Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
505/15.9T8OLH-C.E1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
PRESUNÇÃO DE CULPA DO DEVEDOR
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Não cumpre o ónus imposto pelo nº 1, alínea c), do artigo 640º do Código de Processo Civil o recorrente que não indica a decisão que deveria ter sido proferida antes pelo Tribunal “a quo” e agora por este Tribunal da Relação relativamente a cada um destes concretos pontos da matéria de facto.
2. Não cumpre o ónus imposto pelo n.º 2, alínea a), do artigo 640.º do Código de Processo Civil o recorrente que nem indicou as passagens da gravação, nem procedeu à respetiva transcrição e se limitou a fazer um resumo desse depoimento.
3. Considera-se culposa a insolvência se a situação (de insolvência) foi criada ou agravação em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, de devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
4. Para auxiliar a tarefa probatória, o CIRE contém o que se pode chamar de duplo sistema de presunções legais. O nº 2 do art.º 186º contém algumas presunções legais de culpa que não admitem prova em contrário (“sempre culposa”).
5. Por sua vez, o artigo 186º, nº 3, enumera hipótese de cuja verificação resulta uma presunção legal de culpa grave que admite prova em contrário (art.º 350º, nº 2, CCiv.).
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. 505/15.9T8OLH-C.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora- 2ª Secção Cível

I- RELATÓRIO:

(…) Portuguesa S.A., credor nos autos de insolvência n.º 505/15.9T8OLH, em que é insolvente (…) Combustíveis, S.A., requereu incidente de qualificação da insolvência como culposa, pedindo que sejam afetados com tal qualificação o administrador de facto (…) e o administrador de direito (…).

Alegou em síntese que a insolvente não se apresentou atempadamente à insolvência, não colaborou com o administrador da insolvência, os elementos contabilísticos que foram apresentados ao administrador não correspondem ao balanço aprovado em assembleia geral de 30 de abril de 2014. Não foram elaboradas, aprovadas e registadas as contas dos últimos exercícios. O referido administrador (…) fez retiradas de dinheiro das contas da sociedade insolvente, subtraindo-as aos credores.

Conclui que se encontram preenchidos os pressupostos dessa qualificação previstos no artigo 186º, n.º 2, alíneas a), f), h), i), e do n.º 3, alíneas a) e b), do CIRE.

O Administrador da Insolvência propôs também a qualificação da insolvência como culposa, indicando como devendo ser afetados pela qualificação o administrador de facto (…) e o administrador (…).

Alegou, em síntese, que a insolvente não se apresentou à insolvência atempadamente, os responsáveis da insolvente não disponibilizaram os elementos contabilísticos ao administrador da insolvência. Aquando da declaração da insolvência, o referido (…) abriu a loja do posto de abastecimento de combustíveis para quem quisesse usufruir gratuitamente dos bens aí existentes.

Conclui pelo preenchimento das condutas previstas no artigo 186º, nº 2, alíneas a), d, f), g) e h), do CIRE.

O Ministério Público propôs a qualificação da insolvência como culposa, concordando com o parecer do Sr. Administrador da Insolvência, sustentando que dos elementos carreados para os autos, resulta que a insolvente não se apresentou à insolvência, não depositou as contas relativas aos exercícios de 2013 e 2014, os administradores não colaboraram com o administrador da insolvência, os elementos contabilísticos apresentados são contraditórios.

Conclui que estão verificadas as circunstâncias previstas no artigo 186º, n.º 2, alíneas h) e i), e do n.º 3, alíneas a) e b), do CIRE.

Foi notificada a insolvente e citados os visados com a qualificação (…) e (…).

(…) pedindo a qualificação da insolvência como fortuita, alegando que renunciou à administração em 5 de agosto de 2013 e, nessa altura, a sociedade não estava insolvente. Os motivos que conduziram à insolvência foi o aumento do preço dos combustíveis, a contração do consumo e a alta competitividade nessa área de mercado. Não existia qualquer problema a nível da contabilidade da insolvente nem foram praticadas irregularidades com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial da sociedade. O seu mandatário entregou ao Sr. Administrador da insolvência os elementos pedidos. Devido a questões familiares permanece muito tempo fora do país.

Concluiu que não se verifica qualquer das circunstâncias de facto que são apontadas para qualificação da insolvência como culposa.

Foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e selecionados os temas da prova.

Na sequência da realização de audiência de discussão e julgamento, foi proferida em 19-02-2020 sentença com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, qualifico como culposa a insolvência de (…) Combustíveis, S.A., e, em consequência:

a) Declaro afetada pela qualificação (…), administrador de direito, e (…), administrador de facto;

b) Declaro (…) e (…) inibidos, pelo período de cinco anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;

c) Determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por (…) e (…);

d) Condeno (…) e (…) a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos nos autos, até às forças do respetivo património, sendo o valor da indemnização o devido, de acordo com os créditos reclamados.

Custas do incidente pelos afetados pela qualificação.

Registe e notifique.

Remeta certidão às Conservatórias do Registo Civil e Comercial competentes, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 189º, n.º 3, do CIRE.”

Inconformado com o decidido, veio a insolvente “(…) Combustíveis S.A. interpor recurso, com as seguintes conclusões:

1. Por sentença datada de 19-02-2020, o tribunal “a quo” qualificou como culposa a insolvência de (…) Combustíveis, S.A..

