Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
60/16.2GEBNV.E1
Relator: LAURA MAURÍCIO
Descritores: FURTO
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 02/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - A Jurisprudência do STJ tem vindo a entender que a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova mas a sua existência só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o tribunal, v. g., na dúvida, optou por decidir contra o arguido.

II - Perante uma dúvida objectiva e razoável que não foi ultrapassada em audiência, o non liquet sobre os factos constitutivos da infracção criminal (ou sobre factos que afastem a ilicitude ou a culpa) deve transformar-se numa decisão favorável ao arguido em homenagem ao princípio da presunção de inocência.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Criminal de Benavente - Juiz 1, no âmbito dos autos com o NUIPC nº60/16.2GEBNV foi o arguido HH submetido a julgamento em Processo Comum e Tribunal Singular.

Após realização de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal, em 8 de julho de 2019, decidiu:

- Absolver o arguido HH da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo art. 204º, nº2, alínea a), com referência aos arts. 203º, nº1 e 202º, alínea b), todos do Código Penal.

- Absolver o demandado HH do pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante AA.

- Condenar o demandante AA no pagamento das custas civis, fixando a taxa de justiça no limite mínimo (artigos 527º do Código de Processo Civil e 6º, nº1 do Regulamento das Custas Processuais).
*
Inconformado com a decisão, o assistente AA interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

I. Prevalecendo-se dos princípios da livre apreciação da prova, da presunção de inocência e in dubio pro reo, decidiu a Mmª Juiz julgar improcedente a acusação que o MP deduziu contra o arguido e absolve-lo da prática do impetrado crime de furto e do pedido cível formulado pelo assistente, tendo para o efeito decidido a matéria de facto ao completo arrepio de todos os instrumentos probatórios ao seu alcance.

II. Sem menosprezo dos louváveis e respeitáveis princípios invocados, e ainda com todo o respeito por outras opiniões, não é possível uma decisão judicial, seja ela absolutória ou condenatória, de natureza civil ou criminal, fundar-se numa tal liberdade de decidir a matéria de facto que extermine por completo a prova recolhida, quer ao longo da instrução do processo quer aquela que foi produzida em audiência de julgamento; mas foi isso que aconteceu na decisão que ora se contesta.

III. Desde logo, a decisão sobre os factos não provados contraria todas as declarações prestadas pelo arguido e depoimentos irrepreensivelmente unanimes das testemunhas de acusação.

IV. É o caso do primeiro ponto de facto que se considera incorretamente julgado e que antecedentemente se refere: Factos não provados: Que LG, AG, MF e AC foram contratados pelo arguido ...

V. Como é possível considerar não provado que os cortadores da madeira foram contratados pelo arguido se eles dizem insistente que sim, fazendo-o de forma insuspeita desde que a autoridade policial tomou conta da ocorrência?

VI. Fazendo-o igualmente o funcionário PM da empresa transportadora F., responsável pelo transporte e rechega da madeira que sem qualquer rodeio afirma que o seu patrão lhe disse que o corte era para o senhor HH (entenda-se, o arguido).

VII. E bem assim a testemunha de defesa JB, amigo e vizinho do arguido afirma que "Eu não sei quem é que cortou a madeira, mas é o pessoal que trabalha para ele (arguido);

VIII. É também o caso do segundo ponto de facto que se considera incorretamente julgado e que antecedentemente se refere: Facto não provado: Que o arguido se identificou perante os cortadores como sendo o dono da madeira.

IX. Como é possível considerar não provado que o arguido se identificou perante os cortadores como sendo o dono da madeira se esse é mesmo o primeiro facto que ele assume quando interpelado pela GNR afirma que comprou a madeira a uma senhora (Veja-se fls 5). E são também eles que, em uníssono confirmam essa afirmação do arguido, como já se deixou alegado no Cap I.

X. Expressando-o da mesma forma o funcionário da F, PM, e a testemunha de defesa JB.

XI. Facto também confirmado pelo testemunho espontâneo de AG: "Depois acabei por entender que aquilo não seria dele (do arguido)"

XII. Que motivos poderão sustentar a duvida sobre o facto não provado Que o arguido agiu com intenção de se apropriar de coisa alheia ... , quando ele se assume como pessoa experiente no negócio, bom conhecedor do terreno, da sua proprietária antes do assistente, da pessoa que acusa, CP, e da própria relação que alegou ter com ela?

XIII. Que motivos poderão sustentar a duvida sobre o facto não provado que o arguido elaborou um plano que consistia em fazer-se passar por proprietário do prédio e que até conseguiu convencer desse facto toda a gente à sua volta, incluindo todos os operacionais no terreno ...

XIV. Prova-o todas as declarações desses operacionais já referidas, prestadas quer em julgamento quer no momento da intervenção policial quer em fase de inquérito. Todos são unanimes em se afirmar convencidos que o arguido se afirmou proprietário do terreno.

XV. Que motivos poderão sustentar a dúvida sobre o facto não provado que PG foi contratado pelo arguido, quando tal afirmação é, embora de forma mitigada, dele e do seu colaborador PM, operador no terreno, ouvido em inquérito, citado no relatório da GNR e ouvido em julgamento ...

XVI. Facto também implícito no depoimento da testemunha MF que afirma: "O senhor HH falou comigo e eu falei com eles (os outros cortadores da madeira) para ver se queriam ir fazer aquele corte para ele"; "O senhor HH foi mostrar as estremas do terreno, do corte e ofereceu um valor à tonelada para o corte ser efetuado. Disse que tinha negociado o pinhal para ser cortado; pinhal e eucalipto".

XVII. Que motivos poderão sustentar a dúvida sobre o facto não provado que As pessoas identificadas em 3 e 4 (da sentença) atuaram a mando e sob as ordens e instruções do arguido, quando são as próprias pessoas que o dizem:

XVIII. Di-lo o AG(2019 04 24 113438_2809605_3995026): 5:20: O senhor HH levou-me ao local, dava-me as informações, dava-me as medidas, cortar com umas xis medidas;

XIX Di-lo o AC(20190404164041_2809605_2871746 AC): 1:35 - "Quem me levou lá foi o Sr. HH"; 2:30 -" O Sr HH é que foi lá dizer quais eram as medidas e quais eram as estremas". 2:45 - "Perguntei ao Sr HH se o do lado também era. O Sr. Respondeu que não que o do lado era de familiares que era do pai"; 8:27 - "Nós começámos pela parte de trás. Devíamos começar de frente e começamos do lado de trás que o Sr. HH tinha dito que era para dar mais acesso aos camiões".

XX: Di-lo o LG (20190404162804_2809605_2871746): 3:24 "O HH foi lá dizer a estrema! 6:58 "Na altura o meu chefe de equipa disse que o dono, supostamente da madeira disse que queria tirar primeiro os eucaliptos antes do pinho (aqui quando se refere o dono é o arguido)";

XXI. Di-lo MF(2019 04 04 152124_2809605_2871746): 8:40 - "O senhor HH falou comigo e eu falei com eles para ver se queriam ir fazer aquele corte para ele". "O senhor HH foi mostrar as estremas do terreno, do corte e ofereceu um valor à tonelada para o corte ser efetuado". "18:30 - quem me mandou começar o corte pela parte de trás foi o senhor HH"

20:50- "Era para cortar o eucalipto e o pinho; tudo o que tivesse era tudo para sair". 33:40 "neste caso o senhor HH mandou extrair o eucalipto e o pinho".

20190520151126_2809605_3995026, 15:50 "Eu não dava ordens a ninguém, simplesmente perguntavam-me e eu respondia através daquilo que o Sr. HH ia dizendo e fazendo".

XXII. Que motivos poderão sustentar a dúvida sobre o facto não provado que O arguido ao vender a referida madeira bem sabia que esta não lhe pertencia e que agia contra a vontade do seu legitimo dono, instrumentalizando para o efeito os trabalhadores que contratou, quando foi ele que controlou todas as operações que permitiram o desaparecimento da madeira e a supressão dela do património do ofendido ...

XXIII. Tal facto é assumido pelo próprio: foi interprete na contração do pessoal de corte, na apresentação da CP à empresa F. responsável pelo transporte e rechega, foi ele que mandou iniciar o corte pela parte de trás, foi ele que recebeu pela venda do eucalipto, enfim, tudo isto ele assumiu.

XXIV. Foi O arguido que mandou fazer o corte da madeira pela parte oposta à via publica, apresentando como justificação argumentos que não convenceram os próprios operacionais no corte, convencidos, como o assistente, que tal decisão se destinava a evitar os olhares públicos e permitir a atuação o mais reservada possível.

XXV. A própria execução dos trabalhos, em corte raso, só pode levantar as maiores suspeitas sobre as intenções do arguido, como referem as testemunhas CA e JP.

XXVI. Que motivos poderão sustentar a dúvida sobre o facto não provado que o arguido agiu sempre livre, voluntaria e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal?

XXVII. Não adiantará repetir tudo o que já se alegou para demonstrar a consciência da ilicitude do arguido e o elevado grau de dolo, direto, que imprimiu na sua ação, mas sempre se dirá que foi ele que fez seu o produto do furto, desviando a madeira mesmo após a intervenção policial.

XXVIII. O arguido não podia ignorar que a CP que ele pretende acusar da autoria exclusiva dos factos não podia ser dona do terreno, por não ter meios financeiros para o adquirir, nem apresentar qualquer facto que possa dar consistência à afirmação que atribui a ela de ter comprado o terreno e até ter fatura dela.

XXIX. Em última instância, a considerar-se alguma atuação criminosa de terceiros, tal atuação só podia ser vista como comparticipação e ainda assim sempre sob a batuta do arguido que agiu sempre como o principal, interessado, beneficiário e mandante.

