Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | TOMÉ RAMIÃO | ||
Descritores: | CASA DE MORADA DE FAMÍLIA | ||
Data do Acordão: | 10/06/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Sumário: | 1. O conceito de casa de morada de família implica que ela constitua ou tenha constituído a residência principal do agregado familiar. 2. A fração predial do Réu, sita em Portugal, onde este viveu maritalmente com a Autora, deixou de constituir a “casa de morada de família” ou a “residência comum”, passando esta a ser na China, país onde regressaram e passaram a viver, mediante acordo, em casa arrendada, onde ocorreu a separação | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Évora I. Relatório. AA intentou ação declarativa constitutiva de condenação contra BB, no âmbito da qual pretende (após absolvição da instância relativamente aos demais pedidos por ineptidão parcial da petição inicial), que seja reconhecida e declarada cessada a união de facto entre si e o Réu, existente entre Junho de 1998 e Abril de 2010, e que lhe seja atribuída a título de arrendamento a casa de morada de família, com uma renda não superior a € 50,00 mensais. Fundamenta a sua pretensão na circunstância de ter vivido em união de facto com o Réu no período temporal supra indicado, sendo o imóvel que pretende que lhe seja reconhecido o direito a celebrar o contrato de arrendamento a casa de morada de família, auferindo rendimentos muito baixos. Regularmente citado, o Réu deduziu contestação, na qual impugna que o imóvel em causa nos autos fosse a casa de morada de família à data da cessação da união de facto, que ocorreu em momento anterior ao alegado pela Autora, pelo que a casa de morada de família não era o imóvel aqui em litígio, pugnando pela improcedência do pedido, pedindo a sua condenação como litigante de má-fé. E formulou pedido reconvencional, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel em causa, o qual lhe deve ser restituído com o seu recheio, e condenação da Autora a pagar-lhe uma indemnização pela privação do uso do imóvel desde Junho de 2009 até à efetiva entrega no valor de € 500,00,00 mensais, por ser o valor de mercado relativo ao arrendamento do imóvel, acrescido de uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 50,00 por dia desde a data da notificação do pedido reconvencional até à entrega do imóvel, acrescidas de juros de mora. Replicou a Autora, mantendo a sua posição inicial. Saneado o processo e realizado o julgamento foi proferida a competente sentença, cujo dispositivo se transcreve. “a) Julgar totalmente improcedente a ação, por não provada, e, em consequência, absolver o Réu BB do pedido contra si deduzido pela Autora AA; b) Julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional e, em consequência: i. Reconhecer o Réu BB como proprietário da fração autónoma destinada a habitação, designada pelas letras BQ, correspondendo ao 5º andar esquerdo composto por hall, instalação sanitária, dois quartos, sala comum, cozinha e arrecadação na semicave designada com o número 2-A do prédio urbano em regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha n.º 1978/19940107 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 8108º, que teve origem no artigo 7375º; ii. Determinar que a Autora AA restitua ao Réu BB a fração autónoma referida em i) por si ocupada, com o respetivo recheio, devendo a Autora abster-se de praticar quaisquer atos que perturbem o direito de propriedade do Réu; iii. Condenar a Autora AA a pagar ao Réu BB a quantia de € 400,00 por cada mês de ocupação da fração autónoma referida em i), desde a data da notificação do pedido reconvencional (03-02-2015) até à efetiva desocupação do imóvel, acrescida de juros de mora desde aquela data até integral pagamento sobre cada um dos montantes mensais, às taxas sucessivamente em vigor para os juros civis; iv. Condenar a Autora AA numa sanção pecuniária compulsória, à razão de € 20,00 por dia por cada dia de atraso na entrega do imóvel referido em i), a partir do 10º dia após o trânsito em julgado da sentença, na proporção de metade para o Réu BB e metade para o Estado Português; v. Absolver a Autora do demais peticionado; c) Absolver a Ré do pedido de condenação como litigante de má-fé”. *** Inconformada veio a Autora interpor o presente recurso, concluindo, após alegações, nos seguintes termos:I - A e R viveram em união