Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
318/08.4TBPSR-A.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
HERANÇA INDIVISA
PENHORA
FORMALIDADES
REGISTO
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
A penhora do direito do executado a herança indivisa não está sujeita a registo, ainda que na herança se integrem bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, por não se concretizar em bens certos e determinados.
Decisão Texto Integral:

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. CC deduziu embargos de terceiro, por apenso à execução dos autos principais, em que é exequente Banco DD, S.A., e executados EE e FF, pedindo o levantamento da penhora sobre o direito ao quinhão hereditário da executada, da qual fazem parte o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 85.º, secção AA3, da freguesia de P…, e descrito na CRP sob o n.º 7631 da mesma freguesia, e o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 8.º, secção E3, da freguesia de G… e descrito na CRP sob o n.º 1916 da mesma freguesia.

2. Para tanto, alegou, em síntese, que nos autos principais foram penhorados esses imóveis mas que, pese embora o exequente tenha apontado a embargante como co-proprietária desses imóveis, juntamente com os executados, a verdade é que desde há mais de trinta anos que a compropriedade cessou em virtude da divisão que foi feita dos prédios n.º 7631 e n.º 1916.
Assim, alega a embargante que GG e mulher e HH e mulher herdaram de seus pais, os referidos prédios, em 03/03/1975, herdando cada um metade dos prédios. E que, logo após essa aquisição por partilha, os proprietários dividiram cada um dos prédios em duas partes, delimitando-os por marcos, e passando cada um a explorá-los, ficando o artigo matricial 85.º, secção AA3, do prédio descrito na CRP sob o n.º 7631, e o artigo matricial 8.º, secção E3, do prédio descrito na CRP sob o n.º 1916 a pertencer a GG e mulher.
Mais refere que, por sua vez, a embargante e o seu marido adquiriram a estes, por compra datada de 15/03/1975, os referidos artigos matriciais, sendo que no artigo matricial 85.º, secção AA3, se compreendia uma casa de habitação e anexo, casa esta que foi inscrita na matriz sob o artigo 5920.º, e que, desde então, a embargante e o marido passaram a explorar as terras e a habitar a parte urbana, de modo público e sem oposição, adquirindo-os por usucapião.
Conclui, assim, que a penhora realizada nos autos principais ofende a sua posse, devendo ser cancelada, o que pede.

3. Após convite, a embargante veio dizer que tomou conhecimento da penhora com a notificação que lhe foi remetida pela agente de execução (cf. doc. de fls. 11), e juntar certidão da escritura de compra e venda e certidões do registo predial referentes aos imóveis em causa.
Procedeu-se à inquirição de testemunhas, para se aferir da admissibilidade dos embargos.
Por determinação do tribunal veio o Agente de Execução (AE) informar que “não foi lavrado o auto de penhora referente ao quinhão hereditário da executada” e que “à vista dos embargos de terceiro, o MI Mandatário da Exequente requereu ao ora signatário que não promovesse o registo de penhora …” (cf. fls. 60), posição que reiterou a fls. 75, esclarecendo que notificou a comproprietária nos termos do disposto no artigo 781º do Código de Processo Civil, para penhora do direito da executada nos imóveis, mas que o registo não foi efectuado a pedido do mandatário da exequente, pelo que, no entendimento do ora signatário, a penhora não ficou concluída.

4. Após audição da embargante foi proferido despacho de rejeição dos embargos, por manifesta improcedência.

5. Inconformada recorreu a embargante, concluindo pelo recebimento e prosseguimento dos embargos, com os fundamentos que assim sintetizou:
1.ª A recorrente foi notificada de que se considera penhorado o direito que tinha sobre determinados bens em situação de com propriedade.
2.ª Com fundamento de que, por usucapião, passou a ser proprietária de parte especifica de tais bens, deduziu embargos de terceiro.
3.ª A Meritíssima Juiz aceitou que foi notificada a penhora; que os embargos são tempestivos e não pôs em causa que não tivesse fundamento o que neles se alegou.
4.ª Todavia, rejeitou-os alegando que a penhora não chegou a ser feita, nem feito o registo.
5.ª Ora, não pode esquecer-se que, no processo, a embargante está confrontada com a comunicação de que foi feita penhora que a atinge.
6.ª No seu entender, não pode, sem a sua concordância, ter-se por extinta a instância dos embargos só porque a exequente decidiu não levar por diante os efeitos da penhora.
7.ª Os embargos deviam, devem, ser recebidos e decididos conforme o direito. A sua rejeição viola o disposto no artº342° n.º l e 345° do C.P.Civil.
8.ª A não se entender assim, não podem as custas ser lançadas a seu cargo. Quem a elas deu causa foi a exequente ou o AE.
Atento o exposto deve revogar-se o douto despacho e ordenar-se que sejam recebidos os embargos e se siga a posterior tramitação.
A não se entender assim, deve em qualquer caso, alterar-se a decisão quanto a custas, fazendo-as recair sobre a exequente ou sobre o AE.

