma;

o) – que, em Fevereiro / Março do ano de 2021, em dia e hora não apurados, no interior do imóvel supra descrito, o arguido dirigiu ao filho DD as seguintes expressões em tom de voz elevado “Covarde…Andas a falar mal de mim na rua”;

p) – que o arguido alguma vez tivesse atingido o corpo e saúde da sua mulher BB;

q) – que o arguido quis e conseguiu maltratar o ofendido DD, seu filho de 19 anos de idade, e de si dependente economicamente, atingindo-o no seu corpo e saúde, fazendo-se valer para o efeito do seu ascendente paternal e superioridade física, para desta forma melhor conseguir os seus intentos, afectando-o na sua integridade física, moral e psicológica, dirigindo-lhe condutas e expressões humilhantes e atemorizadoras, fazendo-o recear pela sua integridade física, assim como pela vida e integridade física da progenitora, cerceando-o na sua liberdade pessoal, prejudicando-o no seu bem-estar psicossocial e ofendendo-o na sua honra e dignidade humana.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

No caso vertente, a convicção do Tribunal, relativamente aos factos considerados como demonstrados, alicerçou-se na apreciação, conjugada e com apelo às regras de experiência comum e de normalidade, dos elementos de prova constantes dos autos e resultantes da audiência de julgamento.

Nas declarações que prestaram, o arguido AA e a assistente BB confirmaram, de forma no essencial coincidente, a factualidade que o tribunal considerou como demonstrada, a que é feita menção nos pontos 1., 2. (conforme certidões de assento de nascimento que integram fls. 25 e 25v. e fls. 26 e 26v.), 3. (se bem que, neste particular, o arguido tivesse adiantado que o fazia com uma periodicidade quinzenal, ao contrário da assistente, que afirmou que tais condutas do arguido tinham lugar, em média, de três em três meses), 4., 5., 6., 7., 9., 11., 12., 13., 14. (tendo a assistente explicitado que o arguido lhe dirigiu a referida frase em momento posterior ao da apresentação da denúncia que esteve na génese dos presentes autos) e 16., importando concretizar, no que respeita à matéria de facto enunciada no ponto 9., que o arguido adiantou que, nessa ocasião, empurrou o filhoDD em virtude de este, num primeiro momento, o ter puxado, tendo acrescentado que, na sequência do empurrão, o menor deu um ou dois passos para trás, tendo o arguido confirmado, igualmente, a factualidade que o tribunal considerou como demonstrada, a que é feita menção no ponto 8., e a assistente confirmado a factualidade que o tribunal considerou como demonstrada, a que é feita menção nos pontos 10. e 15., sem que tal factualidade tivesse sido negada pelo arguido.

A testemunha DD, tendo a qualidade de filho do arguido, usou da faculdade prevista no art. 134.º, n.º 1, al. a) do Cód. Processo Penal, não prestando declarações.

A testemunha EE deu conta ao tribunal de conhecer, quer o arguido, quer a assistente, desde a infância de ambos, nunca tendo frequentado a casa do casal. Referiu, ainda, nunca ter presenciado qualquer discussão entre o casal, ter ficado surpreendida quando tomou conhecimento da separação e que, numa data situada no decurso do mês de Dezembro de 2020, o arguido lhe ter enviado uma mensagem a perguntar-lhe o que sabia a respeito da assistente BB.

A testemunha FF, por sua vez, deu conta ao tribunal de conhecer, quer o arguido, quer a assistente, desde a infância, e de costumar privar com ambos enquanto casal. Acrescentou que o arguido, por diversas vezes, quer em conversas telefónicas, quer em mensagens que lhe enviou (para o cartão n.º 91-8671682), insinuou que a assistente mantinha relações extraconjugais com outros homens. No decurso da sua inquirição a testemunha foi confrontada com os documentos juntos a fls. 62 e 63, tendo adiantado que os mesmos respeitam a mensagens que trocou com o ora arguido.

As testemunhas EE e FF responderam de forma isenta e congruente a todas as questões que lhes foram colocadas, sem qualquer outro intuito que não o de colaborar com o tribunal na descoberta da verdade dos factos, motivo pelo qual nos mereceram credibilidade.

Ora, em face das declarações do arguido, declarações da assistente, depoimentos das testemunhas, da análise dos documentos juntos aos autos e da sua conjugação com as regras da experiência comum, dúvidas não restaram ao tribunal da prova de toda a factualidade apurada, enunciada nos pontos 1. a 16. da Matéria de Facto Provada.