de facto mais de 10 anos tendo como casa morada de família a fração BQ correspondente ao 5º andar Esquerdo. II - Pelo facto de A e R se terem deslocado para a China em 2009 onde viveram em casa arrendada, a dita morada não deixa de ser a sua “casa morada de família” por aí terem todos os seus objetos pessoais (de ambos) e ser a única casa de que o Ré era proprietária, manterem dela as chaves e aí sempre poderem regressar. III - Não se provou que a A. tenha rendimentos ou outra habitação pelo que se mostra adequado que a utilização da casa morada de família lhe seja atribuída uma vez dissolvida a união de facto (art. 1105 e 1793 do Cod. Civil) ainda que mediante arrendamento. IV - Tendo a A direito ao uso da casa morada de família deve a mesma ser-lhe atribuída, apesar do reconhecimento do direito de propriedade da Ré sobre a referida casa. V - Foram violadas, entre outras, as disposições conjugadas dos arts. 1105 e 1793 do Cod. Civil e art. 4º da Lei 23/2010 que alterou a Lei 7/2001. Nestes termos e nos mais de Direito aplicável deve o presente recurso merecer provimento e em consequência ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por uma outra que atribua à recorrente o uso de habitação da casa morada de família e em consequência absolva a A do pedido reconvencional. *** O Réu contra-alegou, sustentando que a Autora não demonstrou que a casa em questão era a de morada de família e concluiu pela improcedência do recurso e manutenção da sentença.O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. *** II. Âmbito do Recurso.Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor -, constata-se que a questão essencial a decidir consiste em saber se a casa do Réu, sita em Portugal, onde Autora e Réu viveram maritalmente até abril de 2009, integra o conceito legal de casa de morada de família apesar de a partir dessa altura passarem a viver, por acordo, em casa arrendada na China e onde posteriormente se separaram. *** III. Fundamentação fáctico-jurídica.A) Factos Provados. Na decisão recorrida, e que não vem posta em causa, foi considerada a seguinte factualidade. 1) A Autora AA e o Réu BB viveram como se de marido e mulher se tratassem entre Julho de 1998 e data não concretamente apurada do ano de 2009, mas posterior a Abril, vivendo na mesma habitação, partilhando a mesma mesa e mantendo entre si relações sexuais (artigos 2º-parte a 4º, 6º, 13º e 14º da petição inicial). 2) Entre data não concretamente apurada mas posterior a Julho de 1998 e até no máximo Abril de 2009 a Autora e o Réu residiram na fração autónoma destinada a habitação, designada pelas letras BQ, correspondendo ao 5º andar esquerdo composto por hall, instalação sanitária, dois quartos, sala comum, cozinha e arrecadação na semicave designada com o número 2-A do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha n.º 1978/19940107 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 8108º, que teve origem no artigo 7375º, a qual se encontra inscrita a favor do Réu pela apresentação 18 de 05-03-1996, por compra, tal como resulta de fls. 42 a 46, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 2º da petição inicial- parte). 3) Pelo menos em Abril de 2009 a Autora e o Réu regressaram à China de comum acordo, tendo decidido pôr termo à sua vida em Portugal para não mais regressar e tendo vivido juntos numa casa na cidade de Guangzhou até data posterior do ano de 2009 não concretamente apurada na qual dormiam, comiam e recebiam visitas. 4) Quando regressaram à China o Réu pretendeu vender o imóvel referido em 2), o que era do conhecimento da Autora. 5) Após a separação entre Autora e Réu, ocorrida em data posterior a Abril de 2009, a Autora regressou a Portugal, e, utilizando uma chave do imóvel em causa nos autos, instalou-se no mesmo sem o consentimento do Réu, tendo depois garantido a este que sairia logo que o Réu necessitasse do apartamento ou tivesse comprador para o mesmo, o que depois recusou, mudando a fechadura do imóvel. 6) O recheio do imóvel referido em 2) existente em 2009 pertence ao Réu. 7) O valor da renda do imóvel referido em 2) é de € 400,00 mensais. 8) A Autora é sócia da CC Lda, pessoa coletiva nº 510644740, da Conservatória do Registo Comercial, detentora de uma quota de capital no valor de € 2.500,00, sendo na fração autónoma referida em 2) a sede social da sociedade (artigos 82º e 83º da contestação). 