Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1433/20.1T8FAR-A.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: RECTIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS
RECTIFICAÇÃO DE SENTENÇA
COMPETÊNCIA
RECURSO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I -A rectificação de lapsos materiais da decisão da 1ª instância deve ser efectuada por quem proferiu a decisão e não pelo tribunal de recurso já que o artigo 614º nº 2 do CPC aponta para a ligação da rectificação ao Juiz/Autor e quando faz alusão ao tribunal de recurso parece determinar que este só possa analisar a questão após a rectificação já efectuada (ou indeferida) pelo juiz da 1º instância.
II - Padecendo a decisão recorrida de total ausência de fundamentação de facto, ou seja, omitindo-se nessa sentença por completo a especificação/descriminação dos factos em serviram de suporte ao julgamento de direito que conduziu à decisão final, deve oficiosamente o tribunal ad quem, à luz do art. 662º, nº2, al.c), do CPC, anular tal sentença e determinar que, na 1ª. instância, seja proferida nova sentença com a colmatação tal vício/deficiência. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam as juízas da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 - Relatório.

O MºPº propôs, em, ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais contra N… e T…, relativamente à filha menor de ambos L…, alegando que os pais não vivem juntos e não estão de acordo quanto ao exercício das responsabilidades parentais.
Na conferência de pais a que alude o art.º 35.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível foi proferida decisão que regulou o exercício das responsabilidades parentais, constando da acta o seguinte:
(…) Seguidamente a Mmª Juíza tomou declarações à Requerida N…, tendo em súmula sido declarado que: --
Viveram juntos alguns tempos durante a gravidez.
Quando a criança nasceu a relação já tinha terminado.
O pai foi ver a filha ao hospital.
Ficou sozinha com a filha nos primeiros 10 dias.
Depois teve necessidade que o pai a ajudasse a assegurar os cuidados à filha, o que ocorreu durante cerca de duas semanas.
Depois disso o Requerido saiu novamente de casa e a partir desse momento nunca mais contactou nem procurou a filha.
O Requerido disse-lhe que não ia ver a filha porque precisava de se organizar primeiro e não pagava nada enquanto não fosse o Tribunal a estipular um valor justo.
Em agosto apareceu em casa sem avisar deixando um saco com fraldas e papas com o irmão da declarante.
Depois apareceu outra vez também sem avisar e como não estava em casa chamou a CPCJ.
A criança encontra-se ainda a ser amamentada. Vai iniciar agora a sopa.
Está desempregada, recebendo subsídio no montante de 430 €.
Vive com a sua mãe que é reformada por invalidez numa casa camarária.
Paga de infantário 33 € mensais.
Pretende a fixação da residência da menor.
De seguida a Mmª Juíza tomou declarações ao Requerido T…, tendo declarado que, resumidamente:
Souberam que iam ser pais em agosto de 2019 e ficou muito contente com isso e arranjou meios, com trabalhos a mais, para fazer face às despesas que se aproximavam. Cinco dias antes da bebé nascer foi agredido pela N… e saiu de casa. Reataram a relação cerca de 5/6 dias após a criança ter vindo para casa.
Durante o tempo que durou todo o relacionamento foi colocado várias vezes na rua, chegou a dormir dentro do carro, e depois passou a viver numa roulote, no parque de campismo.
Atualmente vive numa casa em Faro.
Pretende ser um pai presente e efetivo desta criança.
Encontra-se a trabalhar auferindo mensalmente a quantia de 800 € com os descontos.
Neste momento apenas poderá contribuir com uma pensão de alimentos no valor de 100 € mensais, por causa das despesas com renda, àgua, gás, luz, alimentação e gasolina.
O Requerido pretende a residência alternada.
Pelo ilustre Patrono nomeado à requerida, foi referido que a progenitora decidiu interromper a possibilidade de convívios do pai com a menor durante o período de pandemia, por este manter um estilo de vida muito boémio.
Dada a palavra ao Digno Procurador da República no uso da mesma disse:
PROMOÇÃO
“Promovo que se remetam os progenitores para audição técnica especializada, nos termos do art. 38º alínea b) do RGPTC, solicitando-se à técnica gestora visita domiciliária e entrevista a ambos progenitores para desmontar as questões de conflito entre ambos.