XXX. A presunção de inocência e o correspondente princípio in dubio pro reo não podem funcionar como um bónus que se oferece ao arguido que lança uma nuvem de poeira para o ar com o objetivo de atrapalhar o trabalho da justiça.

XXXI. Para que a dúvida seja relevante e possa dar consistência ao princípio constitucional contido na norma que define os seus contornos, o artigo 32º, nº1 da Constituição, exige-se que o discurso do beneficiário, caso opte por prestar declarações contenha a objetividade e consistência bastantes para que a tal duvida não degenere em puro "fogo de artificio".

XXXII. Não se verificam, pois, causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, nem falta qualquer condição de punibilidade, pelo que deve o arguido ser punido pelo crime de que vinham acusado.

XXXIII. O dolo foi direto e o valor dos bens é relativamente alto.

XXXIV. Na verdade, face ao que acima se disse, a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras, os sentimentos de segurança e de confiança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais entende-se ser adequada e necessária a aplicação ao arguido, pela prática do crime de furto qualificado, uma pena de prisão não inferior dois anos.

XXXV. Mostram-se preenchidos todos os requisitos do tipo de crime de furto previsto e punível nos termos do disposto na previsão do artigo 204º nº 2 al a) do Código Penal, mormente os seus elementos constitutivos: a subtração de coisa móvel como o carácter alheio da coisa subtraída e a ilegítima intenção de apropriação do agente.

XXXVI. Como vem sendo entendimento jurisprudencial pacífico, a dúvida legitimadora do favorecimento do arguido tem de ser uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos; para cujo esclarecimento o arguido deve contribuir, caso entenda prestar declarações, dizemos nós, na medida que lhe assiste o direito de se manter calado e até mentir.

XXXVII. Tendo o arguido optado por prestar declarações, e fazê-lo da forma mais incongruente possível, tais opções não o podem prejudicar, mas só um depoimento claro e sem ambiguidades poderia legitimar o benefício da dúvida que a Mmª Juiz decidiu conceder-lhe.

XXXVIII. Se é verdade que «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido»: art. 349º do CC), é legitimo concluir que, contrariamente ao decidido, não subiste qualquer duvida do envolvimento do arguido neste furto de madeira, e de forma direta, dada a sua experiencia,

 conhecimento de toda a envolvente, desde o terreno assaltado às pessoas relacionadas, com o terreno e com ele próprio, e à forma como ele orientou todas as operações, desde o corte até à distribuição comercial.

XXXIX. São, pois, questões a decidir no presente recurso, a alteração da matéria de facto conforme se impugna nos antecedentes pontos IV a XXVIII; e as alegadas questões de direito vertidas nos pontos XXIX (relevo da comparticipação criminosa) e sobre o princípio in dubio pro reo aflorado nos pontos XXX e seguintes.

XL. Posto isto, entende o recorrente face ao supra exposto, que foram violadas as normas constantes dos artigos 203º nº1 e 204º nº 2 al a) do Código Penal, pelo que, o arguido deveria ter sido condenado pela prática de um crime de furto qualificado.

Termos em que, e pelo mais que V. Ex.as mui doutamente supnrao, deve ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, deverá ser alterada a matéria de facto dada como não provada e aqui impugnada, no sentido proposto, e o arguido ser condenado pelo crime de que foi acusado e no ressarcimento dos prejuízos que causou.
*
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:

1. Por sentença proferida no dia 08.07.2019, foi o arguido HH absolvido da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo art. 204.°, n.? 2, alínea a), com referência aos arts. 203.°, n.º 1 e 202.°, alínea b), todos do Código Penal.

2. O recorrente não se conformou com o teor da sentença proferida, pretendendo a sua revogação e sua substituição por sentença condenatória do arguido.

3. Considera o recorrente que da prova produzida em audiência de discussão e julgamento - declarações do arguido, do assistente e depoimentos das testemunhas - deveria ter resultado como provada a factualidade constantes das alíneas a) a f), dos Factos Não Provados; 4. Por outro lado, ao julgar não provados tais factos e absolver o arguido, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 203.°, nº 1, e 204.°, nº 2, aI. a), do C. Penal;

5. Pese embora, aparentemente, o recorrente assente a fundamentação do recurso interposto na impugnação da matéria de facto julgada não provada pelo Tribunal a quo, certo é que não foram indicados quaisquer elementos de prova - produzidos em julgamento - que não tenham sido considerados e analisados na sentença recorrida, concluindo-se, assim, que, no caso concreto, o recorrente e o Tribunal valoraram diferentemente a prova produzida;

6. Com base na análise da prova efectuada pelo Tribunal a quo - com a qual não podemos deixar de concordar - impunha-se, efectivamente, um estado de dúvida inultrapassável quanto à concreta actuação do arguido e, consequentemente, sua responsabilização criminal nos termos que constavam do despacho de pronúncia;

7. Veja-se que foram inquiridas testemunhas que, anteriormente, tinham assumido nos autos a qualidade processual de arguidos, nomeadamente, CP e MF, os quais, pese embora não se encontrassem a ser julgados, tinham, naturalmente, interesse em dissipar quaisquer suspeitas que sobre os mesmos pudessem recair, quanto à prática do ilícito criminal em referência nos autos, verificando-se, quanto a CP, uma inequívoca intenção de imputar exclusivamente ao arguido a prática dos factos descritos no despacho de pronúncia, tendo incorrido nas contradições assinaladas na fundamentação da sentença a quo.

8. Por outro lado, e quanto ao elemento subjectivo do ilícito criminal em sujeito, veja-se que, efetivamente, não foi produzida prova que demonstrasse de forma inequívoca - e com a certeza exigida por esta fase processual - que o arguido sabia que o pinhal era propriedade do assistente.

9. É certo que o assistente afirmou que o arguido sabia «desde miúdo» quem era o dono do pinhal, porquanto o seu pai tem um pinhal contíguo. Trata-se, contudo, da convicção do assistente e não de um facto que o mesmo pudesse observar e do qual se pudesse inferir, sem margem para dúvida, o conhecimento que o arguido tinha sobre a identidade do proprietário do pinhal.

10. No mais, as restantes testemunhas inquiridas relataram ter sido a mando do arguido que procederam ao corte e remoção das árvores em questão, mas tal circunstância não obsta a que o arguido o tivesse feito ignorando quem fosse o verdadeiro proprietário do pinhal.

11. Aliás, se é verosímil que as testemunhas que realizaram trabalhos de corte e remoção o fizeram crendo que agiam por conta de quem era proprietário ou legítimo possuidor das árvores - ignorando que o assistente fosse o seu proprietário e que não autorizava tal situação ¬não podemos, sem mais, quanto ao arguido, elaborar juízo inverso, tendo em consideração as declarações por si prestadas, nomeadamente, quando confrontadas com os depoimentos de CP e MF.

12. Em face do exposto, analisando a motivação da sentença e exame, aí efectuado, dos depoimentos prestados pelas testemunhas em sede de audiência de discussão e julgamento, e tendo em consideração os excertos de depoimentos e declarações transcritos pelo recorrente, não se afigura que Tribunal a quo tenha analisado a prova de forma incompatível com aquelas que são as regras da experiência comum e da realidade e da lógica do homem médio, pelo que não incorre a sentença proferida em qualquer vício legal na aplicação do princípio da livre apreciação da prova prevista no art. 127.°, do C. P. Penal, nem no disposto nos arts. 203.°, nº 1, e 204.°, nº 2, alínea a), todos do Código Penal.

Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida nos seus exactos termos.
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Também o arguido respondeu ao recurso interposto, pugnando pela improcedência do mesmo e formulando as seguintes conclusões:

1. Por sentença proferida em 08/07/2019, foi o arguido absolvido da prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo. 204° nº 2 alínea a), com referência aos artigos 203° nº 1 e 202° alínea b), todos do Código Penal, bem como do pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante.

2. Acontece que, não se conformado com a douta sentença, e alegando que o Tribunal a quo não apreciou correctamente a prova produzida em sede de julgamento, o assistente interpôs recurso da mesma.

3. Todavia andou bem o Tribunal a quo ao proferir tal decisão, como se verá.

4. Desde o início dos presentes autos sempre que o arguido sempre foi colaborante com a descoberta da verdade, tendo para tal prestado diversos esclarecimentos e junto diversa prova documental que corrobora e dá consistência às suas declarações.

5. Relatou o arguido nas suas declarações que foi abordado por CP, a qual se intitulou como proprietária do pinhal, conforme declarações supra transcritas.

6. Conversa esta presenciada pelas testemunhas FS e VM. As quais confirmaram a existência da referida conversa nos termos em que foi relatada pelo arguido, ou seja, o depoimento destas testemunhas corroboram as declarações do arguido, conforme declarações supra transcritas.

7. Ora, intitulando-se CP como sendo dona do referido pinhal, resulta claramente que o arguido em momento algum se fez passar por proprietário do mencionado pinhal, conforme consta da acusação.

8. Por outro lado, do depoimento da testemunha VM, MF, das testemunhas do assistente bem como da documentação junta aos autos, nomeadamente fls. 836 resulta que CP sempre esteve ligada ao ramo da Madeira, tendo já anteriormente vendido madeira ao arguido, conforme declarações supra transcritas.

9. Aliás, no que toca ao caso em apreço, o Pinhal do Pilré também designado de Vale do Cilhão, também CP propôs à testemunha JB a venda da referida madeira. Tendo aquela afirmado à referida testemunha que tinha comprado o referido Pinhal, conforme declarações supra transcritas

10. Declarações estas que corroboram as declarações do arguido quando afirma que CP sempre se arrogou dona daquele pinhal.

