Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
9336/17.0T8STB.E1
Relator: JOSÉ PROENÇA DA COSTA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
FACTOS CONCRETOS
Data do Acordão: 03/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – O crime de violência doméstica visa proteger a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente.
II – E a tutela da violência doméstica projecta-se não apenas sobre casos de reiteração ou habitualidade de comportamentos violentos, mas também potencialmente aplicável a uma conduta violenta.
III – Não são factos susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado.
IV – Por isso, o afirmar-se que a arguida já pelo menos desde 07 de Janeiro de 2017 que agredia o assistente com murros, arranhões, unhadas e exercia sobre ele constantes maus-tratos psíquicos não passa de imputações genéricas, sem que se concretize factualmente a actuação da arguida, de forma a se poder concluir pela verificação de actos violentos que, pela sua imagem global e pela sua gravidade, devam ser tidos como desrespeitadores da pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, e, logo, susceptíveis de serem classificados como maus tratos.
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 9336/17.0T8STB.

Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Nos Autos de Instrução, com o n.º 9336/17.0T8STB (anterior n.º 159/17.8PBSTB), a correrem termos pela Comarca de Setúbal - Juízo de Instrução Criminal de Setúbal – J2, o M.mo Juiz de Instrução veio a não Pronunciar a arguida BB pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, do Cód. Pen., como peticionado pelo assistente CC.
Porquanto, da análise conjunta da prova supra elencada, da inexistência de indícios suficientes da factualidade constante do requerimento de abertura de instrução no que se refere ao crime de violência doméstica por parte da arguida BB. Na verdade, quanto a tal ilícito, para além da alegação do referido requerimento, não existe qualquer prova.

Inconformado com o assim decidido traz o assistente CC o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
1) A injustiça da dualidade de critérios de tratamento do assistente/arguido e da arguida, patente em todo o processo, foi levada à instrução, mas aparenta ser também ela afinal a linha condutora da própria decisão instrutória.
(A Arguida e o Assistente/arguido desistiram ambos das duas queixas que haviam apresentado e apensas a estes autos. Porém as dela não foram aceites, as do aqui Assistente foram, quando versavam todas sobre a prática do mesmo crime: violência doméstica).
2) A decisão instrutória é absolutamente omissa quanto aos fundamentos e provas invocados e apresentados pelo assistente/arguido em sede de requerimento de abertura de instrução, havendo uma brevíssima menção à prova junta e que se resume à afirmação constante da página 7 da Decisão em crise que se transcreve “(…) No que se refere à certidão junta relativa ao processo de inquérito que correu termos em Sintra do mesmo nada se extrai, com relevo para a decisão a proferir nos autos, até pela decisão de arquivamento no referido processo.(…)”.
(A decisão instrutória estriba-se na versão apresentada pelo MP e ignora por completo tudo quanto o assistente/arguido apresentou e levou também à instrução. Acolhendo a posição do MP, são liminarmente afastados os elementos indiciários que foram levados aos autos pelo assistente/arguido e que no entendimento deste justificam a sujeição da arguida a julgamento aí então se decidindo.

Queixas de Janeiro de 2017:
3) Os maus-tratos e as agressões cometidos pela arguida contra o assistente de que há prova remontam pelo menos ao início de Janeiro de 2017.
(Diz a queixa que o assistente apresentou em 8 de Janeiro, no posto da GNR de Setúbal, contra a arguida BB pela prática do crime de violência doméstica, (que deu origem ao Processo …, que a GNR de Setúbal enviou para o DIAP de Sintra e correu termos na 5ª Secção do Ministério Público, Procuradoria da República da Comarca de Lisboa Oeste): “O denunciante explicou que estes factos (as agressões da arguida) se têm vindo a agravar” (cfr. fls. 31 e 32 do Doc. 1. Junto com o Requerimento de Abertura de Instrução).
4) O relatório do exame médico-legal feito ao assistente em 09 de Janeiro de 2017 evidencia agressões muito graves cometidas pela arguida contra o assistente (cfr. fls. 84 do Doc. 1. do Requerimento de Abertura de Instrução).
(Foi atribuído ao assistente/arguido o estatuto de vítima (cfr. fls. 12 e 13 Doc. 1. do Requerimento de Abertura de Instrução) e foi encaminhado para o Gabinete Médico-Legal e Forense da Península de Setúbal (cfr. fls 17 do Doc. 1. do Requerimento de Abertura de Instrução).
5) Se o relatório do exame médico-legal tivesse sido prontamente junto aos autos, certamente que o processo não teria sido arquivado por “(…) Inexistem outras testemunhas presenciais dos factos que possam ser inquiridas ou outros elementos que cumprisse fazer juntar aos autos e que, previsivelmente, viessem a contribuir para a descoberta da verdade material. (…)” (fls. 69, de Doc. 1, junto com o Requerimento de Abertura de Instrução).
(Com efeito, muito embora tenha sido observado em 09 de Janeiro de 2017 e aquele Gabinete tenha elaborado e remetido em 12 do mesmo mês o Relatório da Perícia respectiva para o DIAP de Setúbal e de este o ter recebido em 20 do mesmo mês de Janeiro – cfr. Fls. 80, do Doc. 1, junto com o Requerimento de Abertura de Instrução -, lamentavelmente foi só em Abril seguinte, já depois do inquérito arquivado, que o DIAP de Setúbal remeteu tal perícia para Sintra – v. Fls. 79, de Doc. 1, junto com o Requerimento de Abertura de Instrução).
6) Tanto quanto resulta do relatório do exame médico-legal feito à arguida no Hospital Fernando Fonseca - fls 26 dos autos – a arguida apresentava equimoses.
(No mesmo dia 8 de Janeiro de 2017 a arguida BB saiu da casa que o pai do assistente/arguido tem em Sintra e, ao que se sabe, terá ido para uma casa abrigo; Apresentou a queixa que originou o inquérito NUIPC …, que corria termos na mesma 5ª Secção do DIAP de Sintra, entretanto apensado aos presentes autos).
7) O confronto entre os resultados dos exames médico-legais supra-referidos, demonstra bem que as lesões sofridas pelo assistente/arguido são de muito maior gravidade que as lesões sofridas pela arguida, o que evidencia não só a agressividade e violência das agressões infligidas pela arguida, como a sua atitude ofensiva, por contraposição à atitude defensiva do assistente/arguido que, procurando evitar as agressões lhe provocou as equimoses.
8) Foi a arguida que, por sua livre e exclusiva iniciativa e vontade, contactou telefonicamente o assistente/arguido a dizer-lhe que estava grávida e por isso estava alterada, a prometer que não voltaria a agredi-lo e a pedir-lhe que a fosse buscar (como aliás a própria confirma quando a fls. 107 dos autos afirma ter estado três dias na Cruz Vermelha e ter resolvido voltar para o CC).
9) As desistências das queixas que a arguida e o assistente/arguido elaboraram e enviaram para o DIAP de Sintra em 16 de Janeiro, relativas às queixas que ambos haviam apresentado, ambas pela prática do crime de violência doméstica (cfr. fls. 47 e 48 do Doc. 1. do Requerimento de Abertura de Instrução e fls do Apenso), mereceram decisões opostas do MP.
(Logo que recebida a comunicação do aqui assistente de que não pretendia procedimento criminal, a queixa por este apresentada que tinha dado origem ao Processo … foi imediatamente arquivada, sem aguardar pelo recebimento da perícia médico-legal (de que já havia notícia nos autos respectivos); já a queixa da arguida (Processo …) não foi arquivada, tendo o MP dito expressamente que a desistência não tinha qualquer efeito por se tratar de crime público (exactamente como sucedia com a queixa apresentada pelo assistente).