Promovo que se fixe provisoriamente o regime da regulação das responsabilidades parentais nos seguintes termos:
1. Fixa-se a residência da criança, L…, junto da mãe, competindo a esta o exercício das responsabilidades parentais, relativamente a todos os atos da vida corrente da filha, nomeadamente, dirigir a instrução, educação e saúde.
2. As responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente e às questões de particular importância para a vida da filha serão exercidas pelos progenitores, sendo questões de particular importância, nomeadamente as seguintes:
a) A fixação da residência no estrangeiro;
b) As decisões sobre o credo religioso até este completarem 16 anos;
c) A administração de bens que impliquem oneração;
d) A autorização para casamento;
e) A autorização para obter licença de condução de ciclomotores;
f) As intervenções cirúrgicas que impliquem perigo de vida ou estéticas;
g) A representação em Juízo.
3. Ao progenitor assiste o direito de ser informado sobre o modo do seu exercício,
designadamente, sobre a educação e as condições de vida da criança.
Convívios
4. O pai conviverá com a menor sempre que puder, combinando previamente com a progenitora e sem prejudicar os horários de descanso da menor. Os convívios ocorrerão por ora, na residência da progenitora, sem pernoita, porquanto a menor ainda se encontra a ser amamentada ao peito.
Pensão de Alimentos
5. O pai, a título de pensão de alimentos, entregará à mãe da criança, a quantia mensal de 100,00 €, até dia 8 do mês a que disser respeito essa prestação.
6. Ambos os progenitores suportarão na proporção de metade as despesas de saúde (médicas e medicamentosas), bem como a despesa de infantário (atualmente 33 €), mediante a apresentação de cópia do respetivo recibo.
De seguida pela Mmª Juíza foi proferido o seguinte:
DESPACHO
“Atenta a falta de acordo dos progenitores fixo provisoriamente o regime das responsabilidades parentais nos termos doutamente promovidos.
Atenta a falta de acordo remetem-se os progenitores para audição técnica especializada (ATE), nos termos do artigo 38º alínea b), por remissão do artigo 23º, ambos do RGPTC, solicitando-se à Sr.ª Técnica gestora a audição das partes, tendo em vista a avaliação diagnóstica das competências parentais e a aferição da disponibilidade dos progenitores para um acordo em matéria de regulação do exercício das responsabilidades parentais, tendo em vista o superior interesse da criança, devendo prestar informação verbal na continuação da conferência após a ATE, informando que a Requerida pretende a fixação da residência com ela e o Requerido pretende a fixação da residência alternada.
Notifique."
A requerida veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
« a) Normas jurídicas violadas:
1) Foi violado pelo Tribunal a quo, o artigo 1902º, nº 1 e 1903º, nº 1 do Código Civil, pois não interpretou que a interrupção das visitas promovida pela progenitora mãe teve como único objectivo a protecção da saúde da menor. A progenitora mãe na ausência do progenitor pai e por este ter um estilo de vida boémio decidiu interromper os convívios que se vinham promovendo atento o agravar da situação de pandemia de covid-19 que vivemos.
2) Foi também violado o artigo 19º da Constituição da República Portuguesa – suspensão de direitos: pois o tribunal a quo não deu a devida relevância ao estilo de vida boémio do progenitor pai e às implicações que pode ter para a saúde da menor, tendo em conta o momento excepcional que vivemos de pandemia do covid- 19, a suspensão do regime de visitas é essencial à boa decisão da causa e que salvaguarda o superior interesse da menor Larisa, que não podemos esquecer tem pouco mais de seis meses de vida.
3) Foi ainda violado o artigo 42º, nº 1 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, uma vez que existem circunstâncias supervenientes (Decreto do Presidente da República n.º 51-U/2020 de 6 de Novembro) que tornam necessário alterar o regime provisório que foi fixado.
