Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
522/15.9 T9PTG.E1
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: DIFAMAÇÃO ATRAVÉS DE MEIO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
DIREITO DE CRÍTICA
DIREITO À HONRA E LIBERDADE DE EXPRESSÃO
CEDH
Data do Acordão: 06/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Ainda que alguma crítica excessiva ou menos estribada fosse conjecturável no escrito do arguido, sempre importaria ter bem presente que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, parte da liberdade de expressão, enquanto um dos pilares basilares do Estado de Direito material e democrático, a coberto do qual os políticos, as figuras públicas e organismos públicos, quer pela sua exposição, quer pela discutibilidade das ideias que professam, quer ainda pelo controlo a que devem ser sujeitos, seja pela comunicação social, seja pelo cidadão comum, devem ser mais tolerantes a críticas do que os particulares, devendo ser, concomitantemente, admissível maior grau de intensidade destas.
Decisão Texto Integral:
I- Relatório
AA foi absolvido da prática de um crime de publicidade e calúnia agravada, p. e p. pelo artigo 183.º, n.º 2, por referência aos artigos 180º, nº 1, 184º e 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal.

Foi igualmente absolvido do pedido de indemnização civil deduzido por BB.

Inconformado recorre o assistente, suscitando, em síntese, a seguinte questão:
- impugnação da matéria de facto.
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O MP e o arguido responderam ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência.
Nesta Relação a Exª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no mesmo sentido.
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II- Fundamentação

A) Factos Provados
“1- Desde 18.09.2003 até à actualidade, o assistente BB exerce funções de médico, inerentes à categoria profissional de chefe de serviço da carreira médica de clínica geral do quadro pessoal do Centro de Saúde de Castelo de Vide da sub-região de saúde de Portalegre.

2- Em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015, o arguido escreveu uma publicação na sua página pessoal do Facebook com o seguinte teor:

É lamentável que em Póvoa e Meadas mais uma vez, e agora na saúde, um Sr. Doutor, profissional de saúde, se recusa a atender utentes que ali chegam, nem sequer quer saber do estado, se é criança se é idoso ou qual a gravidade da situação, trata-se de um tal Doutor B, que assim lhe chamam, que desta vez não atendeu uma criança, a minha filha. Felizmente nada de grave aconteceu, ainda que continua doente. Com esta situação só quero alertar, que algo tem de ser feito em relação à saúde em Póvoa e Meadas, pois nem todos os utentes têm possibilidades de se deslocar em caso de urgência ou outro tipo de doença que quer cuidados médicos. Os habitantes de Póvoa e Meadas não ficam doentes porque querem e tem o direito de ser tratados de igual forma por profissionais de saúde, mas que estejam na profissão certa.”

3- O arguido ao nomear na publicação acima aludida “um tal de Doutor B” pretendeu referir-se ao assistente BB.

4- O arguido ao referir-se a “ um Sr. Doutor, profissional de saúde se recusa a atender utentes que ali chegam, nem sequer quer saber do estado, se é criança se é idoso ou qual a gravidade da situação, trata-se de um tal Doutor B, que assim lhe chamam, que desta vez não atendeu uma criança, a minha filha” pretendeu reportar-se à situação ocorrida no dia 13.05.2015, aquando da deslocação à extensão do centro de saúde de Póvoa e Meadas da sua filha menor, com sinais de febre e amigdalite, a qual não recebeu assistência médica por parte do assistente.

5- A publicação aludida em 2. era acessível a todos quantos acedessem à página pessoal do arguido do Facebook, uma vez que o seu acesso era público.

6- A publicação aludida em 2. obteve 20 gostos e 18 comentários.

7- O arguido sabia que o assistente BB, visado na sua publicação, é funcionário público e exerce funções de médico no Centro de Saúde de Castelo de Vide e na extensão do mesmo na freguesia de Póvoa e Meadas e que o episódio por si relatado em 2. se encontrava relacionado com o exercício das suas funções de médico.

Mais se provou que:
8- No dia 13.05.2015, a filha menor do arguido, na sequência da falta de atendimento na extensão do centro de saúde de Póvoa e Meadas, deslocou-se com a sua mãe ao lar de 3.ª idade, onde esta última trabalha, e foi assistida pelo médico Dr. J, tendo este prescrito à criança brufen, 20 mg/ml e klacid pediátrico 50 mg/ml (antibiótico indicado para infecções da garganta, nomeadamente amigdalite).

9- O arguido concluiu o 9.º ano de escolaridade.

10- É operário fabril e aufere o salário mensal de € 660 (seiscentos e sessenta euros).

11- Vive com a mulher, que exerce funções de auxiliar de 3.ª idade, pelas quais recebe salário mensal de € 580 (quinhentos e oitenta euros), e com os dois filhos menores, de 9 e 7 anos de idade.

