Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
368/16.7GBTVR-F.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: CRIMINALIDADE ORGANIZADA
PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO
PERDA ALARGADA
PERDA AMPLIADA
ARRESTO DOS BENS DO CONDENADO
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A perda de bens determinada ao abrigo do disposto no artigo 7.º, § 1.º, da Lei n.º 5/2012, de 11 de janeiro, respeita à diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito e não à perda de bens concretamente determinados (habitualmente designada por «perda alargada» ou «perda ampliada».
II. É essa a razão pela qual a Lei n.º 5/2012 (que contém medidas de combate à criminalidade organizada) prevê no § 1.º do seu artigo 8.º, a liquidação do montante apurado da incongruência referida, como aquele que deverá ser perdido a favor do Estado.

III. Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do § 1.º do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido, que assegurará que aquela perda se materializará em valor (artigo 10.º da Lei n.º 5/2002).

IV. E isso em nada contraria o disposto no artigo 8.º, § 10.º da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho.

Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
a. No …º Juízo (1) Central Criminal de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, em julgamento em processo comum perante tribunal coletivo, AA foi condenado na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, pela prática de três crimes de furto qualificado, cinco crimes de furto qualificado e um crime de branqueamento de capitais, previsto no artigo 368.º-A, § 1.º, 3.º e 12.º do Código Penal (CP).

AA foi igualmente condenado, na qualidade de demandado, a pagar ao demandante (2) BB a quantia de 235 968,84€ a título de danos patrimoniais e 3 500€ a título de danos não patrimoniais, com respetivos juros moratórios, contados os primeiros desde a notificação para contestar o pedido relativamente aos danos patrimoniais e os segundos à taxa legal de 4% vencidos desde a prolação do acórdão proferido em 18-6-2021.

Por razão daquela condenação criminal, nos termos e ao abrigo da Lei 5/2002 de 11 de janeiro, determinou-se a perda alargada de bens do condenado, no valor de 290 467€.

E em consequência mais se decidiu declarar perdidos a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 110.º do Código Penal, a quantia de 238,36€ constante na conta … do …, bem como do veículo automóvel de matrícula … (nesta parte este Tribunal da Relação de Évora – em recurso do acórdão do Tribunal de 1.ª instância - veio a alterar esta decisão, determinando a entrega integral do referido valor ao demandante) e decretou-se, nos termos do artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, para garantia da perda alargada decretada, o arresto de quatro imóveis do condenado.

Na sequência do referido acórdão deste Tribunal da Relação, o Tribunal recorrido veio a proferir a 8/6/2022 novo despacho sobre o requerimento de 28/6/2021 do demandante (no qual este requeria que lhe fossem atribuídos os bens, produtos e vantagens declarados perdidos a favor do Estado nos presentes autos, incluindo o valor a estes correspondente, até ao limite do dano causado, o qual deveria ser adiantado pelo Estado que, nos termos do n.º 4 do artigo 130.º CP ficaria sub-rogado no direito do lesado à indemnização, até ao montante que tiver satisfeito), decidindo-se que:

«o veículo de matrícula …, ou o valor decorrente da sua venda e, os imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial de … sob o número …, … e … e o descrito na da Conservatória do Registo Predial da … sob o número …, ou o valor decorrente da sua venda, ficarão adstritos ao pagamento:

- em primeiro lugar, do montante de 235 730,58€ ao assistente BB, acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos desde a prolação do presente acórdão relativamente aos danos não patrimoniais e vencidos desde a notificação para contestar o pedido relativamente aos danos patrimoniais, e vincendos até efetivo e integral pagamento.

- em segundo lugar, da diferença entre o valor do património incongruente declarado perdido a favor do Estado e o valor do prejuízo sofrido pelo assistente ao Estado, por força do artigo 7.º da Lei 5/2002, de 11 de janeiro, ficando sub-rogado no direito do lesado à indemnização, contra o arguido, até ao montante que tiver satisfeito.

