Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2542/19.5T8STR.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: DESPEJO
PROCEDIMENTO
COMUNICAÇÃO
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: É de considerar ineficaz a comunicação efectuada pelo senhorio ao arrendatário nos termos e para os fins do disposto no artigo 30.º, alíneas b) e c), da Lei n.º 6/2006, de 27/02 (NRAU), na redacção conferida pela Lei n.º 79/2014, de 19/12, no caso de se instruir a dita comunicação com uma caderneta predial urbana, na qual consta expresso um determinado valor patrimonial, indicado pelo senhorio como valor do locado, atinente a uma fracção autónoma que não corresponde ao imóvel arrendado por aquela abranger um sótão situado num piso superior a que não pode aceder-se pelo interior do restante espaço da fracção e cujo gozo não foi cedido através do arrendamento.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2542/19.5T8STR.E1
Comarca de Santarém
Juízo Local Cível de Santarém - Juiz 1
Apelantes: (…) e (…)
Apelada: (…)
***
Sumário do Acórdão
(Da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)
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Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – RELATÓRIO
(…) e (…), casados entre si e residentes na Rua do (…), (…), Poente, (…), intentaram contra (…), viúva, residente na Rua da (…), 31, 3.º- Dto., em Santarém, procedimento especial de despejo junto do BNA, pedindo a desocupação do locado que identificaram e a condenação da Ré no pagamento das rendas em atraso no montante global de € 10.021,94 e vincendas até efectiva entrega do local, tudo acrescidos dos respectivos juros.
Alegaram, em síntese, que, por força do procedimento de actualização de renda por si desencadeado a renda do prédio, no valor mensal de € 82,24, passou a ser, a partir de 01/01/2015, de € 290,17, acrescentando que a Requerida em 01/01/2015 apenas entregou a quantia de € 82,24 e, desde então, a quantia mensal de € 105,00.
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Citada, a Requerida deduziu oposição, alegando, em síntese, que a cave, garagem e sótão que fazem parte da fracção não foram arrendados, pelo que a renda actualizada não corresponde à quantia de € 290,17, mas sim a € 105,00, concluindo pela procedência da oposição e consequente improcedência do requerimento de despejo.
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Realizou-se audiência de julgamento tendo sido proferida sentença de que consta o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto e decidindo, julgo o presente procedimento especial de despejo intentado pelos Autores (…) e mulher (…) totalmente improcedente, por não provado e, em consequência, absolvo a Ré (…) dos pedidos.
Valor da acção: € 18.726,29 – artigos 296.º, 298.º, 306.º e 607.º, n.º 6, do NCPC e artigo 6.º do RCP.
Custas pelos Autores.
Registe, notifique e comunique ao BNA”.
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Inconformados com a sentença, vieram os Requerentes apresentar requerimento de recurso para este Tribunal da Relação de Évora, alinhando as seguintes conclusões:
“CONCLUSÕES:
1ª- A comunicação efetuada pelos AA. com vista à atualização da renda foi feita na estrita observância dos requisitos legais e nem sequer poderia ter sido feita de outro modo, indicado diferente valor patrimonial tributário ou junta outra caderneta predial ou dela constando diferente valor;
2ª- Nos termos do disposto no artigo 30.º da Lei 6/2006, na redação dada pela Lei 31/2012, a transição para o NRAU e a atualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando:
a) o valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos;
b) o valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana;
c) Cópia da caderneta predial urbana.