6. Não se mostram juntas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, a questão a decidir consiste em saber se os embargos devem ser rejeitados por inexistência do acto ofensivo da posse da embargante, por a alegada penhora dos imóveis não ter sido concretizada por falta de registo.
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III – Fundamentação Fáctico-Jurídica
A) - Os Factos
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais resultantes do relato dos autos, sendo ainda de salientar que:
- O Agente de Execução dirigiu à Embargada a seguinte notificação:
“Fica V. Exa. Notificada, nos termos e para os efeitos do artigo 781º do CPC, na qualidade de co-proprietária, que se encontra penhorada a metade indivisa que integra a herança aberta por óbito de HH, da herança aberta por óbito de II e da herança aberta por óbito de JJ …, em que é executada EE, considerando-se penhorado o direito ao quinhão hereditário da qual fazem parte os seguintes bens:
· ½ do prédio rústico, sito em E…, inscrito no Serviço de Finanças de P…, sob o artigo matricial 85, secção AA3, e descrito na Conservatória do registo Predial de P…, sob o n.º 7631/20160317, da freguesia de P…;
· ½ do prédio rústico, sito em G… inscrito no Serviço de Finanças de P…, sob o artigo matricial 8, secção E3, e descrito na Conservatória do Registo Predial de P…, sob o n.º 1916/20160317, da freguesia de G….
(…)”
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B) – O Direito
1. No despacho recorrido concluiu-se pela rejeição dos embargos com os fundamentos seguintes:
«Dispõe o artigo 342.º do CPC que: “1- Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro. 2 - Não é admitida a dedução de embargos de terceiro relativamente à apreensão de bens realizada no processo de insolvência.”.
Por sua vez, dispõe o artigo 344.º do CPC que “1 - Os embargos são processados por apenso à causa em que haja sido ordenado o ato ofensivo do direito do embargante. 2 - O embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respectivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas.”.
Por fim, nos termos do artigo 345.º do Código de Processo Civil, sendo apresentado em tempo e não havendo razões para o imediato indeferimento da petição, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante.
Posto isto, considerando o que foi alegado pela embargante quanto à tempestividade dos embargos, entendemos, por um lado, que a dedução dos presentes embargos foi apresentada em tempo, porquanto aquela refere apenas ter tomado conhecimento da penhora no dia 31.7.2017 e verifica-se que os embargos foram deduzidos em 29.9.2017, estando, assim, cumprido o prazo legal.
Todavia, ao contrário do que alega a embargante, não estão verificados os pressupostos da dedução dos embargos, desde logo porque não existe qualquer ato lesivo do seu direito porquanto não existe qualquer auto de penhora nem está registada qualquer penhora sobre os imóveis em causa (cfr. fls. 45 a 48).
Assim, sendo certo que, nos autos principais, a embargante foi notificada (cfr. fls. 226 e 228) pelo agente de execução de que teria sido penhorado o direito ao seu quinhão hereditário da qual faziam parte os imóveis descritos na CRP de P… sob o n.º 7631 e 1916, a verdade é que tal apreensão ou penhora nunca foi feita, não só porque não existe qualquer auto de penhora nos autos principais quanto a esse direito hereditário ou a esses bens, como não foi inscrita qualquer penhora no registo predial respectivo.
E, assim, invocando a embargante que se verificou a ofensa do seu direito de propriedade em virtude da penhora dos seus imóveis realizada nos autos principais, mas verificando-se que, na verdade, tal penhora não existiu nem foi concretizada (de facto, não se percebe sequer a notificação que lhe foi feita pelo agente de execução), sempre a reacção da embargante é desnecessária e inútil.
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Por todo o exposto, verificando-se que não existiu qualquer ofensa do direito de propriedade da embargante, rejeito os presentes embargos de terceiro, que são manifestamente improcedentes.»

2. A recorrente discorda deste entendimento, sustentando, em síntese, que os embargos foram considerados como tendo sido apresentados tempestivamente e que a recorrente foi confrontada com a notificação da penhora que atinge o seu direito, pelo que não podia ter-se por extinta a instância só porque a exequente não levou por diante os efeitos da penhora.
Ou seja, no entendimento da recorrente, contrariamente ao decidido, a penhora de direitos indivisos tem-se por efectuada com a “notificação do facto ao administrador dos bens, se os houver, e aos contitulares …”, não sendo registável.
E, afigura-se-nos que lhe assiste razão.
Senão vejamos:

3. Como resulta da notificação dirigida pelo AE à embargante, a mesma reporta-se à penhora do quinhão hereditário da executada EE, na herança ali identificada, da qual fazem parte as quotas correspondentes a ½ dos imóveis que ali também se identificam, sobre os quais a embargante é titular inscrita do direito a ½ de cada um deles (cf. certidões do registo predial juntas aos autos).
No artigo 781º do Código de Processo Civil [correspondente ao anterior artigo 862º] estabelece-se as especialidades do procedimento da penhora que tenha por objecto o quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, prescrevendo-se a este respeito no n.º 1 que: “Se a penhora tiver por objecto quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, a diligência consiste unicamente na notificação do facto ao administrador dos bens, se o houver, e aos contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efectuada.”
Como se diz no preceito, a penhora efectiva-se – “unicamente” – por notificação do agente de execução aos contitulares (ao comproprietário, ao cônjuge, ao co-herdeiro) e ao administrador dos bens, caso exista, “com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução”.
Porém, como refere Rui Pinto que «… a penhora de parte, quota ou quinhão hereditário em bem indiviso, móvel ou imóvel, sujeito a registo faz-se segundo o sistema do artigo 755º, aplicável por força do artigo 783º.» (A Ação Executiva, 2018, AAFDL, pág. 613/614)
Mas, como nos dá conta o mesmo autor, em comentário à posição de Remédio Marques (CPex, p. 242), [para quem, “se o objecto do direito numa compropriedade ou num património autónomo for um imóvel, não se segue o regime da penhora de imóveis (…). Esta penhora não é, por conseguinte registável], «… uma coisa é a penhora de parte em património autónomo ou universalidade – bens comuns, herança – onde caibam bens imóveis, outra coisa é a penhora de bens imóveis em compropriedade. Na verdade, é só no primeiro caso que não há lugar a registo, porquanto o que é penhorado é a parte no direito à universalidade, e não as quotas-partes nos direito que a compõe, não se conhecendo se virão a calhar ao executado imóveis ou móveis sujeito a registo – assim, neste sentido e só para esta hipótese, Alberto dos Reis, PEx II, cit, 224-225 e RP 16-1-1974, BMJ 233-243; já no segundo caso, deve ser levado a cabo o registo».

4. Ora, no caso em apreço não subsistem dúvidas de que a penhora incidiu, não sob uma quota-parte dos imóveis detidos em compropriedade, mas sobre o quinhão hereditário da executada, do qual fazem parte a quota dos dito imóveis, pelo que, pelas razões acima apontadas se entende que a penhora se efectua por notificação, nos termos previstos no artigo 781º do Código de Processo Civil, não estando sujeita a registo.
Neste sentido, veja-se entre outros, o recente acórdão da Relação de Lisboa, de 11/04/2019 (proc. n.º 171/17.7T8MFR.L1-6), disponível, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt, onde se conclui que: «I - A penhora do direito do executado a herança indivisa efectua-se mediante notificação do facto ao cabeça-de-casal e aos demais herdeiros, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação.
II- Esta penhora não está sujeita a registo, ainda que na herança se integrem bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, por não se concretizar em bens certos e determinados, integrando a excepção consagrada na al. c), do nº2, do artigo 5º do Código de Registo Predial.»
Em sentido idêntico, veja-se ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/05/12 (Salazar Casanova), proferido no proc. n.º 1718/03.1TBILH.C1.S1, e de 30/03/06 (Pereira da Silva), proferido no Proc. nº 05B3646; e da Relação do Porto, de 13/05/2003 (Cândido Pelágio Castro Lemos), proc. 0322275, e de 27/04/2004, (Emídio Costa), proc. n.º 0421355).

5. Deste modo, não se pode concluir, como se fez na decisão recorrida, pela inexistência de penhora e pela desnecessidade de recurso da embargante à defesa da sua posse, mediante a dedução dos embargos.
Claro que o exequente poderá ter perdido o interesse na manutenção da penhora, como parece resultar da resposta do AE, mas, como diz a recorrente, não desistiu da penhora, e, por conseguinte, mantendo-se a penhora, não ocorre o invocado fundamento para rejeição dos embargos por manifesta improcedência, como se decidiu.

6. Em consequência, procede a apelação, com a consequente revogação do despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que admita os embargos, prosseguindo os autos os seus termos, se outra causa não sobrevier que a tal impeça.
Não são devidas custas, porquanto o embargante a elas não deu causa.
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C) – Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
A penhora do direito do executado a herança indivisa não está sujeita a registo, ainda que na herança se integrem bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, por não se concretizar em bens certos e determinados.
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que admita os embargos, prosseguindo os autos os seus termos, se outra causa não sobrevier que a tal impeça.
Sem custas.
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Évora, 11 de Julho de 2019

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(Francisco Xavier)

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(Maria João Sousa e Faro)

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(Florbela Moreira Lança)