12- Reside em casa própria, pela qual paga a prestação mensal de € 280 (duzentos e oitenta euros) ao Banco.

13- Não regista antecedentes criminais averbados ao seu certificado de registo criminal.

14- O assistente é licenciado em Medicina.

15- Pelo exercício das funções descritas em 1. o assistente recebe € 3.200,00 mensais.

16- Vive em casa própria, com a sua esposa, médica na área da saúde pública, que aufere retribuição mensal de € 2.500,00.

17- Tem 2 filhos maiores, respectivamente com 33 e 25 anos de idade, estando este último na dependência económica do assistente”.
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B) Factos não provados
“A- Com a publicação referida em 2. o arguido sabia que fazia impender sobre o assistente suspeições desprimorosas para com aquele, colocando em causa a sua honorabilidade enquanto médico e enquanto cidadão.

B- Ao escrever a publicação descrita em 2., agiu o arguido com o propósito concretizado de humilhar e ofender a honra e consideração pessoal e profissional de BB., apesar de saber que o mesmo não se recusou a tratar da sua filha menor, de saber que os factos não ocorreram da forma como descreveu na publicação, bem como sabia que o médico não se recusa a atender pacientes da forma como lhe imputou.

C- O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e mesmo assim não se coibiu de escrever a publicação que escreveu.

D- Ao tomar conhecimento da publicação descrita em 2. o assistente sentiu a sua honra e dignidade pessoal e profissional ofendidas.

E- A imputação ao assistente de factos relacionados com uma suposta recusa de atendimento de uma utente/doente, o que não sucedeu, tal como publicado pelo arguido na sua página pessoal do Facebook, tornou-se notícia na freguesia de Póvoa e Meadas, o que provocou desconfiança por parte de alguns dos seus habitantes no que concerne às qualidades profissionais do assistente.

F- Que nos dias após a publicação mencionada em 2. o episódio relatado pelo arguido foi alvo de conversas na povoação de Póvoa e Meadas e em consequência disso o assistente sofreu olhares de condenação por parte de alguns dos seus utentes e habitantes daquela freguesia.

G- Em consequência de F., o assistente sentiu-se triste e incomodado”.
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C) Motivação da matéria de facto
“O Tribunal formou a sua convicção, positiva e negativa, sobre a matéria de facto na análise crítica, ponderada e global da prova produzida em audiência de julgamento, bem assim dos documentos juntos aos autos e examinados em sede de audiência, tudo devidamente apreciado com base nas regras da experiência comum e da normalidade da vida (cfr. artigo 127.º do Cód. Proc. Penal).

O facto descrito em 1. resultou provado da declaração da ULSNA e cópia do apêndice n.º 141/2003 do Diário da República e, bem assim os factos consignados em 5. e 6. dos documentos juntos aos autos de fls. 2 e 8.

Reputaram-se igualmente como provados os factos acima vertidos em 2., 3., 4., 7. e 8. com base nas declarações do arguido, que prestou depoimento de forma séria, sincera, circunstanciada e, destarte, credível, confirmando a factualidade descrita.

Com efeito, o arguido afirmou em sede de julgamento que a publicação constante da acusação foi da sua autoria, tendo, ademais pormenorizado as circunstâncias e motivações que o levaram a escrever tal texto.

Neste conspecto, o arguido começou por explicar que a sua filha I., à data dos factos com 6 anos de idade, padece de um historial severo de amigdalites, para tanto afirmando que sofre de forma frequente de infecções de garganta, tendo ademais explicado que no ano de 2014 chegou a sofrer de um internamento em consequência de tais infecções.

Assim, o arguido relatou que na noite de 12 de Maio de 2015 a sua filha I. ficou doente, mostrando sinais de infecção na garganta, sendo tal quadro acompanhado de febre alta. Nessa sequência, na manhã seguinte a sua esposa dirigiu-se à extensão do centro de saúde de Póvoa e Meadas com a criança, para que esta recebesse assistência médica, sendo que o assistente Dr. BB, médico que nesse dia estaria a dar consultas na aludida entidade de saúde “se recusou simplesmente a ver a criança, dizendo que não a atendia no Centro de Saúde”. Tal recusa de assistência provocou grande mal-estar na sua esposa, uma vez que a mesma carecia de meio de transporte próprio que lhe permitisse transportar a criança até ao centro de saúde de Castelo de Vide ou até ao serviço de urgência de Portalegre. Mais referiu o arguido que a sua esposa lhe terá comunicado tais factos por via de telefone, o que lhe terá causado elevada revolta e angústia, tendo ademais explicado que a sua esposa, que trabalha num lar de 3.ª idade na freguesia de Póvoa e Meadas, pediu ao Presidente de tal instituição que a filha de ambos fosse vista pelo médico que presta serviços aos utentes em tal lar, solicitação que foi atendida, tendo sido prescrito à criança antibiótico, por conta da amigdalite de que esta padecia (o que se mostra em consonância com a receita junta aos autos).

