Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
139/14.5TBGLG.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I – A prescrição presuntiva funda-se na presunção de cumprimento, presunção essa que pode ser ilidida por confissão expressa ou tácita da dívida.
II – A impugnação, em sede de recurso, da motivação atinente à decisão da matéria de facto, designadamente no que respeita à apreciação do depoimento de parte prestado na audiência final, não dispensa a impugnação da decisão relativa à própria matéria de facto nos moldes estabelecidos no art.º 640.º do CPC.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Autora: AA & Filhos, Lda.

Recorrida / Ré: BB

Trata-se de uma ação declarativa de condenação por via da qual a A pretende obter a condenação da R a pagar-lhe a quantia de €9.333,66 (nove mil trezentos e trinta e três euros e sessenta e seis cêntimos) acrescida de juro de mora vencidos no valor de €10.720,93 (dez mil setecentos e vinte euros e noventa e três cêntimos) e bem assim de juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento.


II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando procedente a exceção da prescrição presuntiva do crédito reclamado, absolvendo a R do pedido.

Inconformada, a A interpôs recurso da sentença pugnando pela declaração de nulidade da sentença, proferindo-se decisão diversa quanto ao tema em litígio.

Apresenta as seguintes conclusões:
A - Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida em 16 de Fevereiro de 2016, a qual Julgou improcedente a ação proposta pela A./Recorrente, e absolveu do pedido a R.
B - A aqui Recorrente jamais se pode conformar, quando percorrida a fundamentação utilizada pela Mma. Juiz a quo, com a decisão que culminou na absolvição da R. do pedido, por força da procedência da exceção de prescrição presuntiva do direito do autor, e demais consequências que da invocação de tal prescrição daí se extraíram, nomeadamente da desconsideração da confissão pela R. do crédito reclamado pela A., por forma a ilidir a presunção de pagamento invocada e da não consideração da prática em juízo, pela R., de atos incompatíveis com a invocada prescrição presuntiva.
C - Ora na situação sub judice, entende a A., que a sentença recorrida apesar de o evidenciar, não extrai a necessária consequência: é que a R., por força o teor do depoimento de parte produzido, praticou em juízo atos incompatíveis com a invocada prescrição presuntiva.
D - A sentença recorrida alicerça-se na alegação constante no Art.º 3.º da contestação da R. – “que a R. já pagou todas as quantias reclamadas, e portanto, nada lhe deve (…) – e ao mesmo tempo no depoimento de parte onde a R. depõe no sentido de “não reconhecemos dívida alguma, porquanto não titulada, nem documentada” (sic)
E - No entender da A., não reconhecer dívida alguma, porquanto não titulada nem documentada, é profundamente incompatível com a invocação de uma prescrição presuntiva, a qual dispensa o devedor de provar que pagou, mas não o dispensa de alegar que o fez.
F - De resto, como poderia a R. afirmar “que tudo foi pago”, e ao mesmo tempo não “reconhecer dívida alguma” ????
G – De resto, note-se que nem sequer do depoimento de parte – o qual foi reduzido a escrito nos termos do Art.º 463.º CPC – consta qualquer menção à expressão “que foi tudo pago”.
H - Nem a R., nem a sentença recorrida podem considerar que pagar tudo e não reconhecer dívida alguma constitui um todo lógico, ou uma verdade unívoca; invocar que se pagou, e simultaneamente não reconhecer a dívida, é invocar uma verdade e o seu contrário, e portanto, gera-se uma profunda incompatibilidade jurídica face à prescrição invocada.
I - E tal equivale à prática em juízo de atos incompatíveis com a prescrição presuntiva.
J - Aliás a R. diz que “não reconhece a dívida, porquanto não titulada, não documentada”, logo, não se vislumbra o que tenha sequer sido pago, visto que, aparentemente, só reconheceria a dívida se a mesma estivesse suportada por documentos que diz não ter na sua posse.
K - A questão que se coloca porém, é que a alegação constante da contestação da R. – de que nada deve porque pagou – é infirmada pelo depoimento de parte, de onde se retira sim que a R. nega a dívida, porquanto não a reconhece.
