Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
278/14.2GBVNO.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: SEQUESTRO
AMEAÇA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
INJÚRIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA PERICIAL
VALORAÇÃO DA PROVA
ABSOLVIÇÃO
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – Se a prova médico-científica não confere consistência à versão dos factos apresentada pelo assistente, como também, de certa forma a desmente, deve proferir-se um juízo de não provado em relação aos factos por aquele imputado aos arguidos, não conferindo às declarações do assistente o poder de convicção que lhe emprestou o Tribunal «a quo», a menos que beneficiem de alguma corroboração por meio de prova objectivo ou proveniente de pessoa não comprometida com o interesse processual do declarante.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
No Processo Comum nº 278/14.2GBVNO, que correu termos no Juízo Local Criminal de Ourém do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, foi proferida, em 13/7/2017, sentença, com seguinte segmento decisório (excepto matéria de custas):

Pelo exposto, julgo a acusação procedente por provada e, em consequência:

a) Condeno o arguido EE pela prática de 1 crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a) do C.P., na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 10,00€, no valor de 1.200,00€;

b) Condeno o arguido pela prática de um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1, do C.P., na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 10,00€, no valor de 2.000,00€;

c) Condeno-o ainda, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a), na pena de 1 ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período;

d) Condeno o arguido em cúmulo jurídico, na pena única de 245 dias de multa, à taxa diária de 10,00€, no valor de 2.450,00€ e de um ano e seis meses de prisão suspensa na sua execução por igual período.

e) Condeno o arguido PP pela prática de um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1, do C.P., na pena de 230 dias de multa à taxa diária de 8,00€, no valor de 1.840,00€;

f) Condeno-o ainda, pela prática de um crime de ofensa à integridade física 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período;

g) Condeno-o pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 8,00€, no valor total de 640,00€;

h) Em cúmulo jurídico, vai o arguido condenado com a pena de 260 dias de multa à taxa diária de 8,00€, no valor total de 2.080,00€;

i) Condeno a arguida MM do pela prática de um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1, do C.P., na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 10,00€, no valor de 1.800,00€;

j) Condeno-a ainda, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a), na pena de oito meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano;

k) Condeno-a pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 8,00€, no valor total de 480,00€;

l) Condeno a arguida em cúmulo jurídico, na pena única de 195 dias de multa, à taxa diária de 10,00€, no valor de 1.950,00€ e de oito meses de prisão suspensa na sua execução por um ano.

m) Julgo os pedidos de indemnização civil, procedentes por provados, e condeno os arguidos/demandados a pagar solidariamente o valor peticionado, a título de danos morais ao demandante e o valor dos tratamentos ao hospital.

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

1. No dia 16 de Setembro de 2014, cerca das 09.10h, no interior da empresa E & R, sita na Estrada de Minde, …Fátima, Ourém, o arguido EE, dirigindo-se ao assistente LR, no seguimento de um diferendo entre os dois, proferiu a seguinte expressão, em tom sério e agressivo: “tenho dois cartuchos guardados para ti, já estão lá de lado.” Em consequência desta expressão, o assistente ficou receoso do que o assistente lhe pudesse fazer.

2. No dia 21 de Novembro de 2014, cerca das 14.30 horas, encontravam-se no interior da empresa E & R, sita na Estrada de Minde, … Fátima, Ourém, mais precisamente no escritório dessa empresa, o assistente, a arguida MM, o arguido PP e uma escriturária da referida empresa.

3. Quando o assistente pretendia sair desse escritório, a arguida MM impediu-o de sair, fechando-lhe a porta do escritório e barrando-lhe o caminho de acesso a essa porta, colocando-se entre o assistente e a porta.

4. Porta essa que a arguida só abriu para dar acesso ao arguido EE, o qual, de imediato, agarrou o assistente pelas costas, com um braço à volta do pescoço deste, sufocando-o e, acto contínuo, o arguido PP aproximou-se e desferiu vários murros no estômago e noutras partes não concretamente apuradas do corpo do aludido assistente.

5. Fruto das agressões perpetradas pelos arguidos EE e PP, o assistente sentiu fortes dores, bem como, caiu inanimado no chão.

6. Entretanto, a citada funcionária que lá se encontrava, ao ver a agressão a que o assistente estava a ser sujeito, ligou para o 112, mas a arguida MM, desligou-lhe a chamada e não deixou a referida funcionária efectuar qualquer chamada.

7. Como consequência da referida agressão, o assistente apresentava escoriações visíveis na face esquerda, com 3x2 cm, do tipo arranhadela, bem como, as lesões que lhe determinaram um período de cura de 8 dias.

8. O assistente é irmão da arguida MM, cunhado do arguido EE e tio do arguido PP.

9. Os arguidos agiram em conjugação de esforços e de acordo com um plano prévia e espontaneamente delineado e querido, com o propósito concretizado de manter o assistente detido no escritório, privando-o da sua liberdade de movimentos, o que representaram, quiseram e conseguiram.

10. Os arguidos agiram em conjugação de esforços e de acordo com um plano prévia e espontaneamente delineado e querido, com frieza de ânimo, com o propósito concretizado de ofender o corpo e a saúde do ofendido, maltratando-o, sem qualquer motivo que justificasse tal agressão fútil, o que quiseram e conseguiram.

11. O arguido EE, ao agir da forma supra descrita em 16 de Setembro de 2014 e ao proferir a expressão supra referida nas circunstâncias em que o fez, e no tom sério e credível em que a proferiu, sabia que a sua conduta era adequada a fazer o assistente sentir receio pela sua integridade física e pela sua vida e a perturbá-lo na sua vida normal, o que quis, representou e conseguiu.

12. Os arguidos sabiam que as supra referidas condutas que lhes são imputadas, eram contrárias ao direito e perseguidas criminalmente por normativos legais.