Acresce que, o arguido negou de forma peremptória que a publicação por si feita na sua página de Facebook tivesse como intenção ofender o assistente, na sua honra e consideração, para tanto afirmando que o aludido texto se tratou de um mero desabafo na qualidade de pai, para tanto explicando que apenas queria chamar à atenção relativamente à escassez de meios na rede de cuidados de saúde existentes em Póvoa e Meadas, considerando que nessa freguesia apenas existe uma extensão do centro de saúde, onde somente são dadas consultas médicas três vezes por semana da parte da manhã, o que causa grande transtorno à população aí residente, que nem sempre tem possibilidades, em caso de doença aguda, de se deslocar ao centro de saúde de Castelo de Vide ou ao Hospital de Portalegre, à semelhança do episódio ocorrido com a sua filha menor.

Em abono da credibilidade que foi conferida às declarações do arguido ressalta, em primeira linha, que as mesmas surgiram confirmadas, no essencial, pelo depoimento da testemunha MR (arrolada pela acusação e pelo assistente), enfermeira que se encontrava de serviço no dia em que a filha do arguido se deslocou à extensão do centro de saúde de Póvoa e Meadas e, bem assim, pelo depoimento da esposa do arguido, SM.

Com efeito, relativamente ao facto vertido em 4., quanto à circunstância de a filha do arguido não ter recebido qualquer assistência médica por parte do assistente foi decisivo o depoimento da testemunha MR, na medida em que esta corroborou na íntegra a versão dos factos do arguido.

Assim, pela testemunha MR foi atestado que no ano de 2015, numa 4.ª feira, no mês de Maio, a esposa do arguido deslocou-se à extensão do centro de saúde de Póvoa e Meadas com a sua filha I, tendo ademais, estado também presente nesse dia a avó da criança que tinha trazido o seu primo, menor de idade, de nome Tomás, para tanto afirmando que ambas lhe disseram que as crianças necessitariam de ser vistas pelo médico, uma vez que se encontravam doentes. A testemunha, na qualidade de enfermeira, confirmou que não realizou exame de triagem às crianças, referindo especificamente quanto à filha do arguido que de acordo com um exame “a olho nu” esta parecia estar bem, não padecendo de qualquer doença grave e, que após ter sido solicitado pela mãe e avós dos menores assistência médica se dirigiu ao consultório do assistente e lhe perguntou se este podia ver as crianças, ao que o assistente a terá questionado se os menores eram seus utentes. Nesta sequência, a enfermeira MR afirmou em sede de julgamento que terá informado o assistente que apenas o Tomás era seu utente e não a I, o que motivou que o assistente tivesse recusado atender a filha do arguido.

Tal depoimento foi ainda confirmado pela mulher do arguido, que de forma espontânea e sincera relatou que no dia 13 de Maio de 2015 se deslocou à extensão do centro de saúde de Póvoa e Meadas, considerando que a sua filha I, que padece com frequência de amigdalites, teria passado a noite com febre elevada e com dores de garganta, tendo para tanto aí encontrado a sua sogra MF, acompanhada pelo Tomás, primo da I, que coincidentemente se encontrava doente. Nesta medida, foi atestado pela mulher do arguido que após a enfermeira MR se ter deslocado ao consultório do assistente, as informou que o médico apenas veria o Tomás e não a I, o que motivou que a testemunha tivesse telefonado ao aqui arguido, seu marido, uma vez que de acordo com as suas elucidativas palavras “fiquei sem chão. Não tinha transporte para ir para Castelo de Vide. E pedi ao Presidente da minha entidade patronal para o médico ver a minha filha e ele receitou antibiótico.”

Acresce que, o depoimento das aludidas testemunhas foi igualmente confirmado pelo depoimento da testemunha MF, mãe do arguido, que denotou conhecimento directo e pessoal sobre tal factualidade, considerando que no dia em causa se encontrava presente na extensão do centro de saúde de Póvoa e Meadas, a acompanhar o seu neto Tomás, o qual foi atendido pelo assistente, contrariamente à sua neta Inês, a quem foi recusada assistência médica.

