Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2195/06.0PBSTB.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: MAUS TRATOS A CÔNJUGE
Data do Acordão: 05/18/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I - Independentemente do desrespeito das regras de convivência por parte do arguido, da violação dos seus deveres conjugais, ou da verificação de ilícitos civis (v. g. dever de respeito), ou mesmo da eventual verificação de ilícitos criminais, como sejam os crimes de injúria e de difamação (que não poderiam ter sido considerados pelo tribunal, nem mesmo com recurso aos mecanismos dos arts. 358º e 359º do CPP, visto que sempre faltaria a acusação particular), a factualidade apurada não atinge aquela intensidade e violência na violação dos direitos de personalidade da ofendida que o legislador quis prever com a incriminação dos maus tratos a cônjuge.

II - Ainda que os factos provados assumam gravidade, não são eles de molde a justificar a sua integração no tipo criminal em análise, sem riscos de se cair na banalização do conceito de maus tratos e de violência doméstica – bem longe da importância e gravidade com que o legislador quis revestir a sua incriminação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A)
Nestes autos de processo comum singular n. º 2195/06.0PBSTB (1º Juízo Criminal da Comarca de Setúbal) foi decidido na sentença final julgar a acusação improcedente por não provada e, consequentemente, absolver o arguido A. do crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art. 152º nºs 1 al. a) e 2 do Código Penal, com a redacção anterior à Lei 59/2007, de 04.09, do qual vinha acusado, e julgar-se igualmente improcedente por não provado o pedido de indemnização cível deduzido pela assistente, absolvendo-se o R. do pedido.

Inconformada com o assim decidido, a assistente MT interpôs recurso para esta Relação, pedindo, conforme consta das suas conclusões, que seja revogada a sentença recorrida e que o arguido seja condenado como autor do crime que lhe era imputado, por a matéria apurada integrar a prática desse crime, condenando-se também o mesmo arguido em indemnização civil.

Respondeu o arguido, recorrido, defendendo a improcedência do recurso e a manutenção do julgado.

Respondeu também o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, sustentando que não deve ser dado provimento ao recurso, devendo antes manter-se na íntegra a sentença impugnada.

Nesta Relação, de igual modo a Ilustre Sra. Procuradora-Geral Adjunta que teve vista dos autos emitiu douto parecer no sentido da improcedência total do recurso, louvando-se na posição expressa pelo MP na primeira instância.

Foi observado o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo surgido qualquer resposta.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

B)
Considerando os elementos relevantes para o efeito, decorrentes do processo, cumpre apreciar e decidir.

Recorde-se que o objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação - arts. 403º, n.º 1, e 412°, n.º 1, do Código de Processo Penal.

De harmonia com o disposto no nº.1 do artigo 412º. do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, in B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, in B.M.J. 478/242, e Ac. de 3/2/1999, in B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995).

São só as questões suscitadas pelo recorrente, e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigos 403º, n.º 1 e 412º, n.ºs 1 e 2, ambos do C.P.P.

Nesta sede importa anotar também ser pacífica a doutrina e a jurisprudência no sentido de que «… se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões». Vd., por todos, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª. ed., 2000, pág. 335.

Importa por isso antes do mais recordar as conclusões exaradas pela recorrente no final das motivações do seu requerimento de recurso.

São elas:

1) A conduta contida nos factos provados integra por si só o crime de maus-tratos a cônjuge.

2) A "matéria-prima" deste crime é, por um lado, o exercício da violência, e por outro, a idoneidade da conduta violenta para diminuir, vexar e desvalorizar a imagem do par, no sentido de eternizar um papel de subalternidade social, familiar e pessoal.

3) Ficou provado que o arguido utilizou o seu próprio filho de nove anos para com invejável eficácia atingir a ofendida.

4) A imputação à ofendida de ter relações sexuais com um homem, ter sido apanhada pelo avô, e depois ter batido no avô, é sórdida, brutal, e difamat6ria.

5) Surtiu aliás no menor um efeito devastador, conforme está documentalmente provado nos autos, prova que coincide com a prova testemunhal (testemunho da psicóloga).

6) Ficou provado que o arguido à frente do filho do casal dizia à ofendida "não prestas, não vales nada" afirmações que se revelavam absolutamente idóneas e eficientes para destruir a auto-estima da assistente.

7) Ficou provado que o arguido dizia a terceiros desconhecidos que a assistente era uma má mãe.

8) Ficou provado que toda a panóplia de insultos e imputações escandalosas faziam sofrer e humilhavam a assistente.

9) Ficou, finalmente, provado que o arguido queria fazer sofrer e humilhar a ofendida.

10) As traves mestras do crime de maus-tratos a cônjuge estão, deste modo, absolutamente presentes na conduta do arguido, e por esse crime deve o arguido ser civil e criminalmente condenado.

11) Houve, deste modo, contradição entre o que se provou e a decisão proferida, incorrendo a sentença na situação prevista no art. 410 alínea b) do C.P.P ..

Nestes termos: deve dar-se provimento ao presente recurso, e em consequência revogar-se a douta sentença proferida, condenando-se o arguido pelo crime de maus-tratos a cônjuge; em concomitância deve ainda o arguido ser condenado em indemnização cível à ofendida no montante requerido.

Por seu lado, a douta sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

1. O arguido e MT foram casados entre si, vivendo em comunhão de casa, mesa e habitação durante cerca de 11 anos na Quinta....

2. Actualmente estão divorciados, tendo, todavia, e apesar de separados de facto, o arguido e a assistente residido na mesma casa até 8.07.08, data em que foi determinado o afastamento do arguido da residência.