O tribunal socorreu-se, ainda, de uma presunção natural, no que tange aos factos subjectivos constantes dos pontos 17. e 18., porquanto os factos objectivos provados, de acordo com as regras da experiência comum, permitem inferir estes factos subjectivos. Que o arguido AA agiu com vontade livre e consciente corresponde ao normal do agir humano, nada tendo sido alegado que ponha em causa essa liberdade de decisão.

Os factos dos pontos 19. a 21. resultaram provados, tendo por base as declarações da assistente BB, quanto às suas condições pessoais, laborais e económicas, que se consideraram credíveis, não sendo postos em causa.

No que concerne às condições pessoais do arguido AA, a que é feita menção nos pontos 22. a 28., o tribunal fundou a sua convicção no relatório social para julgamento elaborado pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, relativamente à sua pessoa, que integra fls. 229 a 232, onde se abordam os dados relevantes do respectivo processo de socialização e as respectivas condições sociais e pessoais, cujo teor foi complementado pelas declarações prestadas pelo próprio em audiência de julgamento, mostrando-se a ausência de antecedentes criminais do arguido certificada a fls. 219 dos autos, com data de emissão de 09/12/2022.

No que tange à matéria de facto considerada como não provada, a que é feita menção nas als. a) a s), tal ficou a dever-se à circunstância de nenhuma prova ou nenhuma prova suficientemente consistente ter sido produzida acerca da mesma.

A este propósito, importa concretizar, no que respeita à factualidade enunciada nas als. c), e), i), n), o) e r), que pese embora, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, a assistente BB tivesse afirmado que depois de ter tomado conhecimento da relação extraconjugal do arguido e de o ter confrontado, a relação entre o casal “piorou um bocadinho”, que no período compreendido entre o dia 20/12/2020 e o dia 06/01/2021, o arguido, com a periodicidade quase diária lhe dirigia as expressões a que é feita menção em e), que, em consequência dos dois empurrões desferidos pelo arguido, o menor DD embateu, num primeiro momento, contra o bengaleiro, e, de seguida, contra o parapeito da janela do quarto, que, na constância da relação, o arguido lhe bateu em duas ocasiões distintas, a primeira vez numa data compreendida entre o ano de 2008 e o ano de 2010, em que, no interior do elevador, lhe desferiu um estalo na cara, e numa segunda ocasião, já depois da separação do casal, em que a atingiu com um telemóvel na cabeça, e que, no mês de Março de 2021, o arguido tentou controlar as suas rotinas diárias, o arguido refutou em absoluto tal factualidade, pelo que, em face da negação dos factos pelo arguido, importa ponderar não ter sido produzida nenhuma prova, no sentido de corroborar a versão dos factos apresentada pela primeira, desde logo por nenhuma das testemunhas inquiridas ter demonstrado possuir conhecimento directo a respeito de tal factualidade. Acresce que, em resultado destas alegadas agressões, a assistente nunca careceu, em nenhuma das duas ocasiões, de receber qualquer tipo de assistência e/ou tratamento hospitalar (a este respeito, cfr. informação do Centro de Saúde …, junta a fls. 35). Em suma, em relação a estas matérias, a versão apresentada pela assistente BB em audiência de julgamento, não foi corroborada por qualquer outro meio de prova, testemunhal, documental e/ou pericial. Assim, face ao exposto, e à negação pelo arguido da versão apresentada pela assistente em audiência, ficou o Tribunal, nesta parte, em situação de dúvida fundada sobre a verificação de tais factos, impondo-se, destarte, que a decisão probatória, quanto a esses factos, atenda ao princípio de prova in dubio pro reo, decorrência do princípio substantivo da presunção da inocência, consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

No que respeita à factualidade a que é feita menção nas alíneas a), b), d), f) a h), j) a m), p), q) e s), a mesma foi considerada como não provada, em virtude de, nem o arguido, nem a assistente, nem nenhuma das testemunhas inquiridas ter confirmado a factualidade em causa, sendo certo que os demais elementos probatórios carreados para os autos também não comprovam estes factos, importando concretizar, no que respeita à factualidade enunciada na al. p), que a mesma é desmentida pela análise dos referidos documentos, quem integram fls. 62 a 73, de cuja leitura resulta não existir uma qualquer mensagem de conteúdo humilhante e/ou de conteúdo atemorizador (mesmo a mensagem reproduzida a fls. 68, “E olha põe-te fina comigo, não te ponhas com merdas que é pra isto não descambar. Não me faças perder as estribeiras”, se bem que menos correcta, não configura uma qualquer ameaça), sendo ainda de referir que algumas das mensagens em apreço não foram enviadas pelo arguido à ofendida BB, mas sim a terceiras pessoas, como a testemunha Patrícia Carrão (mensagens de fls. 62 e 63).