Por outro lado, quanto à circunstância de o assistente não ter prestado assistência médica à filha do arguido cumpre referir que pelo mesmo foi dito que naquele dia “apareceu mais do que uma pessoa para ser observada”, entre as quais se encontrava a filha do arguido, tendo este especificamente afirmado que perguntou à enfermeira MR se a situação da criança era grave, ao qual a enfermeira lhe terá dito que não, o que levou a que o assistente tivesse recusado ver a I, reencaminhando-a para a consulta de reforço, a ter lugar no período da tarde no centro de saúde de Castelo de Vide. Ora, quanto a este concreto aspecto cumpre clarificar que as declarações prestadas pelo assistente não mereceram a credibilidade deste Tribunal, porquanto foi negado de forma peremptória pela testemunha MR que aquele tivesse questionado qual o estado de saúde da filha do arguido, tendo, ademais, aquela expressamente referido, nas várias vezes que foi instada pelos diversos intervenientes processuais em sede de julgamento, que o assistente se terá limitado a questionar se as crianças pertenciam à sua lista de utentes.

No que se refere às condições pessoais e socioeconómicas do arguido descrito de 9. a 12 as mesmas encontram-se provadas pelas declarações do próprio, atenta a credibilidade que lhes foi conferida.

Por outro lado, a ausência de antecedentes criminais do arguido plasmada em 13. mostrou-se provada com base no teor do certificado de registo criminal de fls. 126.

No que tange às condições pessoais e económicas do assistente descritas em 14., 15, 16 e 17. as mesmas consideraram-se provadas com base nas declarações do próprio, que nessa parte se afiguraram credíveis.

Por último, cumpre ressaltar que o Tribunal não valorou os depoimentos das testemunhas AE e RB, na medida em que estes não revelaram conhecimento directo sobre os factos que motivaram a publicação feita pelo arguido e melhor descrita em 2., nada sabendo esclarecer a este respeito.
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O Tribunal fundou a sua convicção negativa quanto aos factos mencionados em A), B) e C) com base nas declarações do arguido, uma vez que este negou de forma peremptória que tenha escrito a aludida publicação na sua página pessoal do facebook, com o intuito de humilhar a honra e consideração do assistente.

Com efeito, ficou pois o Tribunal convencido que o arguido ao escrever tais palavras apenas quis alertar para a escassez de meios na rede de saúde existente na freguesia de Póvoa e Meadas, considerando que teceu tais críticas ao assistente, fazendo-o ao abrigo da sua liberdade de opinião e expressão, porquanto ademais reputou-se como verdadeira a versão do arguido, no que tange à recusa daquele em assistir a sua filha menor, por não pertencer à sua lista de utentes, sem previamente ter cuidado de saber qual o estado de saúde em que a criança se encontrava, convocando-se, uma vez mais, o depoimento da testemunha MR, que a este propósito afirmou que não foi realizado qualquer exame de triagem à criança, porquanto a “olho nu” viu que a situação não era crítica, tendo, ainda, esclarecido que o assistente nunca perguntou se a situação da I era grave, limitando-se a questionar se a menor pertencia à sua lista de utentes.

Por outro lado, interpretando o texto publicado pelo arguido e descrito em 2., à luz das regras da lógica e do senso comum, surge-nos óbvio que nunca foi intenção deste ofender a honra e consideração profissional e pessoal do assistente, porquanto pelo mesmo foi expressamente escrito que a motivação de tal publicação era somente “alertar, que algo tem de ser feito em relação à saúde em Póvoa e Meadas, pois nem todos os utentes tem possibilidades de se deslocar em caso de urgência ou outro tipo de doença que quer cuidados médicos”.

Ademais, não se tendo demonstrado os factos descritos em A), B) e C), considerou-se igualmente não provado – por maioria de razão – os factos descritos em D) e G).

Por último, quanto à factualidade consignada em E) e F) a mesma colheu a sua demonstração negativa atendendo à total ausência de prova que atestasse a sua verificação. Com efeito, nenhuma das testemunhas inquiridas em sede de julgamento referiu que a publicação do arguido tenha sido objecto de conversas, excluídos que se encontram os comentários feitos a tal texto e mencionados em 2., na freguesia de Póvoa e Meadas, nem tão pouco que a reputação do assistente tenha sido posta em causa pelos habitantes, sofrendo este de “olhares de condenação”, tal como descrito em sede de pedido de indemnização civil.

De facto, a própria versão do assistente em sede de julgamento divergiu da versão descrita no seu pedido de indemnização civil, no que tange aos factos mencionados em E) e F), considerando que por este foi afirmado que apenas 1 (um) doente, o Sr. JF, o terá informado que a publicação do arguido era comentada em Nisa, não tendo o mesmo nunca afirmado que sofreu “olhares de condenação” por parte dos habitantes do concelho, nem tão pouco que se sentiu abalado, triste e vexado, em consequência da publicação do arguido”.