3. No período compreendido entre os anos de 2006 e 2007 o arguido e a assistente discutiam frequentemente por causa de dinheiro e da gestão da sociedade da Quinta..., onde são organizados eventos.

4. Nesse mesmo período o arguido, por diversas vezes, disse a MT “tu não prestas, não vales nada”, muitas vezes na presença do filho menor do casal, F.

5. No dia 28.2.2007, cerca das 7:50h, o arguido dirigindo-se ao filho menor do casal, F, na presença de MT disse-lhe “A sua mãe foi apanhada pelo seu avô a ter relações sexuais com um homem e depois ainda bateu no seu avô”.

6. O arguido disse a AR, com a qual não tinha qualquer intimidade, que a sua mulher, MT, era uma má mãe.

7. O arguido, no período compreendido entre os anos de 2006 e 2007, falava com a assistente de forma áspera e autoritária, na presença de terceiros, mantendo aquela uma postura de submissão.

8. O arguido sabia que tais actuações humilhavam a assistente, e a ofendiam, o que quis com a sua actuação.

9. Os comportamentos do arguido e a situação que envolveu a ruptura do casal causaram à assistente sofrimento, humilhação e tristeza.

10. O arguido não tem antecedentes criminais.

11. Encontra-se actualmente reformado, recebendo uma pensão mensal no valor de €900,00.

12. Paga €115,00 mensais de pensão de alimentos devida ao seu filho menor.

13. Paga um crédito que contraiu para aquisição de viatura, no valor de €315,00 mensais.
*
Consignou ainda o tribunal que não se logrou provar a seguinte factualidade:

Da acusação pública:

a. Desde o início da vivência conjunta e no interior da residência de ambos o arguido sempre exigiu dinheiro à ofendida para pagar despesas e dívidas que contraía, iniciando discussões por esse motivo.

b. Nessas ocasiões, por vezes, o arguido apertava o pescoço à ofendida, sendo que em uma das ocasiões encostou-lhe uma faca de cozinha ao pescoço, dizendo em simultâneo “eu mato-te”.

c. O arguido disse, por diversas vezes a MT “és uma estúpida, és um nojo, és imoral”.

d. No dia 15.12.2006 na sequência de um desentendimento o arguido disse a MT “és uma estúpida, és um nojo, és imoral” após o que cuspiu na cabeça daquela dizendo-lhe em seguida: “desfaço-te”.

e. No dia 25.2.2007, cerca das 11h no interior da residência de ambos, o arguido disse a MT “és um nojo, vou-te desfazer em merda, não vales nada, és um nojo, judas”.

f. Nesse mesmo dia, cerca das 16:30h, no interior do escritório do arguido, sito na residência de ambos, o arguido disse a MT “és uma merda, se fizeres queixa à Policia desfaço-te e destruo tudo”.

g. Em consequência directa e necessária das actuações do arguido MT sofreu dores e lesões cuja extensão e gravidade não foi possível apurar, uma vez que aquela não procurou tratamento médico por vergonha.

h. O arguido actuou das formas descritas com o propósito de molestar fisicamente Maria Teresa, sabendo e querendo produzir nesta, como aconteceu, as mencionadas lesões, provocando-lhe ferimentos, dores e sofrimento.

i. Com as expressões que dirigiu a MT o arguido quis causar-lhe medo e assusta-la, prejudicando-a na sua liberdade de actuação, o que conseguiu.

j. O arguido aproveitou-se da sua superioridade física sobre MT, sua mulher, para agir das formas descritas, maltratando-a sistematicamente.

k. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e ainda assim, não se inibiu de as prosseguir.

l. Em consequência da relação que mantinha com o arguido e da actuação deste a assistente entrou em depressão.

Da acusação deduzida pela assistente:

a. A assistente tem sido alvo ao longo do seu casamento de extorsões várias de dinheiro por parte do arguido.

b. No ano de 2006 o arguido desviou da empresa em que ele e a queixosa são sócios cerca de € 100.000,00, deixando nesta um buraco financeiro de igual valor que tem sido a queixosa a pagar.

c. O arguido falsificou a assinatura da queixosa num pedido de empréstimo ao Barclays Bank, tendo, também retirado quantias da conta da sociedade em que são sócios ambos os cônjuges, para a sua conta particular.

d.A queixosa desde sempre pagou as dívidas que o arguido foi contraindo, sendo certo que é um gastador impulsivo.

e. O arguido, por várias vezes apertou o pescoço à ofendida.

f. A queixosa tem a sua vida familiar e profissional destruída graças ao comportamento do arguido, pautado por reiteradas agressões físicas e psicológicas.

Da contestação:

a. O arguido sempre teve um excelente relacionamento com o filho F, procurando, sempre, preservá-lo das discussões e mau ambiente familiar provocado pela assistente, nunca tendo comentado, com o mesmo, qualquer assunto relacionado com a vida do casal e que pudesse pôr em causa a idoneidade moral da assistente.

b. Durante grande parte do tempo em que o arguido e a assistente permaneceram casados o primeiro foi frequentemente maltratado pela segunda, que lhe dirigia, regularmente, palavras insultuosas, humilhando-o perante empregados, chegando a pedir que não dirigissem a palavra ao arguido.

c. Nisto a assistente contava com o apoio de dois filhos (nascidos de um primeiro casamento), chegando um filho da assistente a agredir o arguido.

d. A assistente chegou, também a proibir alguns trabalhadores da Quinta onde ambos residiam de tratar da roupa e do quarto do arguido.

e. A assistente queria, com tal comportamento, que o arguido saísse da quinta onde residiam, bem como deixasse de ser sócio de uma sociedade comercial em que ambos são titulares das respectivas quotas.

f. Como consequência do comportamento da assistente, o arguido teve que se socorrer de ajuda médica, tomando medicamentos que lhe foram prescritos.