Apreciemos.

Nulidade da sentença por falta de fundamentação

Sustenta o recorrente que a decisão recorrida é nula por omissão do exame crítico das provas, porquanto “procede à fundamentação fazendo uma súmula das declarações do arguido e da assistente, bem como das testemunhas dizendo que se socorreu das regras da experiência comum e de uma presunção natural para determinar os factos provados e não provados, não logrando explicar concretamente o que o leva a essa conclusão”.

Conforme resulta do estabelecido no artigo 374º, do CPP, a estrutura de uma sentença comporta três partes distintas, a saber: o relatório, a fundamentação e o dispositivo, sendo que a fundamentação deve conter a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Quando tal não suceda, a sentença está ferida de nulidade, por força do preceituado no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP.

Esta imposição de fundamentação, acolhida no texto constitucional no seu artigo 205º, nº 1 e materializada também no artigo 97º, nº 5, do CPP, como tem acentuado a doutrina e a jurisprudência, - vd. Sérgio Poças, Da Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Revista Julgar, nº 3, 2007, pág. 23 e, por todos, o Ac. do Tribunal Constitucional nº 408/07, de 11/07/2007, in www.pgdl.pt. - cumpre duas funções:

a) Uma, de ordem endoprocessual, afirmada nas leis adjectivas, que visa essencialmente: impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão; permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação; colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente com o decidido;

b) Outra, de ordem extraprocessual, que apenas ganha evidência com referência, a nível constitucional, ao dever de motivação e que procura acima de tudo tornar possível o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão.

Os motivos de facto não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – cfr. Marques Ferreira, Meios de Prova - Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 228 e segs., traduzindo-se, pois, o exame crítico, na menção das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, a afirmação das provas que mereceram aceitação e das que lhe mereceram rejeição, a razão de determinada opção relevante por uma ou outra das provas, os motivos substanciais da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal priveligiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção – neste sentido, Acórdãos do STJ de 16/01/2008, Proc. nº 07P4565, de 26/03/2008, Proc. nº 07P4833 e de 15/10/2008, Proc. nº 08P2864, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Ora, percorrendo a motivação da decisão recorrida, verifica-se que contém a especificação dos factos provados, a menção dos não provados, a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento, mormente aqueles em que assentou a convicção do tribunal e, de forma bem clara, o exame crítico desses meios de prova, com explicitação da sua credibilidade, concretamente no que tange aos depoimentos das testemunhas e declarações (do arguido e da assistente BB) prestados.

E, basta a simples leitura, sem grande esforço interpretativo, para concluir que foi feita a explicitação detalhada dos elementos probatórios tidos em conta e do raciocínio lógico-dedutivo que culminou no entendimento que os factos tinham de considerar-se como provados e não provados, nos termos em que o foram.

No que tange ao apelo feito na peça revidenda à “presunção natural”, resulta que se reporta aos factos subjectivos constantes dos pontos 17. e 18., elucidando-se cabalmente que os factos objectivos provados, de acordo com as regras da experiência comum, permitem inferir estes factos subjectivos. Que o arguido AA agiu com vontade livre e consciente corresponde ao normal do agir humano, nada tendo sido alegado que ponha em causa essa liberdade de decisão.

Estamos, assim, perante factos consubstanciadores do dolo (quer do dolo do tipo, quer do da culpa, onde se inclui a consciência da ilicitude) e, porque inerentes à dimensão subjectiva, do foro psicológico, são, quase sempre indemonstráveis de forma naturalística, extraindo-se, normalmente, das circunstâncias objectivas que rodearam a prática do facto e da ausência ou afastamento das causas que os possam excluir, conferidas com as máximas da experiência e da lógica e as presunções judiciais admissíveis.

É claramente o que constatamos estar expresso na sentença sob censura, pelo que carece de razão o recorrente na crítica que lhe faz.

Mas, na verdade, o que pretende o recorrente ao invocar esta nulidade é tão só colocar em causa a valoração probatória efectuada pelo tribunal a quo, a convicção formada e o enquadramento jurídico-penal dos factos tidos como assentes.

Só que, a nulidade da sentença (ou de um acórdão) por falta ou deficiência de fundamentação, mormente por falta de exame crítico das provas, no fundo por não ter explicitado o processo racional que permitiu ao julgador extrair de determinada prova a convicção da verdade histórica dos factos por que foi condenado, apenas se verifica quando inexistem ou são ininteligíveis as razões do tribunal a quo, o que não é o caso, não também quando forem incorrectas ou passíveis de censura as conclusões a que o mesmo chegou (o que não significa também que aqui o sejam).

