Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
66/15.9GBSTB.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: CRIME DE PORNOGRAFIA DE MENORES
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: No despacho recorrido não se extraíram as devidas consequências da referência feita a “outra parte do seu corpo” na parte final do novo nº 8 do artº 176º do C.P..

É que parece que se pretende incluir no conceito de pornografia a representação de outras partes do corpo para além dos órgãos sexuais propriamente ditos, incluindo, portanto, os seios.

A discussão nos presentes autos deve situar-se no tempo em que inexistia definição no Cód. Penal de pornografia infantil, mas não deixou de se fazer esta referência uma vez que a introdução do novo nº 8 do artº 176º do C.P. pretendeu acompanhar os instrumentos internacionais já anteriormente existentes e, portanto, é razoável entender que a referência a “outra parte do seu corpo” já estava incluída no anterior entendimento do que era pornografia infantil.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

RELATÓRIO

O arguido TMRC foi acusado da prática de um crime de pornografia de menores agravado, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 176.º, n.ºs 1, alíneas b) e c) e 3 e 177.º, n.º 7, todos do Código Penal.

Remetido o processo para julgamento, foi proferido o seguinte despacho:

“O tribunal é competente.

*

Nos presentes autos, o MP acusou o arguido pela prática em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 176.º, n.ºs 1, alíneas b) e c) e 3 e 177.º, n.º 7, todos do Código Penal.

As circunstâncias que subjazem a tal imputação, descritas no acusatório que fixa o objecto dos autos, fundam-se em síntese, na circunstância de em data não apurada do mês de Agosto de 2015, o arguido ter encetado conversa num Chat, com MMM, nascida a … à qual enviou a fotografia de um homem desnudado, identificando-a como sendo ele próprio, e pedindo àquela o envio de fotos da mesma, desnudada, tendo esta enviado ao arguido fotos em cuecas e sutiã, e mais tarde, fotos suas só de cuecas, que o arguido veio a partilhar num perfil falso da rede social Facebook e em página de cariz pornográfico da rede social Instagram.

Apreciando:

O Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora (2010), refere a pornografia como a “representação de elementos de cariz sexual explicito, sobretudo quando considerados obscenos, em textos, fotografias, publicações, filmes ou outros suportes”.

Sem embargo da divergência conceptual de pornografia, certo é que nesse conceito conflui a ideia da mesma como material destinado a produzir excitação sexual, como um produto com representação obscena padronizada (predominantemente com imagens, mas que pode também incluir grafia, ou objectos).

Significando isto, que as imagens de nudez, só por si, não preenchem o conceito de pornografia.

Preenchê-lo-ão, quando acompanhadas de poses, grafia ou objectos que lhe atribuam a natureza de material destinado à produção de excitação sexual, de acordo com a percepção de um destinatário comum, transmutando-a numa representação obscena padronizada.

Revertendo para a acusação em apreço, constata-se que na descrição fáctica que sustenta a imputação havida, não há referência a qualquer outro segmento que não a da mera nudez (parcial).

Com efeito, o acusatório não contém factos capazes de substanciar as ditas fotos como material destinado à produção de excitação sexual, como uma representação obscena, de cariz sexual explícito.

O que naquela peça processual se faz, é extrapolar (sem que se aleguem os segmentos, dela estruturantes), da nudez (parcial), para a pornografia.

O mesmo é dizer que, tal como os factos que suportam a acusação pela alegada prática do ilícito por cuja prática se acusa foram concatenados, não se mostra descrito o tipo objectivo do crime em causa.

E sem a descrição desse tipo, como é bom de ver, não há crime que possa ser ponderado.

Nos termos previstos pelo artigo 311º/2-a) do Código do Processo Penal, quando o processo seja remetido a julgamento, sem que tenha havido instrução (como nos autos sucede) a acusação poderá ser rejeitada, se manifestamente infundada.

