Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4988/12.0TBPTM-A.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
CONSTITUIÇÃO
DÍVIDA
Data do Acordão: 06/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: REVOGADA
Sumário: O art.º 46.°, n.º 1, alínea c), do Cód. Proc. Civil anterior, não distingue entre títulos que reconheçam uma obrigação ou títulos que constituam uma obrigação, nem exige para o primeiro caso menos formalidades do que exige para o segundo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

Por apenso à execução n.º 4988/12.0TBPTM, para pagamento de quantia certa, intentada pela exequente AA contra a executada BB, Crl., deduziu esta oposição à execução, pedindo o seguinte:
A declaração de ilegitimidade da exequente.
A extinção da execução por inexequibilidade do título executivo e inexigibilidade da obrigação exequenda.
Alegou também que os juros a aplicar são os juros civis e não os juros comerciais.
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A embargada contestou.
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No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade.
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O processo prosseguiu para julgamento.
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Foi proferida sentença que julgou parcialmente procedentes os embargos nestes termos:
1 - Julgo válidos e eficazes os títulos executivos para o pagamento da quantia exequenda peticionada de 148.391,48€ (cento e quarenta e oito mil trezentos e noventa e um euros e quarenta e oito cêntimos).
2 - Determino que sejam contabilizados juros à taxa legal de 4%, contabilizados a partir da data de citação até integral e efetivo pagamento que, à data de entrada da oposição à execução se cifravam em 325,00€.
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Desta sentença recorre a executada impugnando a solução de direito.
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A recorrida contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos.
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A matéria de facto é a seguinte:
l . A executada é uma Cooperativa que se dedica à atividade de produção, engarrafamento e venda de vinho a partir da matéria-prima - uvas - que lhes é entregue pelos cooperantes.
2. CC, cooperante da executada, falecido em 16 de maio de 2008, era titular de 4289 títulos de participação no valor de vinte e um mil quatrocentos e quarenta e cinco euros no capital da executada BB CRL.
3. A exequente é filha de CC, sendo que, por escritura de partilha celebrada no dia vinte e três de novembro de dois mil e nove, a participação indicada em 2 foi adjudicada à exequente, passando esta a assumir a qualidade de cooperante.
4. CC e, após o seu falecimento, a exequente, dedicam-se ao cultivo da vinha e entregaram nas instalações da executada, as seguintes quantidades de uva:
180.650,00 quilos no ano de 2006
138.260,00 quilos no ano de 2007
117.770,00 quilos no ano de 2008
121.410,00 quilos no ano de 2009
Perfazendo um total de 558.090,00 quilos.
5. Por causa da factualidade descrita em 4, DD, na qualidade de Presidente da Direção da executada, assinou em nome desta, as declarações dadas à execução, constantes a fls. 5 a 7 e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
6. A executada, como contrapartida da entrega das uvas a que se alude em 4 a. dos factos provados, pagou à exequente 27.707,88€ (vinte e sete mil setecentos e sete euros e oitenta e oito cêntimos), a título de 50% do valor devido pelas uvas referentes ao ano de 2006, nada mais pagando.
7. A executada efetua o pagamento da uva aos seus cooperantes, além do mais, em função do grau das mesmas, do peso e da casta.
8. A exequente emitiu e entregou à executada as seguintes faturas:
a) Fatura n.º 27, emitida e vencida em 19 de novembro de 2006 no valor de 48.172,00€
b) Fatura n.º 29, emitida e vencida em 30 de novembro de 2007, no valor de 32.260,00€
c) Fatura n.º 31, emitida e vencida em 30 de novembro de 2008, no valor de 38.924,67€
d) Fatura n.º 2, emitida em 30 de novembro de 2009, no valor de 40.470,00€
9- Os valores descritos em 8, foram indicados pela contabilidade da executada à exequente a título de estimativa, após a entrega das uvas em cada ano, que poderiam ser sujeitos a acerto posterior.
10. Os valores indicados em 8 a) e b) referentes à entrega da uva nos anos de 2006 e 2007, foram sujeitos a acertos comunicados pela executada, nos seguintes termos:
O valor das uvas entregues por CC em 2006 foi valorizado de 48.172,00€ para 55.415,75€
O valor das uvas entregues por CC em 2007 foi valorizado de 32,260,OO€ para 41.288,94€
11. Em 2009, a executada em sede de balanço analítico, na conta 251 + 255, referente a dívidas a terceiros - Curto prazo - outros acionistas (sócios), declarou o valor de 2.i63.083,98€ (dois milhões cento e sessenta e três mil e oitenta e três euros e noventa e oito cêntimos).
