Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
125/15.8GFELV-A.E1
Relator: MARIA ISABEL DUARTE
Descritores: ARGUIDO ANALFABETO
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 11/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – É obrigatória a assistência de defensor em qualquer acto processual, com excepção da constituição de arguido, nos casos em que o arguido é analfabeto, sob pena de nulidade insanável.
II – Não se mostra verificada essa situação de analfabetismo se, para além de em momento algum do processo, anteriormente à audiência de julgamento, ter sido alegado ou documentado o analfabetismo do arguido, se constata, por um lado, que este foi notificado a 21.12.2015 para comparecer no posto da GNR a fim de ser interrogado, interrogatório esse que ocorreu no dia 05.01.2016, tendo declarado ao OPC duvidar se ia assinar ou não os “papéis” que lhe apresentaram, uma vez que o que ali se dizia não correspondia a nenhum facto que o mesmo tinha praticado e, por outro lado, que o arguido já foi titular de carta de condução.
Decisão Texto Integral: Proc. N.º 125/15.8GFELV-A.E1
Reg. N.º 1036

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. Nos autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular, n.º 125/15.8GFELV, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre - Juízo Local Criminal de Elvas, foi interposto o recurso, pelo arguido, BB, do despacho proferido no decurso da sessão da audiência de discussão e julgamento, de 07 de Junho de 2017, que considerou como não verificada a nulidade insanável, invocada pelo recorrente, referente à obrigatoriedade de assistência de defensor em sede de constituição e interrogatório de arguido, pelo OPC, determinando o prosseguimento dos autos.