Para assim fixar a matéria de facto provada e não provada o julgador fundamentou a sua posição da forma que se transcreve (apesar da sua extensão):

A decisão de facto teve por base a prova produzida em audiência, globalmente considerada, que consistiu no seguinte:

Atendeu-se, desde logo, ao depoimento de FC, filha da assistente, o qual se afigurou ao tribunal como sincero, prestado de uma forma muito real e sentida, mas, ainda assim, calma e segura, sem se mostrar, de todo o modo, tendencioso. Com efeito, certamente que pretendendo favorecer a mãe, a testemunha teria referido ter presenciado muitos mais factos, ou, pelo menos, factos mais gravosos, sendo que, foi a testemunha muito clara em afirmar aquilo a que ela própria tinha assistido e que, tudo o resto que sabia era por lhe ser contado pela sua mãe. Declarou a testemunha que já não residia com a mãe em 2006, sendo, todavia, que esta lhe pediu para voltar para casa em Maio desse ano, onde ficou até Outubro de 2007, por esta necessitar de apoio, em face do desgaste da relação com o arguido. Referiu a testemunha que o casal se havia desentendido por causa da gestão da sociedade de que ambos eram sócios, estando a sua mãe convencida de que aquele estava a retirar dinheiro da sociedade, indevidamente, e para usar em gastos pessoais. Disse a testemunha que, quando este era confrontado com esse facto respondia sempre de uma forma alterada “gritando, ou chorando”, procurando, assim, e como referiu, manipular a sua mãe. Referiu que todas as semanas ocorriam e assistia a discussões entre o casal, geralmente iniciadas pelos problemas de falta de dinheiro na sociedade da Quinta..., sendo que, a tais discussões, assistia muitas vezes não só ela mas também o seu irmão F, sendo frequente o arguido dizer à assistente “tu não prestas, tu não vales nada”. Mais disse que, em determinado dia que não conseguiu precisar mas que situou nesse período de tempo que voltou a residir com a mãe, acordou com o arguido a falar muito alto, indo ver o que se passava. Viu que este se encontrava a falar num tom muito exaltado, estando presentes a sua mãe e o F, estando aquele a dizer ao F que a sua mãe (a assistente) se tinha envolvido sexualmente com um homem e que, tendo sido apanhada pelo pai (avô do F), lhe bateu.

É certo que, em sede de inquérito a testemunha não referiu as expressões que em julgamento atribuiu ao arguido “tu não prestas, tu não vales nada”, antes ali dizendo que aquele injuriava a mãe, não se recordando, todavia, do teor de tais injúrias. Contudo, deste facto, parece-nos não se poder retirar que o depoimento prestado por FC foi inverídico em qualquer dos momentos processuais. Desde logo, porque tais expressões, por si só, podem não ser consideradas injuriosas, não sendo a elas que a testemunha se referiria, sendo assim que o seu testemunho em sede de julgamento ficou até aquém daquilo a que efectivamente assistiu. Por outro lado, os depoimentos prestados perante OPC são, muitas vezes, efectuados de forma sumária, preocupando-se o agente apenas em colocar o sentido do depoimento prestado para assim indiciar um facto, não sendo, as mais das vezes, efectuada uma rigorosa descrição do depoimento prestado. Não se vê, assim, que tenham existido contradições entre o depoimento prestado pela testemunha em inquérito e em sede de julgamento que coloquem a credibilidade que este mereceu ao tribunal em causa.

Referiu por fim a testemunha que a sua mãe andava bastante deprimida e infeliz, tendo ataques de pânico durante a noite, tendo tido necessidade de tomar medicação calmante.

Foram também relevantes para a convicção da factualidade dada como provada os depoimentos de AR e de AS. AR informou ter-se dirigido à Quinta... por se pretender casar lá. Referiu não conhecer nem o arguido nem a assistente antes de ali se dirigir para esse fim, nunca tendo tido, com nenhum dos dois, qualquer tipo de relação de proximidade. Afirmou a testemunha ter sinalizado a reserva do espaço, no ano de 2006, mas tendo acabado por decidir não casar lá por não poder ter o catering que pretendia. Referiu ter percebido, por conversa que manteve com a assistente, que esta não tinha tido conhecimento da sinalização que havia feito e entregue ao arguido. Mais referiu que, em determinada altura, também em 2006, telefonou para a Quinta tendo falado com o arguido, por querer saber informações sobre o serviço prestado, tendo aquele, a determinado momento da conversa, dito “F está quieto”, pensando a testemunha que o filho estaria perto dele, dizendo aquele em seguida, que o filho estava mal educado e que a culpa era da sua mulher que era uma má mãe e que tinha prova disso nos dois filhos que ela tinha do anterior casamento. Mais disse a testemunha ter ficado incomodada com este comentário por não ter qualquer tipo de intimidade com o arguido ou com a sua mulher, tanto que posteriormente, entendeu por bem informar a assistente do teor do mesmo. O depoimento desta testemunha mostrou-se totalmente isento e sério, quer pela forma como foi prestado, quer por não ter a testemunha qualquer relação com o arguido ou a sua ex-mulher, não demonstrando qualquer interesse no desfecho da causa.

AS referiu ter assumido as funções de TOC, em 2005, na sociedade em que arguido e assistente eram sócios, mantendo com ambos, contudo, apenas uma relação profissional. Disse ainda que houve desentendimentos entre os sócios relacionados com a gestão da empresa, tendo sido, ao longo dos anos, vendidos vários bens próprios da assistente para fazer face às dificuldades da sociedade. Mais disse que tinha várias e frequentes reuniões com ambos, sendo que, nos anos de 2006 e 2007, momento em que começaram a surgir dúvidas sobre a gestão efectuada pelo arguido, este se dirigia num tom severo e ríspido à assistente, adoptando esta uma postura subserviente perante ele, sem lhe responder em tom idêntico ou mesmo sem responder, não levantando qualquer tipo de conflitos.

