Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
58/20.6T8LGA-C.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: CITAÇÃO
NULIDADE
CONFISSÃO POR FALTA DE CONTESTAÇÃO
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Incorre em nulidade, por excesso de pronúncia, a sentença que declara a insolvência do requerido antes de findo o prazo para oferecimento da oposição.
2. Na verdade, a sentença assenta num fundamento – a confissão ficta – que não podia julgar verificado.
3. O meio de reacção do requerido a tal nulidade é a interposição de recurso da sentença, com esse fundamento.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário: (…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Comércio de Lagoa (…) – STC, S.A., sociedade portuguesa, propôs acção de insolvência contra (…), cidadão nacional do Reino Unido e residente nesse país.
A citação foi efectuada por carta registada com A/R enviada para o Reino Unido, traduzida para inglês, na qual se mencionava que o Requerido dispunha do prazo de 10 dias para deduzir oposição, à qual acrescida uma dilação de 30 dias.
Esta carta foi recebida pelo Requerido no dia 25.03.2021.
No dia 21.04.2021 foi proferida sentença decretando a insolvência do Requerido, com fundamento neste não ter deduzido oposição e declarando confessados os factos alegados pela Requerente, como previsto no artigo 30.º, n.º 5, do CIRE.

No dia 03.05.2021, o Requerido juntou procuração forense.
E no dia 24.05.2021 interpôs recurso da sentença, concluindo:
1. A douta sentença é nula, sendo nulo também todo o processado após o requerimento inicial, por preterição do oportuno direito ao exercício do contraditório do Apelante.
2. O Apelante tem a sua residência no Reino Unido, em morada para a qual foi enviada e entregue a citação, sendo o prazo para apresentação da oposição de 10 dias, acrescidos de uma dilação de 30 dias pelo facto de ter sido citado no estrangeiro (artigo 245.º do CPC).
3. O Apelante foi citado a 25/03/2021, o que significa que o prazo para apresentação da referida oposição terminaria a 04/05/2021.
4. No entanto, foi a douta sentença proferida a 21/04/2021, ignorando totalmente o prazo de oposição a que o Apelante tem direito.
5. Tendo sido a douta sentença proferida antes de terminado o prazo para apresentação da oposição, o Tribunal a quo violou grosseiramente o direito ao contraditório e defesa do Apelante, gerando assim uma nulidade insanável, e que se argui para todos os devidos efeitos legais.
6. Sem prescindir, mesmo que assim se não entendesse, o que se concede por mera hipótese académica e cautela de patrocínio, sempre se dirá que,
7. O Tribunal a quo não tem competência internacional para conhecer do presente pedido de declaração de insolvência,
8. Pese embora o Reino Unido tenha deixado de ser um Estado-Membro da União Europeia, no dia 31 de Janeiro de 2020, nessa data entrou em vigor um Acordo sobre a sua saída da União, nos termos do qual foi estabelecido um período de transição, com termo em 31 de Dezembro de 2020, durante o qual lhe é aplicável, com excepções, o direito da União designadamente o Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho (vide artigos 67.º, n.º 3, alínea c) e 126.º do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica), o que significa para os autos que a Apelada se encontra domiciliado num Estado-Membro da União Europeia.
9. Tendo o ora Apelante, ligações ao Reino Unido que resultam do seu domicílio, e a Portugal, onde tem um bem imóvel, tem aplicação o Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, por força do disposto no artigo 1.º, n.º 1, aplicando-se o CIRE na medida em que não contrarie a disciplina desse Regulamento (artigo 275.º, n.º 1, do CIRE).
10. O Apelante apenas é proprietário de um bem imóvel em Portugal, não exercendo aqui nenhuma actividade profissional e/ou comercial, e não sendo titular de nenhum estabelecimento.
11. Pelo que também o artigo 294.º do CIRE não lhe seria aplicável.
12. Acresce ainda que, e sem prejuízo do Reino Unido ter abandonado a União Europeia, continuaram a aplicar-se, a este ex-Estado membro os regulamentos comunitários durante o denominado “período de transição do “Brexit”, período esse que se estendeu até ao fim do ano de 2020, segundo o disposto nos artigos 126.º e 127.º, n.º 1, do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (2019/C 384 I/01).
