Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
713/12.4TBENT.E1
Relator: ACÁCIO NEVES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
MILITAR
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O processamento e julgamento de acção de responsabilidade civil extra-contratual, intentada contra o Estado Português e a Herança aberta por óbito de militar que conduzia uma viatura militar em serviço (e que, com culpa sua, originou o capotamento da mesma - do que resultou a morte do referido militar e danos para o autor, também ele militar, que seguia na mesma viatura) é da competência dos tribunais administrativos, também em relação à ré Herança, atento o disposto na alínea h) do nº 1 do artigo 4.º do ETAF.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Procº. Nº. 713/12.4TBENT.E1 (2ª Secção Cível)
Acordam nesta Secção Cível os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

(…) intentou, em 12.07.202, acção declarativa ordinária contra a Herança Aberta por óbito de (…), na pessoa dos seus herdeiros e representantes (…) e (…), e o Estado Português, pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia de € 240.000,00, acrescida de juros de mora desde a citação.

Alegou, para tanto e em resumo, que em 13.07.2010, a viatura militar em que, no exercício das suas funções de soldado do exército português, seguia juntamente com outros soldados e que era conduzida, na A23 pela 1ª Cabo (…), capotou, por culpa da condutora e devido ao excesso de velocidade e que, em consequência de tal acidente, para além de ter resultado a morte da condutora e de um outro ocupante, resultaram para o outro ocupante e para si determinadas lesões corporais, que lhe causaram danos diversos.

Citado, o Estado Português, representado pelo Ministério Público, apresentou contestação, na qual, para além de se defender por impugnação, invocou a incompetência do tribunal judicial (do Entroncamento) onde foi intentada a acção, em razão da matéria, em virtude de serem competentes para o efeito os tribunais administrativos.

(…), na qualidade de legal representante da ré Herança de (…), sua filha, apresentou também contestação, na qual, para além de se defender por impugnação, defendendo a competência do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, invocou igualmente a incompetência do tribunal judicial “a quo”, em razão da matéria.

O autor replicou, pugnando pela improcedência da invocada excepção de incompetência. Uma vez que (…) (pai da falecida …) renunciou à herança, foi ainda citada, enquanto herdeiros deste, (…) e (…), sendo que esta, de menor idade veio igualmente suscitar a excepção da incompetência do tribunal em razão da matéria.

Seguidamente foi proferido despacho saneador, nos termos do qual, se julgou o tribunal materialmente incompetente para conhecer da questão da responsabilidade civil do réu Estado Português, absolvendo o mesmo da instância.

Inconformada, interpôs a ré Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de (…) o presente recurso de apelação, em cujas alegações, terminando pedindo a revogação do douto despacho, na parte relativa à competência do tribunal em razão da matéria e no respeitante à co-Ré “Herança” e a sua substituição por decisão que declare o Tribunal Judicial do Entroncamento materialmente incompetente para julgar a presente ação, absolvendo-se a apelante da instância e deferindo-se a competência material ao foro administrativo, nomeadamente ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria e, subsidiariamente, que seja a apelante julgada parte ilegítima para a presente causa e, em consequência, absolvida da instância, apresentou as seguintes conclusões:

1ª - O douto despacho saneador recorrido bem andou em julgar materialmente incompetente o Tribunal Judicial do Entroncamento relativamente ao co-Réu “Estado Português” e ao deferir tal competência ao tribunal administrativo para dirimir o pleito dos autos relativo à efetivação da responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação;
2ª - Mas mal andou quando não considerou o mesmo Tribunal Judicial do Entroncamento incompetente em razão da matéria para julgar a responsabilidade civil extracontratual emergente do mesmo acidente relativa à pessoa da falecida condutora do veículo sinistrado e de que a sua “Herança Ilíquida e Indivisa” é aqui co-Ré e apelante;
3ª - A falecida condutora do veículo acidentado dos autos era trabalhadora, funcionária ou agente do co-Réu “Estado Português” e conduzia por conta e no interesse deste;
4ª - A partir da entrada em vigor do ETAF de 2002, a efetivação da responsabilidade civil extracontratual, incluindo a emergente de acidentes de viação, das pessoas coletivas de direito público, o que é o caso do co-Réu “Estado Português”, e dos seus trabalhadores, funcionários ou agentes, o que é o caso da falecida condutora do veículo sinistrado cuja “Herança Ilíquida e Indivisa” é aqui co-Ré e apelante, passou a ser dirimida junto dos tribunais administrativos e fiscais e não dos tribunais comuns, pois o critério de distinção da competência material do foro deixou de ser se o ato era de gestão pública ou privada e passou a ser subjetivo ou quanto à qualidade da pessoa colectiva (pública ou privada) e dos seus trabalhadores, funcionários, agentes ou servidores;
5ª - O douto despacho saneador recorrido deveria ter declarado o Tribunal Judicial do Entroncamento igualmente incompetente em razão da matéria relativamente à co-Ré e apelante “Herança Ilíquida e Indivisa Aberta Por Óbito de (…)”, à semelhança do que fez relativamente ao co-Réu “Estado Português” e deferir tal competência ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria;
6ª - Nos presentes autos o co-Réu “Estado Português” surge “ex-vi legis” como se fora uma seguradora relativamente à responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação, tendo o dever de indemnizar os eventuais danos sofridos pelos lesados, daí que deverá ser demandado conjunta e simultaneamente e no mesmo foro com o condutor do veículo causador do acidente, nenhum sentido fazendo o seu julgamento em foros diferentes;
7ª - O presente acidente de viação consubstancia também um acidente em serviço cujo tribunal competente para a sua resolução é o tribunal administrativo;
8ª - O facto da condutora do veículo que originou o acidente ter falecido nele e de nos presentes autos ter sido demandada a sua “Herança Ilíquida e Indivisa” não descaracteriza o acidente como acidente em serviço nem altera a competência material do foro e que é o foro administrativo e não o foro comum;
9ª - Ao não considerar o Tribunal Judicial do Entroncamento materialmente incompetente e ao não absolver da instância a co-Ré “Herança” aqui apelante, interpretou erroneamente e logo não aplicou, quando devia ter aplicado, o Mmo. Juiz recorrido as als. g) e h) do art. 4º do ETAF;
10ª - Ao decidir como decidiu violou o Mmo. Juiz recorrido as als. g) e h) do art.4º do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002,e o art. 64º do CPC.
11ª - Independentemente do supra exposto quanto à incompetência em razão da matéria, sempre a co-Ré e apelante deveria ter sido considerada parte ilegítima para a causa, já que respondendo o co-Réu “Estado Português” quanto à responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação nos mesmos termos em que responde o segurador, isto significa que na presente causa por os danos e o respetivo pedido (€ 240 000,00) se conterem dentro dos limites do capital mínimo obrigatoriamente seguro para a época do acidente (€ 2.500.000,00 para danos corporais e € 750.000,00 para danos materiais) só o co-Réu “Estado Português” podia e devia ter sido demandado, só ele sendo parte legítima e a co-Ré e apelante só poderia e deveria ter sido demandada caso os danos e o pedido ultrapassassem estes últimos montantes;
12ª - Ao não se decidir pela ilegitimidade passiva da co-Ré, ora apelante, não aplicou o Mmo Juiz recorrido, quando devia ter aplicado os arts. 9º nº 3, 12º nº 2 e 64º nº 1 al. a) do Dec. Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto; 13ª - Como tal, violou o Mmo. Juiz recorrido os preceitos indicados na conclusão anterior e os arts. 30º, 32º e 33º do CPC. Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados os vistos, cumpre decidir:

Em face do conteúdo das conclusões das alegações da apelante, enquanto delimitadoras do objecto do recurso, são as seguintes as questões de que cumpre conhecer:

- incompetência do tribunal “a quo” em razão da matéria, também em relação à ré apelante;

- ilegitimidade passiva da ré apelante. Para conhecer de tais questões, haverá que atender aos elementos constantes dos autos, referidos no relatório supra.

Quanto à incompetência:

Conforme supra se refere, para além do Estado Português, também a ré Herança de (…), ora apelante, invocou a excepção de incompetência absoluta, em razão da matéria do tribunal judicial “a quo”, onde foi intentada a acção.

De resto, tal facto até é mencionado no relatório do despacho saneador, na parte em que conheceu de tal excepção dilatória. Não obstante, conforme se alcança da decisão recorrida, apreciando a questão da competência em razão da matéria relativamente ao réu Estado Português, decidindo no sentido de tal incompetência em relação (e apenas) a este, o tribunal acabou por não apreciar especificamente a questão de tal incompetência em relação à ré ora apelante.