Sendo considerada como tal (nº 3, alínea d) do mesmo preceito normativo), aquela em que os factos narrados não constituam crime.

É o que sucede nos autos, por aquilo que se deixou exposto, quanto ao crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 176.º, n.ºs 1, alíneas b) e c) e 3 e 177.º, n.º 7, todos do Código Penal, por cuja prática se acusa o arguido.

Pelo que se rejeita a acusação deduzida, porque manifestamente infundada, quanto ao ilícito pelo qual se acusa.

Notifique.

Transitada, remeta ao arquivo.”

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Inconformado com tal despacho, o Ministério Público recorreu, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1) Em 16/11/2020, foi deduzida acusação pública contra o arguido TMRC por ter praticado, em autoria imediata (art. 26.º, 1.ª parte, do Código Penal) e na forma consumada, um crime de pornografia de menores agravado, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 176.º, n.ºs 1, alíneas b) e c) e 3 e 177.º, n.º 7, todos do Código Penal.

2) Em 11/02/2021, a Mm. Juiz proferiu despacho no qual rejeitou a acusação deduzida, por considera-la manifestamente infundada, pois os factos nela descritos, no seu entendimento, não constituem crime (art. 311.º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal).

3) Em síntese, pode ler-se no despacho recorrido a seguinte fundamentação: a palavra pornografia, conflui a ideia de material destinado a produzir excitação sexual, como um produto com representação obscena padronizada, significando isto, que as imagens de nudez, só por si, não preenchem o conceito de pornografia; só preenchê-lo-ão, quando acompanhadas de poses, grafia ou objetos que lhe atribuam a natureza material destinando à produção de excitação sexual, de acordo com a perceção de um destinatário comum, transmutando-a numa representação obscena padronizada; o acusatório não contém factos capazes de substanciar as ditas fotos como material destinado à produção de excitação sexual, como uma representação obscena, de cariz sexual explícito.

4) Consideramos que o fundamento primacial usado no despacho que rejeitou a acusação deduzida é inaplicável ao caso concreto, visto que, tratando-se do crime de pornografia de menores, a Mm. Juiz a quo lançou mão do significado da palavra pornografia inscrito no Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora (2010), olvidando o facto essencial, isto é, de se tratar de pornografia infantil.

5) A pornografia com pessoas adultas é diferente da pornografia com crianças ou jovens menores de idade, sendo, por isso, e necessariamente, a definição e as exigências de ambas diferentes.

6) O art. 2.º, al. c) do Protocolo Adicional à Convenção dos Direitos da Criança sobre o Tráfico de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia, de 2002, documento que foi a fonte do art. 176.º do Código Penal Português define pornografia infantil como sendo qualquer representação, por qualquer meio, de uma criança em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas ou qualquer representação das partes sexuais.

7) Frequentemente o termo órgão sexual refere-se por extensão a qualquer parte do corpo envolvida no jogo erótico. A lista abrangente dos órgãos sexuais inclui, portanto, o ânus e os seios (especialmente os mamilos) para ambos os sexos.

8) As fotografias que se encontram nos autos e descritas no libelo da acusação rejeitada revelam uma menor de …anos exibindo o seu corpo em biquíni, depois em cuecas e sutiã e, por fim, só em cuecas com os seus seios desnudos, sendo que esta última foi por si enviada ao arguido depois de ter sido coagida por este com a publicação na internet de todas as fotografias anteriores.

9) Cotejando os factos com a definição de pornografia infantil descrita no ponto 6, podemos concluir que algumas das fotografias enviadas pela menor ao arguido nela se integram perfeitamente.

10) Mesma que assim não se entenda, também não podemos enveredar pela conclusão a que chegou a Mm. Juiz a quo, quando referiu que as imagens de nudez enviadas pela vítima menor ao arguido, por serem desacompanhadas de “poses, grafia ou objetos que lhe atribuam a natureza material destinado à produção de excitação sexual” não são idóneas a provocar neste esta excitação sexual.