13. Os arguidos agiram sempre livres, voluntária e conscientemente ao actuarem da maneira supra exposta.

14. No dia e local referido em 2, quando o assistente, à data sócio-gerente da já identificada empresa, inicialmente solicitou e depois exigiu, em face da recusa, ao arguido PP, funcionário da dita sociedade e subordinado do assistente, a “pen drive” do computador de onde o arguido controlava determinada maquinaria da sociedade, o arguido interpelou o assistente em tom de voz elevado, dirigindo-se directamente ao assistente e proferiu as seguintes palavras: “Ó seu cabrão! És um cabrão e aqui não mandas nada, seu grande cabrão!”

15. O arguido é afilhado do assistente.

16. Em face do narrado em 14, o assistente dirigiu-se pessoalmente ao computador onde o arguido trabalhava e retirou-lhe a “pen drive” ali instalada e que aquele recusara entregar-lhe.

17. Nesse momento, a arguida MM, dirigiu-se-lhe e disse: “És um ordinário, és um ladrão, és um gatuno!”

18. Posteriormente, quando o assistente se encontrava a recuperar após os factos referidos em 4, já na presença do filho do assistente, LL, o arguido PP ainda referiu: “Levanta-te! Isso não é nada, não é nada! Isso resolvia-se era com umas chapadas nos cornos!”

19. As palavras referidas em 14, 17 e 18 foram ditas pelos arguidos com o propósito de ofender o assistente na sua honra, dignidade e consideração.

20. Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punida por lei.

21. As palavras que os demandados PP e MM dirigiram ao demandante provocaram-lhe desgosto, vergonha, humilhação e amargura.

22. Sentiu-se o demandante enxovalhado e questionado na sua honra, dignidade e consideração que lhe eram e são devidas.

23. Atingiu grande tristeza e desgosto por saber que os demandados, seus familiares directos, o procuraram vexá-lo e humilhá-lo.

24. Os factos descritos também provocaram no demandante, ainda que temporariamente, alguma perda da segurança e auto-confiança que eram suas características.

25. Teve vergonha e desgosto por ser observado por terceiros com as escoriações no rosto, decorrentes dos factos.

26. Chegou a sofrer perturbações no sono, acordando muitas vezes sobressaltado e bastante temeroso.

27. Na sequência dos factos ocorridos no dia 21 de Novembro de 2014, o Centro Hospitalar de Leiria, E.P.E., prestou tratamentos ao assistente, no valor de 217,18€.

28. Desconhecem-se anteriores condenações penais aos arguidos, constando dos seus certificados de registo criminal que as não têm.

29. O arguido EE é sócio gerente da empresa, retirando o valor de 2.850,00€ ilíquidos de ordenado.

30. Recebe ainda o valor de 2.300,00€ de rendas.

31. Vive com a mulher, em casa própria.

32. Tem dois filhos maiores de idade.

33. Sofre do coração e de diabetes.

34. Possui o antigo 7.º ano dos liceus, correspondente ao actual 11.º ano.

35. A arguida MM é funcionária administrativa da empresa, e recebe de salário o valor de 1.145,00€ ilíquidos.

36. Possui o antigo 2.º ano complementar, correspondente ao actual 11.º ano.

37. O arguido PP é casado e tem um filho menor, de um ano de idade.

38. Recebe cerca de 1.500,00€ de salário ilíquido.

39. Vive em casa cedida pelo pai.

40. A esposa trabalha, e ganha cerca de 1.300,00€ mensais ilíquidos.

41. O arguido encontra-se com o curso de Engenharia Civil suspenso, faltando-lhe três cadeiras para terminar o bacharelato.

Da referida sentença, os arguidos EE, MM e PP interpuseram recurso conjuntamente, com a devida motivação, formulando as seguintes conclusões:

a) O arguido EE e o assistente são os únicos sócios e gerentes da sociedade comercial por quotas com a firma “E & R, Lda” e assistente, arguidos e testemunhas são todos familiares ou detém relações de afinidade;

b) Desde Setembro/2014 que o assistente LR delineou uma estratégia – Administrativa e Financeiramente paralisar a sociedade, actuação em consequência da qual foi suspenso de funções, conforme Acórdão da Relação de Évora de 26/04/2016

c) A denúncia contém, na medida do possível, a indicação dos elementos referidos nas alíneas do n.º 1 do art.º 243º (Art.º 246º, n.º 3 do C.P.P.) (sublinhado nosso)

d) Entre estes elementos incluem-se os factos que constituem o crime (art.º 243º, n.º 1, al. a) do C.P.P.)

e) Nas queixas apresentadas, o assistente, com excepção da expressão “cabrão” que imputa ao arguido PP, não relatou qualquer outro facto em concreto capaz de configurar crimes de injúria;

f) Inexistindo queixa, inexistia objecto da investigação e, consequentemente, legitimidade do Ministério Público para promover a investigação neste tocante;

g) O que configura nulidade, nulidade que desde já se vem arguir com as legais consequências;

h) No que se refere aos factos de 16/09/2014, apenas o assistente e o filho os referiram;

i) O arguido negou a prática dos factos;

j) Se por um lado, após o relato dos factos ao Tribunal, assistente e a testemunha LF referem que o arguido EE “estava a subir as escadas o momento que o assistente LR referia, no escritório, ter sido ameaçado”, por outro a testemunha LL, filho do assistente, refere peremptoriamente que após as ameaças, o seu tio seguiu em direcção ao escritório e que atrás dele, seguiu o seu pai;

l) Quanto ao demais circunstancialismo em concreto, a testemunha LL nada sabe. Não sabe de onde vieram, como surgiram as ameaças – sabe que ouviu falar mais alto, o que lhe chamou à atenção (se ouviu falar mais alto, também já tinha ouvido falar mais baixo, sem contudo olhe causar estranheza);

m) Na óptica do arguido EE, não resulta provado o facto número um e onze da douta sentença;

n) Se a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (art. 127º CPP), perante as “divergências” que se referem, crê-se insuficiente, apesar de ter merecido o crédito do Tribunal a quo, os depoimentos do assistente e do seu filho para dar tal facto como provado.