2. As conclusões da motivação de recurso, são as seguintes:
”1. Foi proferido despacho judicial, a 07 de Junho de 2017, no Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, Juízo Local Criminal de Elvas, de indeferimento, relativamente a requerimento apresentado pela defesa, em acta, no qual se arguia a nulidade insanável, nos termos dos Arts. 119, alínea c) e 64º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal, por via da condição de analfabetismo declarado espontaneamente pelo Recorrente, BB, porquanto, este não se fazia acompanhar de defensor, em sede de interrogatório, junto do respectivo OPC, desconhecendo tal obrigatoriedade à data;
2. Tal nulidade, na sequência de promoção da Digna Senhora Magistrada do Ministério Público, tendo não obstante admitido a sua existência, foi por si absolutamente desvalorizada desde logo, salvo elevadíssimo respeito;
3. Por seu turno, o Tribunal a quo suporta e sufraga o seu despacho, não fundamentado, aliás, que ordena o prosseguimento da Audiência de Discussão e Julgamento, em sede da literacia do Recorrente, tendo por base, uma simples fotocópia também ela simples, de uma licença de condução caducada, de que este havia sido titular, que fez juntar posteriormente ex officio aos autos, no início da segunda sessão, a 07 de Junho de 2017;
4. Foi requerido pela defesa, também em acta, a submissão do arguido Recorrente a perícia científica forense, no sentido de se aferir da sua literacia, promovendo, desde logo, a Digna Senhora Magistrada do Ministério Público pela ineficácia desta requerida perícia, porquanto o arguido seria capaz de enganar facilmente o perito nomeado (termos da responsabilidade da defesa mas que reproduzem o conteúdo, latitude e alcance da referida promoção, conforme melhor se alcança da gravação da Audiência de Discussão e Julgamento, não reproduzida nem transcrita em acta, mas para ela remetendo),
5. O Tribunal recorrido sufragou a douta promoção, indeferindo o requerido;
6. A M.ma Juiz a quo, face ao elemento junto oficiosamente aos autos (cópia simples de licença de condução caducada, de que havia sido há anos titular o Recorrente), conclui, tout court, que o arguido não é analfabeto;
7. Para o douto Tribunal a quo, implícita mas obviamente, teria o Recorrente logrado «enganar» o Tribunal (expressão nossa, jamais proferida pelo Tribunal) ao invocar essa sua situação;
8. No entendimento do Tribunal a quo, a titularidade pretérita de uma licença de condução seria, pois, elemento suficiente para afastar de todo e imediatamente a condição de analfabetismo do Recorrente;
9. Entende, o arguido Recorrente, não serem suficientes os pressupostos tidos pelo Tribunal em consideração para afastar a arguida nulidade insanável da aludida diligência e consequente processo na sua plena amplitude em superveniência;
10. O arguido declarou peremptoriamente ser analfabeto, não saber ler nem escrever, portanto, mas apenas assinar, apesar de ter frequentado a antiga 2ª classe;
11. Mais declarou que, quando o senhor agente da G.N.R., do Posto de …, lhe exibiu o auto, contendo as suas declarações, o informou que não ia assinar «uma coisa» cujo conteúdo e teor desconhecia por ser analfabeto, oferecendo resistência a tal subscrição, mas tendo porém sido ameaçado se o não fizesse;
12. O senhor agente, segundo declarou, tê-lo-á «obrigado», a assinar tal documento, mais o ameaçando de que se o não fizesse «levaria mais»;
13. As declarações prestadas e lavradas em auto de interrogatório, segundo declarou o Recorrente, também não lhe foram lidas;
14. As declarações do arguido, com gravíssimo impacto, aliás, do ponto de vista do escrupuloso cumprimento do formalismo jurídico-processual penal e da salvaguarda dos mais elementares direitos penais e constitucionais que ao Recorrente assistem, enforma um vício insanável no processo com o qual não pode conformar-se;