Prestou ainda depoimento MR, irmã da assistente. Referiu esta testemunha que desde que a irmã se casou com o arguido deixaram de ter contacto regular.

Disse ainda ter reatado a relação de amizade que tivera anteriormente com a irmã, em 2006, altura em que esta afirmou pretender separar-se do arguido. Referiu que a partir daí percebeu que a sua irmã andava muito deprimida e perturbada em face dos problemas que tinha com o arguido, não tendo, no entanto, nunca assistido a qualquer discussão ou desentendimento entre ambos, referindo que o conhecimento que demonstrou ter dos factos lhe adveio através do que lhe era contado pela irmã, por telefone.

Referiu ainda que em dia que não soube precisar, mas a pedido da sua irmã, tentou estar presente numa reunião com noivos, ao que o arguido se opôs, tendo ficado fora à espera. Disse então que, em determinado momento, a irmã saiu para ir atender um telefonema, tendo deixado a porta entreaberta, tendo a testemunha ouvido o arguido aconselhar os noivos a não casarem naquele local.

Todavia, não se mostrou o depoimento, nesta parte, suficiente para convencer o tribunal da verificação de tal facto, desde logo, por não ser tal situação conforme as regras da normalidade, tendo assim, ficado dúvidas ao tribunal sobre a sua veracidade, e mais tendo sido o mesmo negado pelo arguido. Todavia, porquanto o estado de espírito que a mesma asseverou em que a sua irmã se encontraria foi corroborado por outras testemunhas, sendo natural que a irmã desabafasse consigo por telefone, considerou-se o depoimento, nesta parte, convincente.

Foi também ouvida MF, a qual afirmou ser amiga da assistente, que conhece à cerca e 14 anos.

Referiu ter frequentado a casa do casal com o seu marido, afirmando que em dia e ano que não pode precisar, pensa que talvez em 1997, ouviu o arguido dizer à assistente que ela não tinha gosto para se vestir, que lhe metia nojo e era uma merda.

Todavia, não tendo a testemunha logrado situar, de forma minimamente segura, tais factos no tempo, e não tendo a própria assistente referido a prática de tais factos em data tão atrasada no tempo, não foi tal depoimento, nesta parte, considerado como relevante. Foi, todavia, valorado, na medida em que descreveu o estado de espírito da assistente, no período de ruptura do casal, nos anos de 2006 a 2007, referindo-o como perturbado e infeliz, mostrando-se aquela humilhada e vexada em face dos comportamentos assumidos pelo arguido.

Prestaram ainda depoimento ER e MA, trabalhadores na Quinta..., nos anos e 2006 e 2007. Concretamente, disse ER que trabalhou ali um ano e pouco, referindo que nesse período de tempo apenas assistiu a uma discussão entre o casal, referindo que apenas trabalhava fora de casa, não vendo por isso muitas vezes o casal junto. Esclareceu, então, que em dia que não conseguiu precisar, se encontrava a trabalhar no jardim, tendo ouvido os dois a discutir de forma exaltada à porta de casa. Não percebeu o que diziam, mas, por estarem clientes no local resolveu aproximar-se de ambos e tentar acalmá-los, tendo procurado afastar o arguido de perto da assistente. Foi, no entanto, peremptório em afirmar que não viu qualquer agressão ou ameaça de agressão, sendo que, quando se aproximou não considerou que qualquer deles necessitasse de ajuda, tendo apenas intervindo porquanto achou que era uma situação desagradável pelo facto de estarem clientes na Quinta.

MA referiu também ter trabalhado no local cerca de um ano, pensa que entre os meses de Abril de 2006 e Abril de 2007, no horário das 9h ás 5h, fazendo limpeza no interior da habitação. Referiu a testemunha não ser frequente ver discussões entre o casal, percebendo, todavia, que a relação entre ambos não seria muito boa pois os mesmos apenas falavam um com o outro de trabalho, sendo que, cerca de dois meses depois de começar a trabalhar, percebeu que a assistente saiu do quarto do casal, passando a dormir num outro. Esclareceu ter assistido, todavia, a uma única discussão acesa entre o casal, em dia que não soube precisar, quando andava a varrer a varanda. Afirmou que ambos se encontravam à porta de casa a discutir alto, não tendo percebido o que diziam, no entanto. Viu que o jardineiro, E, se aproximou de ambos, procurando acalmá-los e terminar a discussão, afirmando encontrarem-se no local clientes. Foi também a testemunha peremptória em afirmar que nunca assistiu a qualquer agressão, ou indícios de que tivesse ocorrido, ou a qualquer injúria ou mau trato, de parte a parte.

Prestou também depoimento PC, psicóloga, a qual afirmou ter consultado o filho do arguido e da assistente, F, em duas ou três consultas, não tendo chegado a concluir o processo de acompanhamento. Referiu ter sido contactada em virtude de um problema de violência com pares de que o F havia sido autor.

Disse ter percebido que o F tinha grandes lacunas nas relações emocionais, não conseguindo relacionar-se com os outros sem alguma agressividade. Recusou-se sempre a falar dos pais, denotando uma grande angústia que não era capaz de controlar, conseguindo constatar que o F viveria num clima de grande tensão pessoal e familiar. Referiu ainda que tal angústia e exaltação emocional se traduzia em reacções de agressividade, dizendo o mesmo que “queria destruir objectos de grandes dimensões”, sendo esta a forma achada pela criança de reduzir a tensão em que vivia.

