Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
110/17.5T8STR.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
DESTITUIÇÃO DE GERENTE DE SOCIEDADE COMERCIAL
JUSTA CAUSA
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Nos termos do art.º 257.º do CSC, os sócios podem deliberar a todo o tempo a destituição de gerentes, assim tendo a lei consagrado o princípio da livre destituibilidade.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 110/17.5T8STR.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo de Comércio de Santarém - Juiz 2


I – Relatório
(…), casado, a residir na Rua dos (…), 178, (…), 4520-402 Mosteiró, instaurou contra (…) e Leal, Lda., com sede na Rua (…), freguesia de Torres Novas, Santarém, acção declarativa constitutiva, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final fosse anulada a deliberação tomada na Assembleia Geral que teve lugar em 12 de Dezembro de 2016, com o consequente cancelamento do respectivo registo, e a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de € 31.000.00 (trinta e um mil euros) para reparação dos danos de natureza não patrimonial sofridos.
Alegou, para tanto e em síntese, que é sócio da ré, detentor de uma quota representativa de 23% do capital social, tendo sido nomeado gerente para o quadriénio 2015-2018 por deliberação tomada em Assembleia Geral Extraordinária no dia 03-07-2015.
Sucede, porém, que em AG extraordinária que teve lugar em 02/12/2016, foi deliberada, com 77% dos votos a favor, a sua destituição por justa causa com os fundamentos que ficaram a constar da acta respectiva. Os factos invocados não constituem justa causa, evidenciando antes a intenção da Ré de afastar o demandante de forma gratuita, visando prejudicá-lo, sendo a deliberação anulável nos termos previstos no art.º 58.º, al. a), do CSC.
A deliberação de destituição, seguida da nomeação de nova gerência, é ainda abusiva, na medida em que é apropriada a satisfazer um interesse único de dois sócios, que se apropriaram da gerência, em prejuízo de sócio minoritário ora Autor, a quem encetaram uma verdadeira perseguição, sendo anulável ainda nos termos da al. b) do n.º 1 do citado art.º 58.º.
Em consequência da descrita conduta sofreu os danos que discrimina e que fundamentam o pedido indemnizatório.
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Citada, a ré contestou, defendendo a validade da deliberação, quer porque os factos invocados constituem justa causa de destituição do autor do cargo de gerente, quer porque a destituição é livre. Mais impugnou que o autor tivesse sofrido quaisquer danos em consequência da destituição, uma vez que há muito não comparecia nas instalações da contestante, alheando-se da sua gestão, sendo certo ainda que a gerência não era remunerada, o que tudo deverá conduzir à improcedência da acção.
Foi proferido despacho saneador, com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, de que as partes não reclamaram.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, no termo da qual foi proferida sentença que decretou a improcedência da acção, com a consequente absolvição da Ré dos pedidos.

Inconformado, apelou o autor e, tendo desenvolvido nas alegações que apresentou as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as necessárias conclusões, de que se extraem com relevância as seguintes:
i. Estando-se perante uma ação que visa a anulação de uma deliberação social por parte da Ré por violação de diversos normativos legais, impunha-se a pronúncia do Tribunal “a quo” sobre a verificação ou não da referida violação. Ademais, invocando a Ré a destituição de justa causa de gerente e não estando dados como provados os referidos factos referentes a verificação da mesma, não extraiu o Tribunal a quo a referida consequência legal;
ii. Ora e salvo devido por opinião contrária, se é certo que alegou o Autor em sede do seu petitório factos que justificam a inexistência de justa causa de destituição, o mesmo igualmente alegou factos que consubstanciam uma atuação arbitrária e desprovida de qualquer fundamento que radica num verdadeiro abuso de posição dominante em sede da deliberação;
iii. Nos termos do disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do CSC, prevê-se que são anuláveis as deliberações que: “ Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos; “.