15. Tendo em conta que, consultados os autos, se verifica não ter o arguido sido acompanhado de defensor no âmbito do interrogatório prestado perante OPC (Posto da GNR de …), o que foi objecto de requerimento da defesa, que suscitou e arguiu a nulidade (insanável) da diligência, com todas as consequências legais subjacentes;
16. Perante tal, o douto Tribunal a quo, interrompeu os trabalhos a 08 de Maio e, em 07 de Junho de 2017 (data da segunda sessão), declarou reaberta a Audiência e retomou, assim, os trabalhos, não proferindo qualquer despacho fundamentado, a saber. Sem mais!;
17. Fez juntar aos autos uma fotocópia simples de uma carta de condução caducada, cuja titularidade era, de facto, do arguido Recorrente, mas não lha exibindo sequer, sendo certo que a defesa não se opôs a tal junção e prescindiu também do prazo de vista;
18. O Tribunal recorrido partiu de um falso pressuposto, ressalvado devido respeito, para si lógico e «matemático-jurídico» tendo como conclusão de que quem detém ou deteve uma licença de condução sabe, necessária e obrigatoriamente, ler e escrever;
19. Conclusão, aliás, no modesto entendimento do Recorrente, absolutamente errada e desprovida de fundamento com suficiência bastante que lhe imprima e ofereça suporte jurídico e consubstancie uma certeza factual inabalável;
20. Não tendo, como aludido, interpelado o arguido sobre tal matéria, exibindo-lhe o documento (cópia simples da sua carta de condução caducada), com o qual não foi confrontado, a fim de aferir se, de facto, lhe era pelo menos familiar tal documento e exigir esclarecimentos relativamente à titularidade de uma carta de condução, embora antiga e caducada, em face das suas declarações no que ao seu analfabetismo concerne;
21. O Tribunal a quo, deveria ter pedido, salvo melhor entendimento e elevado respeito, ao arguido Recorrente, que explicasse como se afirmava analfabeto «hoje», havendo sido portador e titular de uma carta de condução há anos, sem, contudo, o ter feito e concluindo pela literacia (não analfabetismo) do Recorrente peremptoriamente;
22. O despacho proferido pela M.ma Juiz a quo, objecto do presente Recurso, que desvalorizou as declarações do arguido Recorrente nesta latitude processual e permitiu a continuação da Audiência de Discussão e Julgamento, carece de qualquer fundamentação;
23. Sendo que, no modesto entendimento do Recorrente, possuir, ou ter possuído, um título de condução válido, não pode conduzir à ideia sumária mas conclusiva de que alguém sabe ler e escrever!;
24. Nenhum Tribunal português, salvo devido respeito, poderá assim concluir taxativamente;
25. O Tribunal a quo, ora recorrido, assim concluiu desde logo, com certeza, não considerando sequer a dúvida acerca do analfabetismo declarado pelo Recorrente, sem fundamentar o seu douto despacho;
26. Ora, é consabido que existem em Portugal, sobretudo em indivíduos de etnia cigana, mas não apenas, milhares de analfabetos possuidores e titulares de carta de condução, independentemente da legalidade e legitimidade da forma como a hajam obtido, sendo certo que, nesta sede, tudo é possível;
27. O Tribunal recorrido escamoteou, por esta forma, com elevadíssimo respeito, os mais elementares direitos do arguido Recorrente, ao não apurar, em rigor, da sua situação de analfabetismo (ou não), dando como facto adquirido afirmativamente aquela sua não condição;
28. A dúvida, relativamente à literacia do arguido, para a defesa, persiste e foi invocada oportuna e tempestivamente;
29. E, por essa mesma razão de facto e direito, o Recorrente requereu perícia forense, o que lhe foi negado, igualmente, pelo Tribunal mediante despacho de indeferimento;