Termos em que se pede a V. Exa. seja dado provimento ao presente recurso e se altere a decisão provisória proferida em 1ª instância de forma que seja decretado o seguinte:
a) As responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente serão exercidas pela progenitora mãe e as questões de particular importância serão exercidas por ambos os progenitores.
b) Declarar a interrupção temporária do regime de visitas enquanto perdurar o estado de emergência devido à pandemia de covid-19, devendo ser promovidos contactos entre a menor e o progenitor pai através de meios tecnológicos como videoconferência por Skype, Facetime, Whatsapp ou outros.
Termos em que se pede a Costumada Justiça»
Nas contra-alegações, o requerido conclui da seguinte forma:
« I Por douto despacho de fls…, datado de 4 de Novembro de 2020, proferido em sede da 1.ª conferência de pais, o Tribunal a quo fixou provisoriamente o regime das responsabilidades parentais da menor L…, nascida em 2 de Maio de 2020.
II A Recorrente veio apresentar recurso do douto despacho proferido pelo Tribunal a quo, invocando que:
- existe uma contradição entre o ponto 1 e 2 da decisão provisória, ora atribuindo o exercício das responsabilidades parentais quanto aos atos de vida corrente da menor à Recorrente (ponto 1), ora atribuindo a responsabilidade quanto ao exercício de tais atos da vida corrente da menor a ambos os progenitores (ponto 2); e
- O Tribunal a quo não teve assim em conta o superior interesse da menor L…, porquanto, atenta a situação de pandemia do Covid-19 e um alegado estilo de vida boémio do Recorrido, a menor devia estar protegida de todo e qualquer contacto físico com o Recorrido, promovendo-se outro tipo de contacto como por exemplo através de videochamada e interrompendo-se todo e qualquer contacto físico enquanto durar a situação de pandemia de covid-19 (ponto 4).
III Ora, no que se refere à primeira questão suscitada, é entendimento do Recorrido que assiste razão à Recorrente.
IV Uma vez que resulta visível que, no ponto 2., o segmento “aos atos da vida corrente e” foi introduzido por engano no momento da elaboração da ata.
V E, os atos da vida corrente competirão, efetivamente, à Recorrente, junto da qual foi fixada provisoriamente a residência da criança, L….
VI Contudo, no que se refere à segunda questão suscitada (ponto 4), não pode o Recorrido deixar de referir que a mesma é chocante, aberrante e revela um profundo desconhecimento das funções parentais por parte da Recorrente.
VII O Recorrido não tem qualquer tipo de vida boémia nem tal alegação se encontra alicerçada em quaisquer fatos concretos, passiveis de serem contrariados, constituindo tal alegação constitui um mero juízo conclusivo, desprovido de conteúdo.
VIII O Recorrido cumpre com todas as normas e regras sanitárias de higiene e segurança dimanadas pelas autoridades competentes.
IX A Recorrente mostra desconhecer que os menores necessitam igualmente do pai e da mãe.
X As crianças não são meras mercadorias, sujeitas aos caprichos absurdos dos seus progenitores.
XI Pois, nenhum deles pode preencher integralmente as funções que ao outro progenitor cabem.
XII A menor L… necessita do amor e do aconchego físico da sua mãe e do seu pai, conforme resulta do mero bom senso.
XIII Pois, a atual situação de pandemia não pode servir de pretexto para afastar os pais da vida dos filhos e para fazer privar os menores do afeto de ambos os pais.
XIV Pelo que, sem necessidade de maiores considerações, afigura-se que a decisão recorrida deverá ser integralmente mantida quanto a tal ponto 4.
Nestes termos e nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deve douto despacho de fls…, datado de 4 de Novembro de 2020, proferido em sede da 1.ª conferência de pais, ser alterado quanto ao seu ponto 2 e mantido quanto ao seu ponto 4, tudo nos termos expostos e com as respetivas consequências legais, pois, só assim se fará JUSTIÇA!»
Nas contra-alegações, o MºPº conclui da seguinte forma:
«1. O apontado lapso de escrita revela-se do próprio contexto da promoção e consequente despacho, porque procedente do referido ponto 1, o qual respeita aos atos da vida corrente da filha menor.