11) De facto, não podemos olvidar que foi o arguido que pediu à menor, mesmo depois de saber a sua idade, as fotografias em biquíni, sutiã e cuecas e semidesnudada. Ora, se tais fotografias não lhe produzissem excitação sexual ou satisfizessem os seus desejos libidinosos não lhas pediria ou exigiria, através de ameaça. Mais, se tais fotografias não tivessem cariz pornográfico o arguido nunca as publicitaria numa página da rede social Instagram – … – conotada com pornografia, como fez (todos estes factos se encontram descritos na acusação).

12) O conceito de pornografia usado pela Mm. Juiz a quo é tão redutor, minimalista e projetado para pessoas adultas que até parece que não teve em consideração o bem jurídico protegido pela norma incriminadora que reside na proteção da personalidade em desenvolvimento dos menores, embora não deixando de atentar, ainda que remotamente (dada a sua incipiente fase de formação de personalidade e de carácter), na sua autodeterminação sexual.

13) Ao rejeitar a acusação deduzida por a considerar manifestamente infundada, a Mm. Juiz do tribunal a quo violou o disposto nos artigos 176.º, n.ºs 1, als. b) e c) e 3 e 177.º, n.º 7, ambos do Código Penal e 283.º, n.º 3, al. b), 312.º e 313.º, todos do Código de Processo Penal.

Em conformidade, deverão V. Exas. revogar o despacho recorrido e ordenar a sua substituição por outro que receba a acusação pública deduzida contra o arguido, TMRC

Decidindo, assim, farão V. Exas. justiça!”

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O arguido não respondeu ao recurso.

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Neste tribunal da relação, o Exmº P.G.A. emitiu o seguinte parecer (na parte que interessa):

“(…)

3. Creio dever o recurso, ante a argumentação e fundamentação que o norteiam, ser julgado procedente.

A atual redação do art. 311º do CPP foi essencialmente fixada pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, que alterou o n.º 1, modificou a al. b) do n.º 2 (posteriormente modificada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, como mera consequência da alteração introduzida na numeração do art. 285º, onde o n. º 3 passou a ser o n. º 4, e aditou o n.º 3.

Passou então (1998) o normativo a fazer menção expressa à obrigatoriedade de o juiz se pronunciar sobre nulidades (n.º 1), aditou-se a possibilidade de não aceitação da acusação do Ministério Público nos moldes já previstos relativamente à acusação do assistente (al. b) do n.º 2) e fixou-se o conceito de acusação manifestamente infundada, por via da enumeração taxativa das situações em que a acusação como tal deve ser considerada (n.º 3).

Dispõe o preceito em causa que

"1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.

2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respetivamente.

3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

d) Se os factos não constituírem crime.

No que ao objeto do recurso importa, para o juiz poder rejeitar a acusação por manifestamente infundada, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artº 311º do CPP, é necessário que os factos não constituam crime.

Ora, como mais ou menor pudor, maior ou menor grau de moralidade, do que a lei penal substantiva não cuida, sobretudo desde a reforma de 1995, os tipos legais que integram a Secção II do Capítulo V do Código Penal - crimes contra a autodeterminação sexual - têm subjacente a defesa de uma específica liberdade sexual, a do menor, e não a liberdade sexual.

Especificidade que advém, desde logo, da idade, que conduz à censurabilidade da conduta, resulte ela de práticas coativas ou leve o concurso de comportamentos voluntários do menor, porque são suscetíveis de tesar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade.

A punição de tais condutas estende-se, como no caso apreciando, à utilização de menores na feitura/produção de material pornográfico e à sua exposição ou divulgação a qualquer título, e radica na opção, clara, de proteger as crianças de serem usadas como objetos sexuais.