Queixas de Fevereiro de 2017:
10) As fotografias juntas a fls. 67 a 71 dos autos e o relatório pericial de fls... demonstram a violência das agressões que a arguida dirigiu ao assistente em 04 de Fevereiro de 2017.
(A queixa do assistente/arguido contra a arguida pela prática, em 04 de Fevereiro, do crime de violência doméstica, foi apresentada pelas 00H55 de dia 05 de Fevereiro de 2017, tendo dado origem ao inquérito …– os presentes autos. Concretamente o assistente queixou-se de ter sido selvaticamente agredido, alvo de murros, arranhões e unhadas sobretudo na cara que muito o maltrataram e feriram, tendo ficado repleto de escoriações e equimoses A fls. 53v. consta que o assistente foi ouvido e declarou pretender procedimento criminal contra a denunciada. Foi-lhe concedido o estatuto de vítima e notificado enquanto vitima especialmente vulnerável - fls 54 a 57).
11) O relatório da perícia médico-legal a que a arguida foi sujeita, não comprova as agressões de que diz ter sido alvo.
(A participação da arguida deu origem ao inquérito …, melhor identificado a fls 21 e ss. Esta queixou-se de ter sido alvo de murros, chapadas, puxões de cabelo, aperto no pescoço, etc., agressões que o relatório não evidencia).
12) Mais uma vez o confronto entre os resultados dos exames médico-legais feitos por um lado ao assistente/arguido e por outro à arguida, demonstra que as lesões sofridas por aquele são de muito maior gravidade e extensão que as lesões sofridas por esta.
13) Não é crível que limitando-se a arguida a defender-se das alegadas agressões do assistente/arguido, como alega ter feito, tenha afinal lesões muito menos graves em comparação com a gravidade das lesões que o assistente/arguido exibia.
14) Depois destas queixas uma vez mais foi a arguida que, encontrando-se em paradeiro desconhecido do assistente/arguido que nada fez para a localizar, recomeçou a contactar telefonicamente o assistente/arguido, a dizer-lhe que estava grávida e por isso estava alterada, a prometer que não voltaria a agredi-lo e a pedir-lhe que a fosse buscar.
15) A fls. 96 e 98 constam as desistências das queixas que a BB e o CC haviam apresentado, ambas pela prática do crime de violência doméstica. Uma vez mais a queixa apresentada pelo assistente foi arquivada, e a queixa apresentada pela arguida não.
16) Desta feita a queixa apresentada pelo assistente foi arquivada por o MP ter considerado que se tratava de uma situação isolada, enquadrando-a como crime de ofensa à integridade física e, atenta a desistência de queixa apresentada, carecer de legitimidade para prosseguir.
17) Mas a verdade é que não se tratava de uma situação isolada. As agressões da arguida sobre o assistente foram-se sucedendo reiterada e crescentemente: aquando da primeira queixa apresentada contra a arguida em Janeiro de 2017, já o assistente afirmava que os factos denunciados vinham a agravar-se, o que significa que já antes se verificavam, não podendo assim deixar de consubstanciar a prática do crime de violência doméstica.
18) Do exposto resulta suficientemente indiciada a responsabilidade da arguida pela prática do crime de violência doméstica e, cremos, a possibilidade de a esta vir a ser aplicada em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
19) O crime em causa tem natureza de crime público e não admite desistência de queixa pelo que a manifestação de desejo do assistente de desistir da sua queixa de fls 98 é inadmissível, como aliás sucedeu com as manifestações de desistência das queixas que a aqui arguida juntou aos autos 22/2017 e 160/2017 que não foram admitidas.
Episódio de Março de 2017:
20) Os factos constantes dos autos respeitantes ao sucedido em 28.03.2017, não comprovam as declarações da arguida de que o assistente a agrediu e privava de liberdade e que a manteve em casa durante os últimos 4 dias.
Em suma:
21) À parte as declarações da arguida, a demais prova constante dos autos não indicia que o assistente/arguido tenha praticado o crime de violência doméstica e, muito menos, de sequestro, antes indiciando que foi a arguida que praticou o crime de violência doméstica.
22) Ainda que das atitudes do assistente/arguido possam ter resultado lesões na arguida, o assistente fê-lo somente em legítima defesa e sempre e apenas na medida do necessário e suficiente para evitar as agressões da arguida. Prova disso são os exames médicos constantes dos autos, que evidenciam sempre graves lesões no assistente/arguido, ao passo que as lesões na arguida são sempre de pouca gravidade.
23) E mais, precisamente ao contrário do que é concluído na decisão instrutória (pág. 7, in fine, da respectiva acta), o facto de a arguida ter sido atingida nos braços vai ao encontro da versão do assistente/arguido de que a agarrava nos braços com o intuito de travar as agressões daquela.
24) Tanto quanto se sabe e dos autos resulta o assistente/arguido de nada dispunha que lhe permitisse ter qualquer ascendente sobre a arguida e assim condicionar a sua autodeterminação. Já a arguida estava sempre a dizer que estaria grávida, com efectivamente veio a suceder mas só no final de Fevereiro de 2017, assim condicionando o assistente arguido.