2. A sociedade, ora insolvente não se conforma com a decisão recorrida em primeiro lugar porque não consta qualquer referência ou menção quer como facto provado, quer como facto não provada, à ação declarativa de condenação que correu termos sob o nº de processo 1687/15,5T8FAR, 1ª Secção Cível da Comarca de Faro- Juiz 2, ação essa em que a sociedade insolvente reclamava o pagamento da quantia de 1.116.256,96 à sociedade (…) Portuguesa, S.A. a título de indemnização.

3. Ação, essa que se encontrava pendente à data dos presentes autos de insolvência e que não foi ponderada nem julgada pelo tribunal “a quo” como crédito existente, tal facto é assim de extrema importância atendendo a que a sociedade à data da insolvência não estaria com um passivo claramente superior ao ativo.

4. O que faz com que estamos perante uma omissão de pronúncia, isto é, o tribunal “a quo” deixou de decidir sobre esta questão.

5. Ao que acresce que não há qualquer referência aos factos deduzidos em sede de oposição, o que faz que estejamos perante uma causa de nulidade da sentença recorrida e que a mesma deverá ser revogada por os factos provados estarem em manifesta oposição com a decisão, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil.

6. Mesmo que assim não se entenda e sem prescindir, encontram-se incorretamente julgados os factos dados como provados nº 20, 21, 22, 24, 25, 26 e 27, porquanto resulta da fundamentação de facto e bem assim do depoimento prestado pelo Senhor Administrador de Insolvência que não se verificou uma recusa total de reiterada de colaboração por parte do insolvente.

7. Resultando do depoimento prestado pelo Senhor Administrador de Insolvência que houve contactos, quer por telefone, quer por e-mail que recebeu os IE´s da sociedade, que chegou à fala com os mandatários e que inclusive reúne com o Sr. (…).

8. Ao que acresce que deveria ter sido valorado pelo tribunal “a quo” e não o foi, o facto de o Senhor Administrador da Insolvência ter declarado que não apreendeu a contabilidade porque não diligenciou nesse sentido, isto é, não se dirigiu à sede da empresa, nem procurou obter mais informações junto dos contabilistas.

9. Factos esses que não forma tomados em consideração pelo tribunal “a quo” e que deveriam ter sido, carecendo o tribunal de elementos que com o mínimo de segurança possam justificar que se classifiquem como culposa a presente insolvência.

10. Termos em que deverá a sentença ser revogada nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil.

11. Sem prescindir, sempre se dirá que o facto dado como provado nº 20 está em contradição com o facto dado como provado nº 22.

12. Existindo também uma evidente contradição por parte do tribunal “a quo” no que respeita à motivação da decisão da matéria de facto, pois da prova dada como provada não podemos concluir como conclui o tribunal de que estamos perante o incumprimento de forma reiterada dos deveres de apresentação e de colaboração.

13. O que significa que estamos perante um erro de fundamentação e uma contradição insanável da matéria de facto, violando-se o disposto no artigo 607º, nº 4 e 5, do Código de Processo Civil, o que determina um erro no dever de fundamentação da decisão conforme estabelece o artigo 154º do Código de Processo Civil.

14. Termos em que deverá a sentença recorrida ser declarada nula nos termos do disposto no artigo 615º, alínea c) do Código de Processo Civil.

15. O ora recorrente também não se conforma com a sentença recorrida por a mesma violar o disposto no artigo 186º, nº 1, nº 2, alíneas d) e i) e nº 3, alínea a), do CIRE.

16. Ao que acresce que não resulta dos factos dados como provados que a situação de insolvência culposa tivesse de algum modo ter sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave, o que claramente não sucedeu in casu, não se mostrando provada nenhuma atuação com dolo ou culpa grave.

17. Da mesma forma que não se encontra preenchida alínea d) do nº 2 do artigo 186º do C.I.R.E. (dispor dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros), pois o facto de os bens alimentares terem sido levados por terceiros gratuitamente não se pode reconduzir a um ato de disposição de bens, uma vez que estamos a falar de produtos alimentares que se iriam estragar pelo decurso do tempo.

18. A previsão da alínea d) visa punir atos de disposição, alienação e negócios fictícios com o intuito de prejudicar os credores da insolvência, o que não sucedeu in casu.

19. Ademais, não se verifica nos autos, que tal ato tenha provocado a diminuição da garantia patrimonial dos credores da insolvente.

20. Mais se refere que também não se encontra preenchida a alínea i) do nº 2, do artigo 186º, do C.I.R.E. (incumprindo de forma reiterada os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer do nº 2 do artigo 188º), atento a que e em bom rigor não se pode presumir a culpa do administrador da insolvente em esta não se ter apresentado à insolvência no prazo legal, sendo certo que a sociedade não tinha ainda dívidas a trabalhadores, nem dívidas à Segurança Social e às Finanças.

21. Aliás e segundo o Senhor Administrador de Insolvência a sociedade teria um crédito de € 22.147,78 para recuperar em sede de IVA, desconhecendo o motivo pelo qual tal crédito não foi recuperado.

22. Assim como tinha pendente contra a (…) Portuguesa, S.A. ação declarativa de condenação, que correu termos sob o nº 1687/15.5T8FAR, na Comarca de Faro – Juízo Central Cível – Juiz 2, no valor de € 1.116.256,99, desconhecendo-se também a decisão final desses mesmos autos.

23. Os saldos negativos nas contas da sociedade justificam-se pelo tipo de negócio- venda de combustíveis- e por esse mesmo combustível ser vendido à consignação e pelos reiterados cortes de abastecimento efetuados pela (…), encontrando-se a sociedade insolvente apenas com dificuldades financeiras e não sem situação de insolvência.