É indiciariamente manifesto e patente (independentemente da sindicância dos indícios da acusação, que ao juiz, nesta fase, está vedada), e que a acusação narra, que a menor (o seu corpo, semidesnudado) foi utilizada pelo arguido na produção e divulgação de material pornográfico. Logo, e indiciariamente, os factos narrados, à luz do interesse legalmente protegido, consubstanciam o crime que lhe é imputado.

A leitura que a senhora Juiz a quo fez da acusação deduzida foi uma leitura superficial e enviesada, incidindo sobre uma realidade que não lhe foi colocada, qual fosse, a que envolvesse somente adultos.

Só uma leitura com aquelas caraterísticas (lhe) permitiu sustentar que os factos assacados ao arguido não constituem crime.

Daí que outra solução não se perfile como correta que não seja a de conceder provimento ao recurso, determinando-se, consequentemente, a substituição do despacho recorrido por outro que receba a acusação deduzida.”

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Cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada resposta ao parecer.

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APRECIAÇÃO

A única questão que importa apreciar é a de saber se a acusação formulada pelo Ministério Público deve ser considerada manifestamente infundada nos termos do artº 311º, nº 3, al. d), do C.P.P. e, consequentemente, se bem andou a decisão recorrida ao rejeitá-la nos termos do nº 2, al. a), do referido preceito legal.

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A acusação em causa, na parte que interessa, é do seguinte teor:

“MMM nasceu em ….

Em data não concretamente apurada do mês de agosto de 2015, o arguido, identificando-se como J, encetou conversa com MM através do chat associado à rede social Instagram.

Durante as conversações mantidas, o arguido e MM trocaram os números de telemóvel e esta disse-lhe a sua idade.

A partir desse momento, o arguido e MM passaram a trocar mensagens pela aplicação WhatsApp.

O arguido, para o efeito, utilizava o número de telemóvel ….

Em data não concretamente apurada, o arguido pediu a MM que lhe enviasse umas fotografias em biquíni; esta aceitou e enviou.

Depois o arguido enviou a MM uma fotografia de um homem desnudado, identificando-a, no entanto, como sendo ele próprio.

Em troca, o arguido pediu a MM que lhe enviasse umas fotografias também desnudada.

Por ter vergonha, MM enviou ao arguido fotografias suas em cuecas e sutiã.

Volvidos alguns dias, o arguido pediu a MM que lhe enviasse fotografias completamente nua.

Sucede, porém, que MM se recusou a fazê-lo.

O arguido insistiu enviando várias mensagens escritas a pressionar, mas MM não cedeu.

Em seguida, o arguido enviou uma mensagem a MM com o seguinte teor: “agora sua vaca ou me mandas fotos como eu quero ou então eu vou publicar as outras na minha página”.

Para evitar a exposição das suas fotografias íntimas naquela rede social, MM cedeu à imposição do arguido e enviou-lhe fotografias suas só em cuecas.

Não satisfeito, o arguido pediu a MM para lhe enviar fotografias completamente nua, sendo que esta se recusou.

De imediato, o arguido enviou-lhe uma mensagem escrito com o seguinte teor: “então já sabes o que vai acontecer”.

Em seguida e com vista a não ser mais importunada, MM bloqueou o perfil do arguido na sua rede social Instagram e o contacto telefónico deste da aplicação WhatsApp.

Sucede, porém, que, dias mais tarde, o arguido publicou as fotografias de MM que tinha em sua posse na sua página do Instagram e identificou-a.

Como a página foi denunciada, o arguido voltou a publicar as mesmas fotografias no seu perfil falso da rede social Facebook com o nome “…” e na página de cariz pornográfico da rede social Instagram “…”.

O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado de aliciar MM, à data menor de … anos, através de ameaça grave, a tirar a ela própria fotografias pornográficas e depois enviar-lhas, satisfazendo em exclusivo os seus desejos libidinosos.

O arguido agiu ainda de forma deliberada, livre e consciente com o propósito alcançado de distribuir, divulgar e disponibilizar por meio informático, nomeadamente através das redes sociais, todas as fotografias de cariz pornográfico da menor MM que tinha em sua posse.