Referiu ainda que aquando do acompanhamento que fez ao F teve reuniões com ambos os pais, tendo, de tais reuniões e da conversa mantida com cada um deles, retido que tanto a assistente como o arguido se mostravam cansados emocionalmente, tendo aconselhado a assistente a recorrer à APAV, não por ter visto na mesma qualquer marca física mas apenas pelo que esta lhe contou, mas que não conseguiu comprovar de qualquer outra forma. Referiu, também, que ambos se mostraram interessados e preocupados com o F. Disse por fim que a assistente tinha uma personalidade que se lhe afigurou como submissa.

Tal depoimento foi conjugado com os relatórios efectuados pela testemunha aquando do acompanhamento prestado ao F, e juntos a fls. 36 e 37.

Foi também ouvida em declarações a assistente. Referiu a mesma que, na constância do casamento era muito pressionada em termos de dinheiro pelo seu marido, o qual afirmou fazer gastos desnecessários e extravagantes consigo próprio com o dinheiro dela, ou de ambos. Mais disse, por causa dos gastos excessivos do marido e da má gestão da sociedade de que conjuntamente com ele era sócia, acabou por ter de vender praticamente todos os bens que tinha em seu nome à data do casamento. Referiu depois que, desde 2006, altura em que começou a confrontar o marido sobre dinheiro que entendia ter o mesmo retirado indevidamente da sociedade, este começou a ficar violento e agressivo consigo.

Concretamente, alegou que em Dezembro de 2006 estava na cozinha a tomar o pequeno-almoço quando o arguido, de repente lhe encostou uma faca à face dizendo “vou-te matar”, ao que ela não reagiu. Em face da indiferença dela, o arguido disse-lhe que ela era um nojo e cuspiu-lhe para a cara. Disse que a tal episódio, ou pelo menos a parte dele, assistiu o jardineiro E, que se encontrava a trabalhar perto do hall de entrada. Referiu que o jardineiro agarrou o ofendido, enquanto este dizia “Largue-me que eu vou matá-la”, tendo a assistente mostrado ao mesmo o cuspo do arguido.

Ora, conforme se referiu já, aquando da inquirição daquele E, o mesmo afirmou não ter assistido a nenhum episódio de violência ou ameaça perpetrada pelo arguido à assistente, sendo que apenas os viu discutir numa situação que descreveu e que em nada se assemelhou à relatada pela assistente.

Disse depois a assistente que frequentemente o arguido se lhe dirigia dizendo “és uma merda, não vales nada, se fores fazer queixa à polícia desfaço-te”, sendo que várias vezes lho dizia na frente do filho menor de ambos. Por vezes, afirmou, o arguido dirigia-se ao próprio menor dizendo “A tua mãe é uma merda, a tua mãe não vale nada”. Disse também ter chamado a GNR pelo menos por duas vezes quando o arguido se lhe dirigia naqueles termos e quando a ameaçava. Mais referiu que estas expressões e agressividade do arguido começaram em Maio de 2006. Afirmou, efectivamente, já ter uma relação tumultuosa com o arguido anteriormente, tendo mesmo pensado em divorciar-se em 2003, tendo, no entanto, desistido em face das promessas do arguido de mudança. Contudo, é a partir daquela data que a mesma refere ter o mesmo começado a dirigir-se-lhe em tom ameaçatório e agressivo, o que, segundo a assistente, era resultado de ela não pretender desistir do divórcio e de pretender esclarecer as contas da sociedade e gastos próprios do arguido.

Disse ainda que pediu à sua filha Filipa para ir morar consigo por ter medo do arguido e por se sentir muito debilitada em face dos confrontos que tinha com ele.

Referiu ainda, que, em data que não precisou, o arguido a empurrou com força contra a parede a fim de evitar que ela lhe tirasse documentos das mãos que a ela pertenciam. Disse a este propósito, que, chamou o seu filho Nuno que se encontrava em casa a fim de a ajudar, o que veio a acontecer.

Descreveu outro episódio, que refere ter ocorrido em Fevereiro de 2007, no qual o arguido, segundo afirmou, durante o período da manhã em que o F se preparava para ir para escola, disse a este, na presença da assistente e depois de uma discussão com esta, que o pai da assistente a tinha apanhado a ter relações sexuais com outro homem, tendo ela, em via disso, batido no pai.

Referiu ainda que o F andava muito perturbado com as atitudes do pai, tendo tido problemas de violência na escola e de relacionamento com os demais, mostrando-se agressivo mesmo consigo.

Mais disse que várias destas atitudes foram presenciadas, quer pela testemunha M, quer pela empregada do casal.

Ora, também aqui se impõe referir que, por um lado aquela M, como se viu, apenas referiu ter assistido, em 1997, a uma situação em que o arguido ter-se-à dirigido à assistente dizendo que ela não tinha gosto para se vestir, que lhe metia nojo e era uma merda. Ora, é a própria assistente quem situa no tempo este tipo de expressões a partir de 2006, pelo que não se pode considerar que aquela testemunha tenha corroborado a assistente quanto a esta parte. Por outro lado, a empregada do casal nos anos de 2006 a 2007, Marluce A., referiu também nunca ter assistido a qualquer dos factos descritos pela assistente, mas apenas a uma discussão, no exterior da casa, como se disse.

Mais tem que se atender a que o arguido negou a prática de todos os factos que lhe foram imputados em sede de acusação e pelas várias testemunhas inquiridas. Referindo, apenas, que existiam discussões entre o casal mas que nunca maltratou a assistente. Afirmou, antes, que era ela quem se dirigia a si de forma insultuosa e agressiva.