25) As queixas e pedidos de ajuda da arguida constante das mensagens que a arguida enviou (e que merecem uma leitura objectiva), não fazem sentido no contexto da relação existente entre a arguida e o assistente/arguido: quer depois das queixas de Janeiro, quer depois das queixas de Fevereiro, a arguida foi-se embora para paradeiro desconhecido do assistente/arguido, tendo sido ela que livre e espontaneamente quis voltar para a casa do arguido. Além disso, se a arguida assim procedeu antes, não se compreende porque não voltou a fazê-lo em Março, isto é, porque não voltou ela própria a chamar a Polícia, como já antes fizera, ao invés de pedir a um seu ex-namorado para o fazer.
26) Acresce que a arguida não estava sequestrada, tendo inclusivamente almoçado em casa do pai do assistente/arguido no dia 25 de Março e almoçado fora no dia 28 de Março, pelo que nada a impedia de ter pedido auxílio a alguém se necessário assim o entendesse, o que não fez. O que prova, também, que o depoimento de … a fls 284/285, no sentido de que passavam-se dias sem ver a arguida, não tem qualquer valor, pois facto é que pelo menos nos dias 25 e 28 de Março a arguida saiu de casa sem que o depoente disso se tivesse apercebido…
27) Quanto ao facto de resultar do relatório hospitalar e da história clínica de fls. 307 o diagnóstico de esquizofrenia do arguido, essa circunstância não constitui prova de nada: nem da prática do crime pelo assistente/arguido, nem da sua prática pela arguida BB. Pretender retirar desse facto qualquer ilação, tanto é válido para atribuir a culpa ao assistente/arguido, como para atribuir a culpa à arguida. Quem nos diz que a arguida não terá visto nessa circunstância razões para exercer violência doméstica sobre o assistente/arguido?
28) Da Certidão junta ao Requerimento de Abertura de Instrução conjugada com a queixa que deu origem aos presentes autos extrai-se (contrariamente ao afirmado na decisão instrutória) que o assistente foi vítima de agressões físicas e psíquicas que de forma reiterada e crescente a arguida BB nele infligiu, ou seja, que o assistente foi vítima do crime de violência doméstica.
29) O assistente está a ser vítima da ideia pré-concebida e enraizada, o estigma, de que a vítima do crime de violência doméstica é a mulher e não o homem (prova disso é o despacho de arquivamento constante da certidão junta como Doc. 1 ao requerimento de Abertura de instrução e, aliás, todo esse inquérito).
30) As queixas de que há notícia no processo (a fls. 215 e 287) que a arguida BB terá apresentado contra a própria mãe e o ex-namorado com quem trocou mensagens nos dias anteriores à detenção do aqui assistente, não são consentâneas com a imagem de quem é vítima mas antes agressora.
31) Em face do supra-exposto, é convicção do assistente que dos autos resultam indícios bastantes e suficientes de a arguida BB ter praticado o crime de violência doméstica e que existe forte possibilidade de lhe vir a ser aplicada uma pena, devendo portanto e requerendo que a arguida seja submetida a julgamento.
32) Consequentemente deve o despacho recorrido ser substituído por outro que Pronuncie a arguida pela prática dos seguintes factos:
1º. No dia 4 de Fevereiro de 2017, pelas 23.00 horas, no interior da casa onde o assistente estava a viver desde 08 de Janeiro anterior em Setúbal, na Rua … e onde a arguida se lhe havia juntado posteriormente, a arguida comunicou que pretendia ir-se embora.
2º. Perante tal afirmação o assistente perguntou-lhe por que razão se ia embora quando tinha sido ela que o tinha convencido a reconciliarem-se sob o pretexto de que estava grávida e que por isso estava muito alterada e agressiva.
3º. De imediato a arguida começou a desferir socos, murros e arranhões no corpo do assistente, em particular na cara deste, magoando-o e ferindo-o.
4º. Tentando defender-se e fazer com que a arguida cessasse a sua conduta violenta e agressiva, o assistente colocou as mãos à frente da cara e tentou segurar-lhe os braços.
5º. Logo que a arguida cessou o seu comportamento o assistente pegou nas malas da arguida, pô-las na rua e trancou a porta para que a arguida aí não mais entrasse.
6º. Ferido e maltratado, como consequência dos murros, arranhões e unhadas desferidos pela arguida, sobretudo na cara do assistente, este foi apresentar a queixa que deu origem aos presentes autos.
7º. Atento o estado em que o assistente se encontrava, a GNR logo o encaminhou para o Gabinete Médico-Legal e Forense da Península de Setúbal.
8º. Tendo sido observado no dia seguinte consta do relatório da perícia realizada que se encontrava com muitas escoriações e equimoses, como decorre da referida perícia e demonstram as fotografias de fls. 67 a 71.
9º. Acresce que a arguida já pelo menos desde 07 de Janeiro de 2017 que agredia o assistente com murros, arranhões, unhadas e exercia sobre ele constantes maus-tratos psíquicos
10º. Através da invocação de uma suposta gravidez que mantinha o assistente na expectativa de ser pai e de que tal gravidez alterava o seu comportamento assim justificando até as agressões físicas que também naquele infligia.
11º. A arguida agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, conhecedora da ilicitude dos seus actos.
12º. A arguida sabia que as suas condutas eram proibidas por lei.
Pelo exposto, a arguida é autora material, na forma consumada da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1 al. b) e n.º 4, do Código Penal e, nessa medida, deve ser a Decisão Instrutória ser substituída por outra que Pronuncie a Arguida.
Termos em que o Douto Despacho recorrido deve ser revogado, com as legais consequências.