Apreciando
Invoca o recorrente que terá sido mal julgada a matéria de facto, nomeadamente os pontos A a G da matéria não provada, pretendendo que o tribunal de recurso sindique a forma como o tribunal de primeira instância apreciou a prova produzida em audiência mas, para tanto, haveria de ter dado adequado cumprimento ao disposto no art. 412º., nºs. 3 e 4 CPP, o que não se mostra correctamente efectuado.

É que ao contrário do que por vezes se pensa, o recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.

Como várias vezes salientou o Prof. Germano Marques da Silva, presidente da Comissão para a Reforma do Código de Processo Penal:

- “… o recurso é um remédio para os erros, não um novo julgamento” (conferência parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, in Assembleia da República, Código de Processo Penal, vol. II, tomo II, Lisboa 1999, pág. 65);

- “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” (Forum Justitiae, Maio/99);

- “Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.” (Registo da prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001).

Da mesma forma, na jurisprudência pode ler-se, por exemplo, no Ac. do STJ de 24/10/2002, proferido no pr. 2124/02: “… o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412º, nº 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (nº 4 do art.º 412º do C.P.P.)”.

Ou no acórdão do STJ de 15-12-2005 (pr. 2.951/05, relatado pelo conselheiro Simas Santos), “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.

Ou, finalmente, no recente Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012:

“… Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo…

O Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros…

Como se refere no acórdão de 27 de Janeiro de 2009, processo n.º 3978/08 -3.ª «O julgamento efectuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar» …”.

Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (cfr. designadamente o art. 410º., nº.1 do CPP).

Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria, dispondo o art. 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal:

«Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.»

Acrescentando o n.º 4 do mesmo artigo que:
“Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.

Impunha-se ao recorrente, em vista disso, para que do recurso pudesse retirar alguma utilidade que impugnasse devidamente a matéria de facto, cumprindo adequadamente o constante dos nºs 3 e 4 do art. 412º. CPP.

E é sabido que ao cumprimento de tal desiderato não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação mais ou menos genérica do que possam ter dito, repousando em considerações da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas (tal qual ocorre no presente caso), atacar a motivação do tribunal a quo ou a respectiva convicção (tal qual ocorre igualmente no presente caso), devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise (dizendo o recorrente, por exemplo, que pretende impugnar os pontos 7 e 8 dos factos provados ou as als. a) e c) dos não provados), indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4. Assim, por exemplo, o recorrente poderá indicar que o afirmado se reporta à passagem do depoimento da testemunha A que vai do minuto 3º. ao 6º. da gravação efectuada em CD pelo Tribunal.

Revertendo ao recurso em apreciação resulta manifesto que o recorrente assim não procedeu, já que, jamais indica relativamente a cada um dos pontos em causa as provas que impõem manifestamente distinta decisão (o que forçosamente nada tem que ver com a sua mera interpretação pessoal do que possa ter ocorrido ou com o uso de mera retórica inócua), como se lhe impunha, nunca colocando sequer em crise, ao fim e ao cabo, a motivação de facto do Tribunal a quo acima indicada e da qual era suposto dissentir e antes se limitando a propor a este Tribunal de recurso que efectue um novo julgamento.

Em suma, o recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada que sobre si recaía nesta sede, já que se limita a propor uma distinta leitura, parcial e descontextualizada do ocorrido em audiência mas jamais indica quaisquer provas que imponham efectivamente distinta decisão.
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Cumpre, no entanto, adiantar mais alguns tópicos sobre o tema em face da forma como o recurso surge estruturado nesta sede.

Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção - obtida com o benefício da imediação e da oralidade - apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.

Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

Tudo isto para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado e não provado, o que como tal se consignou na sentença (cfr. Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj).

O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão (cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj).

Ora, no presente caso o Tribunal a quo objectivou adequadamente a sua convicção, ao esclarecer com detalhe de forma racional, lógica e correctamente articulada a respectiva ponderação efectuada, sendo certo que nada do que vem invocado no recurso permite colocar em crise tal julgamento.

E tanto basta para julgar totalmente improcedente o recurso.
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Não obstante dada a natureza da matéria em causa e o manifesto absurdo em que se constituiu o procedimento criminal aqui exercitado (em atropelo claro ao disposto no artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e à abundante jurisprudência do TEDH sobre o assunto), sempre se acrescentarão mais algumas breves considerações, tendentes a evidenciar - tal qual a Mmª Juíza e muito bem já o expressara na própria sentença - que a decisão final deste caso nunca poderia ser diferente.

