Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO | ||
Descritores: | PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO | ||
Data do Acordão: | 10/06/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Sumário: | I – A prescrição presuntiva funda-se na presunção de cumprimento, presunção essa que pode ser ilidida por confissão expressa ou tácita da dívida. II – A impugnação, em sede de recurso, da motivação atinente à decisão da matéria de facto, designadamente no que respeita à apreciação do depoimento de parte prestado na audiência final, não dispensa a impugnação da decisão relativa à própria matéria de facto nos moldes estabelecidos no art.º 640.º do CPC. | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA I – As Partes e o Litígio Recorrente / Autora: AA & Filhos, Lda. Recorrida / Ré: BB Trata-se de uma ação declarativa de condenação por via da qual a A pretende obter a condenação da R a pagar-lhe a quantia de €9.333,66 (nove mil trezentos e trinta e três euros e sessenta e seis cêntimos) acrescida de juro de mora vencidos no valor de €10.720,93 (dez mil setecentos e vinte euros e noventa e três cêntimos) e bem assim de juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento. II – O Objeto do Recurso Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando procedente a exceção da prescrição presuntiva do crédito reclamado, absolvendo a R do pedido. Inconformada, a A interpôs recurso da sentença pugnando pela declaração de nulidade da sentença, proferindo-se decisão diversa quanto ao tema em litígio. Apresenta as seguintes conclusões: A - Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida em 16 de Fevereiro de 2016, a qual Julgou improcedente a ação proposta pela A./Recorrente, e absolveu do pedido a R. B - A aqui Recorrente jamais se pode conformar, quando percorrida a fundamentação utilizada pela Mma. Juiz a quo, com a decisão que culminou na absolvição da R. do pedido, por força da procedência da exceção de prescrição presuntiva do direito do autor, e demais consequências que da invocação de tal prescrição daí se extraíram, nomeadamente da desconsideração da confissão pela R. do crédito reclamado pela A., por forma a ilidir a presunção de pagamento invocada e da não consideração da prática em juízo, pela R., de atos incompatíveis com a invocada prescrição presuntiva. C - Ora na situação sub judice, entende a A., que a sentença recorrida apesar de o evidenciar, não extrai a necessária consequência: é que a R., por força o teor do depoimento de parte produzido, praticou em juízo atos incompatíveis com a invocada prescrição presuntiva. D - A sentença recorrida alicerça-se na alegação constante no Art.º 3.º da contestação da R. – “que a R. já pagou todas as quantias reclamadas, e portanto, nada lhe deve (…) – e ao mesmo tempo no depoimento de parte onde a R. depõe no sentido de “não reconhecemos dívida alguma, porquanto não titulada, nem documentada” (sic) E - No entender da A., não reconhecer dívida alguma, porquanto não titulada nem documentada, é profundamente incompatível com a invocação de uma prescrição presuntiva, a qual dispensa o devedor de provar que pagou, mas não o dispensa de alegar que o fez. F - De resto, como poderia a R. afirmar “que tudo foi pago”, e ao mesmo tempo não “reconhecer dívida alguma” ???? G – De resto, note-se que nem sequer do depoimento de parte – o qual foi reduzido a escrito nos termos do Art.º 463.º CPC – consta qualquer menção à expressão “que foi tudo pago”. H - Nem a R., nem a sentença recorrida podem considerar que pagar tudo e não reconhecer dívida alguma constitui um todo lógico, ou uma verdade unívoca; invocar que se pagou, e simultaneamente não reconhecer a dívida, é invocar uma verdade e o seu contrário, e portanto, gera-se uma profunda incompatibilidade jurídica face à prescrição invocada. I - E tal equivale à prática em juízo de atos incompatíveis com a prescrição presuntiva. J - Aliás a R. diz que “não reconhece a dívida, porquanto não titulada, não documentada”, logo, não se vislumbra o que tenha sequer sido pago, visto que, aparentemente, só reconheceria a dívida se a mesma estivesse suportada por documentos que diz não ter na sua posse. K - A questão que se coloca porém, é que a alegação constante da contestação da R. – de que nada deve porque pagou – é infirmada pelo depoimento de parte, de onde se retira sim que a R. nega a dívida, porquanto não a reconhece. L - E quem não reconhece uma dívida, naturalmente, não a paga. M - Ora, a negação da dívida, a discussão do seu montante, os factos modificativos da relação subjacente à causa de pedir, constituem a prática em juízo de atos incompatíveis com a presunção de pagamento. N - Dito de outro modo, o comportamento da R. é mais do que enquadrável na hipótese legal a que alude o Art.