24. A Requerente (…) Portuguesa, S.A. bem sabe as dificuldades financeiras que a insolvente atravessou e o esforço dos seus administradores e gestores para evitar que a empresa se encontrasse numa situação de insolvência.

25. Aliás, é também conhecimento nos presentes autos que em 27-04-2015 a empresa (…) requereu a insolvência da ora opoente e que em 21-05-2015 a ora oponente deduziu contestação a esse mesmo pedido por considerar e por entender que embora estivesse a ultrapassar algumas dificuldades financeiras não estaria em situação de insolvência.

26. Dado que também não se encontrava efetivamente impossibilitada de fazer face à generalidade de todos os seus compromissos e obrigações.

27. Não se considerando assim que se tenha verificado qualquer conduta dolosa por pare dos administradores da insolvente, muito pelo contrário, pois esses tudo fizeram para tentar “salvar” a empresa da falência, o que aliás é compreensível.

28. Motivos pelos quais se entende que não se encontram preenchidos todos os pressupostos do disposto no artigo 186º, nº 1, nº 2, alíneas d) e i) e nº 3, alínea a), do CIRE, mostrando-se afastada a presunção de culpa, assim como não foi feita prova do nexo causal.

29. Termos em que deverá a sentença recorrida ser revogada e em consequência deverá ser declarada a presente insolvência como fortuita e não como culposa.

30. Sem prescindir, resulta dos presentes autos e é do conhecimento do tribunal “a quo”, até porque tramita outras ações de insolvência, que a insolvente (…), Combustíveis, S.A. pertence a um grupo económico de empresas composto pelas seguintes sociedades: (…), Combustíveis, S.A., (…), Comércio de Combustíveis, Lda., (…), Combustíveis, Lda., (…), Combustíveis, Lda.”, (…) e Filho, Lda. e que a sociedade (…) – Sociedade Portuguesa de Distribuição, S.A., requereu na mesma data a insolvência de todas estas empresas, as quais se encontram a correr termos.

31. Sucede que, e uma vez que estamos perante uma relação societária de grupo, deveriam todos os autos ser apensados única forma de cumprir o principio da igualdade de tratamento ente credores que norteia a legislação do CIRE e de evitar violações do caso julgado e, bem assim, decisões contraditórias.

32. Estabelece o art.º 86º, nº 2, do CIRE, sendo o devedor uma sociedade comercial, relativamente aos processos em que tenha sido declarada a insolvência de sociedades que, nos termos do Código das Sociedades Comerciais, ela domine ou com ela se encontrem em relação de grupo.

33. Andou mal o tribunal “a quo” ao não apensar os presentes autos às restantes ações de insolvência.

34. Termos em que deverá a sentença recorrida ser revogada por omissão de pronúncia e por violação do disposto no artigo 86º, nº 2, do CIRE e, em consequência, deverá ser proferida outra que ordene a apensação de todos os processos de insolvência.

Nestes termos e nos melhores de direito deverá V. Exa. dar provimento ao presente recurso e revogar a sentença recorrida e consequentemente jugar a presente insolvência fortuita, assim se fazendo Justiça!

Não foram apresentadas contra-alegações.

Em 28-05-2020 foi proferido despacho pelo Juiz Relator de remessa dos autos à 1ª instância para que o Tribunal a quo se pronunciasse sobre as nulidades de sentença invocadas.

Em 24-06-2020 foi proferido despacho pelo Tribunal a Quo no sentido de que não foi cometida nenhuma nulidade.

O recurso foi admitido.

Foi dado cumprimento aos vistos legais por via eletrónica.

II- OBJETO DO RECURSO:

Nos termos do disposto nos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 663º, nº 2, do CPC, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objeto do recurso e se delimita o seu âmbito, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Este Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, desde que prejudicadas pela solução dada ao litígio.

Questões a decidir:

a) Apensação de ações nos termos do artigo 86º, nº 2, do CIRE;

b) Nulidades da sentença recorrida;

c) Impugnação da decisão quanto à matéria de facto;

d) Pressupostos da declaração da insolvência culposa.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

Na 1ª instância foi fixada a matéria de facto da seguinte forma:

A) Factos provados:

1. (…), Combustíveis S.A., foi declarada insolvente por sentença de 8 de julho de 2015, transitada em julgado a 27 de agosto de 2015.

2. É uma sociedade anónima, com sede na Urbanização (…), Edifício (…), s/n, 8300-135 Silves, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Silves, sob o número único de matrícula e de pessoa coletiva (…).

3. O capital social é de € 72.500,00, dividido em 7.250.000 ações com o valor nominal de € 0,01 cada.

4. Tem por objeto a compra e venda de combustíveis e lubrificantes; compra e venda de automóveis; peças e acessórios para automóveis; exploração de estações de serviço, lojas e cafetarias; importações e exportações.

5. A insolvente foi constituída e iniciou a sua atividade em 19 de fevereiro de 1992, na altura como sociedade por quotas.

6. A partir de 15 de junho de 2007, a sociedade passou a ter como único gerente (…), que era sócio juntamente com a (…) – Comércio de Combustíveis, Unipessoal, Lda..

7. A (…) – Comércio de Combustíveis, Unipessoal, Lda. tinha como único sócio e gerente o referido (…).

8. A 5 de agosto de 2013 o gerente (…) renunciou à gerência da (…) Combustíveis, Lda., tendo sido nomeado gerente (…).

9. A 22 de novembro de 2013, a (…) – Comércio de Combustíveis, Unipessoal, Lda. dividiu a única quota no valor de € 15.000,00 numa quota de € 4.800,00, que ficou na titularidade de (…), e outra no valor de € 200,00, que ficou na titularidade de (…).