iv. Nos termos do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 3731/13.1TBFUN.L1-2: “O voto é abusivo, na previsão da alínea b) do artigo 58º do Código das Sociedades Comerciais, quando a deliberação seja objectivamente apta a satisfazer uma intenção subjectiva de um ou mais sócios votantes, de obter vantagens especiais, para si ou terceiros, em detrimento da sociedade ou de outros sócios, ou de causar danos à sociedade ou a outros sócios.”
v. No entanto, não se pronunciou o Tribunal a quo sobre a referida matéria, o que consequentemente impediu assim o seu enquadramento jurídico, tendo omitido a apreciação da invalidade da deliberação por estar baseada em abuso de direito, sendo a sentença nula por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
vi. Temos de ter em mente que a deliberação em causa destituiu um administrador. Ou seja, é manifesto, pelo seu próprio conteúdo, que a deliberação prejudica o destituído. Retira-lhe um estatuto, retira-lhe poderes, retira-lhe influência e prestígio. É esta a consequência típica de uma deliberação com este sentido – nem outra poderia ser.
vii. Entende ainda o Recorrente que incorre a referida sentença num erróneo enquadramento da matéria de facto dada como provada.
viii. Na verdade, o facto de o seu conteúdo ser livre, no sentido de que o administrador, no caso o gerente, poder ser sempre destituído, não significa que a deliberação se mantenha se for inválida. Aquela liberdade existe mas a respectiva deliberação tem de ser válida. Caso o não seja, aplica-se o regime da anulabilidade nos termos gerais.
ix. Na verdade, a justa causa mesmo que invocada pode ter na sua origem um motivo fictício, que não se possa considerar justo, sendo antes um mero expediente utilizado por um grupo de sócios com o intuito de destituir determinado gerente, por outros motivos não propriamente enlaçados com o interesse da sociedade. Pelo que o princípio da livre destituição dos administradores/gerentes nem sempre se concretiza. Sendo que terá sempre de se apelar ao princípio da proporcionalidade no momento da destituição, sob pena de incorrer se em violação do princípio da verdade e da lealdade para com socio gerente destituído, com uma clara intenção de o prejudicar.
x. No caso sub judice, tendo-se como não provada a justa causa alegada pela Ré, importaria no entanto para o Tribunal a quo averiguar se a destituição do Autor enquanto sócio gerente padecia de qualquer outro vício ou ilegalidade. O que manifestamente não fez.
Indicando como violadas as disposições contidas nos art.ºs 58.º e 251.º do CSC, requereu a revogação da sentença apelada.
Contra alegou a ré, pugnando pela manutenção do decidido.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são questões a decidir:
i. Da nulidade da sentença;
ii. Do erro de julgamento, devendo ser anulada a decisão nos termos previstos na al. b) do art.º 58.º do CSC.
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i. da nulidade da sentença
O autor recorrente imputou à sentença recorrida o vício da nulidade por omissão de pronúncia previsto na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC por, em seu entender, ter deixado de se pronunciar sobre uma das causas de anulabilidade da deliberação, a saber, o tratar-se de uma deliberação abusiva nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 58.º do CSC, o que havia sido invocado.
A nulidade por omissão de pronúncia prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º inquina a sentença na qual não foi dado cumprimento ao disposto no art.º 608.º, n.º 2 do mesmo diploma, designadamente quando impõe ao juiz que resolva todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas que cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. E resolver todas as questões é dar resposta aos pedidos deduzidos pelo autor ou reconvinte, apreciar as várias causas de pedir invocadas (quando mais do que uma, em relação de subsidiariedade, funde o pedido), bem como as excepções peremptórias que hajam sido deduzidas pelo réu ou autor reconvindo[1].
No caso em apreço, o autor sustenta que apontou como causa da anulabilidade da deliberação dois distintos fundamentos, a saber, a ausência de justa causa da destituição e o abuso da mesma deliberação, assim preenchendo a fattispecie das als. a) e b) do art.º 58.º do CSC, sendo que o Mm.º Juiz se pronunciou apenas sobre o primeiro.