Numa análise recente da "dimensão da liberdade de expressão" em Portugal, Teixeira da Mota (in, "O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a Liberdade de Expressão, Os casos Portugueses", Coimbra Editora, 2009, p. 19) chama a atenção para o facto de a jurisprudência portuguesa sobre liberdade de expressão, nomeadamente no seu confronto com o direito à honra e ao bom nome, ser ainda, em muitos casos, subsidiária de um "entendimento redutor e minimalista daquele direito fundamental". "Assim", afirma, "os nossos tribunais, repetidamente, condenam os portugueses pelo crime de difamação ou injúria só por considerarem que poderiam ter sido utilizadas outras palavras ou expressões menos agressivas ou violentas e que serviriam igualmente para exprimir as ideias ou opiniões em causa, numa interpretação, muitas vezes hiperextensiva do pensamento de Figueiredo Dias. Tal entendimento", conclui o autor, "tem necessariamente de ser actualizado, nomeadamente no domínio da liberdade de opinião no debate público, em função da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (THDH)".[1]

Não se esqueça que até Outubro de 2011 Portugal já foi condenado 13 vezes por violação do art. 10º Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), sendo que a grande maioria de tais condenações se prendem com ofensas à honra e ao bom nome.

Também, na jurisprudência do STJ, já em 2007, máxime no acórdão de 7-3-2007[2] podia ler-se o seguinte:

“I- No conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático, o que justifica a assunção de uma nova perspectiva na resolução do conflito.

II- Neste contexto, temos vindo a defender, na esteira da orientação assumida por Costa Andrade, deverem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.

III- Mais entende aquele insigne Mestre que a atipicidade da crítica objectiva pode e deve estender-se a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias públicas, com destaque para os actos da administração pública, as sentenças e despachos dos juízes, as promoções do MP, as decisões e o desempenho político de órgãos de soberania como o Governo e o Parlamento.

IV- Por outro lado, segundo ele, a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva.

V- Costa Andrade defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto, esclarecendo, no entanto, que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão, consignando expressamente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa.

VI- Parte da jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem sufragando tal orientação, sendo que, de acordo com a mesma, entendemos que o direito de expressão, na sua vertente de direito de opinião e de crítica, quando se exerça e recaia nas concretas áreas atrás referidas e com o conteúdo e âmbito mencionados, caso redunde em ofensa à honra, se pode e deve ter por atípico, desde que o agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor aos quais subjaz o exclusivo propósito de rebaixar e de humilhar”.

E no Ac. STJ de 17-11-2010 - Proc. n.º 51/10.7 YFLSB.S1 - 5.ª Secção, relatora Isabel Pais Martins

“IX - Segundo o entendimento hoje dominante, os juízos de apreciação e valoração vertidos sobre realizações ou prestações, na medida em que não seja ultrapassado o âmbito da crítica objectiva, caem já fora da tipicidade de incriminações como a difamação – cf. Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, págs. 232 a 240.

X - E no sentido da atipicidade da crítica objectiva afastam-se, hoje, as exigências de proporcionalidade e da necessidade objectiva, do bem-fundado ou da “verdade”, bem como o pressuposto do meio menos gravoso.

XI - Ou seja, a tese da atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas. Por outro lado, o direito de crítica com este sentido não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas.

XII - É hoje igualmente pacífico o entendimento que submete a actuação das instâncias públicas ao escrutínio do direito de crítica objectiva.

XIII - São ainda de levar à conta da atipicidade os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do autor da obra ou prestação em exame: nesta linha, o crítico que estigmatizar uma acusação como “persecutória” ou “iníqua” pode igualmente assumir que o seu agente teve, naquele processo, uma conduta “persecutória” ou “iníqua” ou que ele foi, em concreto, “persecutório” ou “iníquo”. Aqui, está já presente uma irredutível afronta à exigência de consideração e respeito da pessoa, mas trata-se de sacrifício ainda coberto pela liberdade de crítica objectiva, não devendo ser levado à conta de lesão típica.

XIV - Já o mesmo não se poderá sustentar para os juízos que atingem a honra e consideração pessoal perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou obra que, em princípio, legitimaria a crítica objectiva”.

Por seu turno, Henriques Gaspar, actual presidente do STJ, in A influência da CEDH no diálogo interjurisdicional, Julgar, nº 7, 2009, pág. 39 e 40, já alertava que “os juízes nacionais estão vinculados à CEDH e em diálogo e cooperação com o TEDH… porque, sobretudo em sistema monista, como é o português (artigo 8.º da Constituição), a CEDH, ratificada e publicada, constitui direito interno que deve, como tal, ser interpretada e aplicada, primando, nos termos constitucionais, sobre a lei interna. E… também porque, ao interpretarem e aplicarem a CEDH como primeiros juízes convencionais, devem considerar as referências metodológicas e interpretativas e a jurisprudência do TEDH, enquanto instância própria de regulação convencional… Os tribunais nacionais… são os órgãos de ajustamento do direito nacional à CEDH, tal como interpretada pelo TEDH; as decisões do TEDH têm, pois, e deve ser-lhes reconhecida uma autoridade interpretativa” (veja-se que essa relevância resulta até do art.º 696 al.ª f) do CPC, quando prevê a revisão de decisão transitada em julgado quando seja inconciliável com uma decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português).