30. Se, hipoteticamente, o arguido ora Recorrente houvesse sido condenado pelos factos de que vem acusado, que aliás nega ter perpetrado, não fosse interposto o presente Recurso e, mais tarde, se dissipassem as dúvidas sobre a sua situação em sede do que nos ocupa e se verificasse ser, efectivamente, analfabeto, como alega, seríamos confrontados com mais um caso de Justiça não conseguida;
31. Outrossim, tem de se concluir que, quando o arguido se proclamou analfabeto, seria dever do Tribunal recorrido conhecer desse vício oficiosamente e apurar da plenitude da sua existência e não a requerimento porquanto as nulidades insanáveis são absolutas, não precludem e, em regra, deverão ser reconhecidas ex offício pelo juiz ou Tribunal;
32. E esta específica nulidade, a existir, como existe para a o Recorrente, na sua génese, inquina todo o processo, designadamente em relação a todos os actos posteriores e pretéritos praticados conforme melhor se colhe do preceituado no Art. 119º, do Código de Processo Penal porque o acto praticado, que é nulo absolutamente, sem suprimento possível portanto, também é ineficaz em sede da relação processual, causada pela não observância da lei, sendo que o processo, neste segmento processual encampa determinadas solenidades para as quais também a lei reserva formalidades com a finalidade de se garantir a realização plena do devido processo legal e consequente justiça;
33. E esta matéria «acolhe berço constitucional», em decorrência de um processo penal, com todas as garantias de defesa e como sanção para a violação de princípios constitucionais, com interesse no processo penal;
34. E é essa inconstitucionalidade, referida supra, que também se invoca ora;
35. Refira-se em conclusão, modesta e humildemente perante V. Exas., que a nulidade absoluta é um conceito unitário que assume um conteúdo negativo, isto é, significa uma não conformidade entre o acto praticado e o seu paradigma normativo e, destarte, actos processuais desta espécie, por força de graves desconformidades face ao formalismo penal, são contrários à ordem jurídica e por ela terão de ser duramente censurados;
36. Existe, no caso vertente, uma forma de qualificar a actividade processual penal, promovida pelo Tribunal recorrido, que exprime as desconformidades entre o acto praticado e as respectivas disposições legais;
37. Porque o acto inválido consubstanciado na aludida nulidade insanável mais não significa que os trâmites estabelecidos foram violados por via e em directa consequência da prática de uma diligência com requisitos impostos por lei mas, desta vez, sem a observância das respectivas formalidades verificando-se, in casu, uma clara desconformidade entre o acto praticado e a respectiva norma jurídica violada, concluindo-se pela sua invalidade insuprível;
38. Decorre explicitamente do preceituado no Art. 119º do Código de Processo Penal e demais leis do processo, que o elenco das nulidades absolutas tem natureza taxativa sem sanação possível e que, como tal, receberam a cominação expressa de nulidade insanável.
Termos e fundamentos porque deverão V. Exas. revogar o despacho recorrido e, em consequência, decretar a nulidade da diligência (interrogatório do arguido Recorrente analfabeto, sem a presença de defensor), vício jurídico verificado no decorrer do processo, em sede de inquérito policial, decretando a nulidade do Processo Penal conceituada in casu como defeito jurídico que torna inválido ou destituído de qualquer valor ou eficácia jurídica o acto supra referido e, em consequência, todo o processo;
Caso assim não entendam V. Exas., no que respeitosamente não se concede, deverá ser ordenado que o Recorrente se submeta a perícia forense, como requerido pela defesa mas indeferido pelo Tribunal a quo, tendo em vista o apuramento da sua verdadeira situação em sede do seu real analfabetismo.
Decidindo, assim, farão V. Exas”.