o) Impõem decisão diversa os depoimentos do assistente, gravados na aplicação informática, dia 12/06/2017, de 2m34s até 2m54s, dia 12/06/2017, de 8m27s até 9m12s, depoimento da testemunha LF, gravado na aplicação informática, dia 27/06/2017, de 19m09s até 20m09s e depoimento da testemunha LL, gravado na aplicação informática, dia 27/06/2017, de 01m31s até 04m10s e dia 27/06/2017, de 45m45s até 48m40s

o) O que configura insuficiência da matéria de facto provada ou erro na apreciação da prova;

p) O Tribunal “a quo” baseou a sua convicção nas declarações do assistente, corroborado pelo depoimento da testemunha LF e da testemunha LL, seu filho para dar como provados os factos referentes ao dia 21/11 – Factos provados 2, 3 4 (parcialmente) e 9;

q) Expressa o art.º 158º, n.º 1 do C.P. que “Quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”;

r) A consumação do tipo legal do crime de sequestro ocorre com a efectiva privação de liberdade e só termina com a libertação da vítima. É pois, um crime permanente, de execução livre. Não basta que a liberdade de locomoção da vítima seja dificultada. Tem de ser absoluta. Havendo alternativa razoável que permita à vítima a deslocação, não se verifica o crime;

s) O meio utilizado para constranger tal liberdade de locomoção, tem de ser um meio adequado a tal fim;

t) Tendo o assistente expressado que porta abria com trinco por dentro e que, se quisesse, poderia ter puxado a irmã por um braço e saído;

u) Crê-se existir insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou, alternativamente, erro notório na apreciação da prova;

v) E consequentemente, ao condenar os arguidos, em co-autoria material e em concurso real, a douta sentença violou o art.º 158º do C.P.;

x) Os factos provados constantes dos pontos 2, 3, 4 (parte) e 9 estão incorrectamente julgados em face das declarações do assistente;

z) Impõem decisão diversa as declarações do assistente que se encontram gravadas na aplicação informática, dia 12/06/2017, de 05m16s até 05m42s, dia 12/06/2017, de 20m46s até 22m50s, dia 12/06/2017, de 55m34s até 56m19s;

aa) Quanto aos demais factos constantes do dia 21/11, nomeadamente os capazes de integrar o crime de ofensa à integridade física;

ab) Os arguidos negaram a prática de tais factos;

ac) Os factos 4 (parte final) 5º, e 10º estão incorrectamente julgados;

ad) Os depoimentos do assistente e da testemunha LF, em particular quando analisados uns em confronto com os outros, impõem decisão diversa;

ae) As declarações do assistente confrontadas com o depoimento da testemunha LF que impõem decisão diversa são, quando à forma como se iniciaram os factos: declarações do assistente gravadas na aplicação informática dia 12/06/2017, de 11m55s até 13m05s e depoimento da testemunha LF gravado na aplicação informática dia 27/06/2017, de 03m35s até 05m04s;

af) No que respeita à entrada do arguido EE no escritório, são os seguintes meios de prova que impõem decisão diversa:

- Declarações do assistente, gravadas na aplicação informática, dia 12/06/2017, de 05m45s até 05m00s;

- Depoimento da testemunha LF, gravado na aplicação informática, dia 27/06/2017, de 08m51s até 09m20s

ag)No tocante ao local dos factos, são os seguintes meios de prova que impõem decisão diversa:

- Declarações do assistente, gravadas na aplicação informática, dia 12/06/2017, de 01h03m00s até 01h05m30s e dia 12/06/2017, de 01h07m24s até 01h10m28s

- Depoimento da testemunha LF dia 27/06/2017, de 36m51s até 38m04s e dia 27/06/2017, de 42m50s até 43m25s

ah) A testemunha LL, filho do assistente, apenas se deslocou aos escritórios já o seu pai estava no chão;

ai) Do confronto dois depoimentos do assistente e da sua cunhada, LF, aquelas que serviram em grande parte para formar a convicção do tribunal “a quo”, resultam nítidas contradições;

aj) Outras contradições existem ao logo das declarações do assistente, nomeadamente as constante da gravação informática, dia 12/06/2017, de 04m53s até 05m42s e dia 12/06/2017, de 22m54s até 24m01s;

al) O Tribunal qualificou as ofensas porque pretensamente foram praticadas por motivos fúteis ou torpes;

am) Inexiste qualquer facto dado como provada a referida qualificação, o que configura insuficiência da matéria de facto dada como provada

an) Para além de todas as discrepâncias, relevantes, já indicadas, outros elementos de prova foram carreados para os autos e que foram absolutamente desconsiderados pelo Tribunal e que impunham até, decisão diversa, a saber:

- As declarações dos arguidos;

- Auto da GNR, constante de fls. 536 e 537;

- O depoimento da testemunha FB, guarda da GNR, gravado na aplicação informática dia 05/07/2017, de 3m35s até 8m44s, dia 05/07/2017, de 10m52s até 11m05s e 05/07/2017, de 12m45s até 13m55s;

- O relatório do Hospital, de fls. 11 e 12;

ao) Em face do quanto supra se expressa, o Tribunal “a quo” não deveria ter dado como provados os pontos 1º a 7º, 9º a 11º, 14º, 16º, 17º e 18º dos factos provados, por não ter prova cabal e capaz, conforme resulta dos depoimentos das testemunhas e dos demais elementos supra referidos;

ap) Na óptica dos recorrentes, no Tribunal “ a quo” não procedeu a um exame crítico da prova;

aq) Desta falta de exame crítico da prova resulta um incorrecto julgamento da matéria de facto e do erro notório na apreciação da prova e consequentemente, manifesta falta de fundamentação de facto para o preenchimento do tipo, mostrando-se violados os art.º 153º, n.º 1, 158º e 145º, n.º 1, al. a), todos do C.P. e 412º do C.P.P.;

ar) Expressa o artigo 153º, n.º 1 do C.P. que “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação…

as) Para a consumação do crime de ameaça, a expressão proferida tem de anunciar a prática de um mal futuro, que constitua crime;

at) Como refere Américo Taipa de Carvalho, em Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 343 “são três as características essenciais do conceito ameaça: mal, futuro e cuja ocorrência dependa da vontade do agente;

au) Nos autos, a expressão dada como provada não configura mal ou crime, não anuncia qualquer mal futuro e, em concreto, não está dependente da vontade do agente;

av) Ao condenar o arguido EE pelo crime de ameaça agrava, o Tribunal “a quo” violou o disposto no art.º 153º, nº 1 do C.P.