9) A contestação com reconvenção foi notificada ao Ilustre Patrono da Autora por notificação remetida em 30-01-2015. *** B) O direito.A questão essencial consiste em saber que a Autora tem direito ao arrendamento sobre a casa do Réu, sita em faro, e onde ambos residiram maritalmente. Pretendia a Autora que lhe seja declarada cessada a união de facto entre si e o Réu, existente entre Junho de 1998 e Abril de 2010, e que lhe seja atribuída a título de arrendamento a casa de morada de família, com uma renda não superior a € 50,00 mensais. Na decisão recorrida entendeu-se: “ (…) Nos autos apurou-se que a Autora e o Réu viveram em situação análoga à dos cônjuges por mais de 2 anos, pelo que haverá que reconhecer a situação de união de facto nos termos do supra referido artigo 1º, n.º 1 da Lei 7/2001, de 11 de Maio. Por outro lado, a união de facto dissolveu-se no ano de 2009, em data não concretamente apurada mas posterior a Abril devendo ser judicialmente declarada tal dissolução uma vez que a Autora pretende fazer-se valer do direito a proteção da casa de morada de família. Contudo, não se logrou apurar que a casa da morada de família fosse o imóvel em causa nos autos, pelo que, só por esse motivo, o pedido da Autora seria julgado improcedente. De facto, apurou-se que Autora e Réu deixaram o imóvel em causa em pelo menos Abril de 2009, tendo ido viver juntos para a China com intenção de não regressarem, na cidade de Guangzhou, sendo aí que viverem até à separação e tendo sido aí que terminaram a relação, pelo que a sua casa de morada de família deixou de ser no imóvel de Portugal em data anterior ao fim da sua relação, na medida em que não era já aí que tinham o centro da sua vida enquanto casal, tanto mais que o Réu pretendia vender o imóvel quando deixou Portugal, tal como resulta dos factos provados. Na verdade, “A casa de morada de família é o lugar onde a família cumpre as suas funções relativamente aos cônjuges e aos filhos, constituindo o centro da organização doméstica e social da comunidade familiar, não perdendo essa qualificação pelo simples facto de a família se ter desagregado e de a casa ter assim deixado de ser, de facto, a morada da família”, não havendo dúvidas que o centro da vida doméstica entre Autora e Réu não era no imóvel sito em Faro aqui em causa â data da cessação da união de facto, já vivendo inclusivamente ambos na China, tendo partido com intenção de não voltar. Ainda que assim não se entendesse, à data da cessação da união de facto, só era admissível a atribuição do arrendamento da casa de morada de família em caso de separação com o acordo de Autora e Réu, uma vez que não há filhos comuns, o que não sucede na situação dos autos, pelo que o pedido sempre improcederia”. Discorda a recorrente por considerar que pelo facto se terem deslocado para a China, em 2009, onde viveram em casa arrendada, a dita morada não deixa de ser a sua “casa morada de família”, por aí terem todos os seus objetos pessoais (de ambos) e “ser a única casa de que Ré era proprietária, manterem dela as chaves e aí sempre poderem regressar”. Porém, sem razão, como se expressou na decisão recorrida. No caso concreto é aplicável o regime prescrito na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, na sua versão originária, ou seja, na sua versão anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto, tendo em conta que a cessação da união de facto ocorreu em 2009 (antes da publicação e entrada em vigor deste diploma legal). Estabelecia os n.ºs 3 e 4 do art.º 4.º da Lei n.º 7/2001 (versão primitiva): “3 - Em caso de separação, pode ser acordada entre os interessados a transmissão do arrendamento em termos idênticos aos previstos no n.º 1 do artigo 84.º do Regime do Arrendamento Urbano. 4 - O disposto no artigo 1793.º do Código Civil e no n.º 2 do artigo 84.º do Regime do Arrendamento Urbano é aplicável à união de facto se o tribunal entender que tal é necessário, designadamente tendo em conta, consoante os casos, o interesse dos filhos ou do membro sobrevivo”. Idêntico regime se prescreve agora no art.º 4.º, na sequência das alterações introduzidas pela Lei 23/2010, sob epígrafe “Proteção da casa de morada da família em caso de rutura”: “O disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil é aplicável, com as necessárias adaptações, em caso de rutura da união de facto”. Por sua vez, o artigo 8.