Ora, ainda que o arguido tenha prestado um depoimento que não se afigurou ao tribunal como verídico, pois que ainda que se procurasse controlar, mostrando uma atitude passiva e submissa para com o tribunal, foram visíveis alguns momentos de descontrolo e agressividade durante os depoimentos prestados, essencialmente pela assistente, pela filha desta, pela irmã da assistente e por M, o que denota uma personalidade com tendências manipuladoras e pouco concordante com aquilo que quer o arguido, quer as testemunhas que indicou, pretenderam fazer passar ao tribunal. Todavia, como se disse, o depoimento da assistente, por si só, e em virtude de, nomeadamente, não ser sequer comprovado pelas próprias testemunhas que aquela coloca no local não foi suficiente para convencer o tribunal da versão por si apresentada. É certo que se afigurou totalmente credível ao tribunal o estado de espírito com que a assistente encarou todo o processo de ruptura com o ex-marido, sendo patente o seu sofrimento, e mostrando-se totalmente verosímil quando refere a humilhação que sentia pela forma como por ele era tratada.

Todavia, não foi o seu depoimento suficiente, pelo já exposto, para poder o tribunal considerar provada a versão dos factos por si apresentada. Por outro lado, e atendendo-se ao que foi referido quer pela sua filha, quer pela psicóloga inquirida, sendo a mesma submissa e frágil perante o arguido, e atendendo-se às repetidas expressões, que se provou, que o arguido lhe dirigia de “tu não prestas, tu não vales nada”, muitas vezes na frente do filho ou ditas a pessoas não ligadas à sua intimidade, aliado ainda às dificuldades financeiras da empresa, e consequentemente pessoais, que a mesma atribui a culpa do arguido, é perfeitamente crível que o seu estado de espírito fosse o que efectivamente apresentou.

Não se pode, todavia, esquecer que um dos princípios basilares de processo penal, referentes à prova é o principio in dubio pro reo, a respeito do qual, e com interesse no caso, escreveu Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra: “Todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos “à dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como “provados”. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio (princípio da investigação) obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo.”

Ou seja, restando alguma dúvida, depois de produzida a prova, sobre a prática pelo arguido dos factos pelos quais vem acusado, o Tribunal tem obrigação de concluir pela não prova dos mesmos.

Ora, é precisamente por força da obrigação de obediência a tal principio, e por tudo quanto foi dito sobre, por um lado as declarações da assistente terem sido negadas pelo arguido e não terem sido confirmadas, antes pelo contrário, para além daquilo que se considerou provado, por qualquer das outras testemunhas inquiridas, nomeadamente aquelas que a própria assistente põe no local, que teve o Tribunal que concluir não terem sido provados os factos referidos de a) a l), q) e r) sob a epigrafe

Factos não provados.
Importa aqui fazer referência ao documento junto a fls. 156, o qual constitui uma informação clínica assinada pela psicóloga SB, e onde é referido que a assistente é vítima de agressões por parte do arguido. Todavia, conforme é ali mesmo explicado, tal informação foi efectuada com base nas declarações da própria ofendida. O mesmo se diga com relação aos documentos juntos a fls. 187 a 193, que se referem a uma participação efectuada na CPCJ, pois que também ali foram consideradas apenas as declarações da assistente.

Refira-se ainda que não foi feita qualquer prova sobre os desvios de dinheiro que a mesma alega terem sido feitos pelo arguido, ou de que este falsificou qualquer empréstimo, sendo que, a este propósito foi mesmo arquivado o inquérito crime instaurado em consequência de queixa apresentada pela assistente, tendo vindo mesmo originar a abertura de inquérito por denúncia caluniosa contra ela, conforme se extrai do documento junto a fls. 324 e 325 – despacho de arquivamento.

Foram ainda inquiridas MM e MS, amigas do arguido. Afirmaram ambas conhecer o arguido mas não conhecerem nem a ex-mulher do mesmo nem o filho F. Não demonstraram, qualquer uma, ter conhecimento dos factos, nunca tendo presenciado qualquer conversa do arguido com a assistente.

Referiram apenas que, aquando do período de ruptura do casamento com a assistente, o arguido demonstrava andar triste e deprimido. Concretamente, referiu a testemunha MM que, em face disso, aconselhou o arguido a fazer tratamentos de Reiki consigo, o que veio a acontecer. Todavia, do mero facto de as testemunhas verem o arguido triste não se pode, obviamente, retirar que isso se devesse a um qualquer tipo de mau trato ou humilhação que a assistente lhe tivesse infligido, pelo que, e atendo-se ao que foi já referido quanto ao depoimento do arguido, não resultaram provados os referidos factos da contestação. Concretamente o facto referido em s) resultou não provado em face da prova do facto referido em 4.

É certo que foi ainda ouvida a testemunha PC, a qual afirmou ter trabalhado na quinta dos M de Junho de 2008 a Dezembro do mesmo ano. Todavia, e tendo-se em conta o período sobre o qual incide a acusação e que, obviamente, fixa o objecto do processo, e não demonstrando a testemunha ter qualquer conhecimento sobre a relação existente entre o arguido e a assistente antes do período em que ali trabalhou, afigurou-se o mesmo totalmente irrelevante para a decisão dos factos em causa.

Para prova dos antecedentes criminais do arguido relevou o documento junto a fls. 256, Certificado de Registo Criminal.

Para prova das condições sócio económicas do arguido, atendeu-se às declarações prestadas por este, as quais, a este propósito, se afiguraram credíveis ao tribunal.