ax) Conforme referiram em audiência de discussão e julgamento, o arguido EE “apanhou” o assistente LR pelos braços e o arguido PP retirou-lhe a pen das mãos unicamente para poder manter a fábrica a laborar;

az) Tal resulta também das declarações do assistente, nomeadamente àcerca da imprescindibilidade da pen para a mesma laborar, conforme declarações gravadas na aplicação informática dia 12/06/2017, de 01h04m03s até 01h07m05s

ba) O tribunal “a quo” teceu a seguinte motivação em face da defesa dos arguidos “Ora, tendo em conta os factos, o que se pretendia era tirar uma pen ao assistente, de modo a manter a empresa a laborar”;

bb) Não obstante julgou improcedente o estado de necessidade desculpante alegado pelos arguidos. Crê-se essencialmente porque se convenceu que os arguidos praticaram factos que estes não praticaram e que os pretensamente praticados terão tido consequências no assistente que, na verdade, não tiveram;

bc) Não obstante, considerando o que uma empresa tem subjacente – trabalhadores, fornecedores, clientes, obrigações financeiras e outras;

bd) Devia o tribunal “a quo” ter julgado verificado o estado de desnecessidade desculpante;

be) Em particular, se considerarmos que os arguidos EE apenas agarrou o assistente pelos braços e o arguido PP lhe retirou a “pen” das mãos;

bf) Ao não julgar verificado o estado de necessidade desculpante, o Tribunal “a Quo”, violou o disposto no art.º 35º do C.P.;

bg) E violou, no caso em concreto, o art.º 71º do C. Penal;
bh) Na determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção;

bi) Os arguidos são todos primários e sem culpa;

bj) O demandante LR deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos, onde peticiona o montante de 2.000,00€, a título de indemnização por danos não patrimoniais pelo crime de injúria, 3.000,00€ pelo crime de sequestro e ofensa à integridade física e 2.000,00€ pela ameaça agravada;

bl) A final são os arguidos “condenados a pagar solidariamente o valor peticionado, a título de danos morais ao demandante e o valor dos tratamentos hospital” (al. m) do dispositivo)

bm) O arguido PP e a arguida MM nada contribuíram, mesmo na tese constante da douta sentença, para o crime de ameaçada agravada pelo que nada podem ser condenados a pagar referente a tal dano e o arguido EE não injuriou e, nesta medida, não pode condenado a indemnizar por tal dano;

bn) Ao condenar os arguidos solidariamente, o tribunal a “quo” violou o disposto no art.º 483º do C. Civil.

Razão porque, nestes termos e melhores de direito e revogando a douta sentença e substituindo-a por outra que absolva os arguidos, farão Vª Ex.cias a costumada JUSTIÇA.

Os recursos interpostos foram admitidos com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo.

O MP respondeu à motivação dos recorrentes, tendo formulado as seguintes conclusões:

1- Da denúncia apresentada pelo assistente na data de 22.11.2014 retira-se que aquele manifestou inequivocamente a vontade de que contra os arguidos fosse instaurado procedimento criminal, também quanto à prática de crimes de injúria, p.p. pelo disposto no art.º 181º do C.P.

2- Na sequência de tal denúncia (queixa), verificados os respectivos pressupostos para o efeito, procedeu o Ministério Público, como se lhe impõe, a todas as diligências tidas por necessárias e pertinentes à investigação dos factos denunciados, nomeadamente, notificando o assistente para indicar nos autos os factos e elementos de prova, para além do mais, quanto aos crimes de injúria denunciados, tendo o assistente, na sequência de tal notificação, solicitado a inquirição de testemunhas.

3- Não assiste qualquer razão aos arguidos, já que o Ministério Público tinha legitimidade, face à denúncia apresentada, para proceder às diligências necessárias à investigação dos factos.

4- As contradições apontadas pelo arguido EE não são de molde a pôr em causa a credibilidade atribuída pelo Tribunal ao depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento e que se encontravam no local no momento em que os factos ocorreram.

5- Quer o assistente, quer o seu filho, quer a testemunha LF depuseram de forma serena, calma, não mostrando animosidade para com os arguidos, descrevendo a sucessão de acontecimentos, não assistindo qualquer razão aos arguidos.

6- No que ao crime de sequestro concerne, da prova produzida em audiência de julgamento, resulta inequivocamente a sua prática pelos arguidos, em co-autoria material, procurando com a sua actuação, em conjugação de esforços e de vontades, impedir que o assistente saísse da sala onde se encontrava, a fim de lhe ser retirada a “pen” que tinha na sua posse.

7- Da prova produzida em audiência de julgamento resulta, de igual modo, e dos diversos depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, a prática pelos arguidos do crime de ofensa à integridade física qualificada.

8- Os factos dados como provados quanto à forma como foi o assistente agredido são de molde a integrar tais condutas na previsão do art.º 145º do C. Penal.

9- Tanto as circunstâncias que conduziram à referida agressão, incompreensíveis e socialmente intoleráveis, como a forma como foram perpetradas (pelos três arguidos, em conjugação de esforços) são de molde a concluir pela sua prática pelos três arguidos.

10- A expressão dirigida ao assistente pelo arguido EE, nas circunstâncias em que o foi, é idónea a provocar medo e inquietação e a constranger a liberdade de determinação do assistente, anunciando a intenção da prática de factos susceptíveis de atentar contra a vida deste, facto apenas dependente da vontade daquele.