13. Embora, o período de transição já tenha terminado, continuam a ser aplicáveis tais disposições ao caso sub iudice, por força do preceituado no artigo 67.º, n.º 3, alínea c), do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (2019/C 384 I/01) pois o presente processo foi iniciado antes do termo do período de transição.
14. O recurso ao processo de insolvência, por parte da Requerente, tem em vista imprimir celeridade à cobrança da dívida que o Apelante tem para com esta, dada a natureza urgente do processo de insolvência, e ultrapassar assim os obstáculos que existem no âmbito das execuções de natureza fiscal, nomeadamente, pelas suspensões que aí são decretadas.
15. O processo de insolvência, para além de ser uma execução universal, também define um estado do devedor e daí que tal processo deva ser iniciado, ou aberto, no país que maior conexão tem com o Apelante, o que não sucedeu.
16. A Requerente é uma entidade bancária, com posição e poderio económico que obsta a qualquer dificuldade apreciável na propositura da competente acção no estrangeiro, de harmonia com o disposto no artigo 62.º, alínea c), do CPC.
17. O Apelante não tem o seu domicílio em Portugal, não tem em Portugal qualquer tipo de estabelecimento e não existe uma qualquer situação de falta de tutela jurisdicional na ordem jurídica interna.
18. Pelo que, resulta do exposto que os presentes autos, constituem, salvo o devido respeito e melhor opinião, uma clara violação das regras da competência internacional.
19. Em face do acabado de expor, aquando da prolação da sentença que decreta a insolvência do Apelante, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 3.º, 96.º, 97.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.º 2, 577.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC, artigo 294.º do CIRE, artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento EU n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, bem como o artigo 67.º, n.º 3, alínea c), do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (2019/C 384 I/01).
20. Deste modo, importa revogar a decisão recorrida determinando-se a sua substituição por outra que declare a nulidade de todo o processado após o requerimento inicial e, caso assim se não entenda, a incompetência internacional do Tribunal a quo para conhecer da presente acção, absolvendo, consequentemente, o Apelante da instância.

Na sua resposta, a Requerente da insolvência sustenta que a nulidade estava dependente de arguição e defende a competência internacional dos tribunais portugueses.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.
A matéria de facto a ponderar é a constante do relatório.

Aplicando o Direito.
Da nulidade da sentença por preterição do direito de contraditório
Não está em discussão no recurso que a sentença foi efectivamente proferida quando ainda decorria o prazo concedido ao Requerido para contestar, em especial porque acrescia a dilação de 30 dias decorrente da citação ter sido realizada no estrangeiro, prevista no artigo 245.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
A questão é: estamos perante mera nulidade processual, dependente de arguição pela parte afectada, nos termos gerais do artigo 197.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ou uma nulidade intrínseca da sentença, por excesso de pronúncia, prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma?
Consideramos que a resposta adequada à gravidade da nulidade cometida dita a aplicação da segunda solução.
Note-se que o direito de contraditório – e, em especial, o direito de contestar a acção – é absolutamente nuclear no processo civil, devendo o juiz observar e fazer cumprir esse direito ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem – artigo 3.º, n.º 3.
Para além da sentença não ter concedido o necessário direito de contraditório, a sua fundamentação essencial consiste na confissão ficta dos factos, por falta de oposição do Requerido, conclusão que não lhe era lícito estabelecer porquanto ainda decorria o prazo concedido para o efeito, e tal implica a nulidade da sentença por conhecimento de questão que lhe era vedado conhecer.
Alberto dos Reis[1] ensinava que “a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou a autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.”
De idêntico modo, Anselmo de Castro[2] escreveu: “Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por um qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso.”
Mais recentemente, Teixeira de Sousa[3] observou o seguinte:
“(…) são possíveis três situações bastante distintas:
- Aquela em que a prática do acto proibido ou a omissão do acto obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial;
- Aquela em que o acto proibido é praticado ou o acto obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial;
- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um acto obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais.