12. A executada elaborou Relatório e Contas da Direção e Parecer Fiscal, referente ao exercício de 2010, constante a fls, 209 a 217, que aqui se dá por integralmente reproduzido e onde, com relevância para decisão da causa se lê, além do mais, o seguinte:
"(. .. ) 6. SITUAÇÃO ECONÓMICO-FINANCEIRA (...)
• Dívida aos sócios em 2010 - 2.428.208,65€
(. . .) Continua a ser grande preocupação da Direcção a divida aos sócios e têm sido desenvolvidos esforços junto da banca e outras entidades financeiras para a procura de soluções que permitam o pagamento das uvas.
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São dois os temas em discussão.
Começaremos pela questão da inexigibilidade do título.
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A este respeito, alega a recorrente:
As declarações apresentadas aos autos como título executivo não detêm os legais requisitos de exequibilidade e exigibilidade.
Somente a declaração datada de 23.3.2009 contém uma menção ao reconhecimento de uma obrigação pecuniária;
As demais declarações de fls. 5 a 7 contêm somente um reconhecimento de entrega de uvas com um valor, mas não o reconhecimento e constituição de uma qualquer obrigação pecuniária.
As declarações de fls. 5 a 7 dos autos foram subscritas somente pelo então presidente da direcção da Executada, que de uma cooperativa se trata.
Logo, os títulos executivos à execução não detêm a necessária força executiva.
Os estatutos da executada prevêem expressamente no seu art.º 37.º que a executada obriga-se com a assinatura de 2 membros da direcção, algo que, aliás, reproduz o artigo 58º do Código Cooperativo.
No entender da recorrente um título executivo não poderá nunca ser um mero acto de expediente, proveniente de uma entidade de cariz colectivo.
In casu, a executada obriga-se com a assinatura de, pelo menos, dois membros da direcção, sendo que as declarações juntas nos autos somente o foram pelo presidente daquele órgão colegial da executada.
Pelo que, o tribunal recorrido violou as disposições constantes no art.º 37.º dos estatutos da executada e, bem assim, o disposto no art.º 58.º do C. Cooperativo.
As declarações de fls. 5 a 7 também não contêm a indicação da qualidade em que outorgante assina, somente o carimbo da executada, pelo que, integralmente, viola o disposto no art.º 409º, n.º 4, do CSC.
Assim sendo, os títulos executivos dados à execução não contêm os requisitos legais necessários para deterem exequibilidade, por total ausência de serem outorgados por dois membros da executada, além de que, não possuem os mesmos os requisitos essenciais previstos no art.º 46.º nº 1, al. c), do CPC.
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No essencial, e quanto a este problema, a recorrida contra-alega nestes termos:
Não consubstanciando as declarações em causa a constituição de uma obrigação ex novo para executada mas apenas o reconhecimento da existência de uma obrigação consubstanciada no dever de pagamento do preço da uva fornecida pela exequente, nos termos dos Estatutos da executada e recorrente, a assinatura de um único membro da Direção é suficiente para o reconhecimento da dívida [art.º 46.°, n.º 1, alínea c), do Cód. Proc. Civil].
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A sentença, na sua fundamentação de direito, começa por reproduzir o art.º 37.º dos Estatutos, correspondente ao art.º 58.º do Código Cooperativo (de 1996 e que foi revogado pela Lei n.º 119/2015):
«1 - Para obrigar a Cooperativa são bastantes 2 assinaturas de quaisquer dos membros da direção.
«2 - Nos atos de mero expediente é suficiente a assinatura de um dos membros da direção».
E acrescenta:
«Importa assim aferir se o ato de declarar o montante devido pela entrega das uvas é um ato de mero expediente, na medida em que se não o for, o título executivo não é válido». Com base neste raciocínio prossegue a sentença: a «declaração assinada pelo Presidente da Direção consubstancia mero ato de expediente, declarativo dos valores em dívida, na medida em que — reitera-se — não foi constituída uma nova obrigação, mas sim emitida uma declaração de reconhecimento de uma obrigação há muito constituída». Termina: é «assim de concluir que, neste caso em concreto, basta a assinatura de um membro da direcção por se tratar de ato de mero expediente»; isto porque da «prova produzida resultou claro que não foi o Presidente da Direção que, sozinho, decidiu ou negociou com a exequente os montantes a pagar pela uva entregue».
Subjacente à primeira afirmação, está a noção que um acto de expediente é um título executivo.
Subjacente à segunda afirmação está a ideia de que o título formal, o documento que titula a obrigação é diferente consoante se trate de um caso de constituição de obrigação ou de um caso de reconhecimento da obrigação.
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Em primeiro lugar, não são os Estatutos da recorrida que definem a força executiva dos documentos particulares.
O preceito é outro.