11- Praticou assim, o arguido em autoria material e na forma consumada, um crime de ameaça agravada, p.p. pelo disposto no art.º 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1 al. a) do C.P.

12- Não se verifica em concreto, nenhuma circunstância, nem se mostram preenchidos os requisitos de que depende a verificação da causa de exclusão da culpa, prevista no art.º 35º do C. Penal (estado de necessidade desculpante).

13- As penas a que foram os arguidos condenados mostram-se adequadas, tendo sido tido em conta todas as circunstâncias que depõe a favor e contra os arguidos, e neste particular, também, o facto de os mesmos se encontrarem socio-profissional e familiarmente inseridos e não possuírem quaisquer antecedentes criminais.

14- A sentença sob recurso não merece qualquer reparo e deve ser mantida na íntegra.

Este o nosso entendimento.
V. Excelências, contudo, decidirão de JUSTIÇA!

O assistente LR respondeu à motivação dos recorrentes, aderindo à resposta apresentada pelo MP, mas sem formular conclusões.

A motivação do recurso foi notificada ao demandante Centro Hospitalar de Leiria, que não exerceu o seu direito ao contraditório.

O Digno Magistrado do MP junto desta Relação emitiu parecer sobre o mérito do recurso interposto, defendendo a sua improcedência.

Tal parecer foi notificado aos sujeitos processuais, para se pronunciarem, o que nenhum deles fez.

Pelo Desembargador Relator foi proferido um despacho do seguinte teor:

«A sentença sob recurso condenou os arguidos EE, MM e PP pela prática, além de outras infracções, de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145º nº 1 al. a) do CP.

A acusação pública deduzida nos autos imputou aos mesmos arguidos, além do mais, a prática, em co-autoria material de um crime de ofensa à integridade física qualificada art. 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, als. e), h) e j), todos do CP.

O nº 1 do art. 143º do CP define o tipo criminal fundamental da ofensa à integridade física, a al. a) do nº 1 do art. 145º do CP comina a penalidade aplicável aos crimes simples (isto é, não agravados nos termos do art. 144º) contra o mesmo bem jurídico qualificados e o nº 2 do referido art. 145º torna extensivo a esta categoria de crimes o regime de qualificação previsto para os crimes de homicídio no nº 2 do art. 132º do CP, em cujas alíneas estão descritos os exemplos-padrão que podem ser reveladores da especial censurabilidade ou perversidade do agente, que constitui o fundamento da qualificação, sendo as als. e), h) e j) do seguinte teor:
(…)
e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;
(…)
h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;
(…)
j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;
(…)
Na fundamentação jurídica da sentença recorrida, o Tribunal «a quo» julgou verificado o exemplo-padrão da al. e) do nº 2 do art. 132º do CP, na vertente do motivo torpe ou fútil, mas absteve-se de emitir idêntico ajuizamento a propósito dos exemplos-padrão tipificados nas als. h) e j), também referenciadas na acusação.

Os três identificados arguidos interpuseram conjuntamente recurso da sentença condenatória, tendo alegado (pontos al) e am) das conclusões), nomeadamente, que não existe qualquer facto provado que integre a qualificativa «motivo fútil ou torpe».

A abstenção por parte do Tribunal de ajuizar da verificação dos exemplos-pedrão previstos nas als. h) e j) do nº 2 do art. 132º do CP poderá eventualmente dar origem à nulidade de sentença definida pela al. b) do nº 1 do art. 379º do CPP, na modalidade da omissão de pronúncia.

No entanto, afigura-se-nos possível salvaguardar a validade do processado, mediante o mecanismo processual previsto no nº 3 do art. 424º do CPP, o qual estatui:

Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias.

É certo que a eventual qualificação do crime de ofensa à integridade física ao abrigo das disposições das als. h) e j) do nº 2 do art. 132º não é, em bom rigor desconhecida dos arguidos, na medida em que figurava no libelo acusatório do MP, mas tudo se passa como se o fosse, a partir do momento que o Tribunal de Julgamento, em sede de sentença, julgou qualificado tal crime, fazendo apelo apenas ao disposto na al. e) do mesmo normativo.

Na hipótese de este Tribunal da Relação, vir a considerar procedente a alegação dos arguidos no sentido de não haver factos provados que integrem o exemplo padrão da al. e), na vertente do motivo torpe ou fútil, manter a qualificação do crime de ofensa à integridade desta vez com fundamento nos exemplos-padrão das als. h) e j) representaria para os arguidos uma decisão-surpresa, porque baseada num enquadramento jurídico que eles não tiveram ocasião de discutir em sede de recurso e logo violadora das suas garantias de defesa.

Nesta conformidade, deverá proceder-se à notificação prevista no nº 3 do art. 424º do CPP, a fim de lhes conferir o ensejo de discutirem tal qualificação jurídica.

Desde já se consigna que, na eventualidade de este Tribunal vir julgar o crime de ofensa à integridade física qualificação nos termos das als. h) e j) do nº 2 do art. 132º do CPP, daí não poderá resultar a agravação das penas aplicadas aos arguidos, tendo em atenção a proibição da «reformatio in pejus» prescrita pelo art. 409º do CPP e que não interposto recurso em detrimento deles.

Consequentemente, determino se notifique o teor do presente despacho ao MP, ao assistente e aos arguidos, estes com a menção de que dispõem do prazo de 10 dias para se pronunciarem sobre a eventualidade da qualificação do crime de ofensa à integridade física ao abrigo dos exemplos-padrão das als. h) e j) do nº 2 do art. 132º do CPP.

Uma vez junta resposta dos arguidos ou findo o prazo para a sua apresentação, voltem os autos conclusos».

O despacho agora transcrito foi notificado aos sujeitos processuais, tendo os arguidos recorrentes tomado posição por meio de requerimento, em que peticionaram:

- A não alteração não substancial dos factos;

- Se assim se não entender, a concessão de um prazo não inferior a 30 dias para apresentarem motivação suplementar;

- Em qualquer caso, a junção aos autos de um documento que só entrou na sua posse após a conclusão do julgamento em 1ª instância.