º 314 do CC – ou seja – a R. no seu depoimento de parte produziu uma confissão tácita, por via da prática em juízo de atos incompatíveis com a prescrição presuntiva invocada. O - E é tal erro na subsunção do depoimento às normas legais aplicáveis que levou ao naufrágio da pretensão da A.. P - Mal andou o tribunal a quo quando não extraí da expressão “não reconhecemos dívida alguma” uma confissão tácita, porquanto não só a R. em lado algum do depoimento se alegue o pagamento – e devia fazê-lo – como acaba por afirmar o contrário de tal pagamento, que mais não é do que dizer “ não reconhecemos dívida alguma, porquanto não titulada, nem documentada”. N - Dispõe a alínea b) do Art.º 317.º do Código Civil que “prescrevem no prazo de dois anos os créditos dos comerciantes pelos objetos vendidos: - a quem não seja comerciante - ou os não destine ao seu comércio, -os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos…” O - Trata-se pois de um prescrição presuntiva, a qual se funda na presunção de cumprimento, explicando-se a mesma, nas palavras de Almeida Costa, in Direito da Obrigações, 5.º Edição, pp. 964, “pelo facto de as obrigações a que respeitam costumarem ser pagas em prazo bastante curto e não se exigir, por via de regra, quitação, ou, quando menos, não se conservar por muito tempo essa quitação”. Assim, decorrido o prazo legal, presume a lei que o pagamento foi efetuado. P - No mesmo sentido veja-se também Vaz Serra, in Prescrições Presuntivas (algumas questões), RLJ, ano 98.º, pp. 241 e ss. “Decorrido um prazo razoável, mas sempre curto, presume, então, o legislador que o seu pagamento já foi feito, e, por isso, dispensa o devedor de fazer prova deste, já que, pelas razões invocadas, ele teria muita dificuldade em fazê-lo” Q - Com o estabelecimento deste tipo de presunções visa o legislador, no fundo – Cfr Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, anotação ao Art.º 312.º - “ proteger o devedor contra o risco de satisfazer duas vezes dívidas de que não é usual exigir recibo ou guardá-lo muito tempo”. R - O benefício da invocação da referida exceção, por força da presunção de cumprimento, liberta ou dispensa a R. do ónus da prova de pagamento, além de que o ónus da prova se inverte, de acordo com o disposto no n.º 1 do Art.º 344.º do Código Civil. S - Contudo, a invocação da exceção já não dispensa a Devedora da invocação de que pagou, o que, definitivamente, esta não fez, nem expressa, nem implicitamente – Cfr. Ac. Rel Porto de 13.12.1993, CJ, Ano XVIII, Tomo V, pp.240; Ac. Rel. Porto de 28.11.1994, CJ, Ano XIX, Tomo V, pp.215; Ac. Rel.Coimbra de 17.11.1998, Ano XXIII, Tomo V, pp.16 e Ac. Rel. Lisboa de 13.04.2000, sumariado no BMJ n.º 496, pp.303. T - A este propósito confronte-se também Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pp.302 : “ De facto, constituindo o pagamento o facto principal em que a exceção da prescrição presuntiva assenta, tem o Requerida que alegar, não bastando a simples invocação do prazo prescricional”. U - Ocorre, portanto, conforme de decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-12-1993, in Colectânea de Jurisprudência, 1993, tomo V, pág. 240: "I - Se a prescrição é extintiva, o devedor não necessita de alegar que nunca deveu ou que já pagou, bastando-lhe invocar o decurso do prazo. II - Mas, se a prescrição é apenas presuntiva (prescrição de curto prazo), o devedor só pode beneficiar dela desde que alegue que pagou, ou que por outro motivo a obrigação se extinguiu, não lhe bastando invocar o decurso do prazo. III – Na falta de impugnação especificada dos factos constitutivos da obrigação, entende-se que o demandado confessa tacitamente a dívida. IV - Pelo que, se a prescrição invocada é presuntiva, a ação procede logo no saneador". V - A fórmula pela qual optou a Requerida, na sua contestação – ignorar os factos alegados pelo A., ou impugnando-os tentando descortinar uma suposta correção contabilística unilateral baseada nos seus próprios lançamentos contabilísticos - conduz à impossibilidade de beneficiar da invocada exceção: - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de de 01-06-1995, proferido no processo n.