O arguido, ao proceder da forma supra descrita, sabia que atentava de forma grave e condicionava a liberdade de autodeterminação sexual de uma menor de … anos, bem como a integridade psicológica e emocional desta, prejudicando gravemente o seu livre desenvolvimento psicossexual, resultado que representou e conseguiu.

O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.”

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Importa em primeiro lugar referir que não está em causa a apreciação de prova/indícios suficientes para se concluir ter o arguido praticado, ou não, os factos que lhe são imputados.

Com efeito, como bem refere o Sr. Cons. Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar e outros, 3ª edição, pág. 995, em anotação ao artº 311º do C.P.P.: “É inequívoco, pois, que após o aditamento do nº 3 perdeu sentido a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão nº 4/1993, de 93.02.17, publicado no DR I-A, nº 72/1993, de 93.03.06, segundo a qual: «A alínea a) do nº 2 do artigo 311º do Código de Processo Penal inclui a rejeição da acusação par manifesta insuficiência de prova indiciária»”

No mesmo sentido: Paulo Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição, pág. 816, nota 6 e Ac. da Rel. de Lisboa de 16/9/2019.

Em segundo lugar, temos para nós como certo que o Juiz no momento processual de apreciação da acusação não a pode receber alterando a qualificação jurídica que é feita nela.

Só em sede de julgamento, e utilizando o previsto no artº 358º, nº 3, do C.P.P., é que o poderá fazer, desde que, como é evidente, os factos provados já estivessem contidos na acusação/pronúncia.

Com muito bem faz notar Paulo Albuquerque, ob. cit., pág. 824, nota 12, o artº 339º, nº 4, do C.P.P. dá clara indicação que a discussão sobre a qualificação jurídica dos factos só pode ser feita no julgamento “independentemente da qualificação jurídica dos factos feita na acusação (pública ou particular) ou, havendo instrução, pela pronúncia”.

Neste mesmo sentido: ac. da Rel. do Porto de 9/9/2015, ac. da Rel. de Lisboa de 21/11/2006, ac. da Rel. de Guimarães de 22/6/2015, e Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, pág. 643.

Feitas estas duas observações, vejamos então os fundamentos da decisão recorrida para ter considerado que os factos descritos na acusação não constituem crime.

Ora, é pacífico que a consideração de que os factos contidos na acusação não constituem crime está reservada para casos de evidência de que tais factos não constituem nem o crime que é imputado na acusação, nem qualquer outro.

Tem que ser uma evidência, o que não é o caso dos autos.

Como refere o Sr. Cons. Oliveira Mendes, ob. cit., pág. 995, é necessária que haja uma “clara inexistência de objecto”.

Também no dizer do ac. da Rel. de Lisboa de 16/9/2019 tem que ser “inequívoco e incontroverso que os factos nela descritos não constituem crime”.

O mesmo no ac. da Rel. de Guimarães de 25/2/2019: “A rejeição da acusação manifestamente infundada por os factos não constituírem crime, tem que ser absolutamente incontroversa, sob pena de violação do princípio do acusatório. Um pré-juízo divergente formulado pelo juiz e apoiado na análise do contexto em que ocorreram os factos, não preenche tal requisito”.

Também aqui tem especial relevância a seguinte referência feita por Paulo Albuquerque, ob. cit., pág. 817, nota 7: “… o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante (nestes exactos termos, acórdão do TRC, de 13.10.2010, in CJ, XXXV, 4, 49)”

Ora, pelas razões que a seguir se indicarão, a conclusão de que os factos descritos na acusação não constituem o crime de pornografia de menores que é imputado ao arguido está muito longe de ser incontroversa.