Respondeu ao recurso a arguida BB, Dizendo:
I. Vem o assistente/arguido interpor recurso da Decisão Instrutória, proferida em 24.10.2017, que não pronunciou a arguida BB pela prática do crime de Violência Doméstica, previsto e punido pelo artº. 152º do Código Penal, proferida pelo Tribunal a quo.
II. Ora é nosso entendimento, salvo o devido respeito, que não houve qualquer errada aplicação do direito, ou de apreciação dos factos, tendo o Tribunal a quo atendido, em conjunto aos elementos probatórios existentes nos autos.
III. O assistente/arguido não carreou para os autos quaisquer provas que sustentem as suas alegações de Recurso, que façam prova do contrário do que foi decidido pelo Tribunal a quo.
IV. Salvo melhor opinião, somos de parecer que bem andou o Tribunal a quo, não merecendo qualquer reparo na decisão proferida.
V. Assim, o alegado pelo assistente/arguido, salvo melhor opinião não tem qualquer fundamento, nem sustentação probatória.
VI. E consequentemente, deve a decisão proferida pelo Tribunal a quo manter-se nos seus precisos termos.
VII. Pelo que, não deve a Decisão Instrutória recorrida ser substituída por outra que pronuncie a arguida BB pela prática de quaisquer factos.
VIII. Venerandos Desembargadores, atenta toda a resposta supra-a presentada somos ainda a dizer a V. Exas., que,
IX. Consideramos que a matéria de facto foi bem julgada pelo Tribunal a quo, sendo que o Tribunal teve em consideração toda a prova produzida nos autos conjugando-a com a prova produzida em sede de Debate Instrutório.
X. Ademais que o próprio arguido / assistente não quis prestar declarações e manifestou desejo em desistir do procedimento criminal, cfr. fls. 98 dos autos.
XI. Como decorre da Decisão Instrutória o episódio isolado, tal como resulta dos autos, só poderia subsumir-se ao crime de ofensas à integridade física simples, este um crime semipúblico, e devido ao facto do próprio arguido/assistente não ter pretendido o procedimento criminal, o Ministério Público carecia de legitimidade para prosseguir a acção penal, o que consequentemente determinou a extinção do procedimento criminal, não susceptível de ser sindicado em sede de Abertura de Instrução.
XII. Nenhuma testemunha presenciou os factos denunciados pelo ora assistente/ arguido, cfr. fls. 443, 448 e 450 dos autos.
XIII. A arguida a fls…30 e 31 dos autos, Auto de Notícia, referiu que apenas mordeu o lábio do ora assistente para se defender das agressões de que estaria a ser alvo por parte do assistente/arguido, conforme as fotografias e o exame médico realizado ao assistente/arguido e juntos aos autos, o que o fez inequivocamente como decorre dos autos com o intuito de se defender das agressões de que estava a ser alvo por parte do arguido/assistente.
XIV. Somos de entendimento que face aos elementos probatórios existentes nos autos e analisados na Decisão Instrutória pelo Tribunal a quo verifica-se a inexistência de indícios do crime de violência doméstica por parte da arguida BB, como bem concluiu o Ministério Público no despacho de arquivamento de fls. 531 a 533, cujos argumentos foram e bem na nossa opinião aderidos pelo Juiz a quo.
XV. Ora, salvo o devido respeito e conforme resulta de toda a prova produzida, a decisão do Tribunal a quo é integralmente acertada.
Nestes termos, deve ser negado provimento ao recurso e mantida na íntegra a Decisão Instrutória recorrida.