11. O arguido somente tinha interesse na madeira de eucalipto, pois que é aquela que mais comercializa, não tendo sido o mesmo nem a fazer o corte da madeira nem a efectuar o carregamento e transporte da mesma.

12. Aliás pretendia o arguido a madeira de eucalipto para cumprir junto da PORTUCEL o contrato de fornecimento de madeira de eucalipto celebrado com esta empresa.

13. Tenta o recorrente encobrir as sérias dúvidas que levaram o Tribunal a quo a absolver o arguido do crime de que vinha acusado, mas infrutiferamente pois que as mesmas não são tão ténues como o recorrente pretende fazer crer. Muito pelo contrário, são de tal ordem evidentes, que não poderiam escapar ao correcto escrutínio do Tribunal a quo.

14. E desde logo revela-se necessário escalpelizar o contrato de prestação de serviços de corte e rechega _ fls. 20 dos presentes autos __ celebrado entre a empresa "FS" _ da qual a testemunha MF é legal representante, fls. 96 e ss dos presentes autos __ e "F".

15. Inquirida a testemunha MF sobre a celebração deste contrato com a "F" desconhecer o mesmo, e que não o assinou e carimbou.

16. Contudo das declarações MF resulta que o carimbo da empresa "FS", bem como outros documentos da mesma, nomeadamente livro de facturas, andava sempre dentro da sua carrinha, conforme declarações supra transcritas.

17. Mais declarou que para além de si, apenas CP tinha acesso à mesma, ou seja, ao carimbo e outros documentos, conforme declarações supra transcritas.

18. Ora se não foi MF quem assinou e carimbou o contrato, alguém o fez.

19. Neste Sentido, e tendo a CP acesso ao local onde se encontrava quer o carimbo quer outros documentos referentes à empresa "FS", poderia ter sido esta a assinar o referido contrato bem como a apor no mesmo o carimbo da empresa.

20. Não podendo tal facto ser imputado ao arguido, pois que conforme também referido pela testemunha MF nas suas declarações, supra transcritas, o arguido não tinha acesso ao local onde se encontrava a carimbo.

21. Aliás, é o próprio MF que no seu depoimento não nega a possibilidade de ter sido a ex-companheira CP a elaborar o referido contrato, a assina-lo e carimbá-lo, conforme resulta das declarações supra transcritas.

22. Concluindo-se que o arguido é alheio à celebração deste contrato, pois que como bem resulta do mesmo os intervenientes são unicamente a empresas "FS" e "F".

23. Facto este que corrobora as declarações do arguido quando afirma que não efectuou o carregamento e transporte da madeira, o que foi efectuado sim pela empresa "F".

24. Por outro lado, e apesar de MF no seu depoimento referir que CP à data dos factos, ou seja, 2016, não estava ligada ao negócio da madeira, pois trabalhava num lar, no decorrer do mesmo acabou por confirmar que a mesma o ajudava na execução de diversas tarefas inerentes a tal actividade, conforme declarações supra transcritas

25. A própria CP, nas suas declarações confessou que costumava ajudar MF, entregando facturas, fazendo as voltas, efectuando ainda pagamentos e recebimentos.

26. E mais uma vez, a verdade acaba por ser deslindada, temos assim que CP quer à data dos factos, quer em momento posterior, manteve sempre a sua ligação ao negócio das madeiras. O que também se afere do documento de fls. 836, datado de 26/02/2018, e das testemunhas de defesa.

27. AI longo do depoimento de CP são notórias as inverdades e contradições por esta declaradas, questionada sejá tinha sido inquirida no âmbito dos presentes autos, respondeu que não. O que é falso, uma vez que em 06/05/2016 e no âmbito do processo em apreço prestou declarações na GNR de Marinhais _ fls 67 _, para além do que aquando da abertura de instrução pelo assistente foi notificada de tal e para tal foi-lhe nomeado patrono ofícioso.

28. Falta novamente à verdade quanto nas declarações que prestou em 06/05/2016 afirmou não ter qualquer ligação a FS bem como ser somente amiga de MF. Factos estes que não correspondem à verdade.

29. Diga-se ainda que em sede de julgamento, e após obtida a concordância de todos os sujeitos processuais, confrontada com o seu depoimento prestado em fase de inquérito, não conseguiu explicar o motivo pelo qual, faltou à verdade nas referidas declarações. Ou seja, na data dos factos CP e MF eram companheiros e viviam na mesma casa. Facto este de que a testemunha não se poderia esquecer de mencionar quanto inquirida em 2016.

30. Resulta claramente do depoimento de MF e CP que ambos trabalhavam em conjunto, e que aquela tinha acesso a todos as informações, documentos e pertences da empresa "FS". Motivo pela qual, quer em conluio com o ex-companheiro, MF, quer actuando sem o conhecimento deste, poderá/terá sido esta quem colocou o carimbo da empresa "FS" no contrato celebrado com a "F", bem como quem assinou o mesmo.

31. Importante para concluir o supra exposto foi também o depoimento de PG, legal representante da empresa F, tendo o mesmo afirmado perentoriamente que foi CP quem contratou os seus serviços de carregamento e transporte da madeira, e não o arguido, conforme declarações supra transcritas.

32. E mais referiu a testemunha PG que quando se encontrou com a CP o contrato de prestação de serviços já vinha elaborado, bem como assinado e carimbado pela empresa FS.

33. Da acareação destas duas testemunhas _ PG e CP, para além do supra exposto resultou ainda que CP pagou à F a quantia de 2.500 € pelos serviços prestados.

34. E só em virtude da contratação dos serviços da empresa F se justificaria a existência deste pagamento.

35. Tendo sido o depoimento da testemunha PG, legal representante da empresa F, assertivo, idóneo e sem hesitações, o que já não aconteceu com as declarações da testemunha CP.

36. Com grande relevância para a boa decisão da causa explicou ainda a testemunha PG que, em regra, o vendedor ou interessado na madeira assiste à pesagem da madeira. E afirmou que MF, foi quem assistiu às pesagens da Madeira que estava a ser carregada, conforme declarações supra transcritas.

37. E no que toca a este aspecto das pesagens acabou a testemunha MF também por confirmar que quem assiste às pesagens é que vende a madeira.

38. Ora tendo a testemunha MF assistido às pesagens da madeira, conforme referido por PG, afere-se quem efectivamente vendeu a madeira.

39. E mais uma vez razões não existem para não atribuir total credibilidade ao depoimento isento, assertivo e sem contradições da testemunha PG. O mesmo já não se poderá dizer do depoimento incoerente e minado e contradições e hesitações de MF.

40. As contradições e inverdades foram uma constante no depoimento da testemunha MF.

41. Assim vejamos, esta testemunha aquando da sua inquirição em sede de julgamento afirmou que a empresa FS há vários anos, nomeadamente à data dos factos _ 2016 _ não tinha qualquer actividade. Pelo que os trabalhos que fazia eram a título indivíduas, conforme declarações supra transcritas

42. O que facilmente se apurou não ser verdade, face à junção pelo arguido de facturas/recibos das quais resultam que pelo menos em 2015 e 2016 a empresa FS tinha uma actividade regular.

43. Ora inicialmente refere MF que a empresa "FS" não tem actividade há vários anos. E só confrontado com facturas emitidas por esta empresa em 2015 e 2016, dá o dito por não dito e afinal a empresa tem actividade e emite as respectivas facturas.

44. E a pouco e pouco a verdade vai surgindo e revelando quem efectivamente praticou o crime de que o arguido vem acusado. Não sendo essa pessoa o arguido.

45. Por outro lado, e sendo CP e MF companheiros, vivendo na mesma casa e a bom rigor sendo também parceiros no trabalho, não se alcança como, ambos tendo sido, em datas muito próximas, ouvidos na GNR no âmbito dos presentes autos, curiosamente, nunca comentaram tal facto entre si nem nunca falaram deste assunto, conforme declarações supra transcritas

46. Não deixa de ser estranho como um casal se vê envolvido numa situação destas, ainda que nessa data na qualidade de testemunha, e não comentem um com o outro que foram à GNR prestar declarações. O mais normal seria falarem sobre o assunto.

47. Importa também mencionar que foi devidamente demonstrado nos presentes autos a razão de ser do modo como foi iniciado o corte das árvores.

48. Temos assim que o corte das árvores foi iniciado pela parte de traz do terreno em causa, uma vez que tendo sido vendida ao arguido a madeira de eucalipto, e situando-se estas árvores na parte de trás do terreno, foi por aí que o corte se iniciou.

49. E foi somente este factor, e não outro, que fez com que fosse o corte fosse iniciado de traz para a frente. Ou seja, começaram o corte deste modo porque era essa a madeira que tinha sido vendia ao arguido e que este necessitava para concretizar o seu contrato de fornecimento de madeira à PORTUCEL, conforme declarações supra transcritas.

50. Procedendo-se a uma análise objectiva de toda a prova produzida nos presentes autos facilmente se extrai que quer MF, quer CP prestaram um depoimento pouco ou nada verdadeiro e bastante comprometido.

51. Importa também, com grande revelo para a análise de todo o supra exposto, referir que CP e MF, anteriormente, assumiram nos presentes autos a qualidade de arguidos, e apesar de em sede de julgamento terem sido inquiridos na qualidade de testemunhas, tinham todo o interesse em incriminar o arguido de modo a que aqueles ficassem livres de quaisquer suspeitas da prática do ilícito criminal.

52. Destrinçando toda a prova produzida nos presentes autos é patente a dúvida inultrapassável relativamente à real actuação do arguido e, consequentemente, responsabilização criminal do mesmo nos termos constantes no despacho de pronúncia.