º 9530095: "I - A negação da dívida sujeita à prescrição de curto prazo presuntiva do pagamento prejudica a invocação desta prescrição. II - O devedor de uma dívida dessas tão só pode socorrer-se de tal prescrição se alegar que pagou e que, em todo o caso, sempre tal se presumiria atenta a prescrição". ou, no mesmo sentido também: - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de de 18-10-2001, proferido no processo n.º 0131354: "A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão judicial ou extrajudicial do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão. X - Considera-se confessada a dívida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal ou praticar em juízo atos incompatíveis com a presunção de cumprimento. Y - São exemplos de atos daquela natureza negar o devedor a existência da dívida, discutir o seu montante, invocar contra ela compensação ou remissão, invocar a gratuitidade dos serviços" Como se pode ler-se também no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-06-2006, proferido no processo n.º 1498/2006-7: A prescrição é presuntiva o que significa que não basta ao devedor invocar a presunção, impondo-se-lhe ainda de alegar expressamente o pagamento para beneficiar da presunção. Z - Ainda que se defenda que a invocação da presunção traz implícita a alegação de pagamento, a partir do momento em que o A., na petição, alega expressamente que o réu reconheceu a dívida tendo sido instado a pagá-la, mas não o tendo feito, não impugnada esta efetiva alegação, o facto em causa não pode deixar de se considerar admitido por acordo (artigo 490.º,n.º2 do Código de Processo Civil), traduzindo confissão que é precisamente o meio que a lei reconhece idoneidade para afastar a prescrição presuntiva (artigos 313.º e 314.º do Código Civil)". AA - Do mesmo modo, sumaria-se no Ac. Rel. Guimarães de 11/07/2013, proferido no processo n.º 1331/11.0TBVVD.G1 : “Assentando a prescrição de curto prazo na presunção de cumprimento, não poderá a mesma aproveitar a quem tenha em juízo uma atuação oposta ao cumprimento.”, que é, exatamente, a hipótese dos autos em crise AB - Neste sentido escreve ainda Sousa Ribeiro (Cf. “Prescrição presuntiva: sua compatibilidade com a não impugnação dos factos articulados pelo autor”, in “Revista de Direito e Economia”, ano V, nº 2, pág. 393): “constituindo uma mera presunção de pagamento, ela não poderá aproveitar a quem tenha uma atuação em juízo que logicamente o exclua. Quando alega a prescrição e, simultaneamente, pratica um ato inconciliável com o seu pressuposto fundante, o devedor está a contradizer-se a si próprio, pois ao mesmo tempo que pretende ver reconhecida a extinção do vínculo, com base num presumível cumprimento, não deixa de admitir que ele ainda não se efetuou. É o caso, por exemplo, entre outros, da negação da existência da dívida, da discussão do seu montante ou da alegação de pagamento de quantia inferior à reclamada, atribuindo-lhe o efeito de liquidação total do crédito. “ AC – A sentença recorrida, ao não considerar a confissão tácita da R., e por via disso, a ter julgado procedente a exceção de prescrição presuntiva por esta invocada, violou o disposto no Art.º 314.º do CC. AD - A sentença recorrida, reunidos que estão os factos da matéria de facto dados como provados, extraí uma consequência invertida quanto às consequências que deveria extrair face à confissão tácita decorrente do depoimento de parte da R. – cuja transcrição consta dos autos – o que expressamente se alega nos termos e para os efeitos do Art.º 640.º CPC, sendo por isso nulo a sentença nos termos das alíneas c) e d) do n.º 1 do Art.º 615.