L - E quem não reconhece uma dívida, naturalmente, não a paga.
M - Ora, a negação da dívida, a discussão do seu montante, os factos modificativos da relação subjacente à causa de pedir, constituem a prática em juízo de atos incompatíveis com a presunção de pagamento.
N - Dito de outro modo, o comportamento da R. é mais do que enquadrável na hipótese legal a que alude o Art.º 314 do CC – ou seja – a R. no seu depoimento de parte produziu uma confissão tácita, por via da prática em juízo de atos incompatíveis com a prescrição presuntiva invocada.
O - E é tal erro na subsunção do depoimento às normas legais aplicáveis que levou ao naufrágio da pretensão da A..
P - Mal andou o tribunal a quo quando não extraí da expressão “não reconhecemos dívida alguma” uma confissão tácita, porquanto não só a R. em lado algum do depoimento se alegue o pagamento – e devia fazê-lo – como acaba por afirmar o contrário de tal pagamento, que mais não é do que dizer “ não reconhecemos dívida alguma, porquanto não titulada, nem documentada”.
N - Dispõe a alínea b) do Art.º 317.º do Código Civil que “prescrevem no prazo de dois anos os créditos dos comerciantes pelos objetos vendidos:
- a quem não seja comerciante
- ou os não destine ao seu comércio,
-os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos…”
O - Trata-se pois de um prescrição presuntiva, a qual se funda na presunção de cumprimento, explicando-se a mesma, nas palavras de Almeida Costa, in Direito da Obrigações, 5.º Edição, pp. 964, “pelo facto de as obrigações a que respeitam costumarem ser pagas em prazo bastante curto e não se exigir, por via de regra, quitação, ou, quando menos, não se conservar por muito tempo essa quitação”. Assim, decorrido o prazo legal, presume a lei que o pagamento foi efetuado.
P - No mesmo sentido veja-se também Vaz Serra, in Prescrições Presuntivas (algumas questões), RLJ, ano 98.º, pp. 241 e ss. “Decorrido um prazo razoável, mas sempre curto, presume, então, o legislador que o seu pagamento já foi feito, e, por isso, dispensa o devedor de fazer prova deste, já que, pelas razões invocadas, ele teria muita dificuldade em fazê-lo”
Q - Com o estabelecimento deste tipo de presunções visa o legislador, no fundo – Cfr Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, anotação ao Art.º 312.º - “ proteger o devedor contra o risco de satisfazer duas vezes dívidas de que não é usual exigir recibo ou guardá-lo muito tempo”.
R - O benefício da invocação da referida exceção, por força da presunção de cumprimento, liberta ou dispensa a R. do ónus da prova de pagamento, além de que o ónus da prova se inverte, de acordo com o disposto no n.º 1 do Art.º 344.º do Código Civil.
S - Contudo, a invocação da exceção já não dispensa a Devedora da invocação de que pagou, o que, definitivamente, esta não fez, nem expressa, nem implicitamente – Cfr. Ac. Rel Porto de 13.12.1993, CJ, Ano XVIII, Tomo V, pp.240; Ac. Rel. Porto de 28.11.1994, CJ, Ano XIX, Tomo V, pp.215; Ac. Rel.Coimbra de 17.11.1998, Ano XXIII, Tomo V, pp.16 e Ac. Rel. Lisboa de 13.04.2000, sumariado no BMJ n.º 496, pp.303.
T - A este propósito confronte-se também Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pp.302 : “ De facto, constituindo o pagamento o facto principal em que a exceção da prescrição presuntiva assenta, tem o Requerida que alegar, não bastando a simples invocação do prazo prescricional”.
U - Ocorre, portanto, conforme de decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-12-1993, in Colectânea de Jurisprudência, 1993, tomo V, pág. 240:
"I - Se a prescrição é extintiva, o devedor não necessita de alegar que nunca deveu ou que já pagou, bastando-lhe invocar o decurso do prazo. II - Mas, se a prescrição é apenas presuntiva (prescrição de curto prazo), o devedor só pode beneficiar dela desde que alegue que pagou, ou que por outro motivo a obrigação se extinguiu, não lhe bastando invocar o decurso do prazo. III – Na falta de impugnação especificada dos factos constitutivos da obrigação, entende-se que o demandado confessa tacitamente a dívida. IV - Pelo que, se a prescrição invocada é presuntiva, a ação procede logo no saneador". V - A fórmula pela qual optou a Requerida, na sua contestação – ignorar os factos alegados pelo A., ou impugnando-os tentando descortinar uma suposta correção contabilística unilateral baseada nos seus próprios lançamentos contabilísticos - conduz à impossibilidade de beneficiar da invocada exceção:
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de de 01-06-1995, proferido no processo n.º
9530095: "I - A negação da dívida sujeita à prescrição de curto prazo presuntiva do pagamento prejudica a invocação desta prescrição. II - O devedor de uma dívida dessas tão só pode socorrer-se de tal prescrição se alegar que pagou e que, em todo o caso, sempre tal se presumiria atenta a prescrição". ou, no mesmo sentido também:
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de de 18-10-2001, proferido no processo n.º
0131354: "A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão judicial ou extrajudicial do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão.
X - Considera-se confessada a dívida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal ou praticar em juízo atos incompatíveis com a presunção de cumprimento.
Y - São exemplos de atos daquela natureza negar o devedor a existência da dívida, discutir o seu montante, invocar contra ela compensação ou remissão, invocar a gratuitidade dos serviços"
Como se pode ler-se também no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-06-2006, proferido no processo n.º 1498/2006-7: A prescrição é presuntiva o que significa que não basta ao devedor invocar a presunção, impondo-se-lhe ainda de alegar expressamente o pagamento para beneficiar da presunção.
Z - Ainda que se defenda que a invocação da presunção traz implícita a alegação de pagamento, a partir do momento em que o A., na petição, alega expressamente que o réu reconheceu a dívida tendo sido instado a pagá-la, mas não o tendo feito, não impugnada esta efetiva alegação, o facto em causa não pode deixar de se considerar admitido por acordo (artigo 490.º,n.º2 do Código de Processo Civil), traduzindo confissão que é precisamente o meio que a lei reconhece idoneidade para afastar a prescrição presuntiva (artigos 313.º e 314.º do Código Civil)".
AA - Do mesmo modo, sumaria-se no Ac. Rel. Guimarães de 11/07/2013, proferido no processo n.º 1331/11.0TBVVD.G1 :
“Assentando a prescrição de curto prazo na presunção de cumprimento, não poderá a mesma aproveitar a quem tenha em juízo uma atuação oposta ao cumprimento.”, que é,
exatamente, a hipótese dos autos em crise
AB - Neste sentido escreve ainda Sousa Ribeiro (Cf. “Prescrição presuntiva: sua compatibilidade com a não impugnação dos factos articulados pelo autor”, in “Revista de Direito e Economia”, ano V, nº 2, pág. 393): “constituindo uma mera presunção de pagamento, ela não poderá aproveitar a quem tenha uma atuação em juízo que logicamente o exclua. Quando alega a prescrição e, simultaneamente, pratica um ato inconciliável com o seu pressuposto fundante, o devedor está a contradizer-se a si próprio, pois ao mesmo tempo que pretende ver reconhecida a extinção do vínculo, com base num presumível cumprimento, não deixa de admitir que ele ainda não se efetuou.
É o caso, por exemplo, entre outros, da negação da existência da dívida, da discussão do seu montante ou da alegação de pagamento de quantia inferior à reclamada, atribuindo-lhe o efeito de liquidação total do crédito. “
AC – A sentença recorrida, ao não considerar a confissão tácita da R., e por via disso, a ter julgado procedente a exceção de prescrição presuntiva por esta invocada, violou o disposto no Art.º 314.º do CC.
AD - A sentença recorrida, reunidos que estão os factos da matéria de facto dados como provados, extraí uma consequência invertida quanto às consequências que deveria extrair face à confissão tácita decorrente do depoimento de parte da R. – cuja transcrição consta dos autos – o que expressamente se alega nos termos e para os efeitos do Art.º 640.º CPC, sendo por isso nulo a sentença nos termos das alíneas c) e d) do n.º 1 do Art.º 615.º CPC- porquanto desconsiderou por completo a confissão tácita da R. e se pronunciou erradamente sobre a prática em juízo de ato incompatíveis com a presunção invocada, que devia apreciar, e por isso se impõe a nulidade da sentença, sem prejuízo da prorrogativa prevista de este Tribunal ad quem produzir decisão diversa sobre o thema decidendum.”