10. A 28 de julho de 2014, em Assembleia Geral da Sociedade (…), Combustíveis Lda., os sócios e o legal representante (…) aprovaram por unanimidade o balanço da sociedade para o exercício findo em 30 de abril de 2014, o qual foi assinado pelo gerente e pela TOC (…).

11. Esse balanço refere que a sociedade apresentava como ativo corrente no valor de € 2.080.026,00, no qual se inclui um crédito sobre o Estado e outros entes Públicos no valor de € 266.993,00 e em caixa e depósitos bancários € 1.228.196, 00, um passivo corrente no valor de € 1.923.097,00, apresentando um resultado líquido de € 42.013,00;

12. A 29 de julho de 2014, o gerente da sociedade apresentou o relatório justificativo da transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima e declarou não ter ocorrido diminuição patrimonial desde o dia a que se reporta o balanço referido no ponto anterior.

13. Nessa data, foi ainda deliberado aumentar o capital social para € 72.500,00: por incorporação de reservas no valor de € 25.000,00, ficando o sócio (…) com uma quota nominal no valor de € 23.506,00, a sócia (…) com duas quotas no valor de € 11.911.75 e € 317,50, e o sócio (…), com duas quotas no valor de € 11.911,75 e € 19.853,00; por realização em dinheiro, com entrada do sócio (…).

14. Na assembleia geral de 15 de abril de 2015 foi deliberado designar para o cargo de administrador (…).

15. Apesar de ter renunciado à gerência da sociedade insolvente em 5 agosto de 2013, sempre foi (…) quem continuou a exercer as funções de gerente/administrador de facto.

16. Sempre foi (…) quem negociou com as várias entidades que tinham relações comerciais com a (…), nomeadamente fornecedores, credoras, dava ordens de pagamento, contratava/despedia e orientava empregados e tomava decisões relativamente à sociedade.

17. (…) e (…) sempre exerceram as funções de gerente/administrador sob as ordens e orientações de (…).

18. A (...) Combustíveis, S.A. celebrou com a (...) um contrato de cessão de exploração, mediante o qual, a partir de 1 de agosto de 2006, passou a explorar um posto de combustível propriedade da (…), sito em Poço (…), (…), Portimão.

19. A 27 de abril de 2015, sociedade (…) – Sociedade Portuguesa de Distribuição, S.A. requereu a insolvência da sociedade (…) Combustíveis, S.A.

20. Após a declaração de insolvência o Administrador nomeado enviou várias cartas ao administrador (…) e à sociedade com vista à obtenção dos elementos relativos à contabilidade da insolvente e nunca obteve resposta.

21. O Administrador da insolvência solicitou pessoalmente e por escrito a (…) os elementos da contabilidade, nomeadamente relativos a faturação com vista a recuperar IVA junto da Autoridade Tributária, o que não foi conseguido por não lhe terem sido fornecidos;

22. Só depois de várias tentativas e contactos com (…), o seu advogado e o responsável pela contabilidade (…), foram disponibilizados, ao administrador da insolvência, pelo Advogado de (…), as IES relativas aos anos de 2011 a 2013, e um balanço de 2014;

23. A IES de 2011 permitia concluir por resultados líquidos negativos no valor de € 2.088,51, sendo que o ativo declarado no valor de € 427.798,92, e desse ativo, € 308.000,00 era IVA a recuperar, que dependia da apresentação da faturação para a sua recuperação;

24. Em 2011 a insolvente estava numa situação de incapacidade financeira para solver as suas dívidas.

25. O único balanço apresentado ao Administrador da Insolvência, datado de 30 de abril de 2014, não tinha correspondência com o declarado nas IES apresentadas à Autoridade Tributária.

26. Já desde 2011 a sociedade apresentava dívidas que a sociedade não tinha capacidade para solver.

27. Repetindo-se quadro financeiro semelhante nos anos de 2012 e 2013.

28. Em dia não concretamente apurado, mas antes de efetuada a apreensão de bens pelo Administrador da Insolvência, (…) abriu a loja do posto de abastecimento de combustíveis para quem quisesse usufruísse gratuitamente das existências que ainda se encontravam no interior das instalações, tendo os bens aí existentes sido levados por terceiros gratuitamente.

29. Quando o Administrador da insolvência se dirigiu ao local praticamente não existiam no interior da loja bens de consumo apenas foram apreendidos os móveis da loja.

30. A insolvente não depositou na Conservatória do Registo Comercial as contas relativas ao exercício de 2014.

31. À data da insolvência a ROC da insolvente havia renunciado às suas funções.

32. No processo de insolvência foram reclamados créditos no valor de € 687.335,95.

33. E apreendidos bens no valor de € 400,00.

B) Factos não provados:

1. (…) tivesse estado afastado da vida da insolvente desde 5 de agosto de 2013;

2. (…) quase diariamente efetuasse retiradas significativas de dinheiro do apuro da sociedade;

3. E tenha retirado das contas da sociedade o valor de € 78.868,63.

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

a) Apensação de ações nos termos do artigo 86º, nº 2, do CIRE:

A recorrente sustenta que a insolvente pertencente a um grupo composto por várias sociedades, sendo que a sociedade (…) requereu na mesma data a insolvência de todas as empresas, as quais se encontram a correr termos, pelo que deverá ser proferida sentença que ordene a apensação de todos os processos de insolvência.

Cumpre decidir:

O artigo 86º, nº 2, do CIRE permite que, a requerimento do administrador da insolvência, sejam apensados ao processo de um devedor – sociedade comercial – de sociedades que nos termos do Código das Sociedades Comerciais (nomeadamente artigos 488º e segs.), ela domine ou com ela se encontrem em relação de grupo”.

O tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados. Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de questões novas[1].

Assim, ressalvada a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso[2] encontra-se excluída a possibilidade de alegação de factos novos na instância de recurso. “A função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa, pelo que o tribunal ad quem não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados[3]”.

É que, de facto, “os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-04-2019[4]).

No caso dos autos, a recorrente não suscitou perante o Tribunal de 1ª Instância, a questão que agora suscita da apensação dos processos. Trata-se, pois, de uma questão nova.

E de facto, conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08-11-2018[5], “quando um recorrente vem colocar perante o Tribunal superior uma questão que não foi abordada nos articulados, não foi incluída nas questões a resolver, e não foi tratada na sentença recorrida, então estamos perante o que se costuma designar de questão nova. Por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido, pois só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido”[6].

Assim, não tendo constituído o objeto da presente lide, a respetiva factualidade que pressuporia a apreciação de tal questão, teria que ter sido, tempestivamente, objeto de oportuna alegação, o que não sucedeu. E, por outro lado, a mesma questão não é passível de ser conhecida oficiosamente por este Tribunal de recurso.

Improcede, assim, a apelação quanto a esta questão.

b) Nulidades da sentença recorrida:

A recorrente advoga que da decisão recorrida não consta qualquer referência à ação declarativa de condenação nº 1687/15.5T8FAR, 1ª Secção Cível da Comarca de Faro, Juiz 2, em que a sociedade insolvente reclamava o pagamento da quantia de € 1.116.256,96, à sociedade (…) Portuguesa, S.A., a título de indemnização; sendo que tal facto é de extrema importância atendendo a que a sociedade à data da insolvência não estaria com um passivo claramente superior ao ativo. Acresce que não há qualquer referência aos factos aduzidos em sede de oposição. Mais os factos provados estão em manifesta oposição com a decisão, pelo que verificam as nulidades da sentença recorrida, previstas no artigo 615º, nº 1, alíneas c) e d), do CPC.

Sobre estas nulidades, o Tribunal de 1ª instância proferiu o seguinte despacho:

“A recorrente (…) Combustíveis, S.A. recorreu da decisão do incidente de qualificação da insolvência, alegando, além do mais, a nulidade dessa decisão com fundamento nas causas previstas nas alíneas c) e d) do nº 1, do artigo 615º do Código de Processo Civil.

A primeira causa de nulidade arguida pela insolvente é que o tribunal não se pronunciou sobre questões de que deveria pronunciar-se, porque não apreciou o facto na oposição relativo a ação que se encontrava pendente e na qual a insolvente reclamava o pagamento do valor de € 1.116.256,95, pretendendo a insolvente demonstrar que a sociedade não se encontrava insolvente à data da instauração do processo de insolvência.

O Tribunal na sua decisão enunciou os factos provados e não provados com interesse para a decisão.

Na oposição ao incidente de qualificação a insolvente alegou factos com os quais pretendia demonstrar que a sociedade não se encontrava insolvente à data da instauração do processo.

No momento da decisão do incidente de qualificação da insolvência discutir se a sociedade estava insolvente, ou não, é irrelevante. A sociedade foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado e qualquer facto tendente a demonstrar o contrário é inútil.

O tribunal não deu como provado qualquer facto da oposição da insolvente porquanto o alegado não tinha qualquer interesse para as questões a decidir, antes se reportaram a uma oposição à insolvência, questão que ficou ultrapassada com o trânsito em julgado da sentença que decretou essa mesma insolvência. Discutir se o ativo da sociedade era superior ao passivo na data da instauração do processo de insolvência era estar a por em causa os factos assentes na declaração de insolvência.

A causa de nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 615º, do Código de Processo Civil, tem que ser devidamente enquadrada com o objeto do processo, o tribunal não tem que se pronunciar sobre todas questões colocadas pelas partes, mas apenas sobre aquelas que tenham interesse para a decisão, delimitadas pelo objeto do processo, e só a omissão de pronúncia quanto a estas constitui a nulidade invocada.

Pelo que discutir em sede de qualificação da insolvência se a sociedade insolvente estava insolvente ou não, é completamente destituído de propósito pois nesta fase o tribunal tem que dar por adquirido que a sociedade está insolvente.

Conclui-se, pois, não ter sido cometida tal nulidade.

No que respeita à segunda causa de nulidade invocada, a alegada contradição entre os factos dados como provados e a fundamentação, a recorrente pretende a pretexto da invocação da nulidade por em causa a convicção do tribunal e as provas em que sustentou a decisão de facto.

A decisão encontra-se fundamentada e não se vislumbra qualquer contradição entre os factos ou entre estes e a fundamentação.

Entende, pois, este tribunal que nenhuma nulidade foi cometida que cumpre sanar, designadamente as invocadas pela recorrente.

Todavia, V. Exas. Srs. Juízes Desembargadores farão como sempre, melhor justiça.

Subam novamente os autos ao Tribunal da Relação de Évora.”

Cumpre decidir:

Dispõe o artigo 615º do CPC:

1- É nula a sentença quando:

a) (…)

b) (…)

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão…”.

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar…”.

Conforme referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[7] “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora, mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja juridicamente correta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial (art.º 186-2-b)”.

“A nulidade referida no art.º 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil (...) está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos arts. 154º e 607º, nºs 3 e 4, de o juiz fundamentar os despachos e as sentenças, por um lado, pelo facto de a Sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor), não ocorrendo essa nulidade se o julgador errou na subsunção que fez dos factos à norma jurídica aplicável, ou se erro na indagação de tal norma ou da sua interpretação”[8].