3ª- O valor indicado é o constante da caderneta predial, e que vai até junta na comunicação para que se faça prova e o inquilino possa aferir da sua correspondência;
4ª- Os AA. juntaram cópia da caderneta predial urbana do seu artigo (…), fração “L”, obtida em 28/08/2014, e indicaram o valor aí constante de 52.230,00 euros, não podendo indicar qualquer outro nem fazer a correspondência documental que não a esse valor;
5ª- Não poderá por isso considerar-se haver sido preterido o requisito material previsto na alínea b) do artigo 6.º da Lei 6/2006, preceito que foi integralmente respeitado;
6ª- Também não há correspondência entre o caso dos autos com os da citada Jurisprudência, pois aqui está em causa a exclusão da área de um sótão (que é área bruta dependente) e não de um autónomo piso ou lado de prédio (“Andar ou divisão com utilização independente”) também nessa mesma parte a sua avaliação precisa constante da caderneta predial e em que o valor patrimonial tributário é então a soma dos valores patrimoniais tributários parcelares de cada andar ou divisão com utilização independente.
7ª- Mas se o valor do locado avaliado nos termos dos artigos 38.º e segs. do CIMI está incorretamente determinado, então caberia à R. dele reclamar e requerer junto do serviço de Finanças competente o valor patrimonial do locado a figurar na caderneta predial;
8ª- Faculdade/dever que lhe é conferido pela Lei 79/2014, a exercer no prazo assinalado no n.º 4 do seu artigo 6.º, e caso a sua reclamação determinasse alteração do valor da renda, a correção do valor seria devida logo a partir da notificação aos Autores pela Ré da apresentação da reclamação e com a respetiva compensação efetuada nas rendas vincendas – n.º 5 do artigo 6.º da Lei n.º 79/2014.
9ª- Não pode a R. prevalecer-se da sua inércia, dai se devendo retirar as devidas consequências e ser julgado integralmente procedente o procedimento especial de despejo, e a R. condenada nos pedidos.
10ª- Sem conceder, as considerações e contas da R. são completamente desadequadas, e também não concluiu em correspondência com as suas próprias contas (caso em que a renda seria de 176.82 euros) nem com o facto da fórmula legal para cálculo do valor da fração apenas prever 16,59 m2 da área bruta dependente, e cuja exclusão antes resultaria no valor de renda mensal de 245,06 euros;
11ª- pelo que, em último caso e sem conceder, o Tribunal suprindo as contas e premissas da fórmula legal matemática que fixa o quantitativo da renda a vigorar, concluiria por dever a renda ser fixada em 245,06 euros e, consequentemente, procedente o presente procedimento e a Ré condenada a pagar aos Autores a quantia de € 9.103,90, a título de (diferença de) rendas vencidas (até Julho de 2019) e das entretanto vencidas e vincendas até à entrega do imóvel.
12ª- Foram violados os artigos 30.º e 31.º da Lei n.º 6/2006, o artigo 6.º da Lei n.º 79/2014 e os artigos 38.º e segs. e 130.º do CIMI, devendo a douta sentença proferida ser revogada e substituída por decisão que julgue procedente o procedimento especial de despejo e condena a Ré nos pedidos, e assim se fazendo JUSTIÇA!”
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A Apelada apresentou resposta ao requerimento de recurso, nos termos que a seguir se transcrevem:
“Os recorrentes insurgem-se contra a douta sentença que absolveu a aqui recorrida dos pedidos formulados pelos recorrentes na acção em referência, os quais consistiam na desocupação do locado onde a recorrida habita e na condenação no pagamento das rendas no montante global de € 10.021,94 e vincendas até efectiva entrega do locado.
Os recorrentes, no essencial e aceitando que o sótão não faz parte do arrendado à Ré/recorrida, alegam que o ónus de corrigir uma incorrecta comunicação do senhorio para actualização de renda caberia à arrendatária ou, mesmo, ao tribunal recorrido.
Ou seja, os recorrentes alegam que a recorrida arrendatária deveria ter reclamado o valor patrimonial do locado a figurar na caderneta predial, fazendo-o junto do serviço de Finanças competente. Assim se insurgindo contra a douta sentença recorrida, os recorrentes alegam, afinal, que deve ser a arrendatária a substituir-se ao senhorio na correcção da imperfeita comunicação que lhe é feita pelo senhorio quando este pretende desencadear o processo conducente ao aumento extraordinário da renda.
Os recorrentes bem sabiam que o valor inscrito na matriz predial e referente à fracção autónoma de que faz parte o arrendado dizia respeito a toda a fracção autónoma, sótão incluído. Como também sabiam os recorrentes que o sótão da fracção autónoma não fazia nem faz parte do arrendado à recorrida. Ainda assim, avançaram os senhorios com o procedimento para actualização extraordinária da renda indicando o valor patrimonial de toda a fracção autónoma, prontamente contestada pela aqui recorrida. Ora, não deve recair sobre a arrendatária o ónus de corrigir as imperfeições de comunicação dos senhorios, incluindo nesse ónus a correcção do valor patrimonial do locado junto do serviço de Finanças.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 03/10/2019, o qual também vem citado na douta sentença recorrida, “E cita-se ainda aí o acórdão do TRL de 27/06/2017, processo n.º 2058/16.1YLPRT:L1-7, que lembra que os elementos que a comunicação prevista no artigo 50.º do NRAU deve conter “destinam-se a facultar ao arrendatário as informações que lhe permitirão avaliar a correcção e a razoabilidade do aumento comunicado, a fim de que possa formar uma vontade esclarecida sobre a manutenção do arrendamento”; por isso, “sendo objecto do arrendamento o lado esquerdo de um determinado 2º andar, não satisfaz a exigência legal o envio, pelo senhorio, de caderneta predial de onde conste a referência única a todo esse 2º andar”; pelo que, “feita nestes termos a comunicação da nova renda para o 2º esquerdo, a mesma não tem valor vinculativo e o seu não pagamento pelo arrendatário não é fundamento de resolução do contrato pelo senhorio, sendo ineficaz a declaração feita nesse sentido” (outro caso de ineficácia pode ver-se no ac. do TRP de 15/02/2016, proc. 8535/14.1T8PRT.P1: IV – A comunicação não se considera eficaz quando se indica o valor patrimonial tributário e se junta caderneta predial, ambos atribuídos a prédio distinto daquele que vem descrito no contrato de arrendamento; no corpo do acórdão lembra-se: para efeitos de actualização da renda teria que se ponderar o valor patrimonial tributário deste espaço que está arrendado) ”.
Perante uma manifesta incorrecção de comunicação dos senhorios à arrendatária para aumento extraordinário da renda, também não se vislumbra que seja o tribunal recorrido a suprir as contas e premissas da fórmula legal matemática que fixa o quantitativo da renda a vigorar, como pretendem os recorrentes. Na verdade, o que está em causa é a própria ineficácia da comunicação dos senhorios à arrendatária e não, como também pretendem os recorrentes, a substituição de tal comunicação imperfeita por aplicação de fórmula matemática pelo tribunal recorrido.
A douta sentença recorrida mostra-se justa e conforme o Direito, devendo manter-se nos seus exactos termos.”
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O recurso foi admitido na 1ª Instância como de apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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O recurso é o próprio e foi admitido adequadamente quanto ao modo de subida e efeito, nada obstando a que se conheça do mesmo.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo , pelo que no caso concreto urge apreciar do mérito da sentença recorrida.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Consta do segmento da sentença recorrida relativo à decisão sobre a matéria de facto o seguinte:
“1. Factos provados:
A) Os autores são donos e legítimos possuidores da fracção autónoma designada pela letra “L”, destinada a habitação, correspondente ao 3º andar, direito do prédio urbano sito na Rua da (…), 31, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) da União de Freguesias de Santarém.
B) Por documento escrito datado de 01/09/1974, o autor cedeu o gozo temporário do 3.º andar direito referido em A) a (…), mediante entrega da contrapartida monetária mensal de 2.500$00, cfr. doc. de fls.16 e 17, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
C) Em data que concretamente não foi possível apurar, a cedência referida em B) transmitiu-se à ré.
D) Por carta datada de 04/09/2014, o autor comunicou à ré que:
“(…) venho comunicar-lhe a actualização da respectiva renda mensal, de € 82,24 para € 290,17, nos termos dos artigos 30º e seguintes da Lei 6/2006, de 27/2, com as alterações introduzidas pela Lei 31/2012, de 14/8.
O serviço de Finanças de Santarém fixou ao andar o valor de € 52.230,00, conforme cópia actualizada da caderneta predial que junto.
Dividido esse valor por 15, obtém-se o de € 3.482,00, correspondente à renda anual actualizada, e este último dividido por 12, define o de € 290,17 como valor da renda mensal actualizada – tudo nos termos da legislação atrás citada.
Ainda de acordo com a lei, tem V. Exa. o prazo de 30 dias para se pronunciar sobre o assunto.” cfr. doc. de fls. 31 a 34, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
E) A ré respondeu por carta datada de 27/09/2014, informando que a carta lhe foi entregue por terceiro, que já tinha 65 anos de idade, que a fracção era composta apenas por dois quartos e uma sala e que a área dependente (garagem, arrecadação ou sótão, a título de exemplo) nunca foi utilizada, sendo que o acesso ao sótão foi sempre vedado pelo autor, tendo contraproposto o aumento de renda para € 105,00 e alegando que a cópia da caderneta junta pelo autor não se encontrava completa, cfr. doc. de fls. 35 a 38, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
F) O autor respondeu por carta registada com aviso de recepção, datada de 07/10/2014, recebida pela ré em 14/10/2014, reconhecendo que a comunicação referida em D) padecia de irregularidades, juntando-a novamente, assim como cópia integral da caderneta predial urbana, cfr. doc. de fls. 39 a 45, cujo tero aqui se dá por integralmente reproduzido.
G) Por carta datada de 30/10/2014, a ré comunicou ao autor que a fracção nunca tinha estado ocupada na sua totalidade mas apenas 60,94% da sua área global e, consequentemente, os cálculos apresentados pelo autor encontravam-se inquinados, mantendo o aumento de renda para a quantia de € 105,00, cfr. doc. de fls. 46 e 47, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
H) O autor remeteu à ré carta registada com A/R, datada de 12/11/2014, recepcionada em 14/11/2014, com o seguinte teor: “Porque não aceito o valor da renda que me contra-propôs, fica ela fixada nos precisos termos que resultam da lei, no caso as alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 35.º da Lei 6/2006, de 27/02 (…) por remissão do n.º 6 do artigo 36.º do mesmo diploma.
Assim, e conforme já anteriormente lhe documentei é de € 290,17 (…) o valor actualizado da renda mensal que passará a pagar.
Nos termos do n.º 8 do já citado artigo 36.º, a nova renda é devida no dia 1 de Janeiro de 2015, pelo que deverá ser o respectivo valor que depositará desde então (…)”, cfr. doc. de fls. 48 a 51, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
I) A ré respondeu ao autor por carta datada de 10/12/2014 referindo novamente, para além do mais, que o cálculo efectuado pelo autor se mostrava incorrecto uma vez que a fracção não estava arrendada na sua totalidade e que mantinha a proposta do aumento de renda para € 105,00 (doc. de fls. 144 e 145, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
J) Por carta datada de 02/02/2015 a ré comunicou ao autor que nessa data havia depositado a quantia de € 105,00 a título de renda mensal de acordo com a proposta por si apresentada no decurso do processo de actualização de renda, cfr. doc. de fls. 147 e 148, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
K) No dia 01/01/2015 a ré apenas entregou aos autores a renda mensal de € 82,24.
L) A partir de Fevereiro de 2015, inclusive, até ao presente, a ré procedeu ao pagamento da quantia mensal de € 105,00.
M) Por notificação judicial avulsa que correu termos neste tribunal sob o n.º 950/19.5T8STR, em 09/04/2019, a Ré foi notificada da resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas (doc. de fls. 10 a 29, cujo teor aqui se dá por reproduzido).
N) Até ao presente a ré não entregou a fracção aos autores nem procedeu ao pagamento da quantia mencionada em H).
O) Do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio identificado em B) consta que a fracção L) corresponde ao “terceiro andar, direito, composto de três casas assoalhadas, sendo uma com arco ou gola, cozinha com marquise, despensa, casa de banho, hall e sótão com uma divisão ampla (…), cfr. doc. de fls. 171 e seguintes, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
P) No ano de 2012 o valor patrimonial da fracção foi avaliado pela Repartição de Finanças em € 52.230,00, cfr. doc. de fls. 32 e 33, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Q) Consta da caderneta predial urbana da fracção que a mesma se destina a habitação, que tem dois pisos e 4 divisões, uma área bruta privativa de 90,18m2 e uma área bruta dependente de 57,81 m2, cfr. doc. de fls. 18 e 19, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
R) Aquando do acordo mencionado em B), o autor não cedeu o gozo do sótão que integra a fracção.
S) O sótão aludido em R) situa-se no piso acima do 3.º andar direito e apenas tem acesso pelas escadas que dão acesso às demais fracções, através de uma porta, e não pelo interior daquele 3.º andar direito.

2. Factos não provados:
1) Aquando do acordo mencionado em B), o Autor também cedeu o gozo do sótão que integra a fracção.”
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Está em causa no presente recurso de apelação aferir se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao considerar ineficaz a comunicação realizada pelos ora Apelantes à Apelada com vista à actualização da renda do locado habitado por esta última por preterição do requisito material previsto no artigo 30.º, alínea b), da Lei n.º 6/2006, de 27/02 (NRAU), em virtude de o valor indicado como valor patrimonial do locado, avaliado de acordo com os requisitos previstos no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, (doravante apenas CIMI), corresponder à totalidade da fracção constituída pelo piso do 3º andar direito (incluindo, como tal, o sótão), quando o arrendamento abrangeu apenas o 3º andar direito, sem incluir a cedência do dito sótão.
Não foi impugnada a decisão relativa à matéria de facto descriminada na sentença recorrida, nem se descortinam razões para impulsionar qualquer alteração oficiosa à mesma ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, revelando-se, outrossim, pacífica a aplicação ao caso concreto da Lei n.º 6/2006, de 27/02 (NRAU).
Dito isto, comecemos por verificar o que preceitua o artigo 30.º, alíneas b) e c), da Lei acabada de identificar, na redacção vigente conferida pela Lei n.º 79/2014, de 19/12, que entrou em vigor em 18/01/2015, a qual se mostra aplicável ao caso vertente por força do seu artigo 6.º, n.º 1, que passamos a transcrever:
A transição para o NRAU e a atualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando, sob pena de ineficácia da sua comunicação:
[…]
b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal Sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana.
c) Cópia da caderneta predial urbana”
Decorre, por seu turno, do artigo 31.º da dita Lei, na redacção acima igualmente identificada, o seguinte:
“1- O prazo para a resposta do arrendatário é de 30 dias a contar da receção da comunicação prevista no artigo anterior.
[…]
3- O arrendatário, na sua resposta, pode:
[…]
Opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 33.º
[…]
6- O arrendatário pode, no prazo previsto no n.º 1, reclamar de qualquer incorreção na inscrição matricial do locado, nos termos do disposto no artigo 130.º do CIMI, junto do serviço de finanças competente.”
Já o artigo 130.º do CIMI, atinente à “Reclamação das matrizes”, estatui que:
3 - O sujeito passivo, a câmara municipal e a junta de freguesia podem, a todo o tempo, reclamar de qualquer incorreção nas inscrições matriciais, nomeadamente com base nos seguintes fundamentos:
a) Valor patrimonial tributário considerado desactualizado;
b) Indevida inclusão do prédio na matriz;
c) Erro na designação das pessoas e residências ou na descrição dos prédios;
d) Erro de transcrição dos elementos cadastrais ou das inscrições constantes de quaisquer elementos oficiais;
e) Duplicação ou omissão dos prédios ou das respectivas parcelas;
f) Não averbamento de isenção já concedida ou reconhecida;
g) Alteração na composição dos prédios em resultado de divisão, anexação de outros confinantes, rectificação de estremas ou arredondamento de propriedades;
h) Não discriminação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos por andares ou divisões de utilização autónoma;
i) Passagem do prédio ao regime de propriedade horizontal;
j) Erro na representação topográfica, confrontações e características agrárias dos prédios rústicos;
l) Erro nos mapas parcelares cometidos na divisão dos prédios referidos na alínea anterior;
m) Erro na actualização dos valores patrimoniais tributários;
n) Erro na determinação das áreas de prédios rústicos ou urbanos, desde que as diferenças entre as áreas apuradas pelo perito avaliador e a contestada sejam superiores a 10% e 5%, respectivamente.”
Identificadas as normas impõe-se descer ao patamar dos factos considerados assentes na sentença recorrida de modo a aferir se foi cometido algum erro de julgamento naquela como sustentam os Apelantes.
Desde já adiantamos que em nosso entendimento a sentença impugnada não padece efectivamente da patologia que lhe é apontada nas conclusões recursivas, pois não foi cometido na mesma a violação normativa defendida pelos Apelantes.
Com efeito, do cotejo dos factos considerados assentes na sentença recorrida descritos sob as alíneas A), B), C), O), P), Q), R) e S), percebemos que a fracção autónoma propriedade dos Apelantes designada pela letra L) respeita ao terceiro andar direito constituído por três casas assoalhadas, sendo uma com arco ou gola, cozinha com marquise, despensa, casa de banho hall e sótão com uma divisão ampla, bem como que tal imóvel está devidamente descrito e inscrito em conservatória do registo predial, assim como inscrito na correspondente matriz cadastral urbana com o valor patrimonial actualizado no ano de 2012 de € 52.230,00, resultando da caderneta predial urbana da dita fracção que este último valor respeita à totalidade da fracção em causa, pois menciona o dito terceiro andar direito com uma área bruta privativa de 90,18m2 e o sótão abrangido por uma área bruta dependente de 57,81m2, sendo certo, porém, que os Apelantes apenas cederam o gozo temporário do dito terceiro andar direito, cuja cedência se transmitiu oportunamente para a Apelada, sem contemplar a parte dependente respeitante ao sótão que faz parte da fracção.
Porém, no seu afã de actualização da renda do locado, os Apelantes indicaram o valor patrimonial de € 52.230,00, o qual, sem embargo de ser o que consta da caderneta predial urbana, que exibiram, respeita inequivocamente à totalidade da fracção de que são donos, ao invés de indicarem, comprovando devidamente através da caderneta predial urbana, o valor patrimonial respeitante à área efectivamente locada à Apelada, que, relembre-se, não inclui a área atinente ao sótão ao qual, aliás, só se pode aceder por escadas que dão acesso às demais fracções do prédio urbano e através de porta própria e não pelo interior do terceiro andar direito locado.
Por conseguinte, temos de convir, acompanhando o caminho trilhado pela sentença recorrida, inclusive no tocante às notas doutrinárias e arestos do Supremo Tribunal de Justiça e dos Tribunais da Relação de Lisboa, Porto e Guimarães mencionados, (todos eles acessíveis para consulta in www.dgsi.pt), com cujas linhas orientadoras não podemos deixar de concordar por, ao contrário do afirmado pelos Apelantes nas suas conclusões recursivas, se revelarem condizentes e compatíveis com o quadro factual provado na sentença recorrida, que os Apelantes não cumpriram devidamente o requisito plasmado nas alíneas b) e c) do artigo 30.º do NRAU, uma vez que indicaram na comunicação que efectuaram à Apelada um valor patrimonial que não corresponde à área efectivamente locada à mesma, ou seja indicaram o valor patrimonial de realidade distinta daquela que constitui o objecto do arrendamento, exibindo, consequentemente, caderneta predial urbana respeitante à sobredita realidade e não ao locado. (atente-se particularmente no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 24/05/2018, Processo n.º 1848/16.0YLPRT.L1.S2, bem como no acórdão proferido no mesmo sentido pelo Tribunal da Relação do Porto de 15/02/2016, Processo n.º 8535/14.1T8PRT.P1, ambos, além do mais, referenciados na sentença recorrida),
Dito isto, afigura-se-nos que actualizar uma renda com base no valor patrimonial relativo à totalidade da fracção documentado na caderneta predial anexada e não apenas do terceiro andar direito efectivamente cedido à Apelada consubstancia um acto injusto por passível de prejudicar claramente a mesma.
De resto, como também o refere a sentença recorrida, bem apoiada designadamente no recente acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 03/10/2019 (Processo n.º 690/16.2T8VVD.G1), no qual se faz um importante apanhado da jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores sobre a temática ora em apreço, no caso concreto que temos em mãos cabia aos Apelantes o ónus de requererem à competente repartição de Finanças determinar o valor patrimonial individualizado do imóvel efectivamente locado, a figurar na respectiva caderneta predial, como acto prévio à instrução do procedimento de actualização da renda relativa ao mesmo, na medida em que tal consubstancia um elemento factual essencial, por constitutivo da respectiva causa de pedir, do direito à atualização do valor da renda e concomitante transição para o regime do NRAU, sendo certo que não vislumbramos aplicável ao caso sub judice qualquer uma das alíneas descriminadas no n.º 3 do artigo 130.º do CIMI , acima transcritas, devendo relembrar-se que o sótão em apreço está contido em área bruta dependente e não de utilização “autónoma”, (ou seja, independente), o que afasta a previsão constante da última parte da alínea h), do n.º 3, do referido artigo 130.º do CIMI.
Mas ainda que assim não fosse e se mostrasse claramente aplicável ao caso vertente a mencionada alínea, ou alguma das outras, o certo é que da previsão do nº 6 do artigo 31.º do NRAU nada mais decorre para a Apelada que uma mera faculdade (atente-se na expressão “pode”), de reclamar de qualquer incorrecção na inscrição matricial do locado e não propriamente uma obrigação ou dever legal de o fazer.
Como tal e ao contrário do que sustentam os Apelantes nas suas conclusões recursivas nenhuma consequência jurídica desfavorável pode resultar para a Apelada do não uso de tal mera faculdade.
Destarte, consideramos improcedentes as conclusões recursivas delineadas pelos Apelantes, sendo que a apreciação do pretendido nos pontos 10º e 11º de tais conclusões revela-se claramente prejudicada pelo facto de se considerar ineficaz a comunicação realizada pelos Apelantes à Apelada, uma vez que a não produção de quaisquer efeitos em que se traduz essa ineficácia faz cair pela base a possibilidade de poder declarar resolvido o contrato de arrendamento por falta de pagamento da renda mensal, cuja actualização (expressamente repudiada pela Apelada) foi comunicada pelos Apelantes, consubstanciada no montante mensal de € 290,17, sem esquecer ter resultado ainda assente que desde 02/02/2015, inclusive, a Apelada passou a pagar aos Apelantes a renda mensal que lhes propôs no valor mensal de € 105,00 (cfr. os factos provados na sentença recorrida descritos sob as alíneas J) e L)).
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V- DECISÃO
Termos em que, face a todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso de Apelação interposto pelos Apelantes (…) e (…), decidindo-se o seguinte:
1- Confirmar a sentença recorrida.
2- Fixar as custas a cargo dos Apelantes (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do CPC).
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Notifique.
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Évora, 09 de Setembro de 2021
(José António Moita, Relator – assinatura electrónica certificada no canto superior esquerdo da primeira folha do acórdão).
(Silva Rato, 1º Adjunto – votou o acórdão em conformidade por comunicação à distância, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 01/05).
(Mata Ribeiro, 2º Adjunto – votou o acórdão em conformidade por comunicação à distância, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 01/05).