2. Deste modo, haverá lugar à aplicação do disposto no artigo 614.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, ex vi o artigo 33.º Regime Geral do Processo Tutelar Cível, e, consequentemente, proceder à retificação do mencionado ponto 2, dele devendo ser “retirado” a dita expressão: “As responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente…”, o qual passará a ter a seguinte redação: "2. As questões de particular importância para a vida da filha serão exercidas pelos progenitores, sendo questões de particular importância, nomeadamente as seguintes: (…)"
3. Não ficou estabelecido que o pai assume comportamentos que elevem o risco de contágio de sua filha por COVID-19.
4. Só quando se concretize, em termos factuais, que o outro pai não adota as exigidas medidas de segurança por forma a salvaguardar a saúde da criança é que se poderá entender como justificado restringir-se ou limitar-se os convívios.
5. Atendendo a que a criança L… não tem sequer um ano de idade – nasceu no dia 2 de maio de 2020 -, não se concebe que seja possível que o pai/requerido estabeleça com esta uma relação de proximidade através de meios tecnológicos, como é pretensão da recorrente.
6. Decidir-se que os convívios sejam estabelecidos através de tais meios, traduz-se no esvaziamento total de tais convívios, ferindo de forma injustificada os direitos do pai/requerido e, mais grave ainda, ferindo também o superior interesse da criança.
7. O estado pandémico, por si só, não pode ser utilizado para afastar a filho do outro pai.
8. Assiste assim razão parcial à ora recorrente, devendo a decisão proferida ser sanada nos termos supra descritos, mantendo-se o demais regime fixado nos seus precisos termos.«
No entanto, Vossas Excelências farão a costumada justiça.»
Dispensados os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.


2 - Objecto do recurso.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A nºs 1 e 3 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir (ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC ex vi artº. 33º do RGPTC, aprovado pela Lei nº. 141/2015, de 08/09) são as seguintes:
1.ª Questão - Saber quem deve proceder à rectificação de um eventual lapso material.
2ª Questão – Saber se a nulidade da sentença por falta de fixação da matéria de facto é do conhecimento oficioso.


3 - Análise do recurso.

1.ª Questão - Saber quem deve proceder à rectificação de um eventual lapso material.

A recorrente invoca a existência de uma contradição entre o ponto 1 e 2 da decisão provisória, ora atribuindo o exercício das responsabilidades parentais quanto aos atos de vida corrente da menor à Recorrente (ponto 1), ora atribuindo a responsabilidade quanto ao exercício de tais atos da vida corrente da menor a ambos os progenitores (ponto 2).
Tanto o requerido como o MºPº concordam que se trata de lapso material.
Nos termos do Artigo 614.º do CPC - Retificação de erros materiais:
« 1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.
3 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo.»
Como se pode ler no Acórdão do STJ de 12.02.2009 (proferido no processo nº 08A2680, www.dgsi.pt) “o erro material (como se escreveu no Acórdão desta secção, com o mesmo relator, P.º 87/09): na sua modalidade escrita (‘lapsus calami’) consiste na inexactidão, na expressão da vontade do julgador, por lapso notório, mais frequentemente traduzido em erros de escrita ou de cálculo.
Mas é necessário que resulte evidente do texto essa decisão. Haverá, pois, uma divergência, clara e ostensiva, entre a vontade real do decisor e o que veio a ser exarado no texto. É um tipo de erro, tal como o descrito na lei substantiva (artigo 249.° do Código Civil) ‘...revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita...’. É tratado como uma sub-espécie de erro-obstáculo, que terá de ser constituído por um lapso ostensivo, não podendo existir fundada dúvida sobre o que se quis declarar. (cf. Prof. Manuel de Andrade — “Teoria Geral da Relação Jurídica”, n.° 134, VI; Conselheiro Rodrigues Bastos, “Das Relações Jurídicas”, III, 94).
Na visão processual do Prof. Castro Mendes, o ‘erro material ou lapso é a inexactidão ou omissão verificada em circunstâncias tais que é patente, através dos outros elementos da sentença ou até do processo, a discrepância com os dados verdadeiros e se pode presumir por isso uma divergência entre a vontade real do juiz e o que ficou escrito.’ (“Direito Processual Civil”, 1969, II, 313).”

A questão que se suscita de imediato é a da admissibilidade da rectificação pelo tribunal superior.