Por outro lado, sempre se poderá colocar a questão, em momento processual posterior, como acima já se referiu, se os mesmos factos poderão qualificar-se como qualquer outro crime, designadamente devassa da vida privada (artº 192º, nº 1, al. b), do C.P.) ou coacção (artº 154º, nº 1, do C.P. – atente-se que o resumo feito no despacho recorrido dos factos constantes na acusação omite facto deveras relevante para este efeito: “Em seguida, o arguido enviou uma mensagem a MM com o seguinte teor: “agora sua vaca ou me mandas fotos como eu quero ou então eu vou publicar as outras na minha página”.

Para evitar a exposição das suas fotografias íntimas naquela rede social, MM cedeu à imposição do arguido e enviou-lhe fotografias suas só em cuecas.)”

Uma coisa é certa: não é de forma alguma incontrovertido que os factos descritos na acusação não constituam qualquer crime.

Concretamente quanto ao crime de pornografia de menores:

Concede-se que nem sempre é fácil distinguir entre pornografia, erotismo ou liberdade de expressão artística.

Mas uma coisa é certa: não é pela definição de pornografia existente em qualquer dicionário que se deve concluir de uma forma ou de outra.

A questão é bem mais complexa do que isso e merece ser analisada mais profundamente.

Do que se trata é de saber como preecher o conteúdo de “pornografia” para efeitos do artº 176º do C.P.P.. (o realce é propositado para se compreender que se trata do artº 176º do C.P. e não de definir pornografia para qualquer outro efeito).

E o artº 176º do C.P. tem que ver com pornografia de menores e não com qualquer outra.

Parece ser pacificamente entendido que tal como acontece relativamente ao crime de abuso sexual de crianças previsto no artº 171º do C.P., o bem jurídico protegido pela incriminação prevista no artº 176º do C.P. tem que ver não apenas com a liberdade e autodeterminação sexual, mas também, e principalmente, com o livre desenvolvimento da personalidade dos menores, incluindo nesta a vertente sexual e social.

Como refere Ana Rita Alfaiate, Relevância Penal da Sexualidade dos Menores, pág. 112: “O bem jurídico aqui protegido é, mais uma vez, quanto a nós, a infância e juventude” e mais adiante “… é supra individual o bem jurídico protegido, mas enquanto espaço de concretização das diferentes manifestações de liberdade sexual”.

Num sentido um pouco mais restritivo, José Mouraz Lopes, Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual no código penal, 4ª edição, pág. 152: “A criminalização da actuação e utilização de menores em material pornográfico assenta no princípio de que é a autodeterminação sexual dos menores que ainda é posta em causa com tais condutas”.

Deveras relevante para o caso em análise é o que referem Pedro Albergaria e Pedro Lima, O crime de detenção de pseudopornografia infantil – evolução ou involoção, revista Julgar nº 12, pág. 207: “… a representação de um menor em contexto pornográfico encerra potencial danoso para a maturação psicológica, desde logo possível fonte de perturbações em termos de auto-estima, isto por um lado, mas também e sobretudo, por outro, como facto prejudicial á sua “honorabilidade sexual”, isto é, à sua reputação sexual, enquanto condição de um normal desenvolvimento de relações sexuais, em particular no plano sexual”.

É precisamente isto que está aqui em causa: a divulgação pelo arguido de fotografia da menor só em cuecas, pode ser encarada como contexto pornográfico no sentido de que põe em causa a “honorabilidade sexual” da mesma e o que pretende proteger é o seu desenvolvimento são, sem “exposição” que o trantorne.

Pro outro lado, nota-se alguma evolução no conceito de pornografia infantil previsto em instrumentos internacionais que obrigam o Estado Português e que não podem ser olvidados para a análise do caso concreto, como bem refere o recorrente.

Com efeito, o artº 2º, al. c) do protocolo facultativo à convenção sobre os direitos da criança relativo à venda de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil, de 20/11/1989, dispõe que:

“Artigo 2.º

Para os efeitos do presente Protocolo:

a) (…)

b) (…)

c) Pornografia infantil designa qualquer representação, por qualquer meio, de uma criança no desempenho de actividades sexuais explícitas reais ou simuladas ou qualquer representação dos órgãos sexuais de uma criança para fins predominantemente sexuais.”