Na sequência do peticionado pelos recorrentes, o Desembargador Relator proferiu novo despacho, que indeferiu os pedidos de concessão de prazo e de junção de documento, sem prejuízo de uma tomada de posição definitiva, em sede de acórdão, sobre a qualificação jurídica sugerida no despacho notificado aos sujeitos processuais.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância da decisão recorrida, que emerge das conclusões dos arguidos, desdobra-se nas seguintes questões:

a) Arguição de nulidade decorrente da deficiência de factos nas queixas apresentadas pelas condutas integradoras dos crimes de injúrias;

b) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

c) Subsidiariamente, invocação da causa de exclusão de culpa de estado de necessidade desculpante;

d) Impugnação da medida das penas;

e) Impugnação da condenação solidária dos arguidos no pagamento das indemnizações arbitradas ao demandante ofendido e ao Centro Hospitalar.

Passaremos a conhecer das várias questões em que se desdobra aa pretensão recursiva, pela ordem em que as enunciámos.

No que se refere à arguição de nulidade, importa termos presente que o art. 118º do CPP consagra mesma matéria o princípio da tipicidade, segundo o qual a inobservância das disposições da lei processual só invalida os actos praticados, nos casos especialmente previstos.

O recorrente faz basear a arguição na alegação de que as queixas apresentadas pelo ora assistente LR pelos factos integradores dos crimes de injúrias, por cuja prática foram condenados os arguidos MM e PP, não continham factos susceptíveis de preencherem esse tipo criminal, com excepção da expressão «cabrão», imputada ao arguido PP, donde resultaria a ilegitimidade do MP para a realização do inquérito e nulidade do processado, mas sem indicar a sede legal desta última.

Dito por outras palavras, sustenta o recorrente que as queixas apresentadas não incluíam referência à factualidade descrita no ponto 17 da matéria provada.

Por força do disposto no art. 188º nº 1 do CP, o crime de injúria p. e p. pelo art. 181º do CP reveste natureza procedimental particular.

O nº 1 do art. 50º do CPP estatui:
Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.

Por força da norma acabada de transcrever, quando o crime assuma natureza procedimental particular a falta de apresentação de queixa, pelo ofendido ou pela pessoa ou entidade a quem a lei reconheça esse direito, determina a ilegitimidade do MP para a instauração do inquérito e a não dedução pelo assistente de acusação particular a sua ilegitimidade para acusar.

Contudo, a violação das normas relativas à legitimidade para acusar não tem por efeito a nulidade do processado, mas sim o não conhecimento da acusação pelo Tribunal, na parte afectada por essa ilegitimidade.

A única nulidade, que vislumbramos na lei processual penal, com alguma ligação ao exercício ou não exercício do poder de acusar, é a prevista na parte inicial da al. b) do art. 119º do CPP, a qual fulmina de nulidade insanável, «a falta de promoção do processo pelo Ministério Público…».

Não nos repugna efectuar uma interpretação extensiva desta última disposição, em termos de a considerar vigente nos casos em que o assistente se tenha abstido de acusar, dependendo o procedimento de acusação particular.

No entanto, nada de semelhante se verifica no presente processo, porquanto o assistente LR não deixou de deduzir acusação particular contra os arguidos MM e PP, pelos crimes de injúria.

De igual modo, o ora assistente apresentou queixa contra os mesmos arguidos por factos que o queixoso entendeu serem integradores de crimes de injúrias.

Na eventualidade de os factos da queixa não coincidirem exactamente com os da acusação, nomeadamente, não constarem da primeira as expressões referidas no ponto 17 da matéria de facto, não vislumbramos que daí possa ficar afectada, perante os normativos legais relevantes, a validade do processado, a viabilidade do procedimento pelos crimes de injúria, estando em causa as mesmas pessoas, o mesmo enquadramento circunstancial e a lesão do mesmo bem jurídico.

Consequentemente, terá de improceder a arguição de nulidade feita pelos recorrentes.

Tem vindo a constituir jurisprudência constante dos Tribunais da Relação a asserção segundo a qual o recurso sobre a matéria de facto não envolve para o Tribunal «ad quem» a realização de um novo julgamento, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos, mas antes tem por finalidade o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham afectado a decisão recorrida e que o recorrente tenha indicado, e, bem assim, das provas que, no entender deste, impusessem, e não apenas sugerissem ou possibilitassem, uma decisão de conteúdo diferente.

Sintetizando, os recorrentes insurgem-se contra ter o Tribunal «a quo» julgado provados os factos descritos nos pontos 1 a 7, 9 a 11, 14, 16, 17 e 18 da matéria provada, o que equivale à quase totalidade dos factos objectivos e subjectivos integradores dos tipos de crime, pelos quais os arguidos foram condenados pela sentença recorrida.

Fundamentam a sua pretensão na reapreciação geral da prova produzida, com a valorização, para efeitos de convicção, as declarações dos arguidos e correspondente desvalorização das declarações do assistente e dos depoimentos das testemunhas LF e LL, filho do assistente.

Reproduzimos o que se expende na sentença impugnada para fundamentação do juízo probatório emitido (transcrição com diferente tipo de letra):

3 – Motivação
Para dar como provada e não provada a matéria que o foi, o Tribunal teve em consideração a prova produzida em julgamento, devidamente examinada, e pontuada pelas regras da experiência, da razoabilidade e do bom senso.

Com efeito, para dar como provados os factos que o foram relativamente aos acontecimentos de Setembro de 2014, teve o Tribunal em conta as declarações prestadas pelo assistente, o qual contou a situação pormenorizadamente, objectivamente e sem animosidade, apenas demonstrando a sua estupefacção e perturbação ao ser abordado pelo cunhado daquele modo.

As suas declarações foram corroboradas pelas do seu filho, LL, o qual depôs no sentido de ter ouvido a ameaça e produziu um depoimento em tudo coerente e objectivo, secundando o do seu pai.