A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente”[9].

Esse vício de nulidade distingue-se do erro de julgamento em virtude de neste não existir qualquer vício de raciocínio do julgador, mas apenas uma incorreta interpretação da lei ou uma indevida aplicação desta aos factos provados ou não provados no caso concreto ou um erróneo julgamento desses mesmos factos julgados provados ou não provados perante a prova produzida. Por conseguinte, saber se a decisão de facto ou de direito está certa ou não, é questão de mérito e não de nulidade da sentença”[10].

No caso em apreço, a apelante não especifica quais os factos que estão em contradição com a decisão, sendo certo que logo a seguir aponta os factos que considera incorretamente julgados.

Afigura-se-nos, pois, o que está em causa é o inconformismo da apelante em relação ao julgamento da matéria de facto que nela foi feito pelo tribunal a quo, inconformismo esse poderia eventualmente consubstanciar mero erro de julgamento, a apreciar em sede própria, e não causa de nulidade da sentença.

Com efeito, lida a sentença recorrida, fácil é de concluir que não se descortina a existência de qualquer contradição lógica entre a parte disjuntiva daquela (a decisão nela proferida) e os fundamentos de facto e/ou de direito que nela foram avocados pelo tribunal a quo para ancorar essa sua decisão.

Conforme referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[11] “deve o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções (art.º 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade”.

Assim sendo, a não inclusão de factos na matéria de facto provada, não consubstancia o vício da sentença de omissão de pronúncia, mas quanto muito erro de julgamento a ser resolvido mediante impugnação da decisão quanto à matéria de facto.

Nestes termos, improcedem as arguidas nulidades.

c) Impugnação da decisão quanto à matéria de facto:

Estabelece o artigo 640º do CPC:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Nas suas conclusões, a ré/apelante alega que os factos dados como provados nºs 20, 21, 22, 24, 25, 26 e 27 foram incorretamente julgados.

No entanto, não indica em nenhuma parte nem do corpo das alegações nem das conclusões, qual a decisão que deveria ter sido proferida antes pelo Tribunal “a quo” e agora por este Tribunal da Relação relativamente a cada um destes concretos pontos da matéria de facto, limitando-se a dizer que “resulta da fundamentação de facto e bem assim do depoimento prestado pelo Senhor Administrador da Insolvência que não se verificou uma recusa total de reiterada de colaboração por parte do insolvente”.

Ou seja, por outras palavras, apesar de atacar, a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto dos pontos 20, 21, 22, 24, 35, 26 e 27, a recorrente não propôs decisão alternativa àquela.

Os ónus primários descritos nas três alíneas do n.º 1 do artigo 640º são indispensáveis à concretização do objeto da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pois que, conforme afirmado no acórdão deste STJ de 13.11.2019[12], “por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art.º 640º do CPC (…) sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso[13]”.

Por sua vez, a exigência, imposta pelo art.º 640.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso.

Não cumpre o ónus imposto pelo n.º 2, al. a), do artigo 640.º do Código de Processo Civil - indicação exata das passagens da gravação em que se funda a sua discordância - o recorrente que nem indicou as passagens da gravação, nem procedeu à respetiva transcrição e se limitou a fazer um resumo desse depoimento[14].

“A “ratio essendi” desse ónus de indicação destina-se a permitir, por um lado, que o tribunal de recurso fique habilitado a reconhecer de forma inequívoca os concretos segmentos da prova pessoal produzidos na audiência final suscetíveis de inculcar ou confirmar o “error in iudicando” que o apelante assaca à decisão da questão de facto, e, por outro lado, a permitir que a parte contrária possa exercer na plenitude a contraditoriedade relativamente aos argumentos que o apelante convoca para defender decisão diversa sobre a factualidade que considera indevidamente julgada”[15]

Ora, no caso em apreço, a apelante indicou com meio de prova o depoimento prestado pelo Senhor Administrador de Insolvência, mas não indicou as passagens da gravação, nem procedeu à respetiva transcrição, tendo apenas feito um resumo (pontos 6, 7 e 8 das conclusões).

Ora, a reapreciação da prova e a eventual alteração da decisão só é possível com a audição (ou leitura) das passagens da gravação em que se funda o recurso, cuja indicação precisa ou a respetiva transcrição constitui ónus do recorrente.

Posto isto, e tudo ponderado, afigura-se-nos que efetivamente o apelante não cumpriu os ónus exigidos pelo art.º 640. ° n.°s 1, als. b) e c) e 2, al. a), do CPC, pelo que, rejeita-se o recurso relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

d) Pressupostos da insolvência culposa:

Na sentença recorrida considerou-se a insolvência de (…) Combustíveis, S.A. como culposa, nos termos do artigo 186º, nº 1 e nº 2, alíneas d) e i) e nº 2, alínea a), do CIRE

Segundo a recorrente, não resulta dos factos dados como provados que a situação de insolvência tivesse de modo algum sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa.

Cumpre decidir:

A insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, não sendo a qualificação vinculativa para efeitos da decisão de causas penais ou ações de responsabilidade contra o devedor, terceiros e responsáveis legais (artigo 185º do CIRE).