Também o Sr. Procurador da República respondeu ao recurso, Dizendo:
1. Interpôs o assistente/arguido CC recurso da douta decisão instrutória proferida a fls. 861-873 dos autos supra -epigrafados, na parte em que determinou a não pronúncia da arguida BB pela prática dos factos que lhe foram imputados no requerimento de abertura de instrução formulado pelo primeiro, constante de fls. 652-661 dos mesmos autos, eventualmente consubstanciadores do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al. b), e 4, do Código Penal;
2. Pugna o ora recorrente pela revogação da supra-referida decisão e consequente substituição desta por outra que determine, naquela parte, a pronúncia da mesma arguida BB pela prática do mencionado ilícito criminal;
3. Estará aqui em causa, no essencial e no que ora interessa relativamente à douta decisão instrutória recorrida, aquilatar da existência nos autos de indícios suficientes da prática, por parte da arguida BB, de factos susceptíveis de preencher a tipicidade do crime de violência doméstica, relativamente ao qual devesse a mesma arguida ter sido pronunciada;
4. Importando aquilatar a título de questão prévia da (parcial) inadmissibilidade legal da instrução, cumpre começar por referir que dispõe o art.º 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (Finalidade e âmbito da instrução) que «[a] instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento»;
5. Por sua vez, preceitua o art.º 287.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do mesmo diploma legal (Requerimento para abertura da instrução) que «[a] abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação (…) do arquivamento: (…) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação» (n.º 1, al. b)) e «[o] requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (…) não acusação» (n.º 2);
6. Ora, como se nos afigura ser cristalino, constituiu pretensão do recorrente que fosse realizada instrução no que tange a factos diversos daqueles que foram objecto da decisão de arquivamento do inquérito exarada a fls. 531-533 dos autos;
7. Efectivamente, tendo o assistente/arguido CC desejado procedimento criminal relativamente aos factos noticiados no âmbito dos autos supra-epigrafados de que teria alegadamente sido vítima, designadamente, aqueles referentes ao N.U.I.P.C. … ocorridos em 04.02.2017 (fls. 2-7 e 51-53 v.º), veio a ser proferida a acima aludida decisão de arquivamento do inquérito;
8. Assim, sempre extravasaria o âmbito da instrução peticionada nos mesmos autos a eventual factualidade verificada “desde 07 de Janeiro de 2017” em que figuraria igualmente como ofendido o assistente/arguido CC, consubstanciada na prática por parte da mencionada BB de agressões “com murros, arranhões, unhadas” e “constantes maus¬-tratos psíquicos”, sendo certo que relativamente a tais factos apresentou o mesmo CC denúncia que originou o N.U.I.P.C. …, não apensado a estes autos correspondentes ao N.U.I.P.C. …;
9. Não foram, assim, aqueles factos “desde 07 de Janeiro de 2017” objecto de conhecimento nem tão pouco, consequentemente, de qualquer eventual despacho de arquivamento no âmbito deste N.U.I.P.C. … que pudesse legitimar, quanto aos mesmos factos, a apresentação do requerimento de abertura de instrução formulado pelo referido assistente/arguido CC a fls. 652-661 ou, agora, em sede de recurso, a manutenção de semelhante pedido de pronúncia – verifica-se, inclusivamente, que o N.U.I.P.C. … foi arquivado em sede de inquérito (fls. 667-757) e, após tal, entretanto reaberto (fls. 838-842, 894 e 925-926);
10. Não se vê, assim, que esteja em causa (no âmbito deste N.U.I.P.C. …) relativamente a tais factos “desde 07 de Janeiro de 2017” qualquer “comprovação judicial da decisão (…) de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” que o mesmo CC estivesse, na qualidade de assistente, legitimado a peticionar ao juiz de instrução criminal e que a mencionada fase de instrução pudesse ab initio visar, sendo certo que não foi, nessa parte, requerida abertura da instrução “relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação”, a formalizar “no prazo de 20 dias a contar da notificação (…) do arquivamento”;
11. Não existindo, assim, decisão de arquivamento no que tange aos factos “desde 07 de Janeiro de 2017”, não terão, como tal, cabimento quaisquer “razões de facto e de direito de discordância” relativamente a essa “não decisão”, a qual não poderá, logicamente, ser afrontada no requerimento de abertura de instrução, sendo, pois, evidente verificar-se quanto aos mesmos factos, em conformidade com o disposto no art.º 287.º, n.º 3, in fine, do Código de Processo Penal, uma situação de inadmissibilidade legal da instrução;
12. Jamais podendo, consequentemente, existir nessa parte a pretendida decisão de pronúncia, sucedendo, ao invés, encontrar-se a instrução in casu restringida à apreciação da factualidade ocorrida em 04.02.2017 em que o ora recorrente figurará como ofendido e que foi neste N.U.I.P.C. … objecto de decisão de arquivamento;
13. No que tange à questão da indiciação da prática por parte da arguida BB do imputado crime de violência doméstica (factos datados de 04.02.2017 e objecto do N.U.I.P.C. …), importa referir, em primeiro lugar, não serem substancialmente diversas as lesões apresentadas pelo recorrente e por aquela arguida (vide, respectivamente, fls. 14-16 e 35-37);
14. Não retiramos, assim, a ilação extraída pelo aqui recorrente (muito maior gravidade e extensão das lesões sofridas pelo mesmo), não impressionando sobremaneira as lesões apresentadas pelo mencionado CC, sendo que a superioridade física deste sempre obrigaria a arguida BB a ser incisiva na sua acção de se libertar daquele – como a mesma arguida referiu ao prestar declarações sobre os factos ora controvertidos, «[a] vítima afirma que se defendeu dos braços do arguido e sabe que acabou por o agredir mas foi para se libertar do mesmo» (fls. 113-115);
15. Ademais, a versão da arguida é merecedora de credibilidade de que as declarações do aqui recorrente não gozam, de todo, de modo idêntico, designadamente, em face de todos os elementos probatórios que sustentam a acusação deduzida contra aquele no que tange aos diversos “episódios” ocorridos, sendo que relativamente à matéria em que este último figurará como ofendido nenhuma prova infirma o cenário factual que a própria BB admitiu, a saber, o de ter ela tido necessidade de atingir o mesmo recorrente como meio (indispensável) de o repelir (o que excluirá a ilicitude da conduta, nos termos dos art.ºs 31.º, n.ºs 1 e 2, al. a), e 32.º do Código Penal);
16. Cumpre, por último, salientar que, contrariamente ao sustentado na motivação de recurso, não é neutro o constante do Relatório Pericial Psiquiátrico referente ao assistente/arguido CC (fls. 483-489 e 511-523), sendo, ao invés, em face do ali exarado e, consequentemente, das regras de experiência comum, manifestamente plausível que aquele seja (fosse), por falta de estabilidade e equilíbrio emocional, designadamente, motivada pela patologia de que padece, capaz de episódios de violência sobre terceiro como os narrados no libelo acusatório;
17. Será, efectivamente de sufragar o juízo indiciário subjacente à decisão de não pronunciar a arguida BB pela prática do imputado crime de violência doméstica, sendo certo que, como refere o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.10.2015, Proc.º n.º 202/13.0GAVLC.P1, Relator: Neto de Moura (vide o site http://www.pgdlisboa.pt/, em anotação ao art.º 308.º do Código de Processo Penal), «Os indícios suficientes para submissão do arguido a julgamento, devem ser particularmente qualificados permitindo concluir que existe uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento».