3. O Ministério Público, junto do tribunal “a quo”, apresentou a sua resposta, concluindo:
“1.º O arguido não fez saber ao OPC que o mesmo não sabia ler, não cabendo ao OPC, sem outros elementos que assim o façam antever, adivinhar das habilitações literárias do recorrente.
2.º Nesta sede, e na senda do entendimento do Tribunal da Relação de Évora, de 02.06.2015, proferido no âmbito do processo 361/13.1GBCCH.E1, temos que “…o determinante tem a ver com o desconhecimento, dessa situação de analfabetismo, por parte da autoridade policial que interceptou o arguido e elaborou o aludido expediente e os procedimentos processuais subsequentes.”
3.º O arguido foi notificado a 21.12.2015 para comparecer no posto da GNR a fim de ser interrogado, interrogatório esse que ocorreu no dia 05.01.2016 (fls. 81), pelo que não foi confrontado com uma situação inesperada, para a qual o mesmo não tivesse ideia de que iria ocorrer.
4.º Por outro lado, o arguido já havia sido anteriormente constituído naquela qualidade, sujeito a TIR, sem que tenha, até ao momento da audiência de discussão e julgamento, dito que não sabia ler, nem escrever, criando no OPC a aparência precisamente do contrário, motivo pelo qual entendemos que era ao arguido competia elucidar as autoridades policiais do facto de não saber ler nem escrever o que, não demonstrou de todo ter feito no caso dos autos.
5.º Posto que, entendemos que não existiu no caso dos presentes autos a verificação da nulidade insanável que vem o recorrente arguir.
6.º Ainda que assim não se considere, o que mera cautela se perspectiva, sempre se dirá que a consequência da mesma fica limitada àquele acto em concreto, tendo o arguido, ora recorrente, tido a possibilidade de exercer o contraditório no momento em que foi deduzida a acusação podendo ter lançado mão da fase instrutória, e bem assim quando notificado do despacho que designou data para a realização da audiência de julgamento, altura em que poderia ter apresentado contestação, não existindo efeitos negativos nas condições de exercício do direito de defesa, pelo que a arguição da referida nulidade não invalida o demais processado.
7.º Tudo ponderado, temos que nenhuma censura merece a decisão recorrida, devendo improceder o recurso interposto pelo arguido.
Contudo, V. Exas. Farão Justiça.

4. O MºPº, neste Tribunal da Relação, emitiu parecer, concluindo:
Analisados os fundamentos do recurso, acompanhamos a posição do Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1 a Instância, aderindo-se à correcta e muito bem fundamentada argumentação oferecida, que se subscreve e aqui se dá por transcrita, na sua resposta à Motivação e Conclusões do recurso apresentado pelo arguido BB.
Sem necessidade de outros considerandos, por se mostrarem despiciendos,
É parecer do Ministério Público que o Recurso interposto deve ser julgado totalmente improcedente.

5. Foi cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP.

6. Foram colhidos os vistos legais.

7. Cumpre decidir


II - Fundamentação
2.1 - O teor do despacho recorrido, é o seguinte:
O Sr. BB já possuiu carta de condução.
Decidindo, relativamente quanto á nulidade arguida pela defesa do arguido, sempre se dirá o seguinte:
Em primeiro lugar, do próprio teor das declarações do arguido, em sede de audiência de discussão e julgamento, consta a afirmação de que perante os “papéis” que lhe foram apresentados pelo OPC, o mesmo referiu que duvidava de ir assiná-los, ou não, uma vez que o que ali se dizia não correspondia a nenhum facto que o mesmo tinha praticado. Também perguntado, o mesmo referiu que ninguém lhe leu os referidos documentos, inclusive as suas declarações.
Por outro lado, em momento algum do processo está alegado ou documentado o analfabetismo do referido arguido. Mais, através do documento que ora se determinou juntar aos autos, o mesmo já possuiu carta de condução.
Decidindo, perfilhando a posição exarada no douto Ac. TRE, de 02.06.2015, proferido no processo 361/13.1GBCCH.E1, o facto do arguido ser titular de carta de condução afasta a possibilidade do OPC formular um juízo de dúvida sobre a sua literacia, ou seja, aqui é afastada uma eventual ideia de que o arguido fosse analfabeto.
Pelo que, naquelas declarações prestadas perante o OPC não estava assistido pelo defensor, não ocorrendo a nulidade invocada pela defesa.
Determino, assim, a continuação dos trabalhos de audiência de discussão e julgamento.

2.1.2. O Despacho recorrido referenciado a fls..15 vº dos presentes autos de recurso independente em separado a que correspondem fls. 155 v.º dos autos principais, foi proferido, no decurso da segunda sessão da audiência de discussão e julgamento.
O arguido interpôs dele recurso que foi admitido nos termos constantes do despacho proferido, nessa mesma sessão de julgamento, nos termos seguintes:
""Por legal e tempestivo vai admitido o recurso interposto em ata pela defesa de BB, da decisão que julgou improcedente a alegação de nulidade insanável prevista na c) do art.º 119.° do Código de Processo Penal por violação do disposto na d) do n.º 1.° do art.º 64.° do mesmo Código que é ordinário, com subida imediata em separado e efeito suspensivo do Processo ao abrigo das disposições conjugadas dos arts.º 414.°, 399.°, 400.° a contrário, 401.° n.º 1.° d), 406.° n.º 2.°,407.° n.º 1.°,408.° n.º 3º, 411.°, n.º 1.° c) n.ºs. 2.° e 3.°, todos do Código de Processo Penal.
A conclusão a retirar é que o objecto do presente recurso respeita, apenas e tão só, à questão decidida no despacho recorrido, isto é, a improcedência da alegada nulidade insanável prevista na c) do art.º 119.° do Código de Processo Penal por violação do disposto na d) do n.º 1.° do art.º 64.° do mesmo Código - falta de nomeação de defensor ao arguido, no auto de interrogatório e constituição de arguido realizado pelo OPC - .
Outras questões proferidas em despachos subsequentes e objecto de impugnação, através de outros recursos interpostos, admitidos a subir de imediato e em separado, têm tramitação autónoma, não fazendo parte do objecto do presente recurso, não sendo, por esse motivo, analisadas.
Apenas se acrescenta que o despacho recorrido se mostra devidamente fundamentado, pois nele é feita uma exposição, ainda que concisa dos motivos de facto e de direito, que de acordo com regras da experiência comum ou e obediência a um critério de logicidade, constituem o fundamento racional que conduziu a essa decisão, de acordo com o efectivo direito de defesa consagrado no art. 32º, n.º 1 e no art. 205º n.º 1, da C.R.P.

2.2 - Importa referir, com interesse para a resolução do presente recurso, o seguinte:
BB encontra-se acusado, em co-autoria, pela prática de factos passíveis de constituir um crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punido nos termos do disposto no art. 203.º, n.º1, 204.º, n.º 1, al. f) e j), 14.º, n.º1, 22.º, n.º 1 e 2, al. b), 23.º, n.º 1 e 26.º CP;
O processo-crime iniciou-se com a denúncia e respectivo o Auto de Denúncia lavrado a de fls. 3 a 5, dos presentes autos de recurso em separado. Em 14/05/2015, foi exarado um aditamento, por parte da OPC, junto a fls. 8 a 10, procedendo-se subsequentemente à sua detenção, constituição e interrogatório, como arguido, sujeitando-o à prestação de termo de identidade e residência, conforme consta de fls. 11 e ss.
O processo seguiu os seus trâmites. Em 18 /05/2017 e 07/06/2017, foram realizadas sessões de audiência de discussão e julgamento, conforme consta das actas de fls. 13 a 17, dos presentes autos de recurso em separado, que correspondem a fls. 136 a 137 e 155 a 157, dos autos principais.
No decurso da primeira sessão de audiência de discussão e julgamento veio o arguido, ora recorrente afirmar ter o 2.º ano de escolaridade e que, apesar disso, não sabe ler.
Em face de tal declaração, e num primeiro momento, veio o Ilustre Defensor, nos termos do disposto no art. 119.º, al. c) CPP, invocar a existência de uma nulidade insanável pela circunstância de o arguido, quando foi constituído arguido e interrogado pelo OPC não o ter sido acompanhado por Defensor.
Por proferido despacho que considerou como não verificada a nulidade invocada pelo recorrente quanto à obrigatoriedade de assistência de defensor em sede de auto de constituição de arguido e interrogatório pelo OPC, determinando o prosseguimento dos autos.
O recorrente, não se conformando com essa decisão proferida dela interpondo o presente recurso.

2.3 - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na respectiva motivação, nos termos preceituados nos arts. 403º, n.º 1 e 412º n.º 1, ambos do C.P.P., sem embargo do conhecimento doutras questões que deva ser conhecida oficiosamente. São as conclusões que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.
Ora, as conclusões destinam-se a resumir essas razões que servem de fundamento ao pedido, não podendo confundir-se com o próprio pedido pois destinam-se a permitir que o tribunal conhecer, de forma imediata e resumida, qual o âmbito do recurso e os seus fundamentos.
E, sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recurso não basta que na motivação se indique, de forma genérica, a pretensão do recorrente pois a lei impõe a indicação especificada de fundamentos do recurso, nas conclusões, para que o tribunal conheça, com precisão, as razões da discordância em relação à decisão recorrida.
Não pode o tribunal seleccionar as questões segundo o seu livre arbítrio nem procurar encontrar no meio das alegações, por vezes extensas e pouco inteligíveis, o que lhe pareça ser uma conclusão.
As conclusões constituem, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão.

2.4 - Atentas as conclusões da motivação do recurso que, como já mencionado no ponto anterior, delimitam o seu objecto, a questão básica respeita a aferir visa aferir se a decisão proferida quanto à inexistência da invocada nulidade violou alguma norma legal.

2.5 - Conhecimento do objecto do recurso
É necessário para analisar e decidir a nulidade insanável alegada, atender à previsão dos arts 61º, 64º e 119º, do CPP
O primeiro preceitua:
“Constituição de arguido
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:
a) Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal;
b) Tenha de ser aplicada a qualquer pessoa uma medida de coação ou de garantia patrimonial,…;
c) Um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254.º a 261.º; ou
d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada.
2 - A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe.
3 - A constituição de arguido feita por órgão de polícia criminal é comunicada à autoridade judiciária no prazo de 10 dias e por esta apreciada, em ordem à sua validação, no prazo de 10 dias.
(…)
6 - A não validação da constituição de arguido pela autoridade judiciária não prejudica as provas anteriormente obtidas.”
O Artigo 64.º, sobre a epígrafe “Obrigatoriedade de assistência”, preceitua:
1 - É obrigatória a assistência do defensor:
a) Nos interrogatórios de arguido detido ou preso;
b) Nos interrogatórios feitos por autoridade judiciária;
c) No debate instrutório e na audiência;
d) Em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída;
e) Nos recursos ordinários ou extraordinários;
f) Nos casos a que se referem os artigos 271.º e 294.º;
g) Na audiência de julgamento realizada na ausência do arguido;
h) Nos demais casos que a lei determinar.
2 - Fora dos casos previstos no número anterior pode ser nomeado defensor ao arguido, a pedido do tribunal ou do arguido, sempre que as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido.
3 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, se o arguido não tiver advogado constituído nem defensor nomeado, é obrigatória a nomeação de defensor quando contra ele for deduzida a acusação, devendo a identificação do defensor constar do despacho de encerramento do inquérito.
4 - No caso previsto no número anterior, o arguido é informado, no despacho de acusação, de que fica obrigado, caso seja condenado, a pagar os honorários do defensor oficioso, salvo se lhe for concedido apoio judiciário, e que pode proceder à substituição desse defensor mediante a constituição de advogado.”
Aos OPC (Órgãos de Polícia Criminal), nos termos do Artigo 55.º, n.º 1, do aludido compêndio adjectivo, compete coadjuvar as autoridades judiciárias com vista à realização das finalidades do processo. Portanto, os OPC não são autoridade judiciária.
O Artigo 119.º (Nulidades insanáveis)
“Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição;
b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência;
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;
e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no artigo 32.º, n.º 2;
f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.”
Desde já se afirma que não se verifica a alegada nulidade insanável apta a afectar a validade dos actos praticados.
Vejamos!
É indiscutível que, momento da detenção e subsequente interrogatório e constituição como arguido, do ora recorrente, não lhe foi nomeado defensor.
Dispõe o artº 64, nº 1, d), do CPP que é obrigatória a assistência do defensor em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída (sublinhados nossos).
Esta norma legal determina que, em qualquer acto processual, com excepção da constituição de arguido, nos casos em que o arguido é analfabeto, é obrigatória a assistência de defensor.
Como já mencionado, no caso “sub judice”, por existir fundada suspeita do ora recorrente haver cometido o crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punido nos termos do disposto no art. 203.º, n.º1, 204.º, n.º 1, al. f) e j), 14.º, n.º1, 22.º, n.º 1 e 2, al. b), 23.º, n.º 1 e 26.º CP; (…), na sequência do Auto de Denúncia de fls. 3 a 5, foi exarado um aditamento, por parte da OPC, junto a fls. 8 a 10, procedendo-se subsequentemente à sua detenção e constituição e interrogatório como arguido, sujeitando-o à prestação de termo de identidade e residência, conforme consta de fls. 11 e 12.
Acresce que, atentas as regras da lógica e da experiência comuns, faz todo o sentido o afirmado no despacho recorrido: “Em primeiro lugar, do próprio teor das declarações do arguido, em sede de audiência de discussão e julgamento, consta a afirmação de que perante os “papéis” que lhe foram apresentados pelo OPC, o mesmo referiu que duvidava de ir assiná-los, ou não, uma vez que o que ali se dizia não correspondia a nenhum facto que o mesmo tinha praticado. Também perguntado, o mesmo referiu que ninguém lhe leu os referidos documentos, inclusive as suas declarações.
Por outro lado, em momento algum do processo está alegado ou documentado o analfabetismo do referido arguido. Mais, através do documento que ora se determinou juntar aos autos, o mesmo já possuiu carta de condução.”.
Portanto, atendendo ao preceituado não mencionado preceito legal - al. d) do nº1 do art.64º do CPP – diversamente ao alvitrado pelo o recorrente, no citado acto processual, não era obrigatória a nomeação de defensor.
Consequentemente, a sua falta não conduz à nulidade invocada pelo recorrente, prevista na al. c) do art.119º do CPP.
Não sendo obrigatório naquele momento a nomeação de defensor, esta seria facultativa e restrita aos casos de necessidade e conveniência, por forma a permitir àquele o entendimento e justificação do acto - detenção - o que foi conseguido, conforme consta do auto de fls. 11, através do que lhe foi comunicado, pelo G.P. - “Foi-lhe comunicado que deve considerar-se Arguido nestes Autos, tendo-lhe sido indicados e explicados os direitos e deveres nos termos do art.º 61.º do Código de Processo Penal. Perguntado se queria responder sobre os factos que lhe são imputados, respondeu: Que sim. -“.
Nesse momento, o arguido não informou ou deu conhecimento ao OPC que não sabia ler, pelo contrário após declarações assinou o auto respectivo. Ao OPC, era impossível, sem outros recursos ou elementos, conjeturar, adivinhar ou decifrar sobre as habilitações do recorrente, ou a sua hipotética iliteracia.
A conclusão é a de que o recorrente carece de razão quando alega a verificação dessa nulidade insanável.

2.5.1 - Porém, se fosse outro o entendimento, o que se rejeita, desde já, nos termos retro expostos, sempre se dirá que tem pertinência o afirmado pelo MºPº, na sua resposta ao recurso: “…Foi então determinada a interrupção da audiência e determinada a junção aos autos de pesquisa sobre se o arguido, ora recorrente, seria titular de carta de condução, pesquisa essa que se encontra junta aos autos e indica que, efectivamente, o recorrente foi, em tempos, titular de título de condução para o qual é necessário que o seu titular saiba ler e escrever.
Em face de tais elementos e porque em momento prévio o arguido não fez saber ao OPC que o mesmo não sabia ler, não cabendo ao OPC, sem outros elementos que assim o façam antever, adivinhar das habilitações literárias do recorrente.
Nesta sede, e na senda do entendimento do Tribunal da Relação de Évora, de 02.06.2015, proferido no âmbito do processo 361/13.1GBCCH.E1, temos que “…o determinante tem a ver com o desconhecimento, dessa situação de analfabetismo, por parte da autoridade policial que interceptou o arguido e elaborou o aludido expediente e os procedimentos processuais subsequentes.”
Efectivamente, e contrariamente ao plasmado nas alegações de recurso apresentadas pelo recorrente, aquele não foi “coagido” a assinar o auto de interrogatório, veja-se que o arguido foi notificado a 21.12.2015 para comparecer no posto da GNR a fim de ser interrogado, interrogatório esse que ocorreu no dia 05.01.2016 (fls. 81).
Ora, o arguido, ora recorrente, não foi confrontado com uma situação inesperada, para a qual o mesmo não tivesse ideia de que iria ocorrer, mas mais, o arguido já havia sido anteriormente constituído naquela qualidade, sujeito a TIR, sem que tenha, até ao momento da audiência de discussão e julgamento, dito que não sabia ler, nem escrever, criando no OPC a aparência precisamente do contrário, motivo pelo qual entendemos que era ao arguido competia elucidar as autoridades policiais do facto de não saber ler nem escrever o que, não demonstrou de todo ter feito no caso dos autos.
Posto que, entendemos que não existiu no caso dos presentes autos a verificação da nulidade insanável que vem o recorrente arguir.”
No seguimento deste entendimento pronunciou-se o Ac. do TRE, de 8 de Maio de 2018, proferido no Proc. n.º 99/17.0GEPTM.E1: “É irrefutável que no momento da detenção e subsequente constituição como arguido, do ora recorrente, não lhe foi nomeado defensor.
Dispõe o artº 64, nº 1, d), do CPP que é obrigatória a assistência do defensor em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída (sublinhados nossos).
Resulta daqui, para o que aqui importa considerar a, que em qualquer acto processual, com excepção da constituição de arguido, nos casos em que ele for desconhecedor da língua portuguesa, é obrigatória a assistência de defensor.
Como atrás dissemos, havendo fundada suspeita do ora recorrente haver cometido o crime (…), foi então levantado o respectivo auto de notícia, procedendo-se subsequentemente à sua detenção e constituição como arguido, sujeitando-o à prestação de termo de identidade e residência.
Assim, tendo presente aquele normativo [al. d) do nº1 do art.64º do CPP] ao contrário do que preconiza o recorrente, naquele momento, não era obrigatório a nomeação de defensor, pelo que consequentemente a falta deste, no caso, não acarreta a nulidade invocada pelo recorrente prevenida na al. c) do art.119º do CPP.
(…)
Não sendo obrigatório naquele momento a nomeação de defensor, esta seria facultativa e restrita aos casos de necessidade e conveniência, por forma a permitir àquele a compreensão e alcance do acto – detenção - o que foi conseguido …”
O entendimento seguido em nada afecta a previsão do art. 32º, n.º 3 da CRP, em cujos termos, “O arguido tem direito a escolher defensor oficioso e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória”, o que não ocorre no caso “sub judice”, pelos fundamentos retro expostos.
O arguido/recorrente carece de razão, improcedendo a alegada nulidade insanável.

III - Decisão
Assim, em face do que se deixa exposto, acordam em negar provimento ao recurso, relativamente à decisão recorrida, mantendo, o decidido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.
(Este texto foi por mim, relatora, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 06/11/2018
Maria Isabel Duarte (relatora)
José Maria Simão