Face ao exposto, a decisão recorrida não padece de nulidade, considerando o disposto no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP, pelo que improcede o recurso quanto a esta questão.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento

O recorrente censura a factualidade dada como provada vertida nos pontos 17 e 18 dos fundamentos de facto da decisão recorrida, mas não fazendo apelo à prova gravada, nem invocando qualquer dos vícios plasmados no artigo 410º, nº 2, do CPP, antes colocando tão só em causa a formação da convicção do julgador.

Ou seja, o que realmente se extrai, desde logo, das conclusões do recurso (bem como do corpo da motivação) é a divergência entre a convicção pessoal do arguido sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127º, do CPP, cumprindo não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.

Analisemos.

Conforme já se referiu, resulta da sentença recorrida que o tribunal a quo explicitou cabalmente o processo lógico subjacente à formação da sua convicção para dar como assente a factualidade que provada se encontra, agora objecto de crítica.

Conforme resulta da elucidação feita pelo tribunal recorrido, considerou o mesmo a prova indirecta ou por presunções.

De acordo com o artigo 349º, do Código Civil, “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”, admitindo-se as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, como se extrai do artigo 351º do mesmo.

E é perfeitamente possível o recurso à prova indirecta ou indiciária para chegar à convicção que formou o tribunal a quo, pois esta prova (que se distingue da prova directa) é admitida no nosso ordenamento jurídico também no âmbito do processo penal – cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 11/12/2003, Proc. nº 03P3375; 07/01/2004, Proc. nº 03P3213; 09/02/2005, Proc. nº 04P4721; 04/12/2008, Proc. nº 08P3456; 12/03/2009, Proc. nº 09P0395 e de 18/06/2009, Proc. nº 81/04PBBGC.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt e também o Ac. do Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, que decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 127º, do CPP, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal –assim também o Acórdão deste mesmo Tribunal nº 521/2018, de 17/10/2018, que pode ser lido no respectivo sítio.

A prova indirecta reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, da lógica, do raciocínio indutivo e inferência, extrair uma ilação quanto ao tema da prova.

A factualidade que provada está e contra a qual o recorrente se insurge efectivamente não tem correspondência directa nas declarações e depoimentos concretos prestados em audiência de julgamento, mas resulta da verificação de uma relação de normalidade entre os factos de natureza objectiva e a presunção que deles se extraiu, dando-se a conhecer na sentença sob censura o raciocínio através do qual, partindo daqueles, se concluiu pela verificação dos factos objecto da crítica.

E, na verdade, outra possibilidade para eles não se mostra verosímil e de concretização lógica, porquanto se o arguido usualmente e ao longo de vários anos dirigiu a sua esposa e mãe de seus filhos as expressões maluca, vai ao médico, vai-te tratar; também lhe dirigiu, por uma vez, a expressão não vales um caralho; no dia 25/12/2020 disse para mesma: filha da puta…vaca…dormes com todos…tens amantes; em outra ocasião subsequente disse para esta: se eu perder a cabeça não vais ficar cá para contar a história…não me tires do sério se não perco a cabeça; mantém o arguido a chave da residência que partilhou com a esposa, mesmo depois de a ter abandonado e passado a residir em outro domicílio, naquela penetrando quando lhe apraz, correcto se mostra, efetuando um raciocínio de inferência, que se considere como provado que sabia o arguido que reiteradamente dirigia à sua mulher BB as expressões humilhantes e, numa ocasião, uma expressão atemorizadora, que a fez temer pela sua vida e integridade física, debilitando-a psicologicamente, cerceando a sua liberdade pessoal, prejudicando-a no seu bem-estar psicossocial, ofendendo-a na sua dignidade humana, pondo em causa a sua paz e sossego e atentando contra a sua intimidade e liberdade, bem assim que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente em todas as suas ações, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal, não se coibindo de agir como agiu.

Carece, pois, de razão o recorrente quanto à pretendida alteração dos referidos factos.

Termos em que, importa concluir que, quanto a estes factos, a prova produzida foi valorada com razoabilidade e os elementos apontados na sentença como relevantes para a decisão de facto se mostram coerentemente explanados e valorados de acordo com um raciocínio lógico-dedutivo que não fere as regras da experiência comum, encontrando-se sustentados em prova válida e suficiente, não se vislumbrando obliteração alguma das regras da experiência comum.

Conforme decorre da alínea b), do nº 3, do artigo 412º, do CPP - no segmento “as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” - para que ocorra uma alteração da matéria de facto pelo tribunal ad quem não basta que o recorrente articule argumentos que permitam concluir pela possibilidade de uma outra convicção, exige-se que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal a quo é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, se mostra violadora de regras da experiência comum ou se fez uma manifestamente errada utilização de presunções naturais.