Importa, por isso, reproduzir o art.º 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil (na redação vigente à data da entrada em vigor do novo diploma, dado o disposto no art.º 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013 bem como a decisão do Tribunal Constitucional publicada no D.R., I, de 14 de Outubro de 2015):
«À execução apenas podem servir de base:
(…)
b) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto».
Em parte alguma podemos descortinar uma referência a actos de expediente tal como não podemos descortinar alguma diferença entre constituição ou reconhecimento de uma obrigação.
Para que um acto de expediente criasse ou servisse como título executivo, seria necessário que a lei assim o dissesse; da mesma forma, para que a constituição do título fosse diferente (conforme se tratasse de constituição ou reconhecimento; mais exigente no primeiro caso, menos exigente no segundo) seria necessário que a lei o dissesse também.
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Em relação ao primeiro aspecto, pouco há a dizer. Acto de expediente, nesta matéria, é figura que não existe na lei. Embora, desde sempre, tenham sido conferida exequibilidade a documentos particulares de que constem a obrigação de pagamento de quantia determinada (com a evolução registada por Lebre de Freitas et alli em Cód. Proc. Civil Anotado, vol. 1.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 89), nunca os comentadores colocaram a possibilidade de distinguir entre actos de expediente e outros que o não são (nem na sentença nem nas contra-alegações se lhes dá um nome), permitindo a uns força executiva e a outros não. E nunca colocaram tal possibilidade porque ela não existe.
Cremos que a única razão, pelo menos aparente, para a utilização daquele nome resulta de o citado artigo dos estatutos da recorrente o mencionar. Mas fá-lo para se referir a actos de carácter burocrático, fá-lo a respeito de toda uma imensidão de actos que não carece da intervenção de dois membros da direcção. E isto nada tem que ver com a formação de um título executivo.
O fundamental, para que de títulos executivos se fale, é que o documento esteja assinado pelo devedor — e este compromete-se de acordo com uma assinatura com uma dada forma (no caso, a assinatura de dois membros da direcção).
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Em relação ao segundo aspecto, e como se disse, a lei não distingue na formação do título executivo declarações que constituam uma obrigação ou a reconheçam. Qualquer uma destas realidades incorporadas num documento escrito cria-se de uma só mesma maneira: escrevendo. Escrevendo qual a obrigação que se constitui ou que se reconhece (a que resulta de um contrato escrito, a que consta de uma declaração unilateral, nos termos do art.º 458.º, Cód. Civil, etc.).
Ora, tanto a sentença como a recorrida nas suas alegações distinguem uma coisa (reconhecimento) da outra (constituição) querendo com isto significar que, para um simples (enfim) reconhecimento de dívida não se exigem tantos requisitos como se exigem para a declaração de constituição. As conclusões lógicas que se impõem, seguindo este modo de pensar e neste caso em concreto, é que (1.ª) a declaração da recorrente que constitua uma obrigação exige duas assinaturas e que (2.ª) a declaração da recorrente que reconheça uma obrigação exige uma assinatura.
Algo não está bem aqui.
O título executivo é uma declaração incorporada num único documento (ou, no limite, acompanhado de outros documentos por vezes chamados complementares); ponto é que pela sua leitura se constate a existência literal de uma obrigação. É indiferente, para a atribuição de força executiva, que o sentido declarativo do documento se refira à constituição de uma obrigação ou ao seu reconhecimento; o que é necessário é que o documento revele a sua existência.
Perante o que temos à nossa frente, ou seja, declarações que contêm um reconhecimento de entrega de uvas com um determinado valor, declarações estas assinadas apenas pelo então Presidente da cooperativa, o que se pode dizer?
Só uma coisa: isto não é titulo executivo.
Não há uma declaração de dívida (e para arredar questões inócuas, tanto faz que sejam constituídas como reconhecidas) cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes. E tanto é assim que os valores indicados nelas são estimados e sujeitos a acertos.
Por outro lado, a declaração não está assinada pelo devedor mas apenas por uma pessoa que, por si só, não pode vincular a recorrida. Esta, como eventual devedora, há-de emitir a sua declaração da forma que os Estatutos (e a lei) exigem; só assim poderemos dizer que a declaração está assinada pelo devedor.
Tanto basta para julgar procedente o recurso.
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Uma vez que foram dados à execução documentos que não são título executivo, a execução cai pela base (cfr. art.º 45.º, n.º 1, do Código anterior, e 10.º, n.º 5, do actual).
Isto tem como consequência que o segundo tema das alegações da recorrente (e que se prendem com a exigibilidade da obrigação) não pode ser aqui e agora conhecido; está prejudicado pela solução dada ao primeiro problema.
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e revoga-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrida.
Évora, 16 de Junho de 2016

Paulo Amaral


Rosa Barroso


Francisco Matos