Com efeito, e para além de nada ter sido decidido expressamente no sentido da procedência ou da improcedência dessa excepção em relação à ré apelante (que também a invocou), o tribunal “a quo” apenas consignou que “verifica-se uma situação de litisconsórcio voluntário passivo… mercê de estar em causa uma obrigação solidária com fonte em responsabilidade civil extracontratual… que consente o prosseguimento da acção contra apenas um dos responsáveis” e que “por outro lado, a competência dos tribunais administrativos não é afastada pela circunstância de o autor pedir a condenação solidária de entidades públicas e de entidades particulares e de para o conhecimento do pedido formulado contra estas últimas ser competente o “tribunal comum”…” Embora daí se possa concluir que o tribunal terá entendido que era competente em relação à ré apelante, o certo é que não apreciou tal questão – não invocando quaisquer fundamentos (designadamente no sentido de contrariar o fundamento legal invocado pela apelante) e nada decidindo especificamente.

Estar-se-ia manifestamente perante uma nulidade da decisão, resultante da falta de apreciação de questão que, tendo sido suscitada, importava conhecer (art. 615º, nº 1, al. d) do CPC). Todavia tal nulidade não foi sequer invocada, sendo certo que, ainda que a mesma devesse ser declarada, sempre se imporia que esta Relação conhecesse do objecto da apelação, ou seja da questão suscitada no recurso, designadamente daquela de que ora nos ocupamos, nos termos do disposto no nº 1 do art. 665º do CPC.

Conforme se alcança da contestação da ré apelante, esta invocou e defendeu, em relação a si, a incompetência do tribunal em razão da matéria, por considerar competente o tribunal administrativo (Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria), face ao disposto nas als. g) e h) do (nº 1) do art. 4º do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.02, e alterado pela Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro – fundamento este que volta a invocar no presente recurso.

Estabelece actualmente o art. 4º do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.02 – com a alteração introduzida pela Lei 107-D/2003, de 31.12), no seu nº 1, als. (invocadas) g) e h) o seguinte: “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto:

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos”.

Conforme tem sido entendido pacificamente na jurisprudência o conhecimento da questão da excepção da competência em razão da matéria terá que se fundar na forma como a acção foi configurada pelo autor ou seja em função do pedido ou pedidos formulados e, em especial, da causa de pedir invocada (vide, entre outros, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 09.12.2014, em que é relator Garcia Calejo, in www.dgsi.pt).

Desde já se diga que o caso dos autos não pode ser de forma alguma enquadrado na previsão da invocada e supra transcrita alínea g), na medida em que esta respeita apenas às pessoas colectivas de direito público – situação na qual manifestamente se não enquadra a ré apelante.

Todavia, o mesmo já não sucede com a previsão da também invocada, e supra transcrita, al. h) na medida em qua a mesma respeita à responsabilidade civil extracontratual dos “funcionários, agentes e demais servidores públicos”, do Estado ou das pessoas colectivas de direito público – situação essa em que se deve enquadra a condutora da viatura militar, cuja herança, ora apelante, foi demandada e está ora em causa.

Com efeito, nos termos alegados na petição inicial a condutora da viatura militar, conduzia esta no exercício das suas funções de militar do exército português (1º cabo) quando se deu o acidente em causa nos autos.

E assim sendo, nos termos de tal disposição, também em relação à ré apelante, é competente para dirimir o litígio inerente aos autos a jurisdição administrativa.

Nestes termos, e sem necessidade de outros considerandos, havermos de concluir no sentido de, também em relação à ré apelante, o tribunal judicial “a quo” se verificar a invocada excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria – havendo, também que absolver a mesma da instância.

Quanto à ilegitimidade passiva da ré:

Trata-se de questão que, para além de constituir uma questão nova, que só agora foi suscitada (sendo certo que, como é sabido, os recursos apenas visam a reapreciação das decisões recorridas e das questões que, tendo sido oportunamente suscitadas, ali foram apreciadas), foi suscitada apenas subsidiariamente, para a hipótese de improceder a outra questão.

De qualquer forma, é manifesto que a solução dada à questão da excepção dilatória relativa à incompetência material do tribunal “a quo”, em relação à apelante (que sempre haveria de ser conhecida primeiramente) acaba por prejudicar o conhecimento da questão da ilegitimidade – razão pela qual dela nos absteremos de conhecer.

Termos em que, julgando procedente a apelação, se acorda:

a) Em revogar o despacho saneador na parte em que nele se não julgou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal judicial “a quo”, relativamente à ré apelante, e por esta invocada, e se ordenou quanto a esta o prosseguimento dos autos;

b) Em julgar procedente, também em relação à ré apelante, a referida excepção;

c) E, em consequência, em absolver também da instância a ré apelante.

Custas da acção e da apelação a cargo do autor. Évora, 12 de Março de 2015

Acácio Luís Jesus das Neves

José Manuel Bernardo Domingos

João Miguel Ferreira da Silva Rato