“Considera-se culposa a insolvência de a situação (de insolvência) foi “criada ou agravação em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, de devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao inicio do processo de insolvência (art.º 186º, 1). Assim, a lei exige que esteja um comportamento de certos sujeitos (o devedor ou os seus administradores, de direito ou de facto), a existência de dolo ou culpa grave, uma relação causal entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência e, por fim, que o comportamento tenha lugar dentro de um certo lapso de tempo (por três anos anteriores ao inicio do processo de insolvência). A situação de insolvência pode ter sido criada sem que existisse culpa, mas pode ter havido culpa no agravamento da situação de insolvência. Em ambos os casos a insolvência pode ser qualificada como culposa.

Na atuação dolosa será abrangida a quem tem lugar com dolo direto, necessário ou eventual. Por sua vez, a culpa grave consistirá na “negligência grosseira só cometida por um homem excecionalmente descuidado”. A atuação dos administradores que é considerada relevante é tanto aquela dos que ainda são administradores à data da sentença de qualificação com os que já não o são.

Para auxiliar a tarefa probatória, o CIRE contém o que se pode chamar de duplo sistema de presunções legais. O nº 2 do art.º º 186º contém algumas presunções legais de culpa que não admitem prova em contrário (“sempre culposa”). As presunções ali estabelecidas dizem respeito à culpa e não à situação de insolvência.

(…)

Por sua vez, o art.º 186, 3, enumera hipótese de cuja verificação resulta uma presunção legal de culpa grave que admite prova em contrário (art.º 350º, 2, CCiv.).

O CIRE não dá uma definição de Insolvência fortuita. Será, então, a que não é culposa[16].”

Conforme refere Luís Manuel Teles de Menezes Leitão[17] “O art.º 186º, nº 2, do CIRE contém, no entanto, uma presunção iuris et de iure de insolvência culposa, considerando como tal sempre que os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham praticado atos destinados a empobrecer o património do devedor ou incumprido determinadas obrigações legais. Entre os atos destinados ao empobrecimento do património encontra-se: a dissipação do seu património (art.º 186º, nº 2, a)); a criação artificial de passivos ou a redução de lucros (art.º 186º, nº 2, b)); a revenda com prejuízo de mercadorias não pagas (art.º 186º, nº 2, c)); a disposição dos bens dos devedor em proveito pessoal ou de terceiros (art.º 186º, nº 2, d)), a exploração, eventualmente a coberto da personalidade coletiva da empresa, da sua atividade em proveito pessoal ou de terceiros (art.º 186º, nº 2, g)). Em relação ao incumprimento das obrigações legais encontra-se a de manter a contabilidade organizada, incluindo a posse de contabilidade dupla, fictícia ou a prática de irregularidades na mesma que perturbem a compreensão da sua situação financeira ou patrimonial (art.º 186º, nº 2, h)); ou o incumprimento reiterado dos deveres de apresentação e colaboração no possesso de insolvência (art.º 186º, nº 2, i)).

Verificados alguns destes factos, o juiz terá assim que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. A lei institui consequentemente no art.º 186º, nº 2, uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer no nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário.

O art.º 186º, nº 3, do CIRE, contém uma presunção iuris tantum de culpa grave do devedor que não seja uma pessoa singular, sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência ou a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal e de submete-las à devida fiscalização e depósito na conservatória do registo comercial.

Demonstrados esses factos, o juiz presumirá a culpa do devedor na sua situação de insolvência, excluindo, porem, essa qualificação se for demonstrado que a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas não se deveu a culpa do devedor. Efetivamente, o que resulta do art.º 186º, nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da atuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não tanto uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art.º 186º, nº 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.

O artigo 186º, nº 4, do CIRE, estende as presunções dos nºs 2 e 3, com as necessárias adaptações, à atuação do devedor pessoa singular e seus administradores (cfr. artigo 6º). Efetivamente, com exceção da situação referida na alínea e) do nº 2 do art.º 186º, todos os restantes factos mencionados podem facilmente ser aplicáveis à insolvência de pessoas singulares, devendo as mesmas presunções funcionar igualmente nessa situação.

A alínea d) do nº 2 do artigo 186º do CIRE refere-se a condutas que tenham “disposto de bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros”.

Refere a recorrente que não se encontra preenchida esta alínea, pois o facto de os bens alimentares terem sido levados por terceiros gratuitamente não se pode reconduzir a um ato de disposição de bens, uma vez que estamos a falar de produtos alimentares os quais se iriam estragar pelo decurso do tempo.

Da matéria de facto resultou provado que “em dia não concretamente apurado mas antes de efetuada apreensão de bens pelo Administrador da Insolvência, (…) abriu a loja do posto de abastecimento para quem quisesse usufruísse gratuitamente das existências que ainda se encontravam no interior das instalações, tendo os bens aí existentes sido levados por terceiros gratuitamente (ponto 28) e que quando “o administrador da insolvência se dirigiu ao local praticamente não existiam no interior da loja bens de consumo apenas foram apreendidos os móveis da loja (ponto 29).

Não se encontra assim provado o aludido pelo recorrente (alimentos perecíveis), pelo que tem de considerar-se preenchida a previsão legal acima referida, tal como se entendeu na sentença recorrida.

Na alínea i), do nº 2, do artigo 186º do CIRE, prevê-se o incumprimento, de forma reiterada dos seus deveres de apresentação e colaboração até à data da apresentação do parecer referido no nº 2, do artigo 188º.

