Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
145/15.2T8BNV.E1
Relator: PROENÇA DA COSTA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
INFRACÇÃO RODOVIÁRIA
DIREITO À IMAGEM
Data do Acordão: 06/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. O controlo de condução automóvel na via pública através da utilização de um radar, por não se inserir no tratamento de dados pessoais, não tem que ser comunicado à Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD);
II. O valor probatório do auto de notícia fundado na determinação, por aparelho de medição adequado, da velocidade de um veículo, não incide sobre a culpa ou a responsabilidade do transgressor, mas apenas sobre o facto concreto da medição de velocidade, não impedindo que o arguido continue a presumir-se incocente.
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 145/15.2T8BNV.

Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Em Processo de Contra-Ordenação, por Decisão da Autoridade Administrativa foi o arguido BB, condenado na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 120 dias, pela prática em 31/10/2013 da contra-ordenação prevista pelos art.ºs 27.º, n.º 1, 138º e 146º al. i), do Código da Estrada.
Porquanto, no dia 31 de Outubro de 2013, pelas 16 h 52m, na EN 119, Km 34,400, na localidade de Biscainho – Comarca de Benavente – enquanto conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, com a matrícula…, o arguido circulava a pelo menos 103 km correspondente à velocidade registada de 109 km/h deduzido o valor do erro máximo admissível.
Sendo que no local a velocidade máxima permitida era de 50 km/h.

Discordando dessa Decisão Administrativa, veio o arguido impugná-la Judicialmente.

Por Decisão da M.ma. Juiz do Tribunal da Comarca de Santarém - Instancia Local de Benavente - Secção Criminal – Juiz 1, veio julgar-se improcedente o recurso e, em consequência, a manter nos seus precisos termos a decisão administrativa recorrida.

Inconformado com o assim decidido, traz o arguido BB, o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
a) Não tendo sido observados os condicionalismos constantes da Lei nº 207/2005, o meio probatório invocado pela decisão recorrida é nula, sendo o meio de prova nulo á luz da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (cf. art. 8º), da Convenção nº 108/1981 do Conselho da Europa para a Protecção das Pessoas relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados de Carácter Pessoal ou a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cf. art. 8º), da Directiva nº 95/46/CEE, e do art. 2º do Protocolo nº 4 Adicional á Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (cf. art. 126º, nº 3 do Cod. Proc. Penal);
b) Não sendo a necessidade de controlo rodoviário um elemento excluidor do cumprimento da obrigação imposto pelos comandos legais acima mencionados, tanto mais que nada obsta a que a entidade recorrida dê cumprimento à obrigação legal de registo na CNPD;
c) Por violar a presunção de inocência do arguido, a decisão administrativa, ao lançar mão do art. 170º do Cod. da Estrada, é nula, em termos não conhecidos pela sentença recorrida;
d) A qual viola os comandos legais assinalados nas presentes conclusões.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências.

Respondeu ao recurso a Magistrada do Ministério Público, Dizendo:
1. A valoração da informação extraída da utilização de um radar, que foi homologado e aprovado após certificação pelo IPQ, mas que não foi comunicado à Comissão Nacional de Protecção de Dados nos termos do artigo 5º do Decreto-Lei nº 207/2005, não consubstancia nenhuma proibição de prova, mas apenas uma mera irregularidade insusceptível de afetar a validade de qualquer ato subsequente e que, in casu, já se encontra sanada.
2. O artigo 170º do Código da Estrada não padece de inconstitucionalidade.
3. A decisão recorrida não padece de qualquer nulidade.
4. Não foi violado qualquer imperativo legal.
Deste modo, o despacho recorrido não merece qualquer reparo, devendo ser mantido na íntegra e, consequentemente, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido recorrente, assim se fazendo JUSTIÇA!