A R / Recorrida contra-alegou, sustentando que deve ser negado provimento ao recurso.

Assim, cabe decidir as seguintes questões:
- da nulidade da sentença;
- da ilisão, pela Recorrida em sede de depoimento de parte, da presunção presuntiva do direito de crédito de que se arroga a Recorrente contra a Recorrida, sendo certo que, nas alegações de recurso, não foi impugnado qualquer facto concreto da matéria de facto dada como provada.


III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª instância

1. A autora dedica-se à atividade de exploração da indústria gráfica.
2. A ré é uma associação patronal, de utilidade pública, sem fins lucrativos e de âmbito nacional e que representa os empresários do sector de hotelaria.
3. Desde o ano de 1996 que a autora, no âmbito da sua atividade e a pedido da ré, executa e presta-lhe serviços.

4. … Emitindo as respetivas faturas, enviando-as à ré que, por sua vez, as recebia.

5. … Entre as quais, as seguintes:

a. Fatura n.º 1100048, emitida em 17/01/2001, no valor de € 1.494,37 (mil, quatrocentos e noventa e quatro euros e trinta e sete cêntimos);

b. Fatura n.º 231 A, emitida em 30/03/2001, no valor de € 658,01 (seiscentos e cinquenta e oito euros e um cêntimo);

c. Fatura n.º 1087 A, emitida em 21/09/2001, no valor de € 256,78 (duzentos e cinquenta e seis euros e setenta e oito cêntimos);

d. Fatura n.º 2718 A, emitida em 21/11/2002, no valor de € 2.671,55 (dois mil, seiscentos e setenta e um euros e cinquenta e cinco cêntimos);

e. Fatura n.º 3081 A, emitida em 13/03/2003, no valor de € 356,41 (trezentos e cinquenta e seis euros e quarenta e um cêntimos);
f. Fatura n.º 4554 A, emitida em 30/04/2004, no valor de € 1.908,90 (mil, novecentos e oito euros e noventa cêntimos).
6. … E cujo preço era feito, pela ré, ora a pronto, ora parcialmente através de pagamentos por conta.

7. Por escrito, datado de 11/07/2007, a ré remeteu à autora, que recebeu, um escrito, no qual continha, entre outros, os seguintes dizeres: “Após conferência dos extractos enviados p/ Persistente com incidência nos anos em que se verifica a diferença, ou seja, até 2001, não obstante as dificuldades motivadas pela falta de correspondência entre algumas facturas e respectivos recibos, ter havido alguns pagamentos em duplicado e os n.ºs das facturas não serem os mesmos dos recibos, concluir o seguinte: N/ saldo credor em 31-12-2001 – 7.889,98 (sete mil, oitocentos e oitenta e nove euros e noventa e oito cêntimos) Facturas não contabilizadas: 28-02-99 – n.º 9104 – 4.135,17M 31-05-99 – n.º 9452 – 1.832,48; Notas de Débito: 30-06-99 – n.º 582 (…) Total a pagar: 14.215,74. Deverão ser pedidas 2.ªs vias dos documentos em falta na n/ contabilidade. Pelos dados disponíveis, não foi possível conciliar a totalidade dos movimentos. No entanto, a confirmar-se a validade daquelas facturas e N. Débito, se o Dr. Concordar, penso que estão reunidas as condições para regularizar definitivamente o assunto.(…)”.

8. Por documento, intitulado de “Contabilidade – Conciliação de Contas / Esclarecimento de saldo credor para efeitos e regularização de dívida”, datado de 07/01/2009, resultam, entre outros, os seguintes dizeres: “Saldo c/c AHP: 7.889,98; Saldo c/c Persistente: 14.215,74 (…) 1) Valor de saldo de c/c anterior a 1998/12/31, não pago até à presente data. 2) Valores que não constam na contabilidade da AHP (…) apurados na sequência duma conciliação de contas a pedido do fornecedor, em virtude da divergência de valores de saldos de c/c entre as contabilidades. Recebidas as 2.ªs vias – a conformidade dos respectivos fornecimentos/débitos foi devidamente aferida e confirmada. 3) Valor que tem vindo a transitar sistematicamente de ano para ano.”.

9. No dia 29/07/2009, a ré entregou à autora a quantia de € 7.889,98 (sete mil, oitocentos e oitenta e nove euros e noventa e oito cêntimos).