Tal exercício não foi feito pelo arguido/recorrente quanto aos factos impugnados, pelo que se não impõe a alteração da matéria de facto no sentido almejado e tem de se considerar, por isso, toda a factualidade dada como provada definitivamente fixada, improcedendo o recurso nesta parte.

Enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente

O recorrente discorda da sua condenação pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea a), do Código Penal.

Consagrava-se no artigo 152º, nº 1, do Código Penal (versão vigente à data da prática dos factos) que “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge – alínea a) - é punido (…)”.

O bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime plasmado no artigo 152º, do Código Penal, será a saúde (abrangendo a saúde física, psíquica, emocional e moral), enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, sendo que este bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela dessa dignidade, projectada numa relação de afectividade ou coabitação, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos – assim, Plácido Conde Fernandes, Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre de 2008, pág. 305 – ou, na perspectiva de André Lamas Leite, “o fundamento último das acções abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo” - A violência relacional íntima, revista Julgar, nº 12 (especial), pág. 49.

Este tipo de crime exige, como elemento objectivo a prática de maus-tratos físicos ou psíquicos cometidos dentro de determinadas relações familiares ou análogas, sendo que essa exigência não pressupõe a repetição de condutas ofensivas da integridade física ou moral, podendo ocorrer a subsunção legal com uma única conduta, desde que a gravidade da mesma permita o enquadramento na figura dos maus-tratos. Já que não são obviamente todas as ofensas ou agressões, quer físicas, quer psíquicas, que se enquadram na previsão legal, mas apenas as que degradem a dignidade humana da vítima, com a inflicção de sofrimento cruel, de acordo com os padrões sociais vigentes, bem como o aproveitamento simultâneo de uma determinada dimensão de fragilidade do outro (neste sentido, por todos, o Ac. R. de Lisboa de 12/10/2016, Proc. nº 413/15.3PFAMD.L1-3, disponível em www.dgsi.pt), mas não coincidente esta, necessariamente, com situações de domínio, sujeição ou dependência. – Considerando mesmo a desnecessidade de comprovação de uma relação de domínio ou dependência, por ausência de referência, na formulação legal, de semelhante requisito, perfila-se o Ac. R. de Coimbra de 22/09/2021, Proc. nº 158/19.5GABBR.C1, que pode ser lido no mesmo sítio.

Provado estão os factos objectivos retro mencionados e também que, ao assim proceder, o arguido agiu com o propósito de molestar física e psicologicamente BB, condicionar o seu dia-a-dia, atemorizá-la, diminuir a sua honra e consideração, o que conseguiu, bem sabendo que as expressões por si proferidas são adequadas a causar medo e inquietação de que pudesse atentar contra a sua integridade física, como efectivamente causaram e de lhe limitar a respectiva liberdade de movimentação.

Assente também se mostra que o recorrente actuou sempre de forma livre e consciente, ciente da proibição das suas condutas.

Ora, os comportamentos do arguido que provados se encontram, retro transcritos e que nos dispensamos de repisar por integrar feito inútil (que o foram não só no momento da reprodução da factualidade dada como provada na sentença como no passo da apreciação da questão da nulidade por falta de fundamentação dessa peça pelo recorrente suscitada), que se desenvolveram por mais de uma ocasião, (ainda que não se exija, como elemento objectivo do tipo, para verificação do crime nele previsto, uma conduta plúrima e repetida, vero é que aqui está ela presente), integram a prática de actos de agressão psíquica e emocional de BB, mãe dos seus filhos, com quem estava casado à data da prática dos factos, com uma intensidade e repercussão que se não podem deixar de considerar como incompatíveis, em termos valorativos, com a sua dignidade enquanto pessoa humana.

Destarte, verifica-se, no caso sub judice, a violação do bem jurídico protegido pela norma, a tal não obstando a eventual circunstância de algumas das expressões poderem ter sido proferidas (o que, aliás, nem sequer está demonstrado) no decurso de desentendimentos conjugais.

Em conclusão, tendo em atenção os factos que provados se encontram, verificados estão os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de violência doméstica por que o arguido foi condenado, inexistindo circunstâncias excludentes da ilicitude ou da culpa, pelo que também não merece censura a sentença neste segmento.

E, não tendo o arguido, no âmbito do recurso, colocado em causa as penas principal ou acessória aplicadas, cumpre negar provimento ao mesmo.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.

Évora, 12 de Setembro de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(Edgar Valente)

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(Laura Goulart Maurício)