53. E no que que toca ao elemento subjectivo do ilícito criminal em apreço, também não foi produzida prova que demonstrasse de forma inequívoca, bem como com a certeza que é exigida na fase processual que o arguido tinha conhecimento que que o Pinhal em causa era pertença do assistente.

54. Pelo que, o Tribunal a quo, em face de uma dúvida objectiva e razoável que não foi ultrapassada em audiência de discussão e julgamento, e bem, proferiu uma decisão favorável ao arguido em homenagem ao princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, o qual abarca o princípio in dubio pro reo e decorre igualmente do primado da culpa, absolvendo-o da prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo. 204º nº2 alínea a), com referência aos artigos 203º nº1 e 202º alínea b), todos do Código Penal, bem como do pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante.

Termos em que deve ser mantida a douta decisão recorrida.
*
No Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.
*
Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do C.P.P., não foi apresentada resposta ao Parecer.
*
Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.
*
Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no art.410º, nº2, do C.P.P., mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso sub judice, as questões suscitadas pelo assistente/recorrente são:
- erro de julgamento;
- erro na aplicação do princípio in dubio pro reo:
- preenchimento dos elementos típicos do crime de furto qualificado.
*
É do seguinte teor a sentença recorrida no que concerne a factos provados, factos não provados e motivação (transcrição):

“II. Matéria de facto:
A) Factos provados:

Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevo para a boa decisão:

1. O assistente AA, desde 17 de Dezembro de 2012, é dono e legítimo proprietário do prédio rústico sito em Pinhal do Pilré, Vale da Esteveira, da freguesia de Marinhais e concelho de Salvaterra de Magos, com a área de 11,292 hectares, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ---, da Secção G, e descrito na Conservatória de Registo Predial de Salvaterra de Magos sob o número ---.

2. Tal prédio, no ano de 2016, tinha plantados eucaliptos e pinheiros, os quais já se encontravam em fase de corte.

3. LG, AG, MF e AC procederam ao corte e remoção da madeira acima referida.

4. PG foi contratado para ceder pessoal e maquinaria para o efeito, tendo disponibilizado o seu colaborador PH, o qual levou para o local o tractor com a matrícula ---TN, um semirreboque com a matrícula C----, bem como uma máquina de rechega com o número de quadro 121000107.

5. Assim, no período compreendido entre o final do mês de Fevereiro e o dia 10 de Março de 2016, as pessoas acima identificadas procederam ao corte da madeira existente em cerca de 8,4 hectares do prédio, em valor superior a € 84.000,00, tendo a mesma sido transportada para diferentes fábricas.

6. O arguido HH vendeu a madeira de eucalipto, cujo dinheiro resultante da venda fez seu.

7. O assistente, com referência aos eucaliptos, ainda conseguiu recuperar junto da fábrica um montante não apurado, mas que se situa entre € 12.000,00 e € 13.000,00.

8. Tal actividade só não logrou ser concluída porquanto o assistente, no dia 10 de Março de 2016, pelas 8h00m, acompanhado de uma patrulha da GNR, deslocou-se ao local e informou os presentes que tal propriedade e madeira lhe pertenciam, tendo os trabalhos sido cessados.

9. O arguido não tem antecedentes criminais.

10. Foi elaborado relatório social, dele constando, designadamente:
"HH integra agregado familiar composto na actualidade pela sua mulher, AMS de 47 anos, e dois filhos de 19 e 14 anos.
Dificuldades a nível da dinâmica relacional do agregado: não
Situação habitacional: permanente; moradia, zona central; condições de habitabilidade (condições de saneamento básico e conforto, privacidade).

Inserção sócio comunitária:
A descrição da actual inserção sócio comunitária do arguido pode ser reportada pelo seguinte:
Meio social com problemáticas sociais/ criminais: não
Pares/referências sem práticas criminais, sentimento de pertença ao meio residencial; existência de receptividade do meio comunitário

Formação académica e profissional do/a arguido/a:
Nível de escolaridade: 12º ano de escolaridade

Enquadramento profissional:
O arguido encontra-se inserido no mercado de trabalho. Actividade laboral a tempo inteiro.
Motivação/ desempenho: sim
Situação económica:
Valor dos rendimentos do arguido: Refere ter uma boa situação financeira. É gerente de uma empresa de corte de árvores e comércio de madeira.
Valor dos rendimentos do agregado: o agregado familiar declara rendimento fixo mensal-700€/mês.
Valor das despesas/encargos do agregado: Despesas em electricidade 182€, água e gás,4€ (usa água de um furo).
Apresenta dificuldades económicas: Não. Impacto da situação jurídico-penal:

Repercussão do processo a nível: familiar
Atitude do / a arguido / a face aos factos e/ ou bem jurídico lesado subjacente ao presente processo sendo de considerar os seguintes factores: O arguido reconhece a ilicitude e gravidade de factos da mesma natureza aos que se encontra acusada no presente processo judicial
Motivação ou adesão do arguido/a para uma medida / acção de reinserção social: sim.

Conclusão:
Apresenta como factores de protecção a sua vinculação familiar, com a mulher e os filhos com quem mantém um relacionamento próximo, afectivo e de entreajuda e integração comunitária favorável. Ainda como factor de protecção refira-se a estabilidade da sua empresa e boas condições económicas.

Na eventualidade de ser condenado consideramos que o arguido reúne condições para aplicação de uma sanção penal de execução na comunidade, não havendo em nossa opinião, necessidade de intervenção por parte destes Serviços de Reinserção Social".
*
B) Factos não provados:

Não se provou:
a) No mês de Fevereiro de 2016, o arguido HH elaborou um plano que consistia em fazer-se passar por proprietário do mencionado prédio, com vista a apoderar-se das árvores existentes no mesmo.
b) LG, AG, MF, AF e AC foram contratados pelo arguido, que se identificou perante estes como sendo o dono da madeira.
c) PG foi contratado pelo arguido.
d) As pessoas identificadas em 3. e 4. actuaram a mando e sob as instruções do arguido.
e) O arguido, ao vender a referida madeira, bem sabia que esta não lhe pertencia e que agia contra a vontade do seu legítimo dono, instrumentalizando para o efeito os trabalhadores que contratou.
f) Agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Não se provaram quaisquer outros factos, sendo que aqui não importa considerar as alegações meramente probatórias, conclusivas e de direito, que deverão ser valoradas em sede própria.
*
C) Fundamentação da matéria de facto:
A convicção do Tribunal foi adquirida a partir da análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, bem como da prova documental junta aos autos e com recurso a juízos de experiência comum e à livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal.

No que concerne ao ponto 1), o Tribunal teve em atenção os documentos juntos aos autos a fls. 8,9,374 e 375 e, bem ainda, as declarações do assistente AA.

A prova do facto descrito no ponto 2) assentou nas declarações do arguido e do assistente, no relatório de inventário junto a fls. 379 e ss. e, por fim, nos depoimentos das testemunhas LG, AG, MF, AC, PG, PH, CA e JP.

Relativamente aos factos descritos nos pontos 3) e 4), teve-se em atenção os depoimentos das testemunhas LG, AG, MF, AC, PG e PH, o auto de apreensão de fls. 5 e, bem ainda, as fotografias juntas a fls. 12 a 15.

No que tange ao ponto 5), o Tribunal valorou os depoimentos das testemunhas LG, AG, MF, AC, que procederam ao corte da madeira e das testemunhas PG e PH, responsáveis pela rechega e transporte da madeira.

A este respeito, o arguido esclareceu que a madeira cortada foi transportada para diferentes fábricas.

No que respeita à quantidade de madeira cortada, à extensão do prédio e ao valor da madeira, teve-se em atenção, desde logo, os documentos juntos a fls. 374 e 375 (certidão de registo predial do imóvel e respectiva caderneta predial, contendo a área do imóvel e a sua composição), 376 (planta de localização), 377 (imagem obtida via Google) e 379/380 (relatório de inventário subscrito por JP).

O arguido, a este propósito, referiu que foram cortados todos os eucaliptos que existiam no terreno do assistente e, bem ainda, uma grande parte dos pinheiros. Também admitiu como provável que o terreno tenha 8,4 hectares.

Já quanto ao valor da madeira (eucaliptos e pinheiros), referiu que é excessivo o valor de € 84.000,00, não tendo, contudo, sido capaz de avançar com um valor.

Diferentemente, de forma bastante segura, o assistente confirmou que ficou sem os eucaliptos que existiam no seu terreno, por terem sido cortados sem o seu conhecimento e autorização, e, bem ainda, sem grande parte da madeira de pinho.

o assistente esclareceu que pediu a elaboração de um relatório para avaliação e quantificação dos prejuízos que sofreu, que se encontra junto aos autos a fls. 377 e ss.

Este relatório foi elaborado por JP, engenheiro agrícola e florestal e que, de forma muito clara e objectiva, ajudou o Tribunal a concluir que a madeira que foi subtraída do terreno do assistente valia seguramente mais de € 84.000,00. Concretizou, dizendo que a madeira de eucalipto valia, pelo menos, € 31.500,00 e a madeira de pinho, pelo menos, € 63.210,00, ou seja, um valor total bem superior aos € 84.000,00 a que se reporta o despacho de pronúncia.

JP prestou um depoimento muito seguro e isento de contradições, demonstrando ter um conhecimento aprofundado na área agrícola e florestal. Explicou quais foram os critérios que usou para calcular a idade das árvores (altura e diâmetro) e o seu valor (bom estado sanitário, gestão anterior adequada, tratava-se de madeira certificada por entidades competentes, a idade, os preços de mercado, etc.) e como soube qual foi a quantidade de árvores que foi cortada (socorreu-se de um levantamento topográfico e comparou as árvores de pé e as cortadas).