Concordamos com o entendimento de que, decorre do art. 614º do CPC que a rectificação de lapsos materiais da decisão da 1ª instância deve ser efectuada por quem proferiu a decisão e não pelo tribunal de recurso.
Com efeito, se o erro material pressupõe uma divergência entre a vontade real do juiz e aquela que declarou, será este que está melhor colocado para saber o que pretendia escrever.
Além disso, quando o artigo 614º nº 2 do CPC refere que “a rectificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação” aponta para a ligação da rectificação ao Juiz/Autor e quando faz alusão ao tribunal de recurso parece determinar que este só possa analisar a questão após a rectificação já efectuada (ou indeferida) pelo juiz da 1º instância.
Nesse sentido, Prof. A. Reis, vol. V, pág. 136 e Cons. R. Bastos , III, pág. 244: «…a rectificação de erros materiais da sentença ou do Acórdão da 2.ª instância só pode ser feita pelo Tribunal que cometeu esse erro, ainda que, ao Tribunal superior compita considerar e apreciar, na hipótese de recurso, rectificação que tenha sido efectuada o que não é o caso vertente».
No mesmo sentido, Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 8.ª edição, pg. 49 e Ac. RP de 13-12-2011, Proc. nº 2445/05.0TBCCD.P2, relator: Márcia Portela e Ac. do STJ, de 1994.06.28, Cardona Ferreira, CJSTJ, 1994, II.
(Parecem ter a posição contrária Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado", vol. II, Coimbra Editora, 2.ª edição, pg. 701 e o acórdão do STJ, de 2006.09.19, Ribeiro de Almeida, www.dgsi.pt.jstj, proc. 06A2372).
Pelo exposto, deverá ser o Mº juiz a quo a apreciar o alegado erro material.


2ª Questão – Saber se a nulidade da sentença por falta de matéria de facto é do conhecimento oficioso.

A recorrente pretende ainda, a alteração da decisão no sentido de acautelar o superior interesse da menor L…, porquanto, atenta a situação de pandemia do Covid-19 que vivemos e atento o estilo de vida boémio do progenitor pai, que não foi contestado pelo próprio, deveria ter tido outra a decisão, no sentido de proteger a menor de todo e qualquer contacto físico com o progenitor pai, promovendo-se outro tipo de contacto como por exemplo através de videochamada e interrompendo-se todo e qualquer contacto físico enquanto durar a situação de pandemia de covid-19 que parece agravar-se a cada dia que passa.
Vejamos:
Da análise da sentença verificamos que o seu conteúdo consiste apenas na parte do “dispositivo” (só determina) e dela não consta a enunciação dos factos que o tribunal a quo tem por provados ou sequer minimamente indiciados, omitindo completamento o julgamento de facto, com base no qual se permitiu instituir, a titulo provisório e cautelar (nos termos do artigo 28° do Regime Geral do Processo Tutelar Cível aprovado pela Lei n° 141/2015), o regime de exercício das responsabilidades parentais.
A decisão recorrida não discrimina os factos que que se serviu para decidir nem o inerente processo lógico de convicção para selecção desses factos, ou seja, não há qualquer apreciação crítica da prova produzida, não se sabe em que medida foram consideradas as declarações prestadas.
As decisões judiciais (sejam elas sentenças ou simples despachos) carecem de ser fundamentadas, por força do art. 205°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa e, ao nível da lei adjectiva ordinária, o art. 154°, n° 1, do CPC (não é por ser uma decisão de natureza provisória que não tem que ser fundamentada).
Especificamente, no que à sentença diz respeito, o art. 607°, n° 3, do CPC, ao ocupar-se daquela parte da sentença que designa por fundamentos, impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados antes de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes: O direito aplica-se aos factos.
Aliás, se foram tomadas declarações a ambos os progenitores, fazendo (inclusivamente) constar da Acta da diligência um extracto dessas declarações, o tribunal a quo não podia deixar de consignar quais os factos indiciariamente considerados provados.
Esta omissão consubstancia a nulidade da alínea b) do n° 1 do artigo 615° do Novo Código de Processo Civil («é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão»).