Por seu turno o artº 2º, al. c), ii), da directiva 2011/93/EU do parlamento europeu e do conselho de 13/12/2011 (a qual substituiu a decisão-quadro 2004/68/JAI do conselho de 22/12/2003) define pornografia infantil como “Representação dos órgãos sexuais de crianças para fins predominantemente sexuais.

É certo como refere Ana Rita Alfaiate, ob. cit. pág, 111: “A Decisão-Quadro 2004/68 JAI, do Conselho, refere a propósito do conceito de pornografia infantil, que é considerado material pornográfico todo aquele que descreva ou represente visualmente “crianças reais , pessoas reais com aspecto de crianças e imagens realistas de crianças não existentes envolvidas em comportamentos sexualmente explícitos ou entregando-se a tais comportamentos, incluindo a exibição lasciva dos seus órgõs genitais ou partes púbicas.”

Os seios podem não ser classificados de órgãos sexuais propriamente ditos, mas ninguém negará que os seios, principalmente os femininos, têm nítida conotação sexual e fazem parte do que há de mais íntimo no corpo de uma rapariga de … anos.

É por isso que no acórdão da relação do Porto de 7/6/2017 se decidiu:

“Integra o crime de pornografia de menores p.p. pelo artº 176º nº 6 CP o recebimento e guarda de fotos de jovem de 14 anos de várias partes do seu corpo sem vestuário enviadas pela própria a terceiro através do Facebook, e que as reenviou a outrem que as recebeu e visualizou.”

É certo que resulta da fundamentação do referido acórdão que as partes do corpo em causa incluíam os órgãos genitais. Mas incluíam também os seios.

No dizer da decisão recorrida era relevante que a fotografia fosse “acompanhada de poses, grafia ou objectos que lhe atribuam a natureza de material destinado à produção de excitação sexual, de acordo com a percepção de um destinatário comum, transmutando-a numa representação obscena padronizada”.

Para além de ser muito discutível a referida afirmação, no caso trata-se de uma menor com … anos, o que torna inexigível qualquer “acompanhamento” da fotografia seja do que for e, por outro lado, face à matéria descrita na acusação, não se vislumbra que o objectivo do arguido não fosse a sua excitação sexual. Tanto assim foi que sucessivamente foi exigindo à menor fotografias com crescente nudez.

Como bem refere o recorrente “Fotografias que mostrem os seios, incluindo, naturalmente os mamilos, estão, em regra, conotadas com a sexualidade feminina, acompanhadas ou não de poses, grafia ou objetos. Tratando-se de uma menor de idade, não podemos exigir-lhe que as suas “nudes” sejam acompanhadas de tais posições, linguagem, escrita ou objetos para integra-las no conceito de pornografia infantil.”

Não esqueçamos, repete-se, que se está a discutir o conceito de pornografia infantil (menores de 18 anos) e não o conceito de pornografia relativa a adultos, já com a personalidade completamente formada.

Perante tudo o referido, não é evidente e incontroverso que os factos descritos na acusação não constituam o crime que é imputado ao arguido, embora se conheça jurisprudência em apoio dessa tese (por exemplo: ac. do STJ de 22/2/2018 e ac. da Rel. de Coimbra de 24/4/2018).

Uma última nota: os factos em causa nos autos ocorreram num momento – 2015 – em que o Cód. Penal não continha qualquer definição de pornografia infantil, o que só veio a ocorrer com a Lei n.º 40/2020, de 18/8, ao introduzir um n.º 8 ao artigo 176º do CP, com a seguinte redacção:

«Para efeitos do presente artigo, considera-se pornográfico todo o material que, com fins sexuais, represente menores envolvidos em comportamentos sexualmente explícitos, reais ou simulados, ou contenha qualquer representação dos seus órgãos sexuais ou de outra parte do seu corpo.»