Decorre da factualidade provada “após a declaração o Administrador nomeado enviou várias cartas ao administrador (…) e à sociedade com vista à obtenção dos elementos relativos à contabilidade da insolvente e nunca obteve resposta” (ponto 20); o Administrador da insolvência solicitou pessoalmente e por escrito a (…) os elementos da contabilidade, nomeadamente relativos a faturação com vista a recuperar IVA junto da Autoridade Tributária, o que não foi conseguido por não lhe terem sido fornecidos (ponto 21); “só depois de várias tentativas e contactos com (…), o seu advogado e o responsável pela contabilidade (…), foram disponibilizados, ao administrador da insolvência, pelo advogado de (…), as IES relativas aos anos de 2011 a 2013, e um balanço de 2014 (ponto 22); “A IES de 2011 permitia concluir por resultados líquidos negativos no valor de € 2.088,51, sendo que o ativo declarado no valor de € 427.798,92, e desse ativo, € 308.000,00 era IVA a recuperar, que dependia a apresentação da faturação para a sua recuperação (ponto 23).

Encontra-se, assim, preenchida esta previsão legal, tal como se entendeu na sentença recorrida.

Segundo a al. a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE, a culpa grave presume-se se os administradores do devedor não tiverem cumprido o dever de requerer a declaração da insolvência, nos termos do artigo 18º do CIRE.

No caso das pessoas coletivas, o artigo 19º do CIRE faz recair sobre os membros do órgão social incumbido da administração a obrigação de apesentar a devedora à insolvência, dentro dos três meses seguintes sobre o incumprimento generalizado das suas obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do artigo 20º do mesmo Código.

“A razão do estabelecimento do dever de apresentação do insolvente é de propiciar, o mais rapidamente possível, a solução da situação de acordo com os parâmetros legais, na convicção de que o seu arrastamento apenas pode gerar mais inconvenientes e prejuízos.

Por isso, o decurso do prazo de apresentação, sem que ela tenha lugar não faz cessar o correspondente dever e, consequentemente, não retira legitimidade ao insolvente para a instauração da ação.

(…)

Em todo o caso, se o prazo estiver ultrapassado à data da apresentação, o dever do insolvente não pode deixar de se considerar incumprido, sujeitando-o às correspondentes consequências.

Naturalmente, o limite para a apresentação eficaz é a instauração de ação pelos credores ou outro legitimado, o que, aliás, resulta do regime fixado no art.º 8º.[18]

Do elenco dos factos provados, resulta que em 2011 a insolvente numa situação de incapacidade financeira para solver as suas dívidas ponto 24), já desde 20011 a sociedade apresentava dívidas e que não tinha capacidade financeira para solver (ponto 26), repetindo-se o quadro financeiro semelhante nos anos de 2012 e 2013 (ponto 27). Ou seja, desde 2011 a devedora apresentava-se com um passivo claramente superior ao ativo, o que de harmonia com o disposto no artigo 3º, nº 2, do CIRE, consubstanciava uma situação de insolvência. Não obstante, a insolvente não se apresentou à insolvência, tendo esta sido decretada a pedido de um devedor em 27-04-2015.

Verificou-se assim violação desta obrigação, a qual não foi elidida pela insolvente, como se entendeu na sentença recorrida.

Improcede, assim, integralmente, a apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida.

Sumário (artigo 663º, nº 7, do CPC):

(…)

V- DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se, a sentença recorrida.

Custas pela apelante – artigo 527º do CPC.

Évora, 14 de julho de 2020

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Lopes Barata

Maria Emília Ramos Costa

__________________________________________________

[1] cfr., entre outros, o acórdão do STJ, de 14-05-93, in CJSTJ, 93, II, p. 62 e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 0211-95, in CJ, 95, V, p. 98.

[2] cfr. Ac. STJ de 23-03-96, in CJ, 96, II, p. 86.

[3] Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 06-112012, Proc. 169487/08.3YIPRT-A.C1, relator Henriques Antunes, www.dgsi.pt.

[4] Proc. 10776/15.5T8PRT.P1, relator Manuel Domingos Fernandes, www.dgsi.pt.

[5] Processo 212/16.5T8PTL.G1, relator Afonso Cabral de Andrade, www.dgsi.pt.

[6] Cfr., ainda, Ac. do TRL, de 20-02-2020, Proc. 22311/18.9T8LSB.L1-2, relator Carlos Castelo Branco, www.dgsi. e Ac. do TRE, de 24-10-2019, Proc. 1317/09.4TBFAR-A.E1, em que fui relator, www.dgsi.pt.

[7] Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição, Almedina, pp. 736-737.

[8] Ac. do TRL, de 9-07-2014, proc. 1021/09.3T2AMD.L1.1, relator Pedro Brighton, www.dgsi.pt.

[9] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pp. 737-738.

[10] Ac. do STJ, de 8-03-2001, processo 00A3277, citado pelo Ac. do TRG, de 19-04-2018, relator José Alberto Moreira Dias, www.dgsi.pt.

[11] Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Edição, Almedina, p. 737.

[12] No processo n.º 4946/05.1TTLSB-C.L1.S1, relator António Leonel Dantas, www.dgsi.pt.

[13] Ac. do STJ, de 2-06-2020, proc. 1678/12.8TBMCN.P2.S2, relator Henrique Araújo, www.dgsi.pt.

[14] Ac. do STJ, de 6-06-2018, proc. 1092/08.0TTBRG.G1.S1, relator Chambel Mourisco, www.dgsi.pt.

[15] Ac. do TRP, de 21-01-2016, proc. 442/13.1TBVLN-C.G1, relator Miguel Baldaia de Morais, www.dgsi.pt.

[16] Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2016, 2ª Edição Revista e Atualizada, Almedina, pp. 404-405.

[17] Direito da Insolvência, 2015-6ª edição, Almedina, pp. 253-255.

[18] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª Edição, Qui Juris, p. 189.