Notifique, sendo a Direção-Geral do Património do Estado (DGPE), ao GAB (Gabinete de Administração de Bens), e ao GRA (Gabinete de Recuperação de Ativos), e estas três entidades com cópia integral do acórdão proferido nos autos, do requerimento de fls. 2412 a 2416, do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora e da presente decisão.»

b. Notificado dessa decisão o demandante suscitou um pedido de retificação e de aclaração do decidido. A retificação solicitada foi deferida (estando o relato que antecede já conforme a essa retificação). E sobre o pedido «de aclaração» considerou-se que na verdade o demandante não pretendia «qualquer aclaração da decisão, pois como bem se entende, compreendeu-a na íntegra. O que o assistente pretende é uma decisão diferente que já não diz respeito à definição do direito do assistente ao ressarcimento mas sim à forma de o executar. Tanto assim que interpõe recurso sobre o mesmo despacho pedindo a substituição por outro que ordene ao Estado que adiante ao assistente o valor indemnizatório que tem a receber e, em alternativa, caso não venha a ser dado provimento ao recurso que se aclare a decisão.»

c. Inconformado com o decidido no citado despacho de 8/6/2022, veio o demandante a interpor o presente recurso, rematando as pertinentes motivações com as seguintes conclusões (3) (transcrição):

2. Vem o Recorrente impugnar o douto despacho exarado em 8-6-2022 com a referência Citius …, na parte em que apreciou o requerimento de fls. 2412 dos autos, datado de 28-6-2021, com a referência …, apresentado pelo assistente BB.

(…)

5. Logo após a prolação do Acórdão condenatório em primeira instância, o assistente requerera, ao abrigo do disposto no art. 130º do Código Penal, que o Tribunal assegurasse, efetivamente, que – antes da perda a favor do Estado – lhe seriam entregues a ele, ofendido, os valores que lhe foram furtados e que, comprovadamente, foram utilizados pelo arguido para a aquisição dos 4 (quatro) imóveis apreendidos nos autos, e cujo valor (valor incongruente) foi declarado perdido a favor do Estado, nos termos da Lei 5/2002, além do veículo automóvel e da quantia de 238,36 € também declarados perdidos a favor do Estado.

6. Esta última pretensão foi rejeitada com o fundamento de que o requerimento do ofendido devia ter sido efetuado em momento anterior à prolação do acórdão, para que o Tribunal se pudesse pronunciar sobre o mesmo. Razão pela qual, estando igualmente esgotado o poder jurisdicional, o indeferiu.

7. O ofendido não se conformou com este entendimento e interpôs recurso da decisão para o Tribunal da Relação de Évora.

8. Por Acórdão dessa Relação datado de 11.01.2022 foi julgado procedente esse segmento do recurso, revogando-se o douto despacho da 1.ªinstância e ordenando-se a sua substituição por outro que apreciasse o requerimento do assistente.

9. Na fundamentação deste aresto pode ler-se que: “é manifestamente impossível em sede de execução o mesmo (assistente) poder fazer valer os seus direitos”.

10. E “é ponto assente que, quer por força da referida diretiva (2014/42/EU), quer por força do artº 110º, nº 6, do C.P., os direitos do assistente não podem ser prejudicados com qualquer declaração de perda seja do que for.”

11. “O Estado terá a “posse” dos bens até que se defina o seu destino ou o destino do valor da venda dos mesmos, sendo que o arresto impede o extravio desses bens por parte do arguido.

Mas esse destino não poderá deixar de ter em conta os direitos do lesado que deverão ser satisfeitos em primeiro lugar, sob pena de assim não sendo ficar completamente frustrado o que dispõe o n.º 6 do art.º 110.º do C.P. e o referido art.º 8.º, n.º 10, da directiva.

12. Em conformidade com o decidido pelo Tribunal da Relação de Évora, o Tribunal a quo voltou a apreciar o requerimento do assistente, de fls. 2412 dos autos, datado de 28-6-2021.

13. Tendo decidido que os bens apreendidos nos autos ou o valor decorrente da sua venda ficarão adstritos ao pagamento:

- em primeiro lugar, do valor indemnizatório a receber pelo assistente.

- em segundo lugar, ao pagamento da diferença entre o valor do património incongruente declarado perdido a favor do Estado e “o valor do prejuízo sofrido pelo assistente”.

14. O assistente não se conforma com esta decisão, que continua a não garantir ao assistente o seu direito a receber a indemnização a que tem direito.

15. Trata-se de uma decisão que o assistente se vê impedido de dar à execução.

16. Tal viola o disposto no art. 2.º do Código de Processo Civil.

17. O assistente pergunta-se:

- Quem vai cumprir esta decisão?

- Quem lhe vai entregar o produto da venda dos bens?

- Qual é o prazo para essa entrega?