Nesta Instância, o Sr. Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Em sede de decisão recorrida foram considerados os seguintes Factos:
Factos Provados:
1. No dia 31/10/2013 pelas 16h52m na EN 119, Km 34,400 na localidade de Biscainho – Comarca de Benavente – enquanto conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias com a matrícula … o arguido circulava a pelo menos 103 km correspondente à velocidade registada de 109 km/h deduzido o valor do erro máximo admissível;
2. No local a velocidade máxima permitida é de 50 km/h;
3. A velocidade foi verificada através do radar fotográfico Multanova identificado na decisão administrativa.
4. Ao praticar o facto descrito em 3 o arguido não agiu com o cuidado a que estava obrigado no exercício da condução do veículo supra-mencionado.
5. O arguido efectuou depósito que e converteu em pagamento da coima que lhe foi aplicada nos presentes autos;
6. O arguido tem averbado no RIC a prática em 01/03/2013 de uma infracção por utilização de telemóvel no exercício da condução tendo ficado inibido de conduzir por 30dias, sanção suspensa por 180 dias;
7. O arguido vive com a mulher e o filho de 8 anos, aufere vencimento de EUR. 600,00, e a mulher está desempregada; despendem EUR.500,00, com crédito à habitação, dependendo da ajuda de familiares para o sustento do agregado familiar.
Factos não Provados:
8. Na data e hora referida em 1 e no seu sentido de marcha, precedendo o veículo do arguido, seguia um veículo praticamente parado;
9. Enquanto se encontrava a ultrapassar este veículo foi o arguido quase abalroado por outro veículo com sinal sonoro fazendo insistentes sinais de luzes o que determinou que o arguido imprimisse momentaneamente maior velocidade ao seu veículo;

Em sede de fundamentação da decisão de facto consignou-se o seguinte:
(…)

Como sabido, são as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso.
Se bem lemos as conclusões formuladas pelo aqui impetrante duas são as questões colocadas a decisão deste Tribunal de recurso.

A primeira, prende-se com a validade da prova obtida com recurso ao uso de radar por, e sempre em seu entender, não ter sido efectuada a notificação relativa à utilização de radares junto da Comissão Nacional de Protecção de Dados.
Como sabido, a Lei n.º 1/2005, de 10 de Janeiro, veio regular a utilização de câmaras de vídeo pelas forças e serviços de segurança em locais públicos de utilização comum, para captação e gravação de imagem e som e seu posterior tratamento, como decorre do seu art.º 1.º, n.º 1.
Dizendo-se no seu art.º 13.º, n.º 1, sob a epígrafe de Utilização de sistemas de vigilância rodoviária, normativo, entretanto, alterado pela Lei n.º 39-A/2005 de 29-07-2005, que com vista à salvaguarda da segurança das pessoas e bens na circulação rodoviária e à melhoria das condições de prevenção e repressão das infracções estradais é autorizada a instalação e a utilização pelas forças de segurança de sistemas de vigilância electrónica, mediante câmaras digitais, de vídeo ou fotográficas, para captação de dados em tempo real e respectiva gravação e tratamento (…).
Importa conjugar o acabado de mencionar com o disposto no Dec. Lei n.º 207/2005, de 29 de Novembro, que versa sobre sistemas de vigilância rodoviária e tratamento da informação.
Constituindo tais sistemas de vigilância – como se dá nota no seu preâmbulo - um importante instrumento no quadro das políticas de prevenção e de segurança rodoviárias, bem como na detecção de infracções estradais.
Postulando-se no art.º 5.º - sob a epígrafe de Dever de notificação – seu n.º 1 que as forças de segurança responsáveis pelo tratamento de dados e pela utilização dos meios de vigilância electrónica notificam a CNPD das câmaras fixas instaladas, com identificação do respectivo modelo, características técnicas e número de série e dos locais públicos que estas permitem observar, bem como do nome da entidade responsável pelo equipamento e pelos tratamentos de dados.
E no seu n.º 2 que são igualmente notificados os meios portáteis disponíveis, com identificação do respectivo modelo, características técnicas e número de série.
Cabe decidir qual a consequência da não comunicação dos dados à Comissão Nacional de Protecção de Dados.
A respeito, importa fazer intervir o que se dispõe no art.º 21.º, n.º 1, da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, onde se diz que a CNPD é uma entidade administrativa independente, com poderes de autoridade, que funciona junto da Assembleia da República. Tendo como atribuição controlar e fiscalizar o cumprimento das disposições legais e regulamentares em matéria de protecção de dados pessoais, como decorre do art.º 22.º, n.º 1, da mesma Lei. Dados pessoais que se encontram elencados no art.º 23.º, da citada Lei n.º 67/98.
Entendendo-se por dados pessoais, no dizer do art.º 3.º, al.ª a), qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável ('titular dos dados'); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social.
Impendendo sobre os responsáveis pelo tratamento de dados pessoais o dever de notificar a CNPD antes da realização de qualquer tratamento, como decorre do art.º 27.º, n.º 1, daquela Lei. Sob pena de não o fazendo incorrerem na prática da contra-ordenação prevenida no art.º 37.º, da Lei n.º 67/98.
Temos, desta feita, em causa o tratamento de dados pessoais e não dados relativos à condução automóvel na via pública.
Tudo, por os agentes se limitarem a captar a imagem da viatura, e tão só desta, através da câmara fotográfica que utilizaram para o efeito.
Daí se afastar qualquer violação do direito à imagem. Direito à imagem, enquanto direito autónomo, com consagração constitucional, como bem decorre do estatuído no art.º 26.º, n.º 1, da C.R.P. Abrangendo tal direito, além do direito de cada um a não ser fotografado nem ver o seu retrato exposto em público sem seu consentimento, ainda o direito de não se ver apresentado em forma gráfica ou montagem ofensiva e malevolamente distorcida ou infiel.[1]
Como não descortinamos onde o acabado de tecer pode vir atentar contra a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - seu art.º 8.º (sobre Protecção de dados pessoais) – ou contra Convenção Europeia dos Direitos do Homem – seu art.º 8.º (Direito ao respeito pela vida privada e familiar – quando a existir violação seria do direito à imagem) – ou contra Protocolo nº 4 Adicional á Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais – seu art.º2.º (Liberdade de circulação); nem o aqui impetrante tal concretiza.
O bastante para que se venha concluir no sentido de a prova que serviu de base à convicção do tribunal não padecer da nulidade a que alude o art. 126º, do Cód. Proc. Pen., como pretende o aqui impetrante.