No caso dos autos esta nulidade não foi arguida pelas partes nem foi objecto de recurso.
Quid júris?
Entendemos que, não obstante essa falta de oportuna arguição da nulidade incorrida pela decisão em apreciação (por vício pertinente à sua elaboração e estruturação, ou seja vício formal da decisão) e porque tal omissão consubstancia simultaneamente um outro vício legal diferente (relativo ao conteúdo da própria decisão de facto), pode o mesmo - nesta segunda vertente - ser apreciado oficiosamente por este Tribunal da Relação, ao abrigo do regime previsto no art. 662º, nº 2, als. c) e d) do C.P.C..
Senão vejamos:
De acordo com o art. 662º, nº 2, al. c), do C.P.C. que a «Relação deve (…), mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que (…) permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto (…)».
A este propósito, conclui António Abrantes Geraldes, a propósito da situação em se verifique que a decisão sobre a matéria de facto omitiu a «pronúncia sobre factos essenciais ou complementares», possui uma «natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa», ou revela «incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso», que deve o Tribunal da Relação, oficiosamente, anulá-la, quando não lhe seja possível» suprir tais vícios , in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Julho de 2013, p. 239 e 240.
Então se assim é, entendemos que, por maioria de razão, não pode deixar de o fazer quando a decisão omita completamente a discriminação dos factos provados e não provados, já que neste caso estamos perante a maior deficiência possível: a inexistência da fixação da matéria de facto na sentença.
Finalmente, importa ainda referir – a favor desta posição - que a violação da imposição de discriminação dos factos provados e não provados, prejudica em primeiro lugar as próprias partes, que desde logo desconhecem a convicção de quem decidiu e por isso não poderão exercer uma verdadeira defesa da sua eventual discordância, ficando assim comprometido, o ónus da parte de impugnação que lhes está cometido pelo art. 640º, nº 1, als. a) e b) do C.P.C.,
É que, a fixação dos factos são pressupostos do recurso.
Crucial é a indicação e especificação dos factos provados e não provados e a indicação dos fundamentos por que o Tribunal formou a sua convicção acerca de cada facto que estava em apreciação e julgamento.
«É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).
E nem se diga que deverá ser o tribunal de recurso a suprir essa nulidade, pois desde logo estaríamos a suprimir um grau de jurisdição.
Em suma, sendo a omissão total da matéria de facto o grau máximo da deficiência, deve considerar-se oficiosamente nula, nos termos do art. 662º nº 2 al. c) do CPC e tal nulidade deve ser suprida pelo Mº Juiz a quo.
Nesse sentido, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV Volume, Coimbra Editora, Limitada, p. 553, quando refere que: «na expressão «deficiência» caberá necessariamente, não só a falta de decisão sobre um facto essencial, como a falta absoluta de decisão sobre todos os factos essenciais»; Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 611; Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2ª edição, Almedina, Outubro de 2009, p, 227;
Na jurisprudência a admitir a anulação oficiosa com base no art. 662º, nº 2, al. c), do C.P.C. : Ac. RG de 17-05-2018, proc. nº 2056/14.0TBGMR-A.G1, (relatora: Maria João Matos); Ac. RC de 19.02.2013, proc. nº nº 618/12.9, (relator: Virgílio Mateus); Ac. RL de 20.12.2018 proc. nº 78/14OTBVFX-C-L1-7 (relator: Diogo Ravara) e Ac. RL de 27-10-2009, proc. nº 3084/08.0YXLSB-A.L1-1 (relatora. Maria José Simões), onde se pode ler o seguinte: « E isto porque, se houver uma total ausência de decisão sobre a matéria de facto, não pode este Tribunal exercer o poder censório, não só quanto à matéria de facto provada, como também sobre o direito aplicado e aplicável. É que os conflitos de interesses entre as partes e as relações materiais controvertidas traduzem-se em factos, aplicando-se o Direito aos factos alegados e provados, pelo que, faltando a matéria de facto provada, falta um dos pressupostos necessários de julgamento, ignorando-se e não sendo possível conhecer se foi aplicado bem ou mal o Direito correspondente. Aliás, tal procedimento também impede as partes de cabalmente argumentarem na defesa das suas posições (nomeadamente, impugnando a decisão sobre a matéria de facto) porquanto desconhecem a convicção do Mmº Juiz a quo, restando-lhes supor que factos terá considerado como provados para concluir como o fez.»