C)
Esta a fundamentação em que a Mma. Juiz que julgou os factos entendeu alargar-se para justificar enfaticamente a sua convicção e as razões dela (não se limitando a explicar quais as provas em que baseou a sua convicção e dizer sucintamente as razões por que elas a convenceram, antes se alargando de tal modo que praticamente relata na sentença o teor da prova produzida na audiência).

Mas vejamos então as questões levantadas pela recorrente.

Em primeiro lugar, saliente-se que não vem posta em causa a matéria de facto fixada pelo tribunal. Temos portanto que considerar definitivamente assente essa factualidade, por não impugnada – a não ser que a mesma justifique censura por via dos poderes oficiosos cometidos ao tribunal de recurso.

Com efeito, no nosso sistema legal, a chamada revista ampliada, está sempre aberto ao Tribunal de recurso o conhecimento dos vícios documentados no texto da decisão recorrida, bem como das nulidades não sanadas que afectem a validade da sentença, conhecimento esse que é não só uma possibilidade legal mas um dever oficioso.

Há portanto que indagar, sempre, se a sentença recorrida enferma dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410º do CPP – de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, e de erro notório na apreciação da prova – ou de alguma nulidade enquadrável no n.º 3 do mesmo artigo.

Mas importa repetir, quanto aos referidos vícios em matéria de facto, que eles são apenas aqueles que resultem do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada verifica-se quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o Tribunal recorrido deixou de investigar matéria de facto relevante de tal forma que o que foi apurado não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação, deixando de observar o dever da descoberta da verdade material.

A contradição insanável consiste no enunciado de duas ou mais preposições contraditórias, logicamente inconciliáveis. Ela só existe quando a fundamentação conduziria necessariamente a uma decisão de sinal diferente da proferida. Existe contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta, ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.

E ocorre erro notório na apreciação da prova quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto contido no texto da decisão recorrida (Simas Santos e Leal Henriques, in Cód. Proc. Penal anotado, II vol., pág. 740).

Acontece, porém, que da conjugação da matéria de facto dada como provada e não provada com a sua fundamentação não se vislumbra in casu qualquer dos vícios apontados.

A recorrente (que como já se disse não impugnou a matéria de facto, como o poderia ter feito, nos termos previstos nos arts. 412º, n.ºs 3 e 4, e 431º, ambos do CPP) alude na sua conclusão 11 a uma eventual “contradição entre o que se provou e a decisão proferida”, enquadrando o vício a que alude na al. b) do n.º 2 do art. 410º do CPP. Todavia, não aponta em nenhum passo da sua motivação ou das suas conclusões em que consistiria concretamente essa contradição entre o que ficou decidido em matéria de facto e a respectiva fundamentação – porque, ao que se pode verificar das posições que apresenta no requerimento de recurso, aquilo que a recorrente defende é coisa bem diferente: entende que a factualidade dada como provada integra efectivamente o crime em discussão e como tal o arguido deveria ter sido condenado. Daí falar em contradição entre “o que se provou e a decisão proferida” – referindo-se aqui à absolvição. Não é obviamente a isto que se reporta a norma em questão – a qual diz respeito à eventual contradição entre a decisão em matéria de facto e a respectiva fundamentação (v. deram-se por provados factos que de acordo com o que se escreve na fundamentação respectiva não teriam sido provados, ou o inverso). O que se prevê nas diversas alíneas do art. 410º, n.º 2, do CPP, não se relaciona com a má aplicação do direito aos factos estabelecidos – e na realidade é apenas esta a questão que a recorrente coloca no recurso, ao sustentar que a matéria provada integra efectivamente a prática do crime que o tribunal recorrido julgou não ocorrer.

Conclui-se portanto que não é descortinável na sentença em apreço qualquer vício enquadrável nalguma das alíneas do n.º 2 do art. 410º do CPP, nem nenhuma nulidade de que haja de conhecer nos termos do n.º 3 do mesmo artigo – e também que não é essa a situação que a recorrente aponta quando alude erradamente ao preceito em causa.

Voltemos então à questão a decidir, aquela em que a recorrente apoia o seu recurso: a matéria de facto disponível integra o crime de maus-tratos a cônjuge, p. e p. pelo art. 152º nºs 1 al. a) e 2 do Código Penal, com a redacção anterior à Lei 59/2007, de 04.09?

Os factos a ter em conta para esta análise são os que constam dos pontos 1 a 9 da factualidade dada como provada:

“O arguido e MT foram casados entre si, vivendo em comunhão de casa, mesa e habitação durante cerca de 11 anos na Quinta....

Actualmente estão divorciados, tendo, todavia, e apesar de separados de facto, o arguido e a assistente residido na mesma casa até 8.07.08, data em que foi determinado o afastamento do arguido da residência.

No período compreendido entre os anos de 2006 e 2007 o arguido e a assistente discutiam frequentemente por causa de dinheiro e da gestão da sociedade da Quinta..., onde são organizados eventos.

Nesse mesmo período o arguido, por diversas vezes, disse a MT “tu não prestas, não vales nada”, muitas vezes na presença do filho menor do casal, FN.

No dia 28.2.2007, cerca das 7:50h, o arguido dirigindo-se ao filho menor do casal, F, na presença de MT disse-lhe “A sua mãe foi apanhada pelo seu avô a ter relações sexuais com um homem e depois ainda bateu no seu avô”.

O arguido disse a AR, com a qual não tinha qualquer intimidade, que a sua mulher, MT, era uma má mãe.

O arguido, no período compreendido entre os anos de 2006 e 2007, falava com a assistente de forma áspera e autoritária, na presença de terceiros, mantendo aquela uma postura de submissão.