Não é, porém, rigorosa a imputação do recorrente. Com efeito, analisando a causa de pedir, considerou o Mm.º Juiz que o único fundamento esgrimido pelo autor para fundamentar o pedido de anulação, “rectior”, o único, disse, “devidamente fundamentado de facto e direito”, era o atinente à carência de justa causa para o acto de destituição. E assim tendo considerado, foi nesta perspectiva e com este enquadramento que apreciou a pretensão do autor. Se decidiu com acerto ou não é questão que atina já ao mérito da decisão, não resultando todavia afectada a sua validade.
Acrescenta-se que, ainda a ter-se por verificado o assinalado vício, a consequência seria apenas e só, na ausência de matéria de facto controvertida com relevância para a decisão, a substituição do tribunal recorrido por este tribunal, vinculado a conhecer, ainda neste caso, o objecto da apelação (cf. n.º 1 do art.º 665.º do CPC). Não é, todavia, o caso, termos em que se indefere a arguida nulidade.
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II. Fundamentação
De facto
Não tendo a decisão proferida sobre a matéria de facto sido objecto de impugnação e não se vendo fundamento para a sua modificação oficiosa, é a seguinte a factualidade a considerar, tal como nos chega da 1.ª instância:
1. O Autor é sócio da Ré, sendo detentor de uma quota de € 126.250,00, sendo que o capital social da Ré é de € 555.500,00, tendo como objecto social a manutenção industrial, imobiliária e exploração de eventos e catering.
2. Por deliberação tomada em Assembleia Geral Extraordinária no dia 03-07-2015, foi o Autor nomeado gerente para o quadriénio 2015/2018.
3. Em 02/12/2016 o Autor recebeu a convocatória para a realização de Assembleia Geral Extraordinária a realizar no dia 12 de Dezembro pelas 10 horas, constando da ordem de trabalhos, entre outros, um ponto denominado “análise e discussão do comportamento do Sr. Gerente, Sr. (…), e votação da proposta para a sua destituição com justa causa, e outras eventuais medidas a tomar na defesa dos interesses da sociedade”.
4. Realizada a AG e posta a votação, veio a merecer aprovação com os votos a favor dos sócios, (…), S.G.P.S, S.A., (…), (…), que representam 77% do capital social, e voto contra de (…), que representa 23% do capital social, a proposta de “destituição com justa causa” de (…).
5. Tendo ficado exarado:
“Pelo representante da (…), S.G.P.S., S.A. foi dito, o que aliás é do conhecimento de todos os presentes porquanto esta situação se reflectiu nas sociedades do grupo, que o sócio (…), desde há meses está completamente afastado de facto da gerência e da administração das empresas em causa e também que existem divergências profundas com os respectivos sócios, esta circunstância acrescida da circunstância de ser do conhecimento de todos da complexidade e gravidade das sociedades, e no caso concreto da (…), Ld.ª, são de molde a pôr fim à sua gerência, e querendo a sociedade que tal o deve ser com justa causa propondo pois assim a destituição do mesmo gerente com efeitos imediatos.”.
6. Pedida a palavra pelo Autor, expressou declaração de voto com o seguinte teor:
“Constando da referida declaração o seguinte: (…) vota contra a destituição enquanto gerente da Sociedade (…), Ld.ª, opondo-se assim aos fundamentos invocados na ata, Designadamente, não se entende o alegado “afastamento de facto da gerência”, por entender que tal afastamento é derivado a motivos de saúde devidamente suportado em baixa médica, os quais são consequência de atos praticados pelos sócios da sociedade, designadamente a agressão física por parte de um sócio, o impedimento de acesso às instalações pelos restantes sócios, e a pressão psicológica destes no que concerne a assinar atas da sociedade, atos, contratos e outros documentos na sua qualidade de gerente sem os ler antecipadamente e assim se inteirar do seu conteúdo. Já no que se refere às alegadas “divergências profundas”, estas não se encontram discriminadas, razão pela qual se impugnam cautelarmente, aguardando-se que as mesmas sejam devidamente fundamentadas. E o mesmo se diga da alegada “complexidade e gravidade das sociedades e no caso concreto da (…), Lda.”, pois os mesmos apresentam-se como conceitos indeterminados, que nada esclarecem o sócio ora destituído, impugnando-se cautelarmente o seu conteúdo”.