- Quando vai ser a venda dos bens?

- Quem vai fiscalizar esta venda, em cujo sucesso o assistente é o primeiro e principal interessado?

- Quando é que a obrigação vai ser cumprida?

- Quais os custos que o assistente ainda vai ter – depois de todo o processo-crime – para obter o produto da venda dos bens arrestados a favor do Estado, uma vez que só lhe é possível executar um?

- Se o Estado não vender os bens como poderá o assistente ver satisfeito o seu direito a receber o que é seu?

- É que os bens adquiridos com o seu património estão “na posse” do Estado e o assistente ficou sem o seu dinheiro e sem a posse dos bens adquiridos com o mesmo.

- E sem poder executar com sucesso a decisão que julgou procedente o seu pedido de indemnização civil.

18. Não é justo nem razoável impor ao assistente o sacrifício de aguardar uma eventual venda de bens que ele não pode impor ao Estado, nem pode fiscalizar.

19. Ou obrigá-lo a encetar um percurso cheio de incertezas, transtornos e gastos que não é aceitável impor-lhe.

20. O assistente está desapossado do seu património.

21. Esse património como que se “transferiu” para o Estado e o assistente não tem forma de ver satisfeito o seu direito à propriedade.

22. O assistente requereu, em tempo, ao abrigo do disposto no art. 130º do Código Penal que o Estado adiantasse a indemnização e se ressarcisse posteriormente – quando entendesse - através da venda dos bens (avaliados em valor superior).

23. Tal pretensão não foi deferida.

24. Não há qualquer razão para que assim seja, nem tal é aceitável quando existe uma norma que pode ser aplicada in casu.

25. Foi o contrário desta decisão que o legislador nacional pretendeu, ao criar o mecanismo previsto no referido normativo.

26. Também é contrário à decisão recorrida o espírito do legislador europeu ao incluir na Diretiva 2014/42/EU a norma que impõe aos Estados que as medidas de perda previstas na legislação de combate ao crime de branqueamento de capitais não se sobreponham ao legítimo e justo direito das vítimas a serem indemnizadas.

27. Julgando como julgou, violou o Tribunal “a quo” o disposto nos artigos 110.º, n.º 6 e 130.º, n.º 2, ambos do Código Penal, art. 8.º, n.º 10 da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, o artigo 2.º do Código de Processo Civil e os artigos 20.º, 62.º e 72.º da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos, nos demais de direito aplicáveis e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências,

Deverá ser concedido provimento ao recurso ora interposto, e, em consequência:

A) Deverá ser revogada a decisão recorrida (douto despacho datado de 08/06/2022), substituindo-se por outra – retificada nos termos peticionados – que ordene que o Estado adiante ao assistente o valor indemnizatório que o mesmo tem a receber (235 730,58€), sendo 232 230,58€ a título de danos patrimoniais e 3 500€ a título de danos não patrimoniais, ao qual acrescem juros de mora calculados à taxa legal de 4%, vencidos desde a prolação do acórdão de 18-6-2021 relativamente aos danos não patrimoniais e vencidos desde a notificação para contestar o pedido de indemnização relativamente aos danos patrimoniais e vincendos até efetivo e integral pagamento.

d. O recurso foi recebido.

e. O Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª instância respondeu defendendo que:

«1. Salvo melhor opinião, não assiste razão ao ora recorrente.

2. Impugna o ora recorrente a decisão do Tribunal a quo que determinou que o veículo de matrícula …,, ou o valor decorrente da sua venda e, os imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial de … sob o número …, … e … e o descrito na da Conservatória do Registo Predial da … sob o número …, ou o valor decorrente da sua venda, ficassem adstritos, primeiramente, ao pagamento do valor indemnizatório a receber pelo assistente e, após, ao pagamento da diferença entre o valor do património incongruente declarado perdido a favor do Estado e o valor do prejuízo sofrido pelo assistente.

3. Em suma, o ora recorrente insurge-se pela circunstância de o Tribunal a quo não ter deferido o adiantamento da indemnização que lhe é devida por conta do património arrestado à ordem dos autos.

4. Ou seja, verdadeiramente, o ora recorrente não impugna o rateio determinado pelo despacho ora em crise mas apenas pela circunstância de o Tribunal a quo não ter lançado mão do mecanismo consagrado no art. 130º do Código Penal.