O arguido sabia que tais actuações humilhavam a assistente, e a ofendiam, o que quis com a sua actuação.

Os comportamentos do arguido e a situação que envolveu a ruptura do casal causaram à assistente sofrimento, humilhação e tristeza.”

A norma a considerar é o art. 152º, nº 1, al. a), e nº 2, do Código Penal, vigente à data em que ocorreram os factos em apreço, que previa o crime de maus-tratos a cônjuge.

Determina tal artigo que:

“1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:

a) Lhe infligir maus-tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente;

é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144º .

2 - A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus-tratos físicos ou psíquicos.”

Como se pode verificar, o legislador estabeleceu aqui um tipo criminal que pode ser preenchido por condutas já integrantes de outros tipos de crime (ofensas à integridade física, injúria, difamação, coacção, sequestro…). Porém, é notório que se consagrou um tipo criminal mais grave, que em caso de concurso de normas consome esses outros tipos menores. Por conseguinte, ainda que se verifiquem comportamentos que integrem algum ou alguns desses outros tipos criminais, só estaremos perante um crime de maus tratos se por um lado o ofendido for alguma das pessoas abrangidas no âmbito de protecção da norma e por outro lado se se verificar aquele quid que justifica um juízo de censura mais severo, a opção por um tipo criminal mais grave.

Não se pretendeu aqui criminalizar condutas que anteriormente não eram susceptíveis de responsabilização criminal, mas sim punir de forma mais grave certas condutas criminosas, criando um tipo criminal autónomo. A conduta prevista e punida neste novo tipo criminal representa um maius em relação a outros tipos criminais já existentes, que em relação a ele se apresentam como um minus.

Não será, portanto, qualquer actuação que atinja a integridade pessoal, liberdade ou segurança da pessoa com quem o agente mantenha uma relação de afectividade ou de coabitação que poderá integrar a prática do crime sub judice.

Ora em face da matéria de facto disponível afigura-se que bem decidiu o tribunal recorrido.

Independentemente do desrespeito das regras de convivência por parte do arguido, independentemente da violação dos seus deveres conjugais, ou da verificação de ilícitos civis (v. g. dever de respeito), ou mesmo da eventual verificação de ilícitos criminais, como sejam os crimes de injúria e de difamação (que não poderiam ter sido considerados pelo tribunal, nem mesmo com recurso aos mecanismos dos arts. 358º e 359º do CPP, visto que sempre faltaria a acusação particular) temos como certo que a factualidade apurada não atinge aquela intensidade e violência na violação dos direitos de personalidade da ofendida que o legislador quis prever com a incriminação aludida.

A matéria de facto que foi dada como não provada, essa sim, era aquela susceptível de conduzir à condenação pretendida pela assistente, e que para esse efeito tinha sido levada à acusação; com efeito, só esses factos, que na acusação estavam integrados num conjunto coerente destinado a integrar o quadro típico do crime de maus tratos, eram idóneos a esse fim. Sem essa factualidade, que ficou não provada, aquilo a que o tribunal fica limitado representa sem dúvida uma situação que provocou na assistente sofrimento, humilhação e tristeza (o arguido tratava-a de forma áspera e autoritária, o arguido disse uma vez a terceira pessoa que ela era má mãe, o arguido dizia-lhe que ela não prestava, não valia nada, e umas vez disse para o filho menor de ambos que a assistente tinha sido apanhada pelo avô a ter relações sexuais com outro homem e ainda agredira o avô) mas por si só não basta, não assume a gravidade necessária, para integrar o tipo criminal em referência.

Mantendo-se o quadro fáctico a valorar, acompanhamos a posição expressa na primeira instância, segundo a qual não ficou preenchido o tipo criminal em apreço. Ficou provado que a conduta do arguido provocou na assistente as já referidas sensações de sofrimento, humilhação e tristeza, mas não se apurou que as ofensas sofridas fossem de gravidade tal que tivessem atingido a sua dignidade humana, a sua saúde física, psíquica e mental.

Não se colocam dúvidas sobre a violação de direitos de personalidade da assistente. Todavia, não se entende que tenha havido efectivamente a afectação da dignidade enquanto pessoa humana da assistente. Ainda que assumam gravidade os factos provados, não são eles de molde a justificar a sua integração no tipo criminal em análise, sem riscos de se cair na banalização do conceito de maus tratos e de violência doméstica – bem longe da importância e gravidade com que o legislador quis revestir a sua incriminação.

A jurisprudência tem insistido em que a introdução deste tipo de crime visou a punição dos casos mais chocantes de maus tratos no âmbito de relações ali descrito, e que para a caracterização deste crime importa aferir sempre da gravidade da conduta, traduzida por crueldade, insensibilidade… (na versão original previa-se até um dolo específico, exigindo-se que o agente actuasse “devido a malvadez ou egoísmo”). Não se exige agora dolo específico, bastando o dolo genérico; não se exige reiteração da conduta, como chegou a ser discutido; mas pressupõe-se uma conduta maltratante que seja especialmente grave, porque só a essas se reporta o tipo criminal em questão.

Julgamos que no caso presente não se encontram reunidos os requisitos indispensáveis para o preenchimento do crime acusado, por não serem bastantes para tanto os factos provados.

Conclui-se, portanto, perante a rejeição do único fundamento em que a recorrente alicerçava as suas pretensões, pela improcedência do recurso.

C)

Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal em negar provimento ao recurso interposto pela assistente MT e, consequentemente, confirmam na íntegra a sentença recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.
Notifique.
*
*
Évora, 18 de Maio de 2010
(processado e revisto pelo relator, e assinado põe este e pela Exma. Adjunta)

José Lúcio (relator) – Maria Luísa Arantes (adjunta)