Face a todo o exposto, e sendo certo que concordamos com o decidido pela Meritíssima Juiz de Instrução Criminal (na douta decisão instrutória posta em crise), entendemos que não deverá ser dado provimento ao recurso ora interposto por CC, agindo este, designadamente, na qualidade de assistente.

Nesta Instância, a o Sr. Procurador Geral-Adjunto emitiu entendimento no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

É do seguinte teor a decisão recorrida (na parte que ora importa):
O arguido CC encontra-se acusado pelo Ministério Público a fls. 535 pela prática de factos que integram a prática um crime de violência doméstica previsto e punido pelo art.º 152º n.º 1 b), n.º 2 e 4 do Código Penal.
O Ministério Público proferiu despacho de arquivamento de fls. 531 a 533 relativamente ao crime de violência doméstica integrando a situação da agressão ao crime de ofensas à integridade física simples sendo que, quanto ao mesmo, o então ofendido e aqui arguido declarou não desejar procedimento criminal.
Declarou, nessa sequência o MP, a extinção do procedimento criminal por não dispor o Ministério Público de legitimidade para a promoção da acção penal quanto a tal ilícito.
CC, veio na qualidade de assistente, requerer a abertura de instrução a fls.652 e seg., na parte em que o Ministério Público arquivou os autos por entender não estar suficientemente indiciado o crime de violência doméstica em que é arguida BB alegando em síntese que:
Que no 04/02/2017 foi agredido a murros, com arranhões e unhadas;
Estando tais agressões comprovadas pelas fotografias juntas aos autos;
Não tendo sido tais agressões as primeiras;
Termina pedindo a pronúncia da arguida pela prática do crime de violência doméstica.

O Tribunal é competente não existem quaisquer nulidades ou questões prévias que cumprem conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

Não se afigurando necessária a realização de outras diligências complementares em sede de instrução, realizou-se o debate instrutório, com observância do formalismo legal.
Em sede de debate instrutório foi obtida o consentimento do pai do arguido para o mesmo ficar sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação na sua residência e o do arguido CC relativamente à instalação dos meios de vigilância electrónica.

Fundamentação
Factos Suficientemente Indiciados todos os da acusação de fls. 535 a 542, que aqui se dão por reproduzidos, uma vez que tal não foi objecto da instrução e nomeadamente:
Farta de ser agredida e injuriada, no dia 4 de Fevereiro de 2017, pelas 23.00 horas, no interior da casa de morada de família, desta feita já na residência sita em Setúbal, a ofendida comunicou ao arguido que pretendia terminar a relação, tendo inclusivamente as malas feitas para abandonar o domicílio.
O arguido reagiu desde logo violentamente, desferindo murros e chapadas por todo o corpo da ofendida, assim como puxões de cabelos.

E do requerimento de abertura de instrução
O assistente foi observado no gabinete médico-legal, tendo sido realizada a perícia onde consta muitas escoriações e equimoses.

Factos não suficientemente Indiciados (com relevo para os autos e por súmula)
No dia 04 de Fevereiro de 2017, pelas 23.00h, no interior da casa onde o assistente estava a viver desde 08 de Janeiro, na Rua …, em Setúbal, a arguida, que se lhe havia juntado posteriormente, comunicou que se pretendia ir-se embora:
Perante tal afirmação o assistente questionou-se uma vez que tinha sido a mesma que o tinha convencido a reconciliarem-se sob o pretexto de que estavas grávida, e que por isso estava muito alterada e agressiva.
De imediato a arguida começou a desferir socos, murros e arranhões pelo corpo do assistente, em particular na cara, mangonando-o e ferindo-o.
Tentando defender-se e fazer com que a arguida cessasse a sua conduta, o assistente colocou as mãos à frente da cara e tentou segurar-lhe os braços.
Logo que a arguida cessou o seu comportamento o assistente pegou nas malas da arguida pô-las na rua e trancou a porta para que aquela aí mais não entrasse.
O assistente desde pelo menos Janeiro de 2007 que era agredido pela arguida com murros, arranhões unhadas e sobre ele exercia constantes maus tratos psíquicos.
Através da invocação de uma suposta gravidez que mantinha o assistente na expectativa de ser pai e da gravidez alterar o seu comportamento, assim justificando até as agressões físicas que também naquele infligia.
A arguida agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, conhecedora da ilicitude dos seus factos.
Sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei,