7. O Autor apresentou queixa-crime contra o seu irmão (…), a qual deu origem ao NUIPC000261/16.3GBVFR.
8. Durante o ano de 2016 decorreu uma inspeção fiscal complexa e difícil.
9. E existia contestação pública ao funcionamento da Unidade Fabril sita em (…), Santa Maria da Feira, com publicitadas queixas de maus odores (cheiros), sucessivamente apresentadas nos municípios de Santa Maria da Feira/S. João da Madeira, e também junto das entidades oficiais.
10. O relatório de contas relativo ao exercício de 2015 encontrava-se por assinar em Julho de 2016, devido à recusa do Autor em assinar, sendo que tinha intervindo no acto.
11. O Autor recorreu aos serviços de consultadoria prestados por (…), tendo a ré recebido um pedido de acesso a documentos por parte daquele, a serem prestados a (…), com a alegação de que pretendia munir-se da informação necessária para assinar os relatórios de contas.
12. Tal pedido gerou desconfiança nos demais acionistas pelo facto de (…) ter ocupado até há pouco tempo funções de chefia na Inspeção Tributária de Aveiro, onde decorria a inspecção desta sociedade e das outras empresas do Grupo.
13. O Autor utilizava um veículo propriedade do grupo empresarial.
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Factos não Provados
a) O Autor esteve ausente desde 3 de Maio de 2016, em virtude de agressão de que foi vítima por parte do seu irmão e sócio da Ré, (…), ocorrida nessa mesma data;
b) Da referida agressão resultaram escoriações no cotovelo, antebraço e mão do lado direito, e entorse no quinto dedo da mão, apresentando igualmente escoriações na mão e antebraços.
c) (…) Bem como foi causa de danos psicológicos nomeadamente depressão, angústia e receio de vivenciar situações idênticas.
d) A Ré, em consequência da deliberação tomada de destituição, provocou que o Autor deixasse de receber proventos económicos e regalias associadas ao cargo detido, pelo período de tempo que estava regularmente mandatado.
e) (…) Designadamente a utilização de bens da sociedade, tais como veículos e utilização de imóveis, o recebimento de compensações.
f) O Autor foi vexado e humilhado na presença dos funcionários, ao obstaculizarem a entrada deste nas instalações.
g) Durante o ano de 2016, a conduta do Autor pautou-se por uma pública e notória ausência (manifesta) no exercício das suas funções e pois assim às obrigações a que o mesmo estava vinculado.
h) A inspeção fiscal e as queixas relativas aos maus odores motivavam uma necessidade de acompanhamento permanente e com a presença do Autor nas instalações da Ré.
i) O Autor inventou a situação de agressão do seu irmão.
j) Nas raras vezes que o Autor se deslocou à empresa, foi sempre com o intuito de dolosamente gravar e/ou fotocopiar documentos, sem qualquer autorização dos visados, mormente conversas entre os funcionários da R., e seus sócios e gerentes, realizando sempre as filmagens com o seu telemóvel, também não autorizadas, e assim numa total revelia dos princípios a que estava obrigado e bem sabia contrariar, e com propósitos pois assim inconfessáveis, à revelia da sociedade e até contra os interesses da mesma.
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De Direito
Da anulabilidade da deliberação impugnada
O autor atacou, como vimos, a deliberação tomada pela ré na sua AGE de 12 de Dezembro de 2016, com fundamento na inexistência de justa causa para a sua destituição.
Na sentença apelada, pese embora se tenha considerado que as descritas condutas do apelante, ainda que se viesse a apurar terem-se verificado, não constituíam justa causa para a sua destituição, atendendo a que a mesma é livre, conforme expressa o art.º 257.º, n.º 1, do CSC, decidiu-se pela validade da deliberação impugnada. E decidiu-se bem, em nosso entender.