E ainda Ac. RC, de 14-11-2017, proc. nº 3309/16.8T8VIS-A.C1, (relator: Isaías Pádua) onde realçamos a seguinte passagem: «É manifesto que em tais situações (e não foi claramente para elas que foi pensado o atual artº. 665º, nº 1, do CPC), não foi intuito do legislador de colocar o Tribunal Superior da Relação a reapreciar oficiosamente toda a prova produzida na 1ª. instância, e nomeadamente quando tal resulte de casos em que, na 1ª. instância, se omitiu por completo a decisão da matéria de facto (vg. com a indicação dos factos provados), até porque uma intervenção a esse nível privaria as partes da garantia de um grau de jurisdição na apreciação e julgamento da matéria de facto. (Neste sentido vide, entre outros, Ac. da RC de 23/02/2016, proc nº.512/09. OTBLMG-D.C1 – desta mesma 3ª. Secção Cível e relatado pelo ora 2º. adjunto, juiz desembargador Falcão de Magalhães – e Acs. da RL de 21/03/2012, proc. nº. 1359/2011.0TVLSB.L1-8, e de 27/10/2009, proc. 3084/08.0YXLSB-A.L1.1 – proferidos à luz do CPC61, mas com plena aplicação ao caso, devidamente adaptados -, estes últimos acessíveis em www.dgsi.pt).»
Note-se que, o regime consagrado entre nós para os recursos ordinários é de reponderação.
Não é por acaso que, quando a lei refere a substituição da Relação ao tribunal recorrido diz que se dirige aos casos em que a 1ª instância tenha deixado de conhecer de "certas questões", designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio (Artigo 665.º (art.º 715.º CPC 1961): Regra da substituição ao tribunal recorrido :1 - Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.2 - Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.)
Ou seja, o art. 665º (antigo 715º ) traduz uma excepção relativamente à natural vocação do tribunal de recurso para reapreciar matéria já ponderada pelo tribunal recorrido e não para apreciar ex-novo questões sobre as quais este não se debruçou, o que faz com a substituição deve ter uma interpretação restritiva e a regra a da não supressão de um grau de jurisdição.
Assim, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como de se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova.» (António Santos Abantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 228).
Tanto mais é assim no caso concreto, já que estamos, em face de um processo de jurisdição voluntária (art.º 1409.º e ss do CPC e art.º 150.º da OTM), em que predomina o princípio do inquisitório, ao dispor do Tribunal, em detrimento do princípio do dispositivo (art.º 1409.º n.º 2) e o princípio da equidade sobre o princípio da legalidade estrita (art.º 1410.º), aliando aquele à busca de uma solução de conveniência e de oportunidade.
Portanto, impõe-se oficiosamente anular a sentença recorrida, nos termos do art. 662º, nº 2, al. c), do C.P.C. e determinar que os autos baixem à 1.ª Instância, para ser proferida nova decisão, sendo possível, pelo mesmo Mm.º Juiz, na qual se discrimine a matéria de facto que se julgue provada e não provada e se conclua.
Tal prejudica, necessariamente, o conhecimento das questões suscitadas pela recorrente.

4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em anular a decisão, ordenando que o Mº Juiz a quo se pronuncie sobre o lapso material invocado e que substitua a decisão recorrida por outra que supra a nulidade, por absoluta falta de fundamentação de facto.
Sem custas.
Évora, 11.02.2021
Elisabete Valente
Ana Margarida Leite (Votou o acórdão em conformidade por comunicação à distância, nos termos do disposto no artigo 15º-A, do Dec.Lei nº 10-A/2020 de 13/03, aditado pelo artigo 3º do Dec.Lei nº 20/2020 de 01/05).
Cristina Dá Mesquita (Votou o acórdão em conformidade por comunicação à distância, nos termos do disposto no artigo 15º-A, do Dec.Lei nº 10-A/2020 de 13/03, aditado pelo artigo 3º do Dec.Lei nº 20/2020 de 01/05).