Motivação do Tribunal
O tribunal atendeu, em conjunto aos elementos probatórios existentes nos autos.
O inquérito teve início com o auto de notícia de fls. 2 e seg., por parte do agora assistente, de 05/02/2017 pelas 00.55m (denunciando agressões de que foi vítima no dia 04/02 pelas 23.00).
Por sua vez, encontra-se incorporado nos presentes autos o processo …, este com origem no auto de notícia da mesma data, por parte da arguida/ofendida CC, também de 05/2/2017 pelas 02h e 11, (denunciando ter sido esta vítima de agressões no dia 04/02 pelas 23.00).
Os autos de notícia foram consequência da intervenção policial no local, residência sita na Rua …a pedido da arguida/ofendida CC
Constam dos autos os relatórios de perícia de avaliação de dano corporal de fls. 14 a 16 e 35 a 37, realizados no dia 07/02/2017, relativos respectivamente aos exames de CC e BB que confirmam, ambos, lesões compatíveis com a descrição das agressões relatadas.
Encontram-se juntos aos autos as fotografias do arguido/assistente CC, de fls. 67 a 71, também estas compatíveis com as lesões descritas no relatório de perícia a que acima se alude.
A fls. 96/97 e 98/99 BB e CC, quando inquiridos respectivamente, os dois no dia 15/03/2017 referem que não pretenderem procedimento criminal, solicitando arquivamento dos autos, não se opondo à SPP e que não se opõem a eventuais desistências de queixa.
A 28/03/2017 pelas 23h, chamada a polícia ao local (residência supra referida), decorre que os próprios agentes ouviram gritos (pedindo auxílio a ofendida/arguida BB) e se depararam com a porta da residência com uma máquina de lavar encostada à porta (cfr. fotos da casa e da máquina junto à porta fls. 108 a 112). Mesmo em frente aos agentes o arguido tentou agarrar a vítima. A vítima foi assistida tendo-se confirmado que a mesma se encontrava grávida de sete semanas (corroborando as declarações prestadas pela mesmas no auto de notícia).
O relatório de episódio de urgência de fls. 107 e 107 v., confirma a gravidez e a forma como a mesma se encontrava psicologicamente no momento, com queixas de cefaleias.
A arguida/ofendida BB inquirida em sede de inquérito (fls. 113 a 115), confirma os conflitos com o arguido/assistente praticamente desde o início da relação, motivado por ciúmes, e o facto deste a fechar em casa e a proibir de exercer qualquer actividade. Mais adiantou com relevo que, quando quis pôr fim à relação as agressões físicas agravaram-se. A presença dos agentes da PSP que foram ao local reforçou a credibilidade das declarações da ofendida.
Não se pode olvidar o conteúdo das mensagens com inúmeros pedidos de ajuda por parte da arguida/ofendida (relatando factos coincidentes com os descritos na acusação
Quanto à factualidade objecto de instrução admite que, para se defender dos braços do arguido/assistente, acabou por o agredir para se libertar do mesmo (não concretizando o modo como o fez). A descrição dos factos coincide no mais com os mencionados na acusação pública.
A fls. 284/285 foi inquirido … que confirma ter ouvido gritos e visto o arguido com sinais de agressão o que vai ao encontro das lesões descrita no relatório. Mais referiu com relevo que passavam-se dias interiores sem ver a ofendida/arguida, o que também corrobora a versão desta.
Quanto ao depoimento de …, o mesmo de nada adianta por não ter assistido a quaisquer episódios, designadamente ao de 04/02 (fls. 443). Da mesma forma nada adiantaram os depoimentos das testemunhas … e …, pai e mãe do arguido, que não têm conhecimento directo dos factos, a nada tendo assistido (fls. 448/449 e 450/451).
Inquirida … em inquérito fls. 497e 498, tia da arguida/ofendida a mesa a nada assistiu, tendo apenas confirmado o estado de debilidade da ofendida quando esta regressou ao norte do país.
Do relatório hospitalar e da história clínica de fls. 307 resulta o diagnóstico de esquizofrenia do arguido (fls. 2901 a 306).
Mais se salienta, o relatório Pericial Psiquiátrico do arguido CC (fls. 511 a 523), que em conclusões refere que: o “examinado com diagnóstico de esquizofrenia paranoide, recusa tratamento, sendo que a patologia psiquiátrica aliada ao sentimento de revolta provocado pela possibilidade de abandono pela companheira terá potenciado os comportamentos descritos” (…) destaca-se o facto de os diversos conteúdos potencialmente disruptivos na personalidade são geridos de uma forma primária sem a devida contenção psíquica. Emocionalmente instável e impulsivo, sendo considerado um risco de violência moderado alto. Os aspectos da personalidade ainda que devendo ser tidos em conta para avaliar a probabilidade de factos semelhantes “. Concluiu, todavia pela imputabilidade do arguido.
No que se refere à certidão junta relativa ao processo de inquérito que correu termos em Sintra do mesmo nada se extrai, com relevo para a decisão a proferir nos autos, até pela decisão de arquivamento no referido processo.
Conclui-se, desta feita, da análise conjunta da prova supra elencada, da inexistência de indícios suficientes da factualidade constante do requerimento de abertura de instrução no que se refere ao crime de violência doméstica por parte da arguida BB. Na verdade, quanto a tal ilícito, para além da alegação do referido requerimento, não existe qualquer prova.
Salienta-se a este propósito que quanto ao episódio de 04/02/2017 a própria arguida/ofendida admitiu por ter agredido (não concretizando o modo como o fez) nesse dia o arguido/assistente, mas para se defender (não existindo qualquer outra prova que possa contrariar essa versão – a não ser a do arguido que em sede de primeiro interrogatório, aí se tendo concluído pela pouca credibilidade da mesma).
Tanto as fotografias como o relatório de avaliação do dano corporal a que acima se alude, não abalam a versão da arguida/ofendida (sendo de notar que pelas lesões da mesma, esta foi atingida nos braços o que vai ao encontro da versão por si apresentada, tornando-a verosímil).
Com efeito, concorda-se com a posição do Ministério público sufragada no despacho de arquivamento e corroborada em sede de instrução.
Aliás, cumpre salientar que as alegadas agressões, mesmo que em defesa, sempre seriam uma situação isolada, tendo o arguido declarado quanto ao mesmo não desejar procedimento criminal, o que levou, naturalmente à decisão do Ministério público de não acusar por esses factos por falta de legitimidade para tal.
Em face do supra-exposto, não podia o tribunal deixar de dar como não suficientemente indiciados os factos supra elencados apenas estando suficientemente indiciados os factos da acusação pública subsumíveis ao crime de violência doméstica praticado por parte do arguido CC.

Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso e bem assim os poderes de cognição do Tribunal ad quem.
Como decorre das conclusões formuladas pelo aqui assistente, com o presente recurso pretende-se que este Tribunal de recurso venha revogar a decisão judicial que não pronunciou a arguida BB e se venha substituir por outra que ordene a pronúncia da mesma como autora material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1 al. b) e n.º 4, do Cód. Pen.
Como consabido, a instrução é formada pelo conjunto de actos de instrução (art.º 289.º, n.º 1, do Cód. Proc. Pen.) tendentes á comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou arquivar o inquérito, conforme decorre do disposto no art.º 286.º, do mesmo diploma adjectivo.
Só sendo de proferir despacho de pronúncia caso se tenham recolhido indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, cfr. art.º 308.º, n.º 1, do Cód. Proc. Pen.
A lei define o que se deve considerar por indícios suficientes, considerando-se, como tal, aqueles de que resulte “uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança”, ver art.º 283.º, n.º 2, do Cód. Proc. Pen.
No ensinamento do Prof. Germano Marques da Silva, a respeito, refere-se que nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos e antes e tão só indícios, sinais de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido.
Na pronúncia o Juiz não julga a causa; verifica se se justifica, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, que o arguido seja submetido a julgamento (…).
A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulta uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força delas, uma pena ou uma medida de segurança (art.º 283.º, n.º2), não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgador a final[1].
No mesmo sentido, vemos o Ac. Relação do Porto[2], de 20.01.1993, onde se escreveu que para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige que a prova, no sentido de certeza moral, da existência do crime, bastando-se com a exigência de indícios, de sinais, dessa ocorrência.
Isto, porém, não significa que a lei confira aos mencionados despachos um estatuto de ligeireza.
E prossegue o dito aresto, a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências, morais, quer jurídicas; submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo se não mesmo um vexame.
É por isso que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo que aquela possibilidade razoável de “condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa”: o Juiz só deve pronunciar quando, por elementos de prova recolhidos nos autos, forma a convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido ou “os indícios são suficientes quando haja uma lata probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Com base nos ensinamentos expostos vejamos, pois, se é, ou não, de manter o despacho de não pronúncia prolatado e aqui posto em crise com o presente recurso.
Estriba o aqui impetrante a sua pretensão de ver pronunciada a arguida como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1 al. b) e n.º 4, do Código Penal, na seguinte factualidade:
1. No dia 4 de Fevereiro de 2017, pelas 23.00 horas, no interior da casa onde o assistente estava a viver desde 08 de Janeiro anterior em Setúbal, na Rua … e onde a arguida se lhe havia juntado posteriormente, a arguida comunicou que pretendia ir-se embora.
2. Perante tal afirmação o assistente perguntou-lhe por que razão se ia embora quando tinha sido ela que o tinha convencido a reconciliarem-se sob o pretexto de que estava grávida e que por isso estava muito alterada e agressiva.
3. De imediato a arguida começou a desferir socos, murros e arranhões no corpo do assistente, em particular na cara deste, magoando-o e ferindo-o.
4. Tentando defender-se e fazer com que a arguida cessasse a sua conduta violenta e agressiva, o assistente colocou as mãos à frente da cara e tentou segurar-lhe os braços.
5. Logo que a arguida cessou o seu comportamento o assistente pegou nas malas da arguida, pô-las na rua e trancou a porta para que a arguida aí não mais entrasse.
6. Ferido e maltratado, como consequência dos murros, arranhões e unhadas desferidos pela arguida, sobretudo na cara do assistente, este foi apresentar a queixa que deu origem aos presentes autos.
7. Acresce que a arguida já pelo menos desde 07 de Janeiro de 2017 que agredia o assistente com murros, arranhões, unhadas e exercia sobre ele constantes maus-tratos psíquicos
8. A arguida agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, conhecedora da ilicitude dos seus actos.
9. A arguida sabia que as suas condutas eram proibidas por lei.

No que respeita ao crime de violência doméstica, rege o art.º 152.º, do Cód. Pen., onde se diz no seu n.º 1, que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
Como ensina o Prof. Américo Taipa de Carvalho, o intento de prevenir e reprimir as ofensas que rebaixem de modo socialmente insuportável a dignidade pessoal da vítima está por certo na base da criminalização específica dos maus tratos domésticos.[3]
Sobre o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, vária tem sido a discussão, não existindo unanimidade de entendimento.
Para Nuno Brandão, ao contrário do que vem sendo defendido pela jurisprudência, não é de sufragar o entendimento que vai no sentido de o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica ser a dignidade humana.
Porquanto, com o delito em causa se pretende dirigir e actuar sobre condutas que estão muito longe de uma tal dignidade.
Sendo mais adequada á teleologia da específica criminalização dos maus tratos intra-familiares, à sua inserção sistemática e à eficácia operativa do preceito apontar a saúde como o bem jurídico do crime de violência doméstica.
Sendo objecto de tutela a integridade das funções corporais da pessoa nas suas dimensões física e psíquica[4].
Para Miguez Garcia o bem jurídico protegido pela norma será um bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, a liberdade nas suas expressões sexual e de natureza pessoal.[5]
Para Plácido Conde Rodrigues, o bem jurídico protegido pelo tipo de crime em apreço será a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral[6].
Como afirmação de que o bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime em apreço é, em geral, a dignidade da pessoa humana e, em particular, a saúde, vemos vários arestos dos nossos Tribunais Superiores, de onde destacamos, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto, de 26.05.2010, no Processo n.º 179/08.3GDSTS.P1.
E estaremos perante um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude de uma relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima. Pressupondo que o sujeito activo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos. O sujeito passivo ou vítima só pode ser a pessoa que se encontre, para com o agente ou sujeito activo, numa relação de coabitação conjugal ou seja cônjuge.[7]
De salientar que a lei prescinde da existência de laços familiares entre a vítima e o agente ao tempo do facto.
Do que de tal dá bem nota o segmento da lei ao abranger o ex-cônjuge ou pessoa com quem o agente “tenha mantido” relação análoga à dos cônjuges. Alargando-se, desta sorte, a tutela às relações parentais não familiares.
A conduta típica da violência doméstica tanto se pode revestir de maus-tratos físicos, onde se incluem as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, designadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade.
E como refere Nuno Brandão, in ob. cit., a págs. 21 a 22, no crime em apreço devem estar em causa actos que pelo seu caracter violento sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima.
Sendo que a circunstância de uma certa acção poder, a priori, integrar o conceito de maus tratos não significa necessariamente que se dê sem mais como preenchido o tipo-de-ilícito do crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto.
Entre todas as acções que podem ser tidas como maus tratos físicos temos de aí incluir os comportamentos agressivos contra o corpo e que preencham a factualidade típica da ofensa á integridade física; mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada.
No que respeita aos maus tratos psíquicos, aí podemos incluir todos os comportamentos que passem pelos insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, as ameaças, as privações de liberdade, as perseguições…
Para se assumirem como actos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância específica no seio de outros tipos legais de crime. Seja no sentido de que nem remotamente poderiam ser integrados em qualquer outra previsão típica, seja no de que a conduta seria de molde a preencher um específico tipo-de-ilícito, mas fica aquém do necessário para esse efeito, como se costuma enfatizar em relação às ameaças.
Há que analisar, de seguida, se para o preenchimento do tipo em questão se basta a prática de um acto isolado ou antes se tem de exigