Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
621/19.8TXEVR-F.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Tendo o condenado, no decurso do período da liberdade condicional, ido viver por tempo indeterminado para país estrangeiro, sem autorização do TEP, e não tendo comparecido a consulta de alcoologia agendada, não diligenciando sequer por novo agendamento, assim inviabilizando diagnóstico e acompanhamento à problemática alcoólica, demonstra, com tal comportamento, o manifesto, intencional e grosseiro (pois não estamos perante uma mera mudança da residência fixada ou deslocação de muito curta duração, mas de uma ausência prolongada para o estrangeiro), desprezo do condenado pelas obrigações a que estava submetido e assim revela que não estava em condições de cumprir a finalidade primacial que esteve na base da sua colocação em liberdade condicional.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO

1. Nos autos com o nº 621/19.8TXEVR-F, do Juízo de Execução das Penas de … – Juiz …, foi proferido despacho aos 06/10/2022, que revogou a liberdade condicional concedida a AA e determinou o cumprimento do remanescente da pena de prisão em que foi condenado no Proc. nº 36/19.8GAFZZ, da Secção Criminal da Instância Local de ….

2. O condenado interpôs recurso desta decisão, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

A) O douto despacho recorrido não valorizou o facto dele ter requerido para se ausentar em trabalho, conforme contrato de trabalho junto aos autos.

B) Como não teve em conta a convicção do recorrente de que o alegado conselho da sua ilustre patrona era para ele suficiente para se poder deslocar para o estrangeiro.

C) O grau de ilicitude da desobediência é diminuto.

D) O modo de execução é quase compreensível pois não escondeu nada até indicou a nova morada laboral, constante do contrato de trabalho.

E) O grau de violação dos deveres incumpridos bem como a exigência de prevenção não exigem o regresso à prisão.

F) Não foi tido em conta se o recorrente terá uma melhor reinserção social se for condenado a cumprir o resto da pena, ou, como é o caso, continuar a trabalhar para o seu bem e da sua família.

G) Salvo o devido respeito pelo decidido, deverão VVExas revogar o douto despacho recorrido no sentido de continuar em liberdade, eventualmente, condicionada a um plano de readaptação que o ajude a ressocializar-se.

H) O douto Despacho Recorrido violou o disposto nos artigos 70 e 71.1 e 2 do Código Penal.

Assim, decidindo como o requerido, será feita uma sã e humana JUSTIÇA.

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. O Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pelo seu não provimento.

5. Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso,– neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a de saber se estão verificados os pressupostos da revogação da liberdade condicional.

2. A Decisão Recorrida

2.1 É o seguinte o teor da decisão recorrida, na parte que releva (transcrição):

AA (melhor identificado nos autos) foi colocado em liberdade condicional na sequência de decisão proferida por este Tribunal de Execução das Penas (Juiz …).

Havendo notícia da violação das obrigações que lhe foram impostas na sentença que lhe concedeu a liberdade condicional, foi instaurado o presente incidente de incumprimento de liberdade condicional.

Foi respeitado o contraditório, designadamente ouvindo-se o recluso, tendo depois o Ministério Público emitido parecer no sentido da revogação da liberdade condicional, sendo que pelo requerido nada mais foi alegado.

O tribunal é competente.

O processo é o próprio e está isento de nulidades insanáveis, nada obstando ao conhecimento de mérito.

Considerando o estado dos autos, julgo desnecessária a realização de qualquer outra diligência de prova.

Pelo que cumpre decidir.

APRECIANDO:

Com relevância para a causa julgo provados os seguintes factos:

1 - Por decisão proferida por este Tribunal de Execução das Penas (Juiz …), foi concedida a liberdade condicional a AA;

2 – Então encontrava-se em cumprimento da pena de anos 3 anos de prisão aplicada no Proc. 36/19.8GAFZZ da Secção Criminal da Instância Local de …, aqui condenado pela prática de um crime de violência doméstica;

3 - O período de liberdade condicional decorreria desde 19/3/2021 a 19/3/2022;

4 - Na decisão que concedeu a liberdade condicional foram impostas ao então recluso, entre outras, as obrigações de: não alterar a residência fixada judicialmente (…, …, …), sem prévia autorização do Tribunal de Execução das Penas; apresentar-se a técnico dos serviços de reinserção social, acatando as suas ordens e recomendações; nisso consentindo, agendar consulta de alcoologia, para diagnóstico, e submeter-se ao acompanhamento que viesse a ser indicado; e não se deslocar para o estrangeiro sem prévia autorização do Tribunal de Execução das Penas;

5 – Após libertação, e na sequência de requerimento que formula, por despacho judicial de 9/9/2021 é-lhe autorizada mudança de residência, que se fixou na …,…, …, …;

6 – Ainda agendou consulta de alcoologia, para o dia 30/9/2021;

7 – Não obstante, por requerimento de 11/10/2021, o requerido pede autorização para se deslocar a França e aí permanecer, em morada que indicou, por um período de 6 meses, ali pretendendo exercer actividade laboral;

8 – Sem aguardar por resposta do tribunal, o requerido ausenta-se para França, onde permaneceu até ao período do Natal de 2021, altura em que regressa a Portugal, sem que tivesse depois informado os serviços de reinserção social do seu regresso;

9 – Tendo em perspectiva a ida para França, o requerido também faltou à consulta de alcoologia agendada para 30/9/2021, consulta que não cuidou de remarcar;

10 – AA sabia que aquando dos factos acima referidos estava em situação de liberdade condicional e que, com a sua prática, poria em sério risco a sua manutenção.

Com relevância para a causa inexistem factos por provar.

A matéria de facto acima descrita resulta da análise da certidão inicial junta aos autos, bem como das declarações do recluso (ouvido no passado dia 4/7/2022), das senhoras técnicas dos serviços de reinserção social que o acompanharam em reclusão e nos primeiros tempos de liberdade condicional, e ainda do teor da decisão de concessão de liberdade condicional proferida no Apenso A.

Resulta do disposto no art.º 56 n.º 1 do Código Penal (ex vi art.º 64 n.º 1 do mesmo diploma) que a liberdade condicional deverá ser revogada se no decurso da mesma o condenado cometer crime pelo qual venha a ser condenado e com isso revelar que as finalidades que estavam na base da sua concessão não puderam, por meio dela, ser alcançadas – cfr. o citado art.º 56 n.º 1-b).

No caso que se aprecia verificamos que, em pleno período da liberdade condicional, o condenado, que inicialmente vinha cumprindo com as condições da sua liberdade, a dada altura deixa de o fazer, sem autorização ausentando-se da sua morada e indo viver para outro país, onde permaneceu por algum tempo. Quando regressa a Portugal também não cuida de retomar os contactos com os serviços de reinserção social, além do que negligenciou por completo a obrigação de se sujeitar a avaliação médica especializada na vertente de alcoologia.

Ou seja, desprezando as orientações da equipa dos serviços de reinserção social, bem como o dever de se submeter a controlo do tribunal, tornou inexistente qualquer possibilidade de acompanhamento e avaliação da liberdade condicional que lhe havia sido concedida. Na verdade, optou por prosseguir a sua vida conforme lhe convinha, e não como lhe estava imposto e devia fazer para salvaguardar uma reinserção social progressiva e estruturada.

Ora, com este seu comportamento, a nosso ver o condenado revela grave impreparação para orientar de forma normativa e estruturada a sua vida em meio livre, desvalorizando a situação de liberdade “precária” em que se encontrava, tendo acabado por demonstrar que as finalidades de prevenção, sobretudo especial, que estiveram na base da concessão da referida liberdade condicional, se não verificaram em concreto.