De acordo com o artigo 256.º, do Código das Sociedades Comerciais, “As funções de gerente subsistem enquanto não terminarem por destituição ou renúncia, sem prejuízo do contrato de sociedade ou o acto de designação poder fixar a duração delas.”.
Nos termos do art.º 257.º do mesmo diploma, os sócios podem deliberar a todo o tempo a destituição de gerentes (vide n.º 1 do preceito), assim tendo a nossa lei consagrado o princípio da livre destituibilidade. Deste modo, sendo lícita a destituição dos gerentes mesmo sem invocação de qualquer causa, a existência de fundamento -justa causa, no dizer da lei- tem como efeito fundamental, para o que ao caso releva, a desoneração da sociedade do pagamento de qualquer indemnização ao gerente destituído.
No caso vertente, pese embora se tenha concluído pela ausência de justa causa, não ficando afectada a validade da deliberação, atendendo a que não ficou demonstrada a existência de quaisquer prejuízos, foi meramente consequente a absolvição da ré do pedido indemnizatório.
Não dissentindo aparentemente do entendimento expendido na decisão apelada quando considera que a falta de prova da justa causa não determina, por si, a invalidade (em sentido amplo) da deliberação, defende no entanto o apelante que a mesma deveria ter sido anulada por abusiva, uma vez que a sua destituição teve por único escopo prejudicá-lo e beneficiar os restantes sócios, nomeados gerentes na mesma assembleia, consubstanciando um abuso da posição dominante.
Concorda-se com o recorrente quando defende que, podendo ser a todo o tempo, e sem motivação, deliberada a destituição do gerente, a deliberação que tal determine pode sofrer de outros vícios determinantes da sua anulabilidade, designadamente quando esteja em causa uma deliberação abusiva, fundamento da pedida anulação que se passa a apreciar.
Consoante dispõe o art.º 58.º do CSC, são anuláveis as deliberações que “sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos” (vide al. b) do n.º 1).
Conforme se explica no CSC em Comentário (vol. I, págs. 712 e seguintes) “Estão em causa [no art.º 58.º, n.º 1, al. b)] duas espécies de deliberações abusivas: as apropriadas para satisfazer o propósito de alcançar vantagens especiais em prejuízo da sociedade ou de sócios; as apropriadas para satisfazer o propósito tão-só de prejudicar a sociedade ou sócios – as chamadas deliberações emulativas.
As deliberações de uma e outra espécie têm pontos em comum: pressupostos subjectivos (o “propósito” de um ou mais votantes) e pressupostos objectivos (a deliberação há-de ser subjectivamente “apropriada” ou apta para satisfazer o propósito).
Mas também têm pontos distintivos. Relativamente às deliberações da primeira espécie, o propósito relevante é o de alcançar vantagens especiais; relativamente às emulativas, o propósito relevante é o de causar prejuízos. É certo que aquelas não dispensam o prejuízo (…). Trata-se, porém, de dano resultante da consecução de vantagens especiais; entre aquele e esta existe imediata ou mediata conexão causal. Já o prejuízo visado nas deliberações emulativas é indiferente às eventuais não desvantagens, vantagens ou desvantagens dos votantes com propósito emulativo ou de terceiros. Quer tudo isto dizer que o “propósito” exigido nas deliberações da primeira espécie limita-se à consecução de vantagens especiais – não sendo necessário que abarque o prejuízo; e o “propósito” exigido nas deliberações emulativas limita-se à inflição de prejuízo”.