Ora, o TEDH - como nos dá conta o mesmo Henriques Gaspar, in Liberdade de Expressão: artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Uma leitura da Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, 698 - “enunciou o seguinte princípio fundador: os limites da crítica admissível são mais amplos em relação a personalidades públicas visadas nessa qualidade do que em relação a um simples particular. Diferentemente destes, aqueles expõem-se, inevitável e conscientemente, a um controlo apertado dos seus comportamentos e opiniões… devendo, por isso, demonstrar muito maior tolerância…”.

Recorde-se ainda, a propósito, a decisão proferida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 26/04/2007, no caso "Colaço Mestre vs SIC", que refere que "o Tribunal lembra que, segundo a sua jurisprudência bem estabelecida, a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de toda a sociedade democrática, uma das condições essenciais do progresso e do desenvolvimento de cada um. Sob reserva do nº.2 do artigo 10º., a liberdade de expressão vale não somente para as "informações" ou "ideias" acolhidas em favor ou consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam, inquietam. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem os quais, não há "sociedade democrática", sendo que as excepções à liberdade de expressão devem ser interpretadas estritamente, devendo a necessidade de cada restrição ser estabelecida de maneira convincente, mormente aferindo se a ingerência litigiosa corresponde a uma necessidade social imperiosa".

E, em 2012, escrevia-se o seguinte no Ac. TRP de 20/6/2012, pr. 7132/09.8 TAVNG-A.P1, rel. Ernesto Nascimento “ Simplística e esquematicamente deparamos com 2 correntes: uma, tradicionalista que fez o seu percurso valorizando a honra, em detrimento da liberdade de informação e de expressão e, outra, que começa a fazer o seu caminho, na esteira das decisões, invariavelmente, unânimes do TEDH, que valoriza a liberdade de informação e de expressão.

Cada vez mais, de resto, o Estado Português vem sendo condenado naquela instância internacional, num afirmação inequívoca de valorização da liberdade de expressão como um direito de natureza pessoal e estruturante duma sociedade plenamente democrática.

Isto acontece nos casos em que a ordem jurídica interna vem violando a liberdade de expressão dos cidadãos acusados por tal delito, condenando-os pelo crime de abuso de liberdade de expressão, sem se atentar que a CEDH consagra tal direito em termos muito amplos.

Donde hoje e cada vez mais, na procura da solução para os conflitos que envolvam a liberdade de expressão não sejam analisados e decididos, somente através da aplicação das leis nacionais, ordinárias, civis ou criminais, mas ainda e, sobretudo através da CEDH”.

Finalmente, no excelente Ac. TRE de 1-7-2014, pr. 53/11.6TAEZ.E2, rel. Gomes de Sousa, disponível em www.dgsi.pt, sumariou-se o seguinte:

II- A Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (vulgarmente designada como Convenção Europeia dos Direitos do Homem) vigora na ordem jurídica portuguesa com valor infra-constitucional, isto é, com valor superior ao direito ordinário português.

III- Considerando a adesão de Portugal à Convenção e o teor do art. 8º da Constituição da República Portuguesa, a não aplicação da Convenção, enquanto direito interno português de origem convencional, é um claro erro de direito.

IV- A apreciação valorativa do confronto entre a liberdade de expressão e a honra é feita em sede infra-constitucional pela Convenção e pelo ordenamento penal português, e não no patamar constitucional, o que torna a Convenção um pilar essencial de onde se deve partir para a análise criminal em casos que exijam a sua aplicação.

V- A Convenção faz uma clara opção na definição da maior relevância do valor “liberdade de expressão” sobre o valor “honra”. Ou seja, a “ponderação de valores” é normativa, já foi feita pela Convenção com uma clara preferência pelo valor “liberdade de expressão”.

VI- A liberdade de expressão só pode ser sujeita a restrições nos termos claros e restritivos do n.º 2 do art. 10.º da Convenção, pelo que as “formalidades, condições, restrições e sanções” à liberdade de expressão devem ser convenientemente estabelecidas, corresponderem a uma necessidade imperiosa e interpretadas restritivamente (Decisão Sunday Times, 26-04-1979, § 65).

VII- A tutela da honra deve situar-se na análise dos tipos penais de difamação no momento lógico de análise do n.º 2 desse art. 10.º.