5. Acontece, porém, que a Lei nº 45/2011, de 24 de Junho estabelece como competência do Gabinete de Recuperação de Ativos os poderes de gerir os bens à guarda do Estado e, inclusivamente, de proceder à sua venda (cf. art. 10º, nº 3, alíneas a) e b) da Lei nº 45/2011, de 24 de Junho).

6. Deste modo, o Tribunal a quo, salvo melhor opinião, acionou adequadamente esse mecanismo legal ao comunicar esse rateio à Direcção-Geral do Património do Estado (DGPE), ao GAB (Gabinete de Administração de Bens) e ao GRA (Gabinete de Recuperação de Ativos).

7. Em consequência, salvo melhor opinião, o Tribunal a quo acautelou adequadamente os interesses do ora recorrente e respeitou, integralmente, o consagrado no art. 130.º do Código Penal, na medida em que essa legislação especial permite que os interesses do recorrente sejam salvaguardados.»

f. Neste Tribunal Superior o Ministério Público pronunciou-se no sentido de o recurso não merecer provimento.

g. No exercício do contraditório o recorrente nada acrescentou.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – artigos 403.º, § 1.º, 410.º, § 2.º e 412.º, § 1.º CPP. E, nessa sequência, a única questão colocada pelo recorrente é a seguinte: - tem o recorrente direito ao adiantamento pelo Estado do valor da indemnização em que o demandado foi condenado a pagar-lhe?

2. No despacho recorrido considerou-se e decidiu-se o seguinte: «O assistente BB veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 130.º, n.º 2 do Código Penal, que lhe sejam atribuídos os bens, produtos e vantagens declarados perdidos a favor do Estado nos presentes autos, incluindo o valor a estes correspondente, até ao limite do dano causado, ou seja, até ao valor de € 235.968,84, valor esse que deverá ser adiantado pelo Estado que, nos termos do n.º 4 do mesmo normativo, ficará sub-rogado no direito do lesado à indemnização, até ao montante que tiver satisfeito.

Notificados os demais intervenientes para se pronunciarem, apenas o assistente veio atualizar o montante indemnizatório, calculando os juros entretanto vencidos, a fim de o mesmo ser tido em consideração aquando da prolação da decisão do seu anterior requerimento (vide fls. 2586).

Cumpre apreciar e decidir.

Nos presentes autos foi proferida decisão a condenar o arguido AA pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º e 204.º, n.º 2, als. a) e e) do Código Penal [230.000,00], pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, al.f) do Código Penal [500,00], pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, al.f) do Código Penal [1.500,00], pela prática de um crime de furto, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º e 204.º, n.4 do Código Penal [gargantilha], pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, al.f) do Código Penal [300,00], pela prática de um crime de furto, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º e 204.º, n.4 do Código Penal [moedas de escudo], pela prática de um crime de furto, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º e 204.º, n.4 do Código Penal [moedas de prata], pela prática de um crime de furto, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º e 204.º, n.4 do Código Penal [75,00], pela prática de um crime de branqueamento de capitais, previsto e punido pelo artigo 368.º A, n.º 1, 3 e 12 do Código Penal [na sua atual redação], na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Foi ainda julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente/demandante BB e, em consequência, condenado o demandado AA no pagamento da quantia total de € 235.968,84 (duzentos e trinta e cinco mil novecentos e sessenta e oito euros e oitenta e quatro cêntimos), sendo € 232.468,84 a título de danos patrimoniais e € 3.500,00 a título de danos não patrimoniais, à qual acrescem juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos desde a prolação do presente acórdão relativamente aos danos não patrimoniais e vencidos desde a notificação para contestar o pedido relativamente aos danos patrimoniais, e vincendos até efetivo e integral pagamento.

Foram declarados perdidos a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 110.º do Código Penal, a quantia de € 238,36 constante na conta … do … e o veículo de matrícula ….

Foi declarado perdido a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, o valor de € 290.467,00 (duzentos e noventa mil quatrocentos e sessenta e sete euros) e foi decretado, nos termos do artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, o arresto dos seguintes imóveis:

- Apartamento sito na Rua …., …, registado e favor de CC, sob o número … da Conservatória do Registo Predial de …, inscrito na matriz sob o artigo …, com o valor de mercado de € 93.259,00 (noventa e três mil duzentos e cinquenta e nove euros);

- Apartamento sito na …, em …, registado em seu nome, sob o número …, da Conservatória do Registo Predial de …, inscrito na matriz sob o n.º …, com o valor de mercado de € 82.682,00 (oitenta e dois mil seiscentos e oitenta e dois euros);

- Moradia sita na Rua …, …, registado a favor de DD, sob o número … da Conservatória do Registo Predial de …, inscrito na matriz sob o n.º …, com o valor de mercado de € 99.100,00 (noventa e nove mil e cem euros);

- Lote de terreno, artigo urbano n.º …, em …, …, registado a favor de CC, sob o número … da Conservatória do Registo Predial da …, com o valor de mercado de € 15.426 (quinze mil quatrocentos e vinte e seis euros).

A questão em conciliar os direitos do Estado perante a condenação do arguido pela prática de um crime de branqueamento de capitais e a consequente perda alargada de bens, com os direitos do assistente em ver-se ressarcido dos prejuízos que a conduta do arguido lhe causou.

Conforme o decidido pelo Tribunal da Relação de Évora nos presentes autos, o regime previsto na Lei 5/2002, de 11.5 não substitui o regime previsto nos artigos 110.º (designadamente no n.º 6) e 130.º (designadamente o n.º 2) do Código Penal.

Até porque, nos termos da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia, devem os Estados Membros tomar as medidas necessárias para que, quando em consequência de infração penal as vítimas possam pedir uma reparação a pessoas sujeitas a medidas de perda previstas ao abrigo da presente diretiva, assegurar que as medidas de perda não impeçam que as vítimas reclamem uma indemnização.

Donde resulta que os direitos do Estado nunca podem sobrepor-se aos direitos dos ofendidos, como aliás decorre do artigo 110.º, n.º 6 do Código Penal, mesmo em caso de declaração de perda de bens a favor do Estado.

Por conseguinte, estabelece o artigo 130.º. n.º 2 e 4 do Código Penal que nos casos não cobertos por legislação especial, o Tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os instrumentos, produtos e vantagens declarados perdidos a favor do Estado ao abrigo dos artigos 109.º a 111.º, incluindo o valor a estes correspondente ou a receita gerada pela venda dos mesmos, ficando o Estado sub-rogado no direito do lesado à indemnização até ao montante que tiver satisfeito.

Ora, no caso, pese embora os bens arrestados e declarados perdidos a favor do Estado tenham sido adquiridos com dinheiro subtraído ao assistente, por força da condenação do arguido pela prática de um crime de branqueamento de capitais e da consequente aplicação do artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, outra não poderia ter sido a decisão do Tribunal senão a de declarar perdido a favor do Estado não os referidos bens (designadamente os imóveis) mas sim o valor correspondente à vantagem criminosa do arguido, para pagamento da qual foram arrestados bens.

Não obstante, transitada em julgado a decisão de perda, por força do disposto no artigo 130.º, n.º 2 do Código Penal, deverá o Tribunal assegurar que o prejuízo do lesado seja assegurado por via do produto dos bens declarados perdidos a favor do Estado – veículo automóvel – e por via do produto dos bens arrestados (imóveis).

Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de outubro de 2002, publicado em texto integral no site da DGSI (mencionado pelo assistente no seu requerimento de interposição de recurso), tudo se passará como que se o Estado, no que tange ao que foi declarado por perdido a seu favor e havendo uma vítima a ressarcir, ficasse como fiel depositário do que ficou declarado para lhe ser atribuído até que, por via de tal acervo patrimonial, se propicie efetivar, através dele e mediante ele, o ressarcimento daquela vítima.

E, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora no âmbito do recurso interposto neste processo “O Estado terá a “posse” dos bens até que se defina o seu destino ou o destino do valor da venda dos mesmos, sendo que o arresto impede o extravio desses bens por parte do arguido.”

Todavia, haverá igualmente que ter em consideração que por força da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, que ordenou a entrega imediata ao assistente do valor de € 238,26, redefinir o montante do prejuízo a ser satisfeito ao lesado por força do valor dos bens arrestados e declarados perdidos a favor do Estado.

Assim, à quantia total de € 235.968,84 (duzentos e trinta e cinco mil novecentos e sessenta e oito euros e oitenta e quatro cêntimos), da qual € 232.468,84 diz respeito a danos patrimoniais e € 3.500,00 a título de danos não patrimoniais, deverá subtrair-se a quantia de € 238,26 que será de imediato entregue ao lesado.

Em consequência, o valor do prejuízo do assistente, fixa-se em € 235.730,58, sendo € 232.230.58 a título de danos patrimoniais e € 3.500,00 a título de danos não patrimoniais, à qual acrescem juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos desde a prolação do presente acórdão relativamente aos danos não patrimoniais e vencidos desde a notificação para contestar o pedido relativamente aos danos patrimoniais, e vincendos até efetivo e integral pagamento.

E, em virtude do perdimento alargado por via da condenação por crime de branqueamento de capitais, o Estado arrecadará a diferença entre o valor do património incongruente declarado perdido a favor do Estado e o valor do prejuízo sofrido pelo assistente, sem prejuízo do direito de sub-rogação que lhe é conferido pelo n.º 4 do artigo 130.º do Código Penal.

Pelo exposto, decide-se que o veículo de matrícula …, ou o valor decorrente da sua venda e, os imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial de … sob o número …, … e … e o descrito na da Conservatória do Registo Predial da Chamusca sob o número …, ou o valor decorrente da sua venda, ficarão adstritos ao pagamento:

- em primeiro lugar, do montante de € 235.730,58 (duzentos e trinta e cinco mil setecentos e trinta euros e cinquenta e oito cêntimos) ao assistente BB, acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos desde a prolação do presente acórdão relativamente aos danos não patrimoniais e vencidos desde a notificação para contestar o pedido relativamente aos danos patrimoniais, e vincendos até efetivo e integral pagamento.

- em segundo lugar, da diferença entre o valor do património incongruente declarado perdido a favor do Estado e o valor do prejuízo sofrido pelo assistente ao Estado, por força do artigo 7.º da Lei 5/2002, de 11 de janeiro, ficando sub-rogado no direito do lesado à indemnização, contra o arguido, até ao montante que tiver satisfeito.

Notifique, sendo também a Direcção-Geral do Património do Estado (DGPE), ao GAB (Gabinete de Administração de Bens), e ao GRA (Gabinete de Recuperação de Ativos), e estas três entidades com cópia integral do acórdão proferido nos autos, do requerimento de fls. 2412 a 2416, do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora e da presente decisão.

3. Apreciando

3.1 Do direito ao adiantamento pelo Estado do valor da indemnização

O recorrente/lesado BB requereu no Tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo 130.º, § 2.º do Código Penal, que lhe sejam atribuídos os bens, produtos e vantagens declarados perdidos a favor do Estado nos presentes autos até ao limite do dano que lhe foi causado, valor esse que deverá ser adiantado pelo Estado, que ficará sub-rogado no direito do lesado à indemnização, até ao montante que tiver satisfeito, nos termos do § 4.º do mesmo normativo.

Lembremos: o direito indemnizatório de que o recorrente é indubitavelmente titular – conforme definido no acórdão já transitado em julgado -, tem como devedor condenado AA, não tendo o Estado a qualidade de devedor solidário!

Para além disso o Estado não tem, neste caso, o dever específico (especial) de assegurar a indemnização (devida ao lesado), por os crimes cometidos no caso julgado neste processo não estarem contemplados na legislação especial a que se reporta o § 1.º do artigo 130.º CP.

Se bem se vir, a sub-rogação prevista no § 4.º do artigo 130.º do CP, tem como pressupostos as circunstâncias previstas nos parágrafos que o antecedem, sendo que nenhuma delas o requerente densifica – na verdade sequer as alega.

O direito do lesado foi definido pela decisão já transitada do Tribunal a quo e com isso assegurou-se a tutela jurisdicional efetiva (artigos 2.º CPC e 20.º Constituição), não decorrendo da definição desse direito qualquer vulneração do direito de propriedade do recorrente nem a sua sobrevivência (mas como?) - artigos 130.º, § 3.º CP e 72.º da Constituição.

Diga-se, de passagem, que o recorrente – que tinha o ónus de indicar o fundamento legal da sua pretensão (artigo 412.º, § 2.º CPP) – se limitou a alinhar diversos normativos (artigos 110.º, § 6.º e 130.º, § 2.º do Código Penal; 8.º, § 10.º da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014; 2.º do CPC; e 20.º, 62.º e 72.º da Constituição da República Portuguesa), sem que deles se possa conjeturar como tal direito lhe pudesse advir!

Relembremos que a perda determinada nos presentes autos, o foi nos termos do artigo 7.º, § 1.º da Lei n.º 5/2012, de 11 de janeiro, regime especial que se não confunde com a perda de bens e vantagens concretas, previstos no artigo 110.º CP.

Com efeito, enquanto este se reporta a bens concretos produzidos pela prática do ilícito ou a vantagens adquiridas pelo facto ilícito (bens direitos ou vantagens com tradução económica), naquele (o fundamento jurídico constante do acórdão que decidiu a causa – já transitado) a «perda» não recaiu sobre bens determinados, mas sobre o valor correspondente à diferença entre o valor do património do agente do crime e aquele que se mostrava congruente com o seu rendimento lícito.

É essa a razão pela qual a Lei n.º 5/2012 prevê no § 1.º do seu artigo 8.º, estabelece a liquidação do montante apurado da incongruência referida, como aquele que deverá ser perdido a favor do Estado. E é este o preciso enquadramento da perda operada no presente processo.

Por tal razão se atribuiu diretamente ao recorrente a quantia de 238,36€ (que se encontrava depositado no banco e que era proveniente do facto ilícito cometido contra o seu direito de propriedade), a qual havia sido declarado perdida nos termos do artigo 110.º CP.

Mas o valor emergente da «perda ampliada», apurado nos termos do artigo 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, seguiu o regime especial citado previsto nesta Lei (v.g. artigo 12.º), representando o arresto de bens decretado, a garantia de que aquela perda se materializará em valor (artigo 10.º da Lei n.º 5/2002). E isso, contrariamente ao que parece sustentar o recorrente, em nada contraria o disposto no artigo 8.º, § 10.º da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho.

Nesta não só se preconiza que os Estados tomem as medidas necessárias para assegurar que as medidas de perda não impeçam que as vítimas reclamem uma indemnização; como se prevê a perda alargada de bens (artigo 5.º); como também a criação de serviços que assegurem a administração adequada dos bens congelados (considerando 32. e artigo 10.º).

Ora, a lei interna prevê os mecanismos que não só garantem o pedido e a tutela jurisdicional efetiva, como no caso concreto o recorrente reclamou indemnização e ela foi efetivamente decretada. Para mais, o Estado tomou ele próprio as providências que asseguram a satisfação integral daquela - até ao limite do valor liquidado da venda dos bens arrestados – nos termos que a lei igualmente regula. Dispondo o Estado de serviços próprios que realizam as operações de gestão e de liquidação dos patrimónios arrestados ou perdidos (Direção-Geral do Património do Estado; o Gabinete de Administração de Bens; e o Gabinete de Gestão de Ativos).

Nenhum normativo da Constituição da República, da União Europeia ou do direito ordinário interno prevê - muito menos impõe - que o Estado assegure (adiantando), nas circunstâncias do presente caso, a indemnização a que o recorrente tem direito.

Por isso, a seu tempo, realizadas que sejam as operações previstas no despacho de que se recorre, o recorrente (antes do próprio Estado) será ressarcido pelo produto dos bens vendidos – os quais por ora se mostram apenas arrestados.

E se os serviços do Estado não cumprirem os deveres funcionais que lhe cabem - hipótese que apenas se coloca porque vem esgrimida pelo cidadão recorrente – este tem ao seu dispor as regras gerais de responsabilização e ressarcimento dos prejuízos que daí lhe advierem, como é próprio de um Estado de Direito.

Mas para já o sistema mostrou que funciona. Não havendo razão para pensar que doravante será diferente. Havendo, ademais, canais de comunicação que poderão ser mobilizados, para o recorrente acompanhar os desenvolvimentos das operações (v. g. Lei n.º 45/2011, de 24 junho).

No âmbito das razões que se deixaram alinhavadas, evidencia-se que a pretensão do recorrente carece de fundamento, pelo que o recurso não é merecedor de provimento.

III – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente o douto despacho recorrido.

b) Custas apenas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.

Évora, 10 de janeiro de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Utilizar-se-á sempre a terminologia «demandante», por ser essa a qualidade que deveras tem o recorrente na matéria que vem sendo objeto de discórdia.

3 As conclusões constituem, nos termos da lei, conforme a doutrina e a jurisprudência vêm definindo, um resumo das questões discutidas na motivação, com referência ao objeto do recurso. Nelas não se incluem (naturalmente) matérias que não estão sob recurso (como as da crismada «aclaração»!