Relativamente ao ponto 6), teve-se em atenção as declarações do arguido, que reconheceu que vendeu a madeira de eucalipto e que ficou com o dinheiro resultante da venda, não tendo, até ao momento, devolvido o dinheiro ao assistente (e sem prejuízo do ponto 7).

A respeito do ponto 7), teve-se em atenção as declarações do assistente, que contou ao Tribunal que, depois de o arguido ter entregue a madeira de eucalipto na Portucel, ainda conseguiu recuperar cerca de € 12.000,00 ou € 13.000,00 junto desta fábrica.

No que tange ao ponto 8), teve-se em atenção as declarações do arguido e do assistente e os depoimentos das testemunhas LG, AG, MF, AC, PG, PH, FF e CA.

A prova da ausência de antecedentes criminais assentou no CRC junto a fls. 613. A respeito do ponto 9), teve-se em atenção o relatório social junto a fls. 641 e ss. Debrucemo-nos, agora, sobre os factos que não resultaram provados.

No que respeita aos factos descritos nas alíneas a) a d), não obstante as muitas sessões de julgamento, com vasta produção de prova, não se logrou apurar, com a necessária e exigida segurança, que o arguido praticou estes factos.

Ficou o Tribunal com sérias - e inultrapassáveis - dúvidas sobre qual foi a intervenção do arguido e, bem ainda, se sabia que o legítimo proprietário dos eucaliptos e pinheiros não tinha dado autorização para que os mesmos fossem cortados e vendidos.

Vejamos.
Prestando declarações em audiência de discussão e julgamento, o arguido começou por contar que foi abordado por CP e que esta lhe disse que tinha comprado a madeira do pinhal do Pilré e que tinha a factura da compra. No entanto, o arguido nunca lhe pediu para ver esta factura, nem CP a mostrou.

Explicou que apenas serviu de financiador, tendo entregue € 10.000,00 em numerário, que serviu para ajudar CP a comprar a madeira existente no pinhal (eucaliptos e pinheiros) e a pagar aos trabalhadores que iriam fazer o corte da mesma. Como contrapartida, contava recuperar os € 10.000,00 e cumprir os objectivos de um contrato que tinha com a Portucel, respeitante à venda de eucaliptos, recebendo, desta forma, um bónus de cerca de € 300,00. No que respeita aos pinheiros, não tinha grande interesse neste tipo de árvores, esperando, contudo, receber uma gratificação que nunca chegou a ser negociada, mas que estimava ser cerca de € 2.000,00.

O arguido referiu, ainda, que o corte das árvores deveria ser feito por uma equipa de homens ligada a CP e por esta contratada. Também a rechega e o transporte da madeira deveria estar a cargo de uma empresa contratada por CP, tendo o arguido sugerido a CP que recorresse aos serviços da sociedade "F", servindo o arguido de mero intermediário.

Cumprindo este acordo verbal, o arguido entregou € 10.000,00 a CP e esta recorreu aos serviços de LG, AG, MF, AC, que procederam ao corte de todos os eucaliptos que existiam naquele terreno e de grande parte dos pinheiros. CP recorreu também aos serviços da "F" para a rechega e transporte da madeira cortada.

Acreditando na palavra de CP e que esta tinha comprado a madeira existente no Pinhal do Pilré, sendo, por isso, sua legítima proprietária, o arguido ficou com o dinheiro da venda de todos os eucaliptos (entre € 6.000 e € 7.000), que foram levados para a Portucel, em Setúbal. Já os pinheiros foram levados para outra fábrica, não tendo o arguido recebido nada.

Eis, grosso modo, a versão do arguido.

Esta versão não está isenta de contradições e padece de algumas incongruências. Assim, vejamos, primeiramente, os elementos recolhidos e que, numa primeira análise, parecem apontar para que o arguido tivesse praticado estes factos.

Relativamente aos termos do acordo, não se compreende bem a razão pela qual o arguido não negociou uma comissão decorrente da venda dos pinheiros, deixando a CP a decisão de pagar (ou não) alguma" gratificação".

Por outro lado, o arguido referiu várias vezes que tinha interesse nos eucaliptos e não nos pinheiros. Ora, parece muito reduzido o lucro que o arguido esperaria obter com este negócio e que se traduzia em cumprir os objectivos de um contrato de fornecimento que tinha com a Portucel e em receber um bónus de € 300,00 (para além de reaver os € 10.000,00 que entregou a CP).

Por outro lado, se o seu interesse era apenas na venda dos eucaliptos, a gratificação que esperava receber - e que não foi negociada, dependendo da vontade de CP -, no montante de € 2.000,00, parece superior ao lucro da venda dos eucaliptos.

Acresce que o arguido, a respeito do seu interesse nos eucaliptos, prestou declarações contraditórias, tendo afirmado, na primeira sessão de julgamento, que iria ganhar € 2,00 por cada m3 de eucaliptos e, mais tarde, que o dinheiro da venda dos eucaliptos ficaria para si, como ficou, e que este montante seria a abater ao valor que CP lhe teria que pagar (€ 10.000,00 - € resultante da venda dos eucaliptos).

Referiu, também, o arguido que a Portucel lhe pagou cerca de € 6.000,00 / € 7.000,00 pela venda dos eucaliptos. Ora, considerando o que se disse acima a respeito da dimensão do terreno e do valor dos eucaliptos, considerando, ainda, que o arguido reconheceu que foram cortados todos os eucaliptos e que ficou com o dinheiro desta venda, necessariamente ficou com um montante superior àquele que referiu ter efectivamente recebido. Repare-se que os eucaliptos, como explicou a testemunha JP tinham um valor de pelo menos € 31.500,00, muito distante dos € 6.000,00 /€ 7.000,00 que o arguido diz ter recebido (ainda que se tenha também em consideração que o assistente ainda conseguiu recuperar cerca de € 12.000,00 ou € 13.000,00). Assim se explica que o benefício a obter pelo arguido fosse claramente superior àquele que referiu (€ 300,00 do bónus e cumprimento dos objectivos de um contrato que tinha com a Portucel), só assim fazendo sentido o interesse do arguido neste negócio.

Ainda relativamente aos € 10.000,00 que o arguido refere que entregou a CP para a ajudar a financiar-se (compra da madeira e pagar ao pessoal que contratou), importa referir que o arguido contou ao Tribunal que CP lhe disse que tinha a factura da compra da madeira existente no Pinhal.

Ora, se tinha a factura da compra é porque o negócio já tinha sido celebrado. Assim, os € 10,000,00 não tinham por finalidade ajudar CP a pagar a aquisição da madeira. Teria apenas por finalidade fazer face às despesas subsequentes (pagamento aos trabalhadores, p. ex.).

Por outro lado, se, como referiu, CP nunca tinha dinheiro para nada e lhe falou na existência da factura, por que motivo é que o arguido não desconfiou e não lhe pediu para ver a factura?

Outras circunstâncias depõem contra a versão do arguido:

- As testemunhas MF, LG e AC, responsáveis pelo corte das árvores, contaram ao Tribunal que foram contratadas pelo arguido, que trabalharam por sua conta e sob as suas instruções e que era o arguido quem lhes pagava;

- PM, manobrador de máquinas e funcionário da "F", referiu em audiência de julgamento que o seu patrão PG lhe disse que o serviço era por conta do arguido;

- No dia em que a GNR apareceu no local com o assistente, PM ligou ao arguido, que apareceu no local;

- O corte começou a ser feito a partir do lado oposto ao da estrada, como se não pretendessem ser vistos por quem ali passava;

- Até ao momento, o arguido ainda não devolveu ao assistente o dinheiro que recebeu da venda de eucaliptos.

A este respeito, o assistente contou ao Tribunal que, quando se soube que a madeira pertencia ao assistente, o arguido pediu-lhe para desbloquear os pagamentos junto da Portucel, fazendo com que esta empresa lhe pagasse o dinheiro resultante da venda dos eucaliptos, comprometendo-se a, em seguida, devolver-lhe o dinheiro. O assistente desbloqueou o pagamento junto da Portucel, em seguida a Portucel pagou ao arguido e este não devolveu o dinheiro ao assistente.

Explicou o arguido que ainda tinha que fazer contas com o assistente, uma vez que, caso lhe devolvesse o dinheiro na totalidade, o assistente ainda ia lucrar com o arguido (não tinha gasto dinheiro com o corte e o transporte da madeira) e o arguido ficaria prejudicado, uma vez que já tinha ficado desapossado da quantia de € 10.000,00, que emprestou a CP.

Ora, este argumento é, no mínimo, surreal. E surreal é a palavra certa para esta atitude injustificada do arguido. Então o assistente, que um dia chegou ao seu terreno e reparou que os eucaliptos e os pinheiros tinham sido cortados, ainda teria que pagar pelo corte e pelo transporte ilícito das suas árvores????? Por outro lado, se o arguido ficou prejudicado, teria que reclamar junto de CP e nunca do assistente.

- CP, segundo contaram as testemunhas de defesa, é conhecida por ser uma pessoa pouco séria no negócio de compra e venda de madeira, na medida em que, segundo contaram ao Tribunal, "passou a perna" a várias das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento. Sendo o negócio da madeira um negócio em que todos se conhecem, deveria o arguido, pelo menos, ter desconfiado de CP, exigindo-lhe que mostrasse a factura da compra e o respectivo recibo.

- O pai do arguido, segundo referiu, é proprietário de um terreno contíguo e a antiga proprietária do Pinhal do Pilré é uma pessoa de idade avançada, residente em Lisboa .... Ou seja, o terreno estaria ao abandono, não fosse a anterior proprietária ter vendido o terreno ao assistente.

Aqui chegados, deparamo-nos com uma versão do arguido que nos parece, nalguns aspectos, pouco coerente e até contraditória e com um conjunto de circunstâncias que apontam para a responsabilidade do arguido (contratação dos trabalhadores e conhecimento de que a madeira não pertencia a CP).

No entanto, foi também produzida prova que corrobora e dá consistência ao essencial das declarações do arguido e que criam a dúvida sobre o tipo de intervenção que o arguido teve (acompanhada ou não de outros co-responsáveis) e do conhecimento que tinha sobre quem era o proprietário dos eucaliptos e dos pinheiros.

Vejamos, agora, a prova que foi produzida em favor do arguido.

Em primeiro lugar, a testemunha FF, militar da GNR que apareceu no local do corte e deu ordem para pararem, referiu que o arguido, quando compareceu no local, contou que tinha comprado os eucaliptos a uma senhora.

Por outro lado, ainda que a testemunha MF, que já foi arguido nos autos, tivesse referido que nunca viu este documento e que nunca o assinou, certo é que consta dos autos, a fls. 20, um contrato de prestação de serviços, de onde parece resultar que a sociedade "FS", da qual MF é legal representante (fls. 96 e ss.), recorreu aos serviços da "F" para a rechega e transporte das madeiras. Este contrato tem o carimbo da sociedade "FS" e nele consta o nome de MF. Assim, este documento corrobora as declarações do arguido quando afirmou que nunca contratou a "F".

Acresce que MF e AF, que estavam a fazer o corte das árvores quando a GNR chegou ao local, eram, à data, o companheiro e o pai do companheiro de CP ...

MF referiu ainda que CP não estava, naquela data, ligada ao negócio da madeira, pois trabalhava num lar. No entanto, a própria CP admitiu que costumava ajudar MF, entregando facturas, fazendo as voltas, efectuando ainda pagamentos e recebimentos. Ou seja, quer à data, quer em momento posterior, CP, não obstante trabalhar num lar, manteve a sua ligação ao negócio das madeiras (cfr., neste sentido, o documento de fls. 836, que data de 26.02.2018 e os depoimentos das testemunhas de defesa).

A respeito do facto de o corte das árvores ter começado pela parte de trás, longe da estrada, respondeu o arguido que era esta a parte do terreno que tinha mais eucaliptos e que tinha sobretudo interesse nos eucaliptos. Este facto - concentração de eucaliptos na parte do terreno que fica mais afastada da estrada - foi confirmado pelas testemunhas do assistente.

O arguido, explicando o motivo pelo qual se deslocou ao local quando lhe telefonaram, contou ao Tribunal que telefonou a CP e que esta lhe disse que não podia ir. Só depois é que o arguido se deslocou ao pinhal para perceber o que se estava a passar.

Respondendo, ainda, sobre o motivo pelo qual PM, manobrador de máquinas, lhe telefonou a si e não a CP, o arguido também explicou que já tinha trabalhado com a "F" e que foi o próprio arguido que recomendou esta empresa a CP. Ou seja, não seria de estranhar que, perante a confusão criada com a chegada da GNR e do assistente, a testemunha PM, que conhecia bem o arguido, lhe tivesse ligado e não a CP.

Também os depoimentos das testemunhas PG e AG atribuem alguma credibilidade à versão do arguido.

PG, legal representante da "F", contou ao Tribunal que a sua empresa foi contratada por CP, por sugestão do arguido. Esta testemunha ainda se encontrou com CP, que lhe entregou o contrato que se encontra junto a fls. 20, já preenchido, tendo PG limitado-se a apor a sua assinatura.

Com relevo, também contou que CP ainda lhe pagou € 2.500,00 e que MF, companheiro de CP, assistia às pesagens. Explicou que, em regra, o vendedor ou interessada na madeira assiste à pesagem.

AG, que também procedeu ao corte das árvores, contou que foi contratado por CP, que os restantes trabalhadores (MF, AF e LG) tinham uma relação de confiança com CP, que esteve com ela no local do corte, e, por fim, que MF dirigia o corte. Esta testemunha descreveu fisicamente CP, tendo o Tribunal confirmado, noutra sessão de julgamento, que a descrição que foi feita correspondia à pessoa de CP.

Os depoimentos das testemunhas FS e VM também corroboram as declarações do arguido. Estas testemunhas referiram que, num determinado dia, viram CP chegar de carro e abordar o arguido, perguntando-lhe se tinha interesse no pinhal do Pilré e convidando-o a ir vê-lo consigo.

As testemunhas JL, MS e SC descreveram CP como sendo uma pessoa que os enganou em negócios de madeira, causando-lhes prejuízos.

Por fim, JB contou ao Tribunal que CP também lhe" ofereceu" o pinhal do Pilré, não tendo a testemunha aceitado o negócio por achar que não seria muito lucrativo.

E chegamos ao depoimento de CP. Esta testemunha, que também já foi arguida nos autos, negou a versão do arguido, dizendo nada ter a ver com os factos em discussão. No entanto, ao longo do seu depoimento e, bem ainda, durante as acareações a que foi sujeita, não convenceu o Tribunal.

Em primeiro lugar, a sua expressão corporal (hesitante, sem ser capaz de olhar nos olhos do Tribunal e da testemunha com quem estava a ser acareada) denunciou algum comprometimento e receio.

Por outro lado, sempre referiu que trabalhava num lar e que, por isso, não tinha tempo para se dedicar ao negócio das madeiras. Contudo, foi perceptível que o trabalho no lar é a tempo parcial e que nunca se desvinculou do negócio das madeiras, conforme resultou, com evidência, dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido.

Também quando foi confrontada com o documento de fls. 836, que data de 26.02.2018, ficou sem reacção e sem saber o que dizer, resultando do mesmo que CP propôs ao arguido vender-lhe madeira, o que significa que nunca se desvinculou deste ramo de negócios. Por outro lado, apesar de realçar que nunca trabalhou para MFe para a "FS", acabou por reconhecer que ajudava MF, fazendo voltas, entregando facturas, fazendo pagamentos, recebimentos, etc ...

Por fim, quando confrontada com o seu depoimento prestado em fase de inquérito (fls. 67), obtida a concordância de todos os sujeitos processuais, não conseguiu explicar o motivo pelo qual, à data, referiu que não tinha qualquer ligação à "FS" e a MF, quando, na verdade, era o seu companheiro.

Em suma, CP prestou um depoimento que nos pareceu pouco ou nada verdadeiro e bastante comprometido.

Aqui chegados, analisados todos estes argumentos, ficamos com a dúvida sobre se o arguido teve a intervenção que lhe é imputada no despacho de pronúncia e, bem ainda, se sabia que os eucaliptos e os pinheiros não pertenciam a CP e/ ou se estavam a ser cortados e levados contra a vontade e sem o conhecimento do legitimo proprietário.

Ora, perante uma dúvida objectiva e razoável que não foi ultrapassada em audiência, o non liquet sobre os factos constitutivos da infracção criminal (ou sobre factos que afastem a ilicitude ou a culpa) deve transformar-se numa decisão favorável ao arguido em homenagem ao princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º nº1 da Constituição da República Portuguesa, o qual abarca o princípio in dubio pro reo e decorre igualmente do primado da culpa.

Como consideram Gomes Canotilho e Vital Moreira "além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa" (Cfr, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", Coimbra Editora, 1993, p. 203 e seguintes).

Assim, quanto à matéria de facto não provada, constante da acusação, a decisão do Tribunal decorreu do funcionamento do princípio geral da prova in dubio pro reo.

Em consequência, resultaram não provados os factos os factos descritos nas alíneas e) e f).

*** “.
Apreciando
- Dos alegados erro de julgamento e erro na aplicação do princípio in dúbio pro reo

Nos termos do disposto no artigo 428.º do Código de Processo Penal, «as relações conhecem de facto e de direito».

Tal constitui uma concretização da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto - reapreciação por um Tribunal superior das questões relativas à ilicitude e à culpabilidade.

O recurso em matéria de facto não constitui, contudo, uma reapreciação total pelo Tribunal de recurso do complexo de elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas poderá ter como objeto uma reapreciação autónoma do Tribunal de recurso sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o Recorrente considere incorretamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do Recorrente, imponham decisão diversa da recorrida ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova (cfr. Ac. do STJ de 20.01.2010, in www.stj.pt/jurisprudência/sumáriosdeacórdãos).

O recurso da matéria de facto perante a Relação não é, assim, um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros.

“O julgamento efetuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar” (cfr. Ac.STJ, de 27 de Janeiro de 2009, processo n.º 3978/08 -3.ª”.

Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (cfr. designadamente o art. 410º., nº.1 do CPP).

Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria, dispondo o art. 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal:

«Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»

Acrescentando o n.º 4 do mesmo artigo que:
“Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.

Impunha-se, assim, ao recorrente que impugnasse devidamente a matéria de facto, cumprindo adequadamente o constante dos nºs 3 e 4 do art. 412º. CPP.

E é sabido que ao cumprimento de tal não bastará somente identificar os intervenientes, efetuar uma apreciação mais ou menos genérica do que possam ter dito, atacar a motivação do tribunal a quo ou a respetiva convicção ou, muito menos, propor um outro julgamento distinto do primitivo com indicação de distinta factologia decorrente da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais possam fazer da globalidade das provas, devendo antes precisar-se, antes de mais, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise, indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa e localizando o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4.

No caso em análise, em síntese, alega o recorrente pretender impugnar matéria de facto provada e não provada, sustentando que das declarações do arguido e do assistente e dos depoimentos das testemunhas que genericamente refere e da documentação junta aos autos, não se pode concluir que existam elementos para se decidir pela absolvição do arguido.