VIII- Esse art. 10.º é um pilar, não apenas de reconhecimento de direitos individuais, mas muito mais relevantemente de reconhecer que há direitos individuais que são o cimento de um determinado tipo de sociedade, a sociedade democrática, juridicamente Estado de Direito.

IX- Se no geral prevalece como direito maior a liberdade de expressão pela sua essencialidade democrática, no campo da luta politica e questões de “interesse geral” a tutela da honra é residual. É jurisprudência convencional constante a afirmação de que no campo da luta e discurso político ou em questões de interesse geral “pouco espaço há para as restrições à liberdade de expressão”.

X- Na análise do n.º 2 do art. 10º da Convenção é necessário saber se existem os requisitos de punibilidade ali contidos: se a restrição à liberdade de expressão está “prevista na lei” (aqui através do tipo penal de difamação) e prossegue um “objectivo legítimo” (aqui a tutela da honra) e se a condenação do arguido se justifica, se é uma “providência necessária numa sociedade democrática”.

XI- A expressão “providência necessária numa sociedade democrática” tem sido interpretada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem como a exigência de uma “necessidade social imperiosa” que justifique uma condenação.

XII- A natureza e a medida das penas infligidas pela prática de crimes de difamação são elementos a ter em consideração quando se trata de medir a proporcionalidade da ingerência na liberdade de expressão.

XIII- Neste sentido, a aplicação de penas de prisão não se justifica nos crimes de difamação, excepto em circunstâncias excepcionais, designadamente se outros direitos fundamentais foram gravemente atingidos, como nos casos de incitamento à violência, de discurso de violência contra pessoas ou grupos, de incitamento ao ódio e de apelo à intolerância.

XIV- O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem na recente decisão Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo c. Portugal (3 de Abril 2014, § 36) é claro em considerar que o ordenamento jurídico português contém um remédio específico para a protecção da honra e da reputação no art. 70.º do Código Civil, pelo que a penalização por difamação se deve entender hoje como residual.

E no bem recente Ac. TRE de 8-3-2018, pr. 238/15.6 T9LAG.E1, em que foi adjunto o relator do presente, escreveu-se:

“O improvimento em sede de subsunção no tipo de difamação decorre da circunstância de, face aos factos, a absolvição da arguida se impor por duas essenciais razões: olvidou-se o papel do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem na vida do crime de difamação da ordem jurídica portuguesa; a possibilidade de crítica concreta a um serviço público constitui o exercício de um direito, de carácter amplo, e a “ingerência de quaisquer autoridades” prevista no nº 1 do artigo 10º da convenção e explanada no seu nº 2 fica excluída se ocorre prova de que – como no caso ocorre – a crítica pode corresponder a factos realmente ocorridos.

Hoje, julgar (ou deduzir) acusação ou um pedido cível com origem num suposto crime de difamação, não se pode limitar à doutrina e jurisprudência clássicas portuguesas. A sistemática resultante do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem é hoje uma realidade inultrapassável para a integração no tipo penal de difamação.

A existência de um tipo penal de difamação (e a eventual condenação pelo mesmo) é uma “ingerência” do Estado na liberdade de expressão de qualquer cidadão. E essa ingerência só pode ser permitida nos termos parametrizados pelo nº 2 do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: «O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial».

Mas se a conduta quer do ofendido (o atraso no socorro da cadela) quer da Câmara Municipal (a insuficiência de pessoal no canil para a limpeza deste e controlo dos cães) causam situações passíveis de crítica pública (mesmo que haja eventual aproveitamento de cariz político ou de luta de acesso ao poder de natureza associativa ou pessoal), isso abre a porta à possibilidade de qualquer cidadão poder exprimir a sua opinião livremente e a coberto de uma “ingerência” do Estado que veicule uma condenação por difamação”.

Em suma, ainda que alguma crítica excessiva ou menos estribada fosse conjecturável no escrito do arguido, sempre importaria ter bem presente que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, parte da liberdade de expressão, enquanto um dos pilares basilares do Estado de Direito material e democrático, a coberto do qual os políticos, as figuras públicas e organismos públicos, quer pela sua exposição, quer pela discutibilidade das ideias que professam, quer ainda pelo controlo a que devem ser sujeitos, seja pela comunicação social, seja pelo cidadão comum, devem ser mais tolerantes a críticas do que os particulares, devendo ser, concomitantemente, admissível maior grau de intensidade destas.
*
III- Decisão
Nos termos expostos, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente (assistente) fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

Évora, 26/6/2018

António Condesso

Ana Bacelar Cruz
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[1] Vd. Comentário das Leis Penais Extravagantes, vol I, Universidade Católica Editora, 2010, pág. 529

[2] Ac. STJ de 7-3-2007, pr.07P440 (relator Oliveira Mendes) in www.dgsi.pt/jstj