Note-se que as declarações do arguido EE apenas foram no sentido de negar que tenha feito qualquer ameaça. Tendo em conta, no entanto, o modo como prestou as referidas declarações, nomeadamente imputando ao assistente toda a culpa dos problemas entre eles vividos e demonstrando mais interesse em o atacar do que em se defender.

Quanto aos factos referidos em dia 22.11, sendo de 21.11, o Tribunal baseou a sua convicção nas declarações do assistente, corroborado pelo depoimento da testemunha LF e da testemunha LL, seu filho. Com efeito, as declarações do assistente e das referidas testemunhas mostrou-se coerente e objectivo, não tendo entrado em contradições relevantes e não mostrando animosidade para com os arguidos. Teve-se também em conta o exame pericial de fls. 36/37, os relatórios juntos recentemente e os bombeiros e militares da GNR que acorreram ao local.

Com efeito, estas últimas confirmaram que o arguido estava apático, não respondendo a perguntas, o que se coaduna com o estado de inconsciência que foi narrado pelo assistente. Note-se que os arguidos pretendiam que o mesmo não estava inconsciente, mas o Tribunal entende ser a mesma realidade, mas narrada de modo diferente – com e sem conhecimentos de medicina.

Por outro lado, a versão dos arguidos nenhuma credibilidade mereceu ao arguido, não só por não se conformar às regras da experiência, mas por ser mesmo caricata. Não cabe na cabeça de ninguém que um homem de mais de 50 anos tenha um ataque de ansiedade, como foi dito pelos arguidos, e se arranhe e ainda para mais que aperte o próprio pescoço.

Foram ainda analisados os documentos que se encontram juntos aos autos para ter consciência de toda a relação subjacente e que terá provocado toda a situação restante.

As testemunhas juntas com o pedido de indemnização civil vieram analisar o estado em que o assistente se encontrava, na sequência dos factos, tendo a filha do assistente e a testemunha LF demonstrado as diferenças na sua personalidade.

Quanto a saber que o seu comportamento era punido e previsto por lei, o Tribunal fez apelo às regras de experiência comum uma vez que toda a gente sabe que não pode ameaçar, injuriar, ofender fisicamente, etc., outrem, e ainda para mais, de família.

As condições sociais e económicas dos arguidos foram dadas como provadas por apelo às suas próprias declarações.

Quanto a anteriores condenações, foram tomados em conta os certificados de registo criminal juntos aos autos.

Procedemos à audição do registo sonoro dos meios de prova pessoal com relevo para as impugnações em apreço e tivemos em atenção o relatório de exame médico-pericial efectuado na pessoa do assistente, na sequência dos factos incriminados ocorridos em 21/11/2014.

Os factos pelos quais os arguidos respondem subdividem-se em dois núcleos autónomos, o primeiro dos quais se resume, ao nível das condutas objectivas, à factualidade descrita no ponto da matéria provada e tem como único agente activo o arguido EE.

O segundo dos referidos núcleos é integrado «grosso modo» pelos factos descritos nos pontos 2 a 10 da matéria assente, tem como intervenientes os três arguidos, actuando concertadamente, e atinge uma pluralidade de bens jurídicos pessoais do ofendido e assistente, nomeadamente, liberdade, integridade física e honra e consideração.

Os três arguidos mantêm com o assistente uma relação próxima de o parentesco ou afinidade e o arguido EE é, em conjunto com o ofendido, sócio e gerente de uma sociedade comercial, em cujo escritório ocorreram os factos integradores do segundo núcleo, em 21/11/2014.

Nos processos que versam sobre situações semelhantes às tratadas nos presentes autos, o grosso da prova assenta quase sempre em meios de natureza pessoal provenientes o mais das vezes dos agentes activos e passivos do crime ou de pessoas comprometidas, em maior ou menor medida, com um dos «lados» do conflito.

Frequentemente, aquilo que confere consistência às versões dos ofendidos, em detrimento das dos arguidos, reside na sua compatibilidade com algum meio objectivo de prova, como sucede, por exemplo, com os exames médico-periciais.

O exame médico-pericial feito ao assistente, cujo relatório consta de fls. 36 e seguintes, foi levado a efeito em 24/11/2014 detectou no examinado apenas as lesões descritas no ponto 7 da matéria assente, concretamente, escoriações na face esquerda, com 2 a 3 cm de comprimento, do tipo arranhadela.

No contexto em que é realizada a diligência médica, as lesões nela detectadas terão sido plausivelmente resultado de algum tipo de confronto físico entre os arguidos, pelo menos os de sexo masculino, e o assistente.

No mesmo sentido parecem apontar os depoimentos das testemunhas mais descomprometidas inquiridas em julgamento, cuja gravação também escutámos, a saber os militares da GNR (FB e NC), que tomaram conta da ocorrência, e os bombeiros voluntários, que socorreram o ofendido, os quais compareceram no local «a posteriori» e, por isso, não presenciaram os factos em discussão.

A dificuldade lógica surge, porém, ao nível da conciliação entre o tipo de lesões, que o exame médico comprovou, os actos concretos, agressivos da sua integridade física, de que o assistente afirmou ter sido vítima, por parte dos arguidos EE e PP, e que o Tribunal julgou provados no ponto 4.

Tais actos traduziram-se, em síntese, em ter o arguido EE agarrado o assistente pelas costas, com o braço no pescoço dele, sufocando-o e ter-lhe o arguido PP desferido murros no estômago e noutras partes não concretamente apuradas do corpo.

Os actos agressivos da integridade física do assistente, levados a efeito pelos arguidos do sexo masculino, teriam dado origem, caracteristicamente, a outro tipo de lesões, do tipo hematomas ou equimoses, nas regiões corporais atingidas, ou seja, pelo menos, o pescoço e a zona do estômago.

Ora, não foram detectadas ao assistente quaisquer lesões dessa natureza nas zonas corporais em causa.

