Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1279/14.6T8STR.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: PLANO DE RECUPERAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Em processo de revitalização, não deve o Tribunal deixar de homologar o Plano de Recuperação – por não violar o princípio da igualdade entre credores, nos termos dos artigos 194.º e 215.º, ex vi do artigo 17.º-F, n.º 5, do CIRE – que preveja, embora sem o acordo de todos, o pagamento integral dos contratos de locação financeira, a fim de evitar a sua resolução, com a perda das rendas já pagas e a imediata devolução dos bens objecto da locação, pois que, nesse caso, cumpre ainda o Plano a função de revitalização para que tende.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 1.279/14.6 – APELAÇÃO (SANTARÉM)


Acordam os juízes nesta Relação:

A Apelante “(…)” (Sucursal da S. A. Francesa), com sede na Avenida de (…), n.º 52-6º, em Lisboa (na qualidade de credora reclamante do presente processo especial de revitalização, a correr seus termos no Tribunal judicial da comarca de Santarém – e a que voluntariamente se apresentaram os requerentes (…) e marido, (…), residentes na Rua (…), n.º (…), 1º-Dto., no Entroncamento), vem interpor recurso da douta sentença que aí foi proferida em 16 de Abril de 2015 (ora a fls. 170 a 173 dos autos), e que procedeu à homologação do Plano de Recuperação que foi apresentado e tinha sido aprovado pelos credores – com o fundamento que aí se aduz de que “não ocorre violação não negligenciável de normas procedimentais ou aplicáveis ao conteúdo do plano que impeçam a sua homologação não prevendo este quaisquer condições suspensivas ou quaisquer actos ou medidas que devem preceder a homologação” e “não foi solicitada a não homologação do plano por qualquer credor”, pelo que, “reunida a maioria dos votos favoráveis e não se verificando qualquer das situações previstas nos arts. 215º e 216º do CIRE, que determinem a recusa oficiosa de homologação do plano de insolvência, decide-se pela aprovação do plano de recuperação apresentado” –, intentando agora a sua revogação e que não venha esse plano a ser homologado, alegando, para tanto, em síntese, que ao contrário do decidido, efectivamente se descortina que “o credor BMW foi beneficiado no plano de recuperação, em detrimento dos demais credores”, pois que “não viu afectados os seus créditos, ao passo que os demais credores comuns viram a expectativa de ressarcimento dos seus créditos ser diminuída em 50% e em prazo mais alargado em 240 meses face ao credor BMW…infringindo de forma inaceitável o princípio orientador da igualdade entre credores, previsto no artigo 194.º, nos 1 e 2, do CIRE”. “Na verdade, inexiste razão plausível a uma diferenciação que favoreça o referido credor”, subentendendo-se que ela “assentará em critérios de natureza subjectiva, que a ora recorrente desconhece e não é obrigada a conhecer”. São termos em que, conclui, se deverá vir a revogar a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que rejeite a homologação do Plano, e assim se dando provimento ao presente recurso de Apelação.
Os Recorridos (…) e marido, (…) vêm contra-alegar (a fls. 262 a 273), para dizerem, ainda em síntese, que não assiste razão à Apelante, pois que “foram escrupulosamente cumpridas todas as regras legais, tendo o plano sido aprovado pela maioria dos credores”, assim se não violando o princípio da igualdade entre eles, que é onde a apelante vem fundar o seu recurso. Efectivamente, “face ao volume de crédito concentrado nos créditos comuns, tendo em linha de conta a natureza do crédito da BMW Bank – locação financeira –, outra solução não poderia ser adoptada” (veja-se que, “caso fosse aplicado um perdão da dívida a este credor, o contrato seria resolvido, os devedores perderiam o valor das rendas entretanto liquidadas e o automóvel jamais seria sua propriedade, uma vez que esta circunstância importaria a entrega do bem, ainda propriedade do locador”). Para além de não ser verdade que este credor não tenha visto também afectado o seu crédito, pois que esse contrato tinha previsto o pagamento em 61 rendas mensais, “o que se alterou significativamente no âmbito do plano de recuperação, quando se prevê que a dívida seja liquidada em 120 prestações mensais, ou seja, praticamente o dobro do período em que o mesmo deveria ter sido cumprido”. “Aliás, esta é a única forma de os Requerentes se revitalizarem e conseguirem liquidar todas as suas obrigações, junto de todos os credores”, aduzem (sendo para notar que “no total, foi o plano de recuperação aprovado pela esmagadora maioria de 94,26% dos credores”). Pelo que bem decidiu a Mm.ª Juíza a quo na sentença recorrida, a qual se deverá manter nos precisos termos decisórios em que foi proferida.
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Provam-se os seguintes factos, com interesse para a decisão:

1) No dia 27 de Março de 2015 apresentou o Senhor Administrador Judicial Provisório, proposta de Plano de Recuperação relativa aos Requerentes deste processo de revitalização, (…) e seu marido, (…) (vide o documento que constitui agora fls. 112 a 118 dos autos, e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido; a data de entrada está aposta a fls. 118 verso).
2) Em 09 de Abril de 2015 tal Senhor Administrador juntou ao processo o resultado da votação desse Plano de Recuperação, aprovado pela maioria dos credores e solicitou a sua homologação judicial (vide os documentos de fls. 124 a 127 dos autos, aqui igualmente dados por reproduzidos na íntegra e o carimbo de entrada que vem aposto a fls. 123).
3) Em 31 de Março de 2015 a sociedade credora “(…)” (Sucursal da SA Francesa) opusera-se àquele Plano (vide douto requerimento de fls. 163 dos autos, que aqui também se reproduz integralmente).
4) Em 23 de Dezembro de 2014 o sr. Administrador Judicial Provisório juntara ao processo a Relação Provisória dos Créditos Reconhecidos, que agora constitui fls. 77 a 79 dos autos, e cujo teor aqui se dá por reproduzido, num valor global de € 601.094,09 (seiscentos e um mil, noventa e quatro euros, nove cêntimos) – (a data de entrada está aposta a fls. 75 dos autos).
5) Tal lista provisória de créditos foi convertida em definitiva face ao teor da douta decisão proferida em 02 de Fevereiro de 2015, a fls. 95 a 96 dos autos, aqui igualmente dada por reproduzida na íntegra.
6) Tal Plano de recuperação foi aprovado pelos credores, tendo votado os representativos de 93,63% dos créditos, no valor de € 562.811,13 (quinhentos e sessenta e dois mil, oitocentos e onze euros e treze cêntimos) e, dentro desses, favoravelmente, na percentagem de 94,26% dos votos expressos, num valor de € 530.533,81 (quinhentos e trinta mil, quinhentos e trinta e três euros e oitenta e um cêntimos) e, contra, na percentagem de 5,74% dos votos expressos, no valor de € 32.277,32 (trinta e dois mil, duzentos e setenta e sete euros e trinta e dois cêntimos) – (vide o documento respectivo a fls. 124 dos autos).
7) Em 16 de Abril de 2015 foi proferida douta sentença homologatória do Plano de Recuperação apresentado (vide tal douta decisão a fls. 170 a 173 dos autos e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido).
8) O valor dos créditos da sociedade Apelante “(…)” (Sucursal da SA Francesa) é de € 4.579,05 (quatro mil, quinhentos e setenta e nove euros e cinco cêntimos), correspondentes a 0,76% dos créditos totais, tendo votado contra tal Plano de Recuperação (vide o mapa de fls. 125 a 127 dos autos).

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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem é, basicamente, a de saber se o Plano de Recuperação apresentado foi correctamente avaliado pelo Tribunal a quo, que decidiu homologá-lo, isto é, se a decisão foi proferida de acordo ou ao arrepio das normas legais que a deviam ter informado. É isso que hic et nunc está em causa, como se vê das conclusões alinhadas no recurso apresentado.

[E é, desde logo, para notar que não se colocam aqui quaisquer problemas de quórum na deliberação que aprovou o Plano que está em causa, tendo-o sido por uma maioria confortável dos credores, tendo votado os representativos de 93,63% dos créditos, no valor de € 562.811,13 e, dentro deles, favoravelmente, numa percentagem de 94,26% dos votos expressos, no valor de € 530.533,81 e, contra, na percentagem de 5,74% dos votos expressos, no valor de € 32.277,32.
Por outra parte, pese embora o valor e o peso, diminutos, dos créditos da Apelante “(…)” (Sucursal da S.A. Francesa) – que é somente de € 4.579,05, correspondentes a 0,76% dos créditos totais, e tendo votado contra –, tal não lhe retira, naturalmente, qualquer legitimidade para recorrer, nos termos em que ora o vem fazer, da homologação, pelo Tribunal, daquele Plano de Recuperação.]

Mas, adiantando razões, e salva sempre melhor opinião, cremos bem que, com os elementos disponíveis, a douta sentença recorrida decidiu correctamente ao homologar o Plano de Recuperação que lhe fora apresentado, nele afinal não descortinando motivos que tivesse que erigir em causas (legais) justificativas da sua não homologação.

Concretamente quanto à violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores, a apelante não tem razão nas objecções que levanta ao trabalho da Mm.ª Juíza a quo, pelo que a douta sentença agora não será objecto de qualquer censura (isso, apesar da sageza da construção que apresenta no recurso, porém, insuficiente para fundar as irregularidades/incongruências que o Plano consigo transportaria).