º da Lei 7/2001 (anterior redação) dispõe: «1 - Para efeitos da presente lei, a união de facto dissolve-se: a) Com o falecimento de um dos membros; b) Por vontade de um dos seus membros; c) Com o casamento de um dos membros. 2 - A dissolução prevista na alínea b) do número anterior apenas terá de ser judicialmente declarada quando se pretendam fazer valer direitos da mesma dependentes, a proferir na ação onde os direitos reclamados são exercidos, ou em ação que siga o regime processual das ações de estado». Assim, é manifesto que a lei consagra a possibilidade de declaração judicial da dissolução da união de facto em sede de apreciação de pretensões judicialmente exercidas que dessa dissolução dependam: como pressuposto da declaração desses direitos, o tribunal declara a dissolução da união de facto. E tem sido entendido que o pedido de declaração judicial da dissolução não é obrigatório no caso de improcedência de pretensão dela dependente, por não ter autonomia que permita a sua apreciação e decisão [1]. Segundo o disposto no art.º 4º, nº 4, da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, é aplicável o art.º 1793º do C. Civil à união de facto se o tribunal entender que tal é necessário, designadamente tendo em conta, consoante os casos, o interesse dos filhos ou do membro sobrevivo. E o regime previsto no art.º 1793º do C. Civil aplica-se apenas aos casos de a casa de morada de família pertencer a um ou a ambos os conviventes. Ora, o conceito de casa de morada de família implica que ela constitua ou tenha constituído a residência principal do agregado familiar, ou como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 1/3/2005 (Jaime Ferreira), disponível em www.dgsi.pt, “Como resulta da expressão “ casa de morada de família “, uma qualquer casa só poderá ter essa dita qualificação quando for nela que habitualmente more ou habite a família, designadamente com os filhos, menores ou maiores, do casamento ou da união de facto, formando todos uma economia comum”. No caso dos autos, como se refere na decisão recorrida, ficou provado que pelo menos em Abril de 2009 a Autora e o Réu regressaram à China de comum acordo, tendo decidido pôr termo à sua vida em Portugal para não mais regressar e tendo vivido juntos numa casa na cidade de Guangzhou até data posterior do ano de 2009 não concretamente apurada na qual dormiam, comiam e recebiam visitas. E quando regressaram à China o Réu pretendeu vender o imóvel, o que era do conhecimento da Autora. E provou-se também que após a separação entre Autora e Réu, ocorrida em data posterior a Abril de 2009, a Autora regressou a Portugal, e, utilizando uma chave do imóvel em causa nos autos, instalou-se no mesmo sem o consentimento do Réu, tendo depois garantido a este que sairia logo que o Réu necessitasse do apartamento ou tivesse comprador para o mesmo, o que depois recusou, mudando a fechadura do imóvel. Decorrentemente, a casa do Réu, em Portugal, deixou de constituir a “casa de morada de família” ou a “residência comum”, a qual passou a ser na China, local onde posteriormente ocorreu a separação, isto é, à data da cessação desse relacionamento a casa do Réu já não era a casa de morada de família. E o direito à atribuição da casa de morada de família adquire-se com a cessação da união de facto e reporta-se aos elementos existentes à data da separação para a decisão de atribuição ou não da casa de morada de família. A decisão recorrida não merece, pois, censura, remetendo-se para a sua fundamentação, nos termos do n.º 6 do art.º 663.º do C. P. Civil. Mantida a decisão recorrida, fica prejudicada a questão do pedido reconvencional, como aliás reconhece a recorrente. Improcede, pois, a apelação. Vencida no recurso suportará a recorrente as custas respetivas – art.º 527.º/1 e 2 do C. P. Civil. *** IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.1. O conceito de casa de morada de família implica que ela constitua ou tenha constituído a residência principal do agregado familiar. 2. A fração predial do Réu, sita em Faro, onde este viveu maritalmente com a Autora, deixou de constituir a “casa de morada de família” ou a “residência comum”, passando esta a ser na China, país onde regressaram e passaram a viver, mediante acordo, em casa arrendada, onde ocorreu a separação. *** V. Decisão. Em face do exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida. |