Assim sendo, a prova médico-científica não só não confere consistência à versão do assistente, como também, de certa forma a desmente, porquanto se o assistente tivesse sido alvo, por parte dos arguidos, dos actos agressivos da sua integridade física, que relatou nas suas declarações, dificilmente teria deixado de apresentar hematomas no pescoço e na região estomacal.

Como tal, não poderá ser atribuído por este Tribunal da Relação às declarações do assistente o poder de convicção, que lhe emprestou o Tribunal «a quo», pelo que teremos de julgar não provada a generalidade dos factos dados como demonstrados e ocorridos em 21/11/2014.

Exceptua-se do juízo probatório negativo agora emitido a factualidade do ponto 2, que se nos afigura consensual entre as várias pessoas ouvidas.

Igualmente deverá dar-se como provado que, a certa altura, também o arguido EE entrou no escritório referido em 2, que o assistente e os arguidos se desentenderam e que houve algum tipo de confronto físico, não concretizado, entre eles.

Também teremos de manter o juízo probatório afirmativo que recaiu sobre as lesões físicas sofridas pelo assistente e descritas no ponto 7, mas não assim quanto ao seu processo causal.

O facto descrito no ponto 1 é independente dos factos ocorridos em 21/11/2014 e as declarações prestadas pelo assistente, a seu propósito, não são afectadas pelo resultado do exame médico.

De todo o modo, atento que se desvalorizou as declarações do assistente para a prova dos factos datados de 21/11/2014, afigura-se-nos razoável não lhes atribuir crédito, também em relação ao facto descrito no ponto 1, a não ser que beneficiem de alguma corroboração por meio de prova objectivo ou proveniente de pessoa não comprometida com o interesse processual do declarante.

Dado que o depoimento testemunhal do filho do assistente LL, em que se baseou também a convicção do Tribunal, quanto ao ponto 1 da matéria provada, não preenche os aludidos requisitos, impõe julgar essa factualidade não provada.

O juízo probatório negativo agora emitido tem como consequência lógica que os factos descritos nos pontos 12, 19, 20, 21, 22, 23, 24 e 26 da matéria provada tenham ser dados como não provados, ainda que não tenham sido directamente impugnados pelos recorrentes.

Salvaguardam-se os factos do ponto 25, exceto a formulação final, relativa à sua origem causal, porquanto é compatível com experiência comum que o assistente tenha experimentado vergonha e desgosto ao ser visto com escoriações no rosto.

Consequentemente, será determinada no segmento decisório do presente acórdão a seguinte alteração à matéria de facto fixada pela primeira instância:

- Relegação para a matéria não provada dos pontos 1, 3, 4, 5, 6, 9, 10, 11, 12, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24 e 26 e das expressões «Como consequência da referida agressão», no ponto 7 e «decorrentes dos factos», no ponto 25, todos da matéria provada;

- Acrescento da matéria provada de um ponto 2-A, do seguinte teor:
«2-A A certa altura, também o arguido EE entrou no escritório, os arguidos e o assistente desentenderam-se e envolveram-se numa forma não apurada de confronto físico»;

O ponto 7 da matéria provada passará a ter a seguinte redacção:
«7. Por razões não apuradas, o assistente apresentava escoriações visíveis na face esquerda, com 3x2 cm, do tipo arranhadela, bem como, as lesões que lhe determinaram um período de cura de 8 dias».

Seguidamente, cumpre retirar da alteração da matéria de facto as consequências jurídicas que se impuserem.

Os arguidos foram condenados pela prática dos seguintes crimes:

A – EE
- Um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a) do C.P;

- Um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1, do C.P.,;

- Um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a), do CP;

B – MM
- Um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1, do C.P;

- Um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a), do CP;

- Um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, do CP;

C – PP
- Um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1, do C.P;

- Um crime de ofensa à integridade física;

- Um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, do CP.

Transcrevemos as normas incriminadoras acimam enumeradas:

- Nº 1 al. a) do art. 145º do CP
Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:

a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º;

- Nº 1 do art. 153º do CP
Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

- Nº 1 al. a) do art 155º do CP
Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados:

a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos;

Nº 1 do art 158º do CP
Quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

- Nº 1 do art. 181º do CP
Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.

Com relevo para questão em apreço, temos também o nº 1 do art. 143º do CP, que define o tipo criminal fundamental da ofensa à integridade física, nos seguintes termos;

Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

Após a alteração da matéria de facto fixada pela primeira instância, que introduzimos, aquilo que resta da matéria de facto provada não é susceptível integrar a tipicidade objectiva e subjectiva dos crimes por cuja prática os arguidos, pela sentença recorrida, impondo-se a respectiva absolvição de tais crimes

Na vertente civil do processo, temos presente a sede legal da responsabilidade civil por factos ilícitos, que é o nº 1 do art. 483º do CC:

Deduziram separadamente pedidos de indemnização civil o assistente/ofendido e o Centro Hospitalar de Leiria, este último visando reembolso das despesas, os quais obtiveram procedência total.

Não se provando, agora, a prática pelos arguidos e demandados dos factos geradores dos danos a reparar, terão eles de ser absolvidos dos pedidos indemnizatórios.

Dado que o assistente formulou oposição à motivação do recurso, incumbir-lhe-á suportar as respectivas custas, por força do art. 515º nº 1 al. b) do CPP.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

a) Conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, nos termos das alíneas seguintes;

b) Determinar a alteração da matéria de facto provada e não provada consignada a fls. 33 do presente acórdão;

c) Absolver os arguidos EE, MM e PP da totalidade dos crimes por cuja prática condenados, na sentença recorrida;

d) Absolver os mesmos arguidos dos pedidos de indemnização civil contra eles deduzidos pelo assistente LR e pelo Centro Hospitalar de Leiria;

e) Condenar o demandante civil LR a suportar as custas do pedido de indemnização por si deduzido.

Custas do recurso pelo assistente, fixando-se em 3 UC a respectiva taxa de justiça.

Notifique.

Évora, 12 de Março de 2019 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)