º CPC- porquanto desconsiderou por completo a confissão tácita da R. e se pronunciou erradamente sobre a prática em juízo de ato incompatíveis com a presunção invocada, que devia apreciar, e por isso se impõe a nulidade da sentença, sem prejuízo da prorrogativa prevista de este Tribunal ad quem produzir decisão diversa sobre o thema decidendum.” A R / Recorrida contra-alegou, sustentando que deve ser negado provimento ao recurso. Assim, cabe decidir as seguintes questões: - da nulidade da sentença; - da ilisão, pela Recorrida em sede de depoimento de parte, da presunção presuntiva do direito de crédito de que se arroga a Recorrente contra a Recorrida, sendo certo que, nas alegações de recurso, não foi impugnado qualquer facto concreto da matéria de facto dada como provada. III – Fundamentos A – Os factos provados em 1.ª instância 1. A autora dedica-se à atividade de exploração da indústria gráfica. 2. A ré é uma associação patronal, de utilidade pública, sem fins lucrativos e de âmbito nacional e que representa os empresários do sector de hotelaria. 3. Desde o ano de 1996 que a autora, no âmbito da sua atividade e a pedido da ré, executa e presta-lhe serviços. 4. … Emitindo as respetivas faturas, enviando-as à ré que, por sua vez, as recebia. 5. … Entre as quais, as seguintes: a. Fatura n.º 1100048, emitida em 17/01/2001, no valor de € 1.494,37 (mil, quatrocentos e noventa e quatro euros e trinta e sete cêntimos); b. Fatura n.º 231 A, emitida em 30/03/2001, no valor de € 658,01 (seiscentos e cinquenta e oito euros e um cêntimo); c. Fatura n.º 1087 A, emitida em 21/09/2001, no valor de € 256,78 (duzentos e cinquenta e seis euros e setenta e oito cêntimos); d. Fatura n.º 2718 A, emitida em 21/11/2002, no valor de € 2.671,55 (dois mil, seiscentos e setenta e um euros e cinquenta e cinco cêntimos); e. Fatura n.º 3081 A, emitida em 13/03/2003, no valor de € 356,41 (trezentos e cinquenta e seis euros e quarenta e um cêntimos); 7. Por escrito, datado de 11/07/2007, a ré remeteu à autora, que recebeu, um escrito, no qual continha, entre outros, os seguintes dizeres: “Após conferência dos extractos enviados p/ Persistente com incidência nos anos em que se verifica a diferença, ou seja, até 2001, não obstante as dificuldades motivadas pela falta de correspondência entre algumas facturas e respectivos recibos, ter havido alguns pagamentos em duplicado e os n.ºs das facturas não serem os mesmos dos recibos, concluir o seguinte: N/ saldo credor em 31-12-2001 – 7.889,98 (sete mil, oitocentos e oitenta e nove euros e noventa e oito cêntimos) Facturas não contabilizadas: 28-02-99 – n.º 9104 – 4.135,17M 31-05-99 – n.º 9452 – 1.832,48; Notas de Débito: 30-06-99 – n.º 582 (…) Total a pagar: 14.215,74. Deverão ser pedidas 2.ªs vias dos documentos em falta na n/ contabilidade. Pelos dados disponíveis, não foi possível conciliar a totalidade dos movimentos. No entanto, a confirmar-se a validade daquelas facturas e N. Débito, se o Dr. Concordar, penso que estão reunidas as condições para regularizar definitivamente o assunto.(…)”. 8. Por documento, intitulado de “Contabilidade – Conciliação de Contas / Esclarecimento de saldo credor para efeitos e regularização de dívida”, datado de 07/01/2009, resultam, entre outros, os seguintes dizeres: “Saldo c/c AHP: 7.889,98; Saldo c/c Persistente: 14.215,74 (…) 1) Valor de saldo de c/c anterior a 1998/12/31, não pago até à presente data. 2) Valores que não constam na contabilidade da AHP (…) apurados na sequência duma conciliação de contas a pedido do fornecedor, em virtude da divergência de valores de saldos de c/c entre as contabilidades. Recebidas as 2.ªs vias – a conformidade dos respectivos fornecimentos/débitos foi devidamente aferida e confirmada. 3) Valor que tem vindo a transitar sistematicamente de ano para ano.”. 9. No dia 29/07/2009, a ré entregou à autora a quantia de € 7.889,98 (sete mil, oitocentos e oitenta e nove euros e noventa e oito cêntimos). 10. Pagando o valor dos fornecimentos/serviços prestados pela autora. 11. Por escrito, datado de 27/01/2011, a ré remeteu à autora, que recebeu, um escrito, no qual continha, entre outros, os seguintes dizeres: “Aquando da última conferência de contas em Junho de 2009, em que vos foi liquidado o valor de 7.889,98 no mês seguinte, demos por encerrada a conciliação de valores. As Facturas e Notas de Débito que constam da vossa conta corrente nunca foram recepcionadas por nós e não constam nos nossos registos contabilísticos. Igualmente não temos qualquer registo que o material nelas descrito tenha sido entregue e/ou aceite. Muito lamentamos que esta situação se tenha vindo a protelar e todo o incómodo causado, mas, de facto, não reconhecemos à data mais nenhum valor em dívida. (…)”. |