No acórdão da relação e Coimbra de 11/11/2020 já se faz apelo ao referido nº 8 do artº 176º do C.P., incluindo referência à exposição de motivos do Projecto de Lei n.º 187/XIV/1ª, que esteve na origem da citada Lei n.º 40/2020, nos seguintes termos: “A exploração sexual de crianças, nomeadamente para finalidades ligadas à pornografia e outras formas de abuso sexual, incluindo os actos praticados através de sistema informático ou cometidos de forma dispersa por diferentes jurisdições, colocam gravemente em perigo a saúde e o desenvolvimento psicossocial dos menores abusados, comprometendo a sua vida futura. Trata-se de violações de direitos particularmente graves e que abalam valores fundamentais inerentes à protecção do ser humano e da própria sociedade, nomeadamente a confiança no Estado e nas instituições públicas, sobre os quais recai um dever geral de protecção.”

O referido ac. da rel. de Coimbra de 11/11/2020, está sumariado, na parte que interessa, nos seguintes termos:

“V – Vista a definição contida no n.º 8 do artigo 176.º do CP, relativamente a menores, o cariz pornográfico tem a ver com qualquer material que, com fins sexuais, descreva as crianças ou as represente visualmente envolvidas em comportamentos sexualmente explícitos, reais ou simulados, ou contenha qualquer representação dos seus órgãos sexuais ou de outra parte do corpo.

VI – Perante tal definição, a obtenção, pelo arguido, de uma fotografia revelando os seios de uma menor, que esta, via internet, lhe enviou, e a posterior partilha, pelo mesmo, com uma amiga da menor, desse registo de imagem, não consubstanciam o tipo objectivo de crime previsto no artigo 176.º, n.º 1, als. b) e c), do CP., porque as situações descritas traduzem apenas uma mera exposição corporal, de cariz não pornográfica.”

Com o devido respeito pela opinião expressa no referido acórdão, julga-se que não se extraíram as devidas consequências da referência feita a “outra parte do seu corpo” na parte final do novo nº 8 do artº 176º do C.P..

É que parece que se pretende incluir no conceito de pornografia a representação de outras partes do corpo para além dos órgãos sexuais propriamente ditos, incluindo, portanto, os seios.

A inclusão de “outra parte do seu corpo” não fazia parte do projecto-lei que foi apresentado na assembleia da república, antes tendo sido acrescentado por iniciativa do partido socialista aquando da discussão na especialidade. Daí que nenhuma referência lhe seja feita na exposição de motivos.

A discussão nos presentes autos deve situar-se no tempo em que inexistia definição no Cód. Penal de pornografia infantil, mas não deixou de se fazer esta referência uma vez que a introdução do novo nº 8 do artº 176º do C.P. pretendeu acompanhar os instrumentos internacionais já anteriormente existentes e, portanto, é razoável entender que a referência a “outra parte do seu corpo” já estava incluída no anterior entendimento do que era pornografia infantil.

De tudo o até agora exposto resulta que:

a) - admitem-se dúvidas do ponto de vista do direito penal sobre se o comportamento do arguido consubstancia o crime que lhe é imputado;

b) - precisamente por causa dessas dúvidas e/ou da possibilidade de o enquadramento jurídico dos factos poder vir a ser diverso, do ponto de vista processual penal, o despacho recorrido é carente de acerto pois que não se pode considerar que os factos descritos na acusação não constituem crime para efeitos do artº 311º, nº 3, al. d), do C.P.P..

Assim sendo, deve a acusação ser recebida nos seus precisos termos, sem prejuízo de tudo o resto que no momento processual oportuno venha a ser entendido.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar procedente o recurso, devendo, em consequência, o despacho recorrido ser substituído por outro que receba a acusação nos seus precisos termos.

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Sem tributação.

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Évora 13 de Julho de 2021

Nuno Garcia

António Condesso