10. Pagando o valor dos fornecimentos/serviços prestados pela autora.

11. Por escrito, datado de 27/01/2011, a ré remeteu à autora, que recebeu, um escrito, no qual continha, entre outros, os seguintes dizeres: “Aquando da última conferência de contas em Junho de 2009, em que vos foi liquidado o valor de 7.889,98 no mês seguinte, demos por encerrada a conciliação de valores. As Facturas e Notas de Débito que constam da vossa conta corrente nunca foram recepcionadas por nós e não constam nos nossos registos contabilísticos. Igualmente não temos qualquer registo que o material nelas descrito tenha sido entregue e/ou aceite. Muito lamentamos que esta situação se tenha vindo a protelar e todo o incómodo causado, mas, de facto, não reconhecemos à data mais nenhum valor em dívida. (…)”.


B – O Direito

Da nulidade da sentença

A Recorrente sustenta que “A sentença recorrida, reunidos que estão os factos da matéria de facto dados como provados, extraí uma consequência invertida quanto às consequências que deveria extrair face à confissão tácita decorrente do depoimento de parte da R. – cuja transcrição consta dos autos – o que expressamente se alega nos termos e para os efeitos do Art.º 640.º CPC, sendo por isso nulo a sentença nos termos das alíneas c) e d) do n.º 1 do Art.º 615.º CPC- porquanto desconsiderou por completo a confissão tácita da R. e se pronunciou erradamente sobre a prática em juízo de ato incompatíveis com a presunção invocada, que devia apreciar, e por isso se impõe a nulidade da sentença, sem prejuízo da prorrogativa prevista de este Tribunal ad quem produzir decisão diversa sobre o thema decidendum.”

Nos termos do disposto no art.º 154.º n.º 1 do CPC, “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. O art.º 205.º n.º 1 da CRP, por sua vez, determina que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

Na senda deste regime legal, o art.º 615.º n.º 1 al. b) estatui que “É nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. É ainda nula quando “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” (al. c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC), bem como quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC).

Alcança-se da sentença recorrida que a mesma contempla a enunciação dos factos provados, dos factos não provados, dos fundamentos que alicerçaram a decisão tomada quanto à matéria de facto bem como dos fundamentos de direito que implicaram na improcedência da ação. Na verdade, a motivação da decisão tomada quanto à matéria de facto inclui a relevância dada ao depoimento da R, além da prova documental produzida. Assente que está, em sede de matéria de facto, que a A emitiu e enviou à R faturas cujo valor global ascende a €7.346,02, bem como que a R efetuou, em data posterior à das faturas, o pagamento à A no montante de €7.889,98 “pagando o valor dos fornecimentos/serviços prestados pela autora”, o desfecho apenas podia ser, como foi, o da improcedência do pedido formulado pela autora no sentido de condenação da R a pagar-lhe o valor dos fornecimentos feitos.

Assim, é manifesto que os fundamentos conduzem à decisão tomada, que se apresenta inteiramente inteligível. Não se verifica, pois, a situação prevista na al. c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.

No que respeita à apreciação jurídica atinente ao depoimento de parte da R e à sua influência no sentido da decisão, cabe notar que a mesma foi tecida quer em sede de motivação da decisão relativa à matéria de facto quer em sede de motivação jurídica da decisão sentenciada, abordando-se a relevância do depoimento da R prestado na audiência final bem como a questão da prescrição presuntiva do crédito reclamado. As questões suscitadas nos autos foram conhecidas, embora em sentido diverso do pretendido pela Recorrente.

Ora veja-se:
Afirma-se na sentença que a depoente afirmou que foi tudo pago, e que declarou não reconhecer dívida alguma porquanto não titulada nem documentada, mas que daí não resultou a assunção da existência do crédito reclamado pela autora; que afirmou que tudo o que lhe foi pedido foi pago. Analisado que foi o documento junto pela autora em sede de audiência final, concluiu-se na sentença que o valor que a R diz ter pago, de €7.889,98, corresponde aos montantes discriminados nesse documento, com exceção de verbas atinentes a documentos (faturas ou notas de débito) que não coincidem com os valores peticionados nesta ação, não correspondem a fornecimentos/serviços prestados pela autora à ré não pagos por esta. O que respalda da sentença recorrida é que se entendeu que a dívida que a R depoente não reconheceu é a que não está titulada nem documentada por faturas ou notas de débito que lhe tenham sido apresentadas – de alguma forma está mencionada no documento junto em sede de audiência final mas não integra o pedido e a causa de pedir desta ação, ou seja, os valores enunciados sob o ponto 2 no referido documento (faturas / notas de débito do ano de 1999). Logo, se a dívida não reconhecida não é a reclamada pela A na ação, concluiu-se na sentença recorrida que “não resultou confessado pela ré a existência do crédito reclamado pela autora.[1]

Conhecidas que foram as questões suscitadas, não se verifica a situação prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.