Trata-se, não obstante, de uma opinião, com desconsideração pela prova produzida, que pretende questionar a livre convicção do juiz, sendo que, na verdade, não é essa a finalidade da impugnação da matéria de facto, que no caso o recorrente verdadeiramente não faz, limitando-se a expor a sua interpretação da prova feita em julgamento, pretendendo, ao fim e ao cabo, um novo julgamento nesta Relação, no tocante a tal matéria, com distinta base factual, levando a concluir que o que pretende invocar é erro notório na apreciação da prova.

Ora, o erro notório na apreciação da prova - vício elencado no art.410º, nº2, al. c) do C.P.P.- terá de resultar do texto da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que vale dizer que para o reconhecimento da sua existência não é possível o recurso a elementos estranhos àquela decisão, ainda que constantes do processo.

Só existe erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o tribunal, ou seja, quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos, isto é, quando se dá como provado um facto com base em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios, claramente violadores das regras da experiência comum.

Para ser notório, tal vício tem de consubstanciar uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, denunciadora de uma violação manifesta das regras probatórias ou das “legis artis”, ou ainda das regras da experiência comum, ou que aquela análise se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

Verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5ª edição, pgs..61 e seguintes).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74), não se verificando tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).

Porém, não se deteta na matéria de facto considerada assente na decisão recorrida qualquer erro notório na apreciação da prova, pois que, analisando tal decisão, é manifesto que a mesma está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.

E, não tendo o recurso por finalidade nem podendo ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assume-se antes como um “remédio” jurídico para deficiências factuais circunscritas.

Vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de primeira instância está naturalmente melhor apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, porquanto teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados.

Assim, e entrando na apreciação da prova no caso sub judice, o que se constata é que o tribunal fundamentou esclarecidamente a valoração que fez da prova produzida em audiência.

Com efeito, de forma clara e fundamentada refere-se na sentença:
“Aqui chegados, deparamo-nos com uma versão do arguido que nos parece, nalguns aspectos, pouco coerente e até contraditória e com um conjunto de circunstâncias que apontam para a responsabilidade do arguido (contratação dos trabalhadores e conhecimento de que a madeira não pertencia a CP).

No entanto, foi também produzida prova que corrobora e dá consistência ao essencial das declarações do arguido e que criam a dúvida sobre o tipo de intervenção que o arguido teve (acompanhada ou não de outros co-responsáveis) e do conhecimento que tinha sobre quem era o proprietário dos eucaliptos e dos pinheiros.

Vejamos, agora, a prova que foi produzida em favor do arguido.

Em primeiro lugar, a testemunha FF, militar da GNR que apareceu no local do corte e deu ordem para pararem, referiu que o arguido, quando compareceu no local, contou que tinha comprado os eucaliptos a uma senhora.

Por outro lado, ainda que a testemunha MF, que já foi arguido nos autos, tivesse referido que nunca viu este documento e que nunca o assinou, certo é que consta dos autos, a fls. 20, um contrato de prestação de serviços, de onde parece resultar que a sociedade "FS", da qual MF é legal representante (fls. 96 e ss.), recorreu aos serviços da "F" para a rechega e transporte das madeiras. Este contrato tem o carimbo da sociedade " FS" e nele consta o nome de MF. Assim, este documento corrobora as declarações do arguido quando afirmou que nunca contratou a "F".

Acresce que MF e AF, que estavam a fazer o corte das árvores quando a GNR chegou ao local, eram, à data, o companheiro e o pai do companheiro de CP ...

MF referiu ainda que CP não estava, naquela data, ligada ao negócio da madeira, pois trabalhava num lar. No entanto, a própria CP admitiu que costumava ajudar MF, entregando facturas, fazendo as voltas, efectuando ainda pagamentos e recebimentos. Ou seja, quer à data, quer em momento posterior, CP, não obstante trabalhar num lar, manteve a sua ligação ao negócio das madeiras (cfr., neste sentido, o documento de fls. 836, que data de 26.02.2018 e os depoimentos das testemunhas de defesa).

A respeito do facto de o corte das árvores ter começado pela parte de trás, longe da estrada, respondeu o arguido que era esta a parte do terreno que tinha mais eucaliptos e que tinha sobretudo interesse nos eucaliptos. Este facto - concentração de eucaliptos na parte do terreno que fica mais afastada da estrada - foi confirmado pelas testemunhas do assistente.

O arguido, explicando o motivo pelo qual se deslocou ao local quando lhe telefonaram, contou ao Tribunal que telefonou a CP e que esta lhe disse que não podia ir. Só depois é que o arguido se deslocou ao pinhal para perceber o que se estava a passar.

Respondendo, ainda, sobre o motivo pelo qual PM, manobrador de máquinas, lhe telefonou a si e não a CP, o arguido também explicou que já tinha trabalhado com a "F" e que foi o próprio arguido que recomendou esta empresa a CP. Ou seja, não seria de estranhar que, perante a confusão criada com a chegada da GNR e do assistente, a testemunha PM, que conhecia bem o arguido, lhe tivesse ligado e não a CP.

Também os depoimentos das testemunhas PG e AG atribuem alguma credibilidade à versão do arguido.

PG, legal representante da "F", contou ao Tribunal que a sua empresa foi contratada por CP, por sugestão do arguido. Esta testemunha ainda se encontrou com CP, que lhe entregou o contrato que se encontra junto a fls. 20, já preenchido, tendo PG limitado-se a apor a sua assinatura.

Com relevo, também contou que CP ainda lhe pagou € 2.500,00 e que MF, companheiro de CP, assistia às pesagens. Explicou que, em regra, o vendedor ou interessada na madeira assiste à pesagem.

AG, que também procedeu ao corte das árvores, contou que foi contratado por CP, que os restantes trabalhadores (MF, AF e LG) tinham uma relação de confiança com CP, que esteve com ela no local do corte, e, por fim, que MF dirigia o corte. Esta testemunha descreveu fisicamente CP, tendo o Tribunal confirmado, noutra sessão de julgamento, que a descrição que foi feita correspondia à pessoa de CP.

Os depoimentos das testemunhas FS e VM também corroboram as declarações do arguido. Estas testemunhas referiram que, num determinado dia, viram CP chegar de carro e abordar o arguido, perguntando-lhe se tinha interesse no pinhal do Pilré e convidando-o a ir vê-lo consigo.

As testemunhas JL, MS e SC descreveram CP como sendo uma pessoa que os enganou em negócios de madeira, causando-lhes prejuízos.

Por fim, JB contou ao Tribunal que CP também lhe" ofereceu" o pinhal do Pilré, não tendo a testemunha aceitado o negócio por achar que não seria muito lucrativo.

E chegamos ao depoimento de CP. Esta testemunha, que também já foi arguida nos autos, negou a versão do arguido, dizendo nada ter a ver com os factos em discussão. No entanto, ao longo do seu depoimento e, bem ainda, durante as acareações a que foi sujeita, não convenceu o Tribunal.

Em primeiro lugar, a sua expressão corporal (hesitante, sem ser capaz de olhar nos olhos do Tribunal e da testemunha com quem estava a ser acareada) denunciou algum comprometimento e receio.

Por outro lado, sempre referiu que trabalhava num lar e que, por isso, não tinha tempo para se dedicar ao negócio das madeiras. Contudo, foi perceptível que o trabalho no lar é a tempo parcial e que nunca se desvinculou do negócio das madeiras, conforme resultou, com evidência, dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido.

Também quando foi confrontada com o documento de fls. 836, que data de 26.02.2018, ficou sem reacção e sem saber o que dizer, resultando do mesmo que CP propôs ao arguido vender-lhe madeira, o que significa que nunca se desvinculou deste ramo de negócios. Por outro lado, apesar de realçar que nunca trabalhou para MF e para a "FS", acabou por reconhecer que ajudava MF, fazendo voltas, entregando facturas, fazendo pagamentos, recebimentos, etc ...

Por fim, quando confrontada com o seu depoimento prestado em fase de inquérito (fls. 67), obtida a concordância de todos os sujeitos processuais, não conseguiu explicar o motivo pelo qual, à data, referiu que não tinha qualquer ligação à "FS" e a MF, quando, na verdade, era o seu companheiro.

Em suma, CP prestou um depoimento que nos pareceu pouco ou nada verdadeiro e bastante comprometido.

Aqui chegados, analisados todos estes argumentos, ficamos com a dúvida sobre se o arguido teve a intervenção que lhe é imputada no despacho de pronúncia e, bem ainda, se sabia que os eucaliptos e os pinheiros não pertenciam a CP e/ ou se estavam a ser cortados e levados contra a vontade e sem o conhecimento do legitimo proprietário.

Ora, perante uma dúvida objectiva e razoável que não foi ultrapassada em audiência, o non liquet sobre os factos constitutivos da infracção criminal (ou sobre factos que afastem a ilicitude ou a culpa) deve transformar-se numa decisão favorável ao arguido em homenagem ao princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º nº1 da Constituição da República Portuguesa, o qual abarca o princípio in dubio pro reo e decorre igualmente do primado da culpa.”

Ora, quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum. Não se trata, na instância de recurso, de encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só de verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos.

No caso sub judice, a prova produzida consente as ilações retiradas pelo tribunal e as regras da experiência não a contradizem, mostrando-se a tese defendida pelo recorrente sem sustentação.

Como claramente resulta do alegado na motivação do recurso, o que o recorrente fundamentalmente impugna é o modo de formação da convicção do julgador, a relevância subjetiva dos meios de prova invocados como fundamento da convicção, na vertente da relevância e credibilidade de cada um deles, questionando o juízo de normalidade decorrente da experiência comum que inspirou as conclusões que o julgador retirou da prova, pretendendo a substituição desse juízo pelo juízo que ele próprio, recorrente, entende que seria o ajustado à luz da experiência comum. O mesmo é dizer que o recorrente pretende ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida.

Com efeito, analisando as motivações de recurso e confrontando-as com a motivação da sentença recorrida, conclui-se que o recorrente pretende substituir a convicção alicerçada pelo Tribunal recorrido na valoração que fez sobre determinados meios de prova pela sua própria convicção fundada na apreciação e valoração que fez dos mesmos meios de prova, fundando-se o presente recurso no entendimento do recorrente de que a sua análise dos factos é que é merecedora de credibilidade, e não em qualquer desconformidade entre a prova produzida em julgamento, na qual o Tribunal recorrido fundamentou a sua convicção e os factos que, com base em tal prova, veio a considerar assentes, sendo certo que no juízo alcançado pelo tribunal não se vislumbra qualquer atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque a fundamentação da sentença tem suporte na regra estabelecida no art.127º do CPP.

As conclusões extraídas pela primeira instância sobre a prova produzida são compatíveis com os critérios de apreciação da prova, já que aferidos as declarações e os depoimentos prestados e os documentos analisados à luz das regras da experiência e no âmbito do conjunto da prova produzida, nada permite questionar a correção de tais conclusões relativamente ao significado da prova, que se oferece como coerentemente valorada.

Conclui-se, pois, que o tribunal a quo apreciou a prova de modo racional, objetivo e motivado, com respeito pelas regras da experiência comum, não competindo a este tribunal ad quem censurar a decisão recorrida com base na convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida, sob pena de se postergar o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código Processo Penal.

Por conseguinte, inexiste qualquer violação do art.127º do Código de Processo Penal, não merece censura a decisão de facto e, como tal, não se altera a matéria de facto.

E inexiste, de igual modo, qualquer erro na aplicação do princípio in dúbio pro reo.

O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de prova, corolário do princípio da presunção de inocência do arguido, constitucionalmente consagrado, no art. 32º, nº2, da CRP, e impõe que o julgador valore sempre a favor do arguido um non liquet - na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o réu, e ainda que em processo penal não é admitida a inversão do ónus da prova.

Na verdade, e em primeiro lugar, o princípio da presunção de inocência do arguido isenta-o do ónus de provar a sua inocência, a qual parece imposta (ou ficcionada) pela lei, o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação.

Em segundo lugar, do referido princípio da presunção de inocência do arguido (embora não exclusivamente dele) decorre um princípio in dubio pro reo, princípio que, procurando responder ao problema da dúvida na apreciação do caso criminal (não a dúvida sobre o sentido da norma, mas a dúvida sobre o facto), e partindo da premissa de que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, determina, que na dúvida quanto ao sentido em que aponta a prova feita, o arguido seja absolvido.

A Jurisprudência do STJ tem vindo a entender que a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova mas a sua existência só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o tribunal, v. g., na dúvida, optou por decidir contra o arguido.

Ora, do texto da decisão recorrida resulta que o Tribunal teve “ (…) dúvida sobre se o arguido teve a intervenção que lhe é imputada no despacho de pronúncia e, bem ainda, se sabia que os eucaliptos e os pinheiros não pertenciam a CP e/ ou se estavam a ser cortados e levados contra a vontade e sem o conhecimento do legitimo proprietário.

Ora, perante uma dúvida objectiva e razoável que não foi ultrapassada em audiência, o non liquet sobre os factos constitutivos da infracção criminal (ou sobre factos que afastem a ilicitude ou a culpa) deve transformar-se numa decisão favorável ao arguido em homenagem ao princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º nº1 da Constituição da República Portuguesa, o qual abarca o princípio in dubio pro reo e decorre igualmente do primado da culpa.”

Com efeito, pela conferência do texto da decisão recorrida, verifica-se que o julgador teve dúvidas sérias e razoáveis sobre a prova de alguns dos factos, que refere, não se vislumbrando, pois, qualquer erro na aplicação do princípio in dubio pro reo, improcedendo o recurso também neste particular.
*
Do alegado preenchimento dos elementos típicos do crime de furto qualificado.

Alega o assistente nas conclusões XXIX a XL:

“XXIX. Em última instância, a considerar-se alguma atuação criminosa de terceiros, tal atuação só podia ser vista como comparticipação e ainda assim sempre sob a batuta do arguido que agiu sempre como o principal, interessado, beneficiário e mandante.

XXX. A presunção de inocência e o correspondente principio in dubio pro reo não podem funcionar como um bónus que se oferece ao arguido que lança uma nuvem de poeira para o ar com o objetivo de atrapalhar o trabalho da justiça.

XXXI. Para que a dúvida seja relevante e possa dar consistência ao princípio constitucional contido na norma que define os seus contornos, o artigo 32º, nº1 da Constituição, exige-se que o discurso do beneficiário, caso opte por prestar declarações contenha a objetividade e consistência bastantes para que a tal duvida não degenere em puro "fogo de artifício".

XXXII. Não se verificam, pois, causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, nem falta qualquer condição de punibilidade, pelo que deve o arguido ser punido pelo crime de que vinham acusado.

XXXIII. O dolo foi direto e o valor dos bens é relativamente alto.

XXXIV. Na verdade, face ao que acima se disse, a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras, os sentimentos de segurança e de confiança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais entende-se ser adequada e necessária a aplicação ao arguido, pela prática do crime de furto qualificado, uma pena de prisão não inferior dois anos.

XXXV. Mostram-se preenchidos todos os requisitos do tipo de crime de furto previsto e punível nos termos do disposto na previsão do artigo 204º nº 2 al a) do Código Penal, mormente os seus elementos constitutivos: a subtração de coisa móvel como o carácter alheio da coisa subtraída e a ilegítima intenção de apropriação do agente.

XXXVI. Como vem sendo entendimento jurisprudencial pacífico, a dúvida legitimadora do favorecimento do arguido tem de ser uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos; para cujo esclarecimento o arguido deve contribuir, caso entenda prestar declarações, dizemos nós, na medida que lhe assiste o direito de se manter calado e até mentir.

XXXVII. Tendo o arguido optado por prestar declarações, e fazê-lo da forma mais incongruente possível, tais opções não o podem prejudicar, mas só um depoimento claro e sem ambiguidades poderia legitimar o benefício da dúvida que a Mmª Juiz decidiu conceder-lhe.

XXXVIII. Se é verdade que «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido»: art. 349º do CC), é legitimo concluir que, contrariamente ao decidido, não subsiste qualquer duvida do envolvimento do arguido neste furto de madeira, e de forma direta, dada a sua experiencia, o conhecimento de toda a envolvente, desde o terreno assaltado às pessoas relacionadas, com o terreno e com ele próprio, e à forma como ele orientou todas as operações, desde o corte até à distribuição comercial.

XXXIX. São, pois, questões a decidir no presente recurso, a alteração da matéria de facto conforme se impugna nos antecedentes pontos IV a XXVIII; e as alegadas questões de direito vertidas nos pontos XXIX (relevo da comparticipação criminosa) e sobre o princípio in dubio pro reo aflorado nos pontos XXX e seguintes.

XL. Posto isto, entende o recorrente face ao supra exposto, que foram violadas as normas constantes dos artigos 203º nº1 e 204º nº 2 al a) do Código Penal, pelo que, o arguido deveria ter sido condenado pela prática de um crime de furto qualificado.”

Vejamos
Ao arguido vinha imputada a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts.203º nº1 e 204º nº 2 al a) do Código Penal.

Numa breve síntese dir-se-á: os requisitos normativos objetivos demandados pelo tipo legal de crime de furto reconduzem-se à subtração de coisas móveis alheias. Trata-se de um ilícito contra o património que se consubstancia num crime material ou de resultado em que se supõe a verificação do evento traduzido nos factos integradores do prejuízo patrimonial da vítima.

Mas para além disso, torna-se ainda necessário que o tipo objetivo seja acompanhado de um elemento subjetivo que o transcende, por ser indispensável a ilegítima intenção de apropriação (dolo específico, como alguns o apelidam) ou seja, a demonstração de que o agente quis fazer seus os objetos de que se apossara (animu sibi rem habendi).

Ora, coloca-se a questão de saber se o arguido cometeu os factos e, na perspetiva do recorrente até em regime de comparticipação, sob a forma de co-autoria ainda que não alegada expressamente, sendo que o art. 26º do C. Penal faz assentar a co-autoria num acordo. Para que esse acordo exista é suficiente a consciência e vontade da colaboração de várias pessoas na realização dum tipo legal de crime. Para definir uma decisão conjunta parece bastar a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime (“juntamente com outro ou outros”). Por outro lado a responsabilidade do co-autor só se verifica na precisa medida em que a execução se encontre coberta pela decisão conjunta. Ações singulares de um dos co-autores que vão para além dela (casos ditos de excesso), sejam elas praticadas com dolo ou por negligência, só podem ser, em princípio, imputadas ao seu autor singular. O excesso só pode caber na responsabilidade dos não excedentes na medida em que possa imputar-se ao seu dolo, ao menos eventual. Sem prejuízo, como é óbvio, de nos restantes casos ficar ressalvada uma responsabilização por negligência, nos termos gerais.

Ora, tendo presentes estes considerandos e atentando na matéria de facto assente como provada e não provada, os elementos típicos do crime imputado ao arguido não se mostram preenchidos, inexistindo a invocada violação do disposto nos arts.203º e 204º, nº2, al. a) do Código Penal.
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Decisão
Face a tudo o exposto, acordam os Juízes na secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar improcedente o recurso interposto pelo assistente, confirmando-se a sentença recorrida.

- Condenar o recorrente em custas, fixando em 3 UC a taxa de justiça.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 4 de fevereiro de 2020
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Laura Goulart Maurício
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Maria Filomena Soares