Pelo que, ante a natureza e gravidade dos factos, se impõe a revogação da liberdade condicional concedida (a nosso ver não se mostrando suficiente para acautelar as exigências de prevenção especial sentidas qualquer uma das outras medidas previstas no art.º 55-a) a c), ex vi art.º 64 n.º 1 do Código Penal), já que reclamada pela finalidade última da execução da pena de prisão, ou seja, a defesa da sociedade e a prevenção da prática de crimes (cfr. art.ºs 43 e 56, este ex vi art.º 64, todos do Código Penal).

Com consequente cumprimento do remanescente da pena de prisão aplicada no Proc. Proc. 36/19.8GAFZZ da Secção Criminal da Instância Local de ….

DECISÃO

Pelo que, revogo a liberdade condicional concedida a AA e, consequentemente, determino a execução da pena de prisão, na parte ainda não cumprida, imposta no Proc. 36/19.8GAFZZ da Secção Criminal da Instância Local de ….

Apreciemos.

Estabelece-se no artigo 61º, nº 1, do Código Penal, que “é correspondentemente aplicável à liberdade condicional o disposto no artigo 52º, nos nºs 1 e 2 do artigo 53º, no artigo 54º, nas alíneas a) a c) do artigo 55º, no nº 1 do artigo 56º e no artigo 57º”, de onde resulta que, a liberdade condicional é revogada quando, no seu decurso, o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social, bem como se cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da sua libertação condicional não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

No caso em apreço, o recorrente encontrava-se a cumprir a pena de 3 anos de prisão pela prática de um crime de violência doméstica, sendo que a decisão que lhe concedeu a liberdade condicional impôs as obrigações, entre as mais, de não alterar a residência fixada judicialmente sem prévia autorização do Tribunal de Execução das Penas (TEP); agendar consulta de alcoologia, para diagnóstico e submeter-se ao acompanhamento que viesse a ser indicado, assim como não se deslocar para o estrangeiro sem prévia autorização do mesmo Tribunal.

Ora, o condenado, no decurso do período da liberdade condicional (que vigorava entre 19/03/2021 a 19/03/2022) deslocou-se para França, onde permaneceu durante tempo indeterminado, mas até ao período de Natal de 2021, sem autorização do TEP.

E, não compareceu à consulta de alcoologia agendada para o dia 30/09/2021, não diligenciando sequer por novo agendamento, assim inviabilizando diagnóstico e acompanhamento à problemática alcoólica.

A justificação de que se ausentou para desenvolver actividade laboral não merece acolhimento, pois não pode prevalecer sobre as obrigações estabelecidas pelo TEP.

E, o mesmo se diga, quanto à alegada convicção de que bastava requerer ao Tribunal a autorização para a deslocação e permanência no estrangeiro, porque qualquer indivíduo mentalmente escorreito (e inexistem razões para questionar que o recorrente o não seja) sabe que um pedido de autorização não corresponde a esta.

Este seu comportamento demonstra, pois, o manifesto, intencional e grosseiro (pois não estamos perante uma mera mudança da residência fixada ou deslocação de muito curta duração, mas de uma ausência prolongada para o estrangeiro), desprezo do condenado pelas obrigações a que estava submetido e assim revela que não estava em condições de cumprir a finalidade primacial que esteve na base da sua colocação em liberdade condicional (a liberdade condicional tem como escopo criar um período de transição entre a reclusão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, de forma equilibrada, não brusca, recobrar o sentido de orientação social necessariamente enfraquecido por efeito do afastamento da vida em meio livre e, nesta medida, a sua finalidade primária que é a reinserção social do cidadão recluso – cfr. Anabela Rodrigues, A Fase de Execução das Penas e Medidas de Segurança no Direito Português, BMJ, 380, pág. 26), a qual não pôde, por esta, ser alcançada e que a sua revogação e consequente cumprimento da pena em meio institucional constitui a única via para a atingir.

De onde, correcta se mostra a decisão de revogação da liberdade condicional, cumprindo negar provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo condenado AA e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.

Évora, 10 de Janeiro de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário).

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(Artur Vargues)

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(Nuno Garcia)

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(António Condesso