Donde, a decisão recorrida apresenta-se fundamentada de facto e de direito, as questões suscitadas nos autos foram objeto de apreciação, e a decisão proferida alicerça-se nos fundamentos invocados.

A sentença recorrida não enferma, pois, de nulidade.

Da ilisão, pela Recorrida em sede de depoimento de parte, da presunção presuntiva do direito de crédito de que se arroga a Recorrente contra a Recorrida, sendo certo que, nas alegações de recurso, não foi impugnado qualquer facto concreto da matéria de facto dada como provada.

Estão sujeitos a prescrição os direitos que não sejam indisponíveis ou aqueles que a lei não declare isentos de prescrição (art.º 298.º n.º 1 do CC), em regra, os direitos de crédito. Uma vez completada a prescrição, o beneficiário tem a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor ao exercício do direito prescrito, não podendo, no entanto, ser repetida a prestação realizada espontaneamente em cumprimento de uma obrigação prescrita (art.º 304.º n.ºs 1 e 2 do CC), que assume as características de uma obrigação natural.

Nos termos do disposto no art.º 317.º/b do C.C., prescrevem no prazo de dois anos os créditos dos comerciantes pelos objetos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo despesas que tenham efetuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor.

Efetivamente, esta prescrição funda-se na presunção de cumprimento, presunção essa que pode ser ilidida por confissão expressa ou tácita da dívida - art.ºs 312.º a 314.º do CC. Decorrido que esteja o prazo estipulado na secção destas prescrições, presume a lei estar cumprida a obrigação reclamada. Inverte o ónus da prova da exceção perentória do pagamento, conforme previsto nos art.ºs 344.º n.º 1 e 350.º n.º 1 do CC, ficando o devedor apenas incumbido de fazer a prova do facto base da presunção, neste caso, o decurso do prazo prescricional[2].

Trata-se de regime legal que assenta na ideia de que estão em causa obrigações que costumam ser pagas em prazo bastante curto e de não ser costume exigir quitação desse pagamento, dispensando-se, assim, o devedor de fazer essa prova, que lhe seria difícil, dada a ausência de quitação[3] ou por não dispor já do documento.

É certo que se o devedor confessar a existência da dívida, de forma expressa (por confissão judicial ou extrajudicial) ou tácita (mediante recusa a depor ou a prestar juramento no tribunal ou pela pratica em juízo atos incompatíveis com a presunção de que teve já lugar o cumprimento), a presunção resulta ilidida – v. art.ºs 313.º e 314.º do CC. Sobre o tipo de atos incompatíveis com a presunção de cumprimento existe consenso em que a impugnação da existência ou da validade da obrigação, bem como a invocação de outra causa extintiva, é incompatível com aquela presunção[4].

Neste caso, no entanto, acompanha-se o entendimento sustentado pela 1.ª instância, afigurando-se que a dívida não titulada nem documentada a que se referiu a depoente se reporta a itens lançados nos documentos apresentados na audiência final mas que não encontram suporte em qualquer uma das faturas enunciadas na p.i. ou que a R tenha recebido. Logo, a presunção do pagamento do crédito reclamado nesta ação não foi ilidida.

De todo o modo, importa, antes de mais, salientar que a questão em apreço tem que ver com a prova do facto atinente ao pagamento, ocorrendo inversão do ónus da prova desse mesmo facto - o pagamento - verificado que esteja o decurso do prazo definido na lei.

Na verdade, as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (art.º 341.º do CC). Nos termos do disposto no art.º 342.º n.º 1 do CC, “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.” Segue o n.º 2, estatuindo que “A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.” Ora, invocando a R o pagamento do crédito que lhe é reclamado, resulta adstrita a provar o pagamento, que constitui facto extintivo do direito invocado.

A inversão do ónus da prova vem prevista no art.º 344.º do CC nos seguintes termos: “1. As regras dos artigos anteriores invertem-se, quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine.
2. Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.”

Ora, por força dos já citados art.ºs 312.º e 317.º do CC, decorrido que esteja o prazo de dois anos, presume-se o cumprimento da obrigação. Caso a presunção não seja ilidia por confissão expressa ou tácita do devedor (art.ºs 313.º e 314.º do CC), o cumprimento da obrigação, enquanto facto, resulta provado.