E assim, nos termos previstos no artigo 194.º, n.º 1, aplicável ao Plano de Recuperação ex vi do artigo 17.º-F, n.º 5, in fine, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março – alterado e republicado no Decreto-lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto e, ultimamente, também pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, diploma que lhe introduziu precisamente esse processo especial de revitalização –, “O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas(para este efeito do processo especial de revitalização, onde se refere Plano de Insolvência deve entender-se por reportado ao Plano de Recuperação).
E, segundo o seu n.º 2, “O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado em caso de voto favorável” (o n.º 2 do seu artigo 192.º estabelecia que “O plano só pode afectar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado neste título ou consentido pelos visados”).

[A este propósito, vide, paradigmaticamente, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, no seu “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Reimpressão, 2009, da ‘Quid Juris’, na anotação 7ª ao artigo 192.º, a páginas 636, onde dizem: “Cremos, todavia, ser de admitir a não homologação, seja oficiosamente, com base no artigo 215.º, ou a requerimento do lesado, fundada no artigo 216.º, quando, não estando demonstrado o consentimento, tenha havido indevida afectação da posição jurídica dos interessados ou de terceiros”; e na anotação 1ª ao seu artigo 215.º, a páginas 712: “… este preceito continua a orientação do Direito anterior no sentido de conferir ao tribunal o papel de guardião da legalidade, cabendo-lhe, em consequência, sindicar o cumprimento das normas aplicáveis como requisito da homologação do plano” – transmitindo, assim, a ideia do papel interventor e conformador do Tribunal.]
Esta é, pois, a matriz e o ponto de partida da discussão: o legislador quis, assim, uma verdadeira igualdade entre os credores da insolvência/revitalização, do que haverá, naturalmente, que extrair todas as ilações.

Ora, pelo seu artigo 215.º se estabelece que “o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação”.
E segundo o seu artigo 216.º, n.º 1, “o juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que a) a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano (…); b) o plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar”.
[Recorde-se que aquele referido artigo 17.º-F, n.º 5, in fine, manda aplicar nesta sede de revitalização, “com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º” – sublinhado nosso.]
Pelo que, neste enquadramento legal, não cremos, salva melhor opinião, que a homologação do Plano de Recuperação a que se reportam os autos – e que consta da douta decisão impugnada – não possa manter-se na ordem jurídica, por padecer de vícios que a conduzam a alguma solução não permitida por lei.

Não que a igualdade dos credores seja, aqui, um valor absoluto, pois que, como já se disse, a lei prevê expressamente “as diferenciações justificadas por razões objectivas” (no citado artigo 194.º, n.º 1, in fine).
Mas aí é que está o ponto: justificadas por razões objectivas, para, assim, se evitarem opções de cariz marcadamente arbitrário ou fora dos objectivos para que a lei criou o Plano.

No caso sub judicio, tudo aponta para que se tenham efectivamente usado critérios cuja objectividade não suscitará grandes dúvidas – e se assim não foi, e se pretendeu, afinal, dar um tratamento preferencial a um credor, tal não resulta claro dos próprios termos do Plano negociado (nem se crê que, a ser verdade, a esmagadora maioria dos credores que aprovou o Plano se não insurgisse contra uma tal situação de descarado favor).
Pois que se privilegiou o pagamento da totalidade do crédito da BMW – de € 16.257,46, de capital e € 5.045,60, de juros –, mas porque lhe subjazia um contrato de locação financeira, cuja resolução, pelo locador, implicava, na certa, a perda do valor das rendas já pagas, e a devolução do veículo à procedência, o que inculca a ideia de que se intentou, basicamente, salvaguardar o negócio, o que nunca será prejudicial para ninguém, maxime para os demais credores.
Por outra parte, a taxa de juro foi fixada para todos em 4%, inclusive para o referido credor BMW – que também viu passar o prazo total de pagamento de 61 rendas mensais para 120.

Nessa situação, cremos estarem verificadas razões objectivas para aquela diferença de tratamento, nos termos comportados pela lei, como referido supra.
Pelo que poderá, assim, estar mais acautelada a finalidade do Plano, que não deverá ser outra que não a duma revitalização dos interessados (porventura, sempre incerta, naturalmente).

Temos, portanto, que entender que a homologação feita é legal, com base na não violação do princípio da igualdade, como previsto nos ditos artigos 215.º e 194.º do CIRE, nenhuma censura merecendo, pelo que deve manter-se, intacta na ordem jurídica, a douta sentença que o decidiu, e improcedendo o recurso.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Registe e notifique.
Évora, 09 de Julho de 2015
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
Paulo de Brito Amaral