A Segunda, prende-se com a constitucionalidade, ou não, do art.º 170.º, do Cód. Est.
Tudo, por na óptica do aqui recorrente, ao conferir-se ao auto de notícia, verdadeira acusação, fé absoluta até prova em contrário, estar-se a violar o princípio da presunção da inocência do arguido, em evidente violação do disposto no art.º 32.º, n.º 2, da Constituição da Republica Portuguesa.
Importa reter a redacção do art.º 170.º, do Cód. Est., mormente os seus n.ºs 3 e 4.
No n.º 3 refere-se que o auto de notícia levantado e assinado nos termos dos números anteriores faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário.
Dizendo-se no n.º 4 que o disposto no número anterior aplica-se aos elementos de prova obtidos através de aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares.
O Tribunal Constitucional chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da “fé em juízo” dos autos de notícia, ainda no âmbito do anterior Código da Estrada, veio em vários Arestos pronunciar-se pela sua constitucionalidade.
Do que são exemplo, entre outros, os Acórdãos n.º 437/87, de 4.11.1987, no Processo n.º 287/86, da 2.ª Secção, n.º 35/88, de 3.02.1998, no Processo n.º 267/86, da 1.ª Secção, n.º 36/88, de 3.02.1988, no Processo n.º 286/87, de 3.02.1988, no Processo n.º 290/87, da 1.ª Secção e o n.º 416/89, de 15.06.89, no Processo n.º 20/89, da 1.ª Secção.
Firmando entendimento de que o valor probatório do auto de notícia fundado na determinação, por aparelho de medição adequado, da velocidade de um veículo, não incide sobre a culpa ou a responsabilidade do transgressor, mas apenas sobre o facto concreto da medição da velocidade, não impedindo que o réu continue a presumir-se inocente.
Sendo que tal valor probatório não obriga a dispensar a produção, em julgamento, de qualquer outra prova que se repute necessária, designadamente para questionar o próprio auto de notícia.
Devendo o julgamento subordinar-se ao princípio do contraditório e realizar-se com observância das regras da oralidade e imediação.
E que existindo dúvida sobre a velocidade a que seguia o infractor, sempre essa dúvida se há-de resolver a favor deste, por força do principio "in dubio pro reo".
Não vemos como não aplicar tais ensinamentos ao teor do art.º 170.º, do actual Código da Estrada, mormente, quando se tiver em conta a parte final do seu n.º 3 “faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário”.

Sendo nestes vectores que o recorrente funda o recurso por si trazido a pretório, importa concluir pela sua total improcedência.

Termos são em que Acordam em negar provimento ao recurso, confirmando-se a Decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 Ucs, a taxa de Justiça devida.

(texto elaborado e revisto pelo relator).
Évora, 7 de Junho de 2016
José Proença da Costa (relator)
António Clemente Lima

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[1] Ver, Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição de República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, pág. 181.