No primeiro caso (…) o meio de reacção adequado é a impugnação da decisão através de recurso. (…).
No segundo caso, o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.
Finalmente, no terceiro caso, há que considerar a forma de impugnação das duas decisões. (…)
Se, apesar da omissão indevida de um acto, o juiz conhecer na decisão de algo de que não podia conhecer sem a realização do acto omitido (ou, pela positiva, conhecer de algo de que só podia conhecer na sequência da realização do acto), essa decisão é nula por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), CPC) (…).
O objecto do recurso é sempre uma decisão impugnada. Portanto, ou há vícios da própria decisão recorrida – hipótese em que o recurso é procedente – ou não há vícios da decisão impugnada – situação em que o recurso é improcedente. O tribunal de recurso não pode conhecer isoladamente de nulidades processuais, mas apenas de decisões que dispensam actos obrigatórios ou que impõem a realização de actos proibidos e das consequências noutras decisões da eventual ilegalidade da dispensa ou da realização do acto.
É, aliás, porque o objecto do recurso é sempre a decisão impugnada e porque o tribunal ad quem só pode conhecer desse objecto que se deve entender que uma decisão-surpresa é nula por excesso de pronúncia. A opção é a seguinte: ou se entende que a decisão-surpresa é nula – isto é, padece de um vício que se integra no objecto do recurso e de que o tribunal ad quem pode conhecer – ou se entende que não há uma nulidade da decisão, mas apenas uma nulidade processual – situação em que o tribunal ad quem de nada pode conhecer, porque, então, tudo o que conheça extravasa do objecto do recurso.”
De igual modo, Abrantes Geraldes[4] observa que “sempre que o juiz, ao proferir a decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, o meio da parte vencida passa pela interposição de recurso fundado na nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d). Afinal, nesses casos, designadamente quando o juiz aprecie uma determinada questão que traduza decisão-surpresa, sem respeito pelo princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3, a parte prejudicada nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual emergente da omissão do acto, não podendo deixar de integrar essa impugnação, de forma imediata, no recurso que seja interposto de tal decisão”.
Também no Supremo Tribunal de Justiça[5] tem sido proferida jurisprudência defendendo que a violação do princípio do contraditório não origina uma simples nulidade processual regulada no art. 195.º do Código de Processo Civil, mas a nulidade da própria decisão que o acolheu, por excesso de pronúncia.
No caso, o fundamento essencial da sentença – a confissão ficta – não podia ter sido declarado, porquanto ainda decorria o prazo de oposição. E ao declarar a confissão ficta, quando não o podia fazer, a sentença incorreu em excesso de pronúncia e como tal é nula, podendo o Requerido arguir essa nulidade em sede de recurso, como permitido pelo artigo 615.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
Como tal, procede o recurso quanto à questão da nulidade da sentença, devendo os autos regressar à primeira instância para reparação da nulidade cometida, fixando prazo para o oferecimento da oposição.
A segunda questão suscitada pelo Requerido – a competência internacional dos tribunais portugueses – foi-o a título meramente subsidiário e, de resto, terá o seu campo próprio de invocação em sede do articulado de oposição, como decorre do artigo 573.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Decisão.
Destarte, concedendo provimento ao recurso, declara-se a nulidade da sentença recorrida e dos actos dela dependentes, devendo a primeira instância proferir despacho fixando prazo para o oferecimento da oposição.
Custas pela Requerente da insolvência.
Évora, 14 de Julho de 2021
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

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[1] In Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, pág. 507.
[2] In Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, pág. 134.
[3] Em Blog do IPPC, 28/01/2019 Jurisprudência 2018 (163) disponível no seguinte endereço:
https://blogippc.blogspot.com/2019/01/jurisprudencia-2018-163.html.
[4] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª ed., 2016, pág. 25.
[5] Em Acórdãos de 23.06.2016 (Proc. 1937/15.8T8BCL.S1), de 22.02.2017 (Proc. 5384/15.3T8GMR.G1.S1) e de 13.10.2020 (Proc. 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1), publicados em www.dgsi.pt.