A este respeito o autor alegou que os “factos evidenciam claramente que esse afastamento lhe foi imposto pelos restantes sócios e novos gerentes nomeados para sociedade Ré”, sendo “manifesto que a deliberação de destituição seguida da nomeação de nova gerência é claramente uma deliberação social abusiva, na medida em que é apropriada a satisfazer um interesse único de dois sócios em prejuízo de sócio minoritário o ora Autor”, “(…) é assim também a referida deliberação anulável nos termos do artigo 58.º, nº 1, alínea b), C.S.C., uma vez que foi assim produzida como meio de alcançar benefício exclusivo dos sócios maioritários”, “na medida em que a sua posição maioritária e respetivo voto é exercido para servir o fim destes, com vista a alcançar um benefício exclusivo, a assunção dos cargos de administração/gerência”, “Perpetrando o afastamento da Administração/gerência do Autor impedindo assim que este receba proventos económicos e regalias associadas ao cargo detido, pelo período de tempo que estava regularmente mandatado, designadamente a utilização de bens da sociedade, tais como veículos e utilização de imóveis, o recebimento de compensações”, “inibindo o Autor do exercício das suas funções ficando impedido de intervir na administração, gestão e funcionamento da Ré, bem como foi claramente vexado e humilhado, na presença dos funcionários, ao obstaculizarem a entrada deste nas instalações, afirmando na frente de todos que este já não é administrador, sendo claramente posta em causa a sua autoridade perante estes”, “providenciando pelo seu alheamento na tomada de decisões, e atos de gestão a que o mesmo sempre realizou”, “o que se traduz numa verdadeira ação de” assédio moral” usado para discriminar e/ou perseguir o Autor, com a finalidade de o afastar do conjunto de empresas familiares que ao longo de uma árdua vida de trabalho este ajudou a construir”.
Pois bem, para além do carácter eminentemente conclusivo dos enunciados agora transcritos, dando razão ao Mm.ª Juiz quando assinalou que o invocado carácter abusivo da deliberação não se encontrava suficientemente suportado por factos, a verdade é que a destituição do gerente importa natural e necessariamente a cessação dessas funções, impedindo-o, consequentemente, de continuar a beneficiar da remuneração e eventuais regalias que, por força do exercício das mesmas, lhe fossem devidas (não era o caso do apelante, como o denuncia a circunstância de se ter limitado a reclamar compensação por danos de natureza não patrimonial). Tais consequências, porém, não são suficientes para que a deliberação se possa qualificar de abusiva pois, a entender-se diversamente, a deliberação de destituição “ad nutum” seria quase sempre anulável, contrariando a solução consagrada no art.º 257.º do CSC, sem embargo do direito do gerente destituído sem causa a ser indemnizado. Deverá portanto entender-se que o propósito relevante dos sócios votantes de obterem vantagens para si ou para terceiros ou causarem prejuízos aos outros sócios ou à sociedade exigido pela al. b) do n.º 1 do art.º 58.º, ainda admitindo que a lei se satisfaz com dolo meramente eventual, terá que ser um propósito ilícito, visando a obtenção de uma vantagem indevida e/ou a causação de um prejuízo que podia/devia ser evitado.
Analisando a factualidade apurada, evidente se torna que o autor não fez prova de que os sócios que votaram favoravelmente a deliberação de destituição tiveram o propósito de, através do seu sentido de voto, lhe causarem prejuízos, nem tão pouco de ter sofrido quaisquer danos relevantes em função do deliberado.
Do mesmo modo, a vacatura do cargo de gerência por força da destituição do gerente em exercício obrigaria à nomeação de novo(s) gerente(s), não se vendo, nem o apelante o concretiza, em que medida é que a nomeação dos dois restantes sócios pessoas singulares se traduz numa injustificada vantagem.
Indemonstrado que a deliberação impugnada seja abusiva nos termos previstos e sancionados no art.º 59.º, n.º 1, al. b) do CSC é de manter inteiramente a decisão recorrida, que decretou a improcedência da acção.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença apelada.
Custas a cargo do recorrente.
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Évora, 11 de Julho de 2019
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
José Manuel Barata


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[1] Neste sentido, Prof. Lebre de Freitas, “A acção declarativa comum à luz do Código Revisto”, 2.ª Edição, págs. 302-303, escrevendo embora no âmbito de vigência do CPC cessante.