Assim ocorreu na sentença recorrida. Sendo certo que na matéria de facto provada consta ter a A executado e prestado serviços à R conforme as faturas descritas, cujo valor global ascende a €7.346,02[5], mais está provado que:
- “No dia 29/07/2009, a ré entregou à autora a quantia de € 7.889,98 (sete mil, oitocentos e oitenta e nove euros e noventa e oito cêntimos);
- Pagando o valor dos fornecimentos/serviços prestados pela autora.”[6]

O que se alicerça, em sede de meios de prova, no regime atinente à prescrição presuntiva. Analisada que foi quer a declaração escrita da R (a contestação, de modo a constatar se plasmava confissão judicial espontânea – art.º 356.º n.º 1 do CC) quer a declaração oral (o depoimento de parte, com relevância para a confissão judicial provocada – art.º 356.º n.º 2 do CC), para efeitos de aferir a eventual ilisão da prescrição presuntiva, entendeu-se na sentença recorrida ser de dar como provado o pagamento por não ter sido ilidida a presunção de cumprimento.

Ora, a Recorrente discorda frontalmente de tal entendimento. Considera que o depoimento de parte da R foi prestado em termos tais que traduzem o afastamento da presunção do pagamento do crédito por si reclamado. Ataca, pois, a apreciação crítica tecida ao referido meio de prova – o depoimento de parte da R – afirmando que a sentença recorrida não considerou a confissão tácita da R.

Porém, o facto pagamento consta do elenco dos factos provados[7]. Embora a Recorrente aluda, nas alegações de recurso, ao art.º 640.º do CPC[8], certo é que não impugnou a decisão sobre a matéria de facto nos moldes ali previstos.

Nos termos do n.º 1 de tal preceito, “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

Trata-se de um regime espartano, que estabelece quais são os requisitos formais das alegações de recurso em que seja colocada em crise a decisão sobre a matéria de facto. Tem em vista definir concretamente o que está sujeito a instância recursional e aquilo que resulta cristalizado e imutável, transitado em julgado. Dele decorre que a matéria de facto provada apenas há de ser colocada em causa na medida em que assim seja expressamente indicado pelo recorrente, não bastando mera alusão encapotada; só assim, aliás, se possibilitada o exercício do contraditório de modo pleno e eficaz.

A não verificação de tais requisitos implica na rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, não havendo lugar, sequer, à prolação de despacho com vista ao aperfeiçoamento[9].

No presente recurso a Recorrente esgrime argumentos atinentes à valorização dada ao depoimento de parte da Recorrida, o que constitui meio de prova. No entanto, não tendo impugnado a decisão sobre a matéria de facto nos moldes estatuídos no art.º 640.º do CPC, a esfera de atuação deste tribunal não abarca a possibilidade de alteração dos factos provados. Não basta suscitar, em sede de recurso, a questão da apreciação de um meio de prova de um facto se não se coloca em causa a qualidade de “provado” desse mesmo facto.

O pagamento do crédito reclamado está provado. Veja-se que, na parte inicial da conclusão AD das alegações de recurso, a Recorrente afirma “reunidos que estão os factos da matéria de facto dados como provados”, sustentando se seguida que a sentença “extrai uma consequência invertida quanto às consequências que devia extrair face à confissão tácita decorrente do depoimento de parte da R”.

Constando, pois, como provado o pagamento do crédito reclamado pela Recorrente, não resta outra sorte à ação que não seja a já sentenciada improcedência.



IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela improcedência do recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.


Évora, 6 de outubro de 2016



Isabel de Matos Peixoto Imaginário


Maria da Conceição Ferreira


Mário António Mendes Serrano
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[1] Sentença recorrida, fls. 120 vs.
[2] Ac. TRL de 15/12/2011, CJ 2011, T V, p. 120 e ss.
[3] Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, Separata do BMJ, Lisboa, 1961, p. 249.
[4] Ac. TRL, supra citado.
[5] V. n.ºs 3 a 5 dos factos provados, a fls. 117 vs.
[6] V. n.ºs 9 e 10 dos factos provados, a fls. 118 e 118 vs.
[7] V. n.ºs 9 e 10 dos factos provados, em confronto com o valor global da faturação enunciada no n.º 5 dos factos provados.
[8] V. fls. 130 e conclusão AD das alegações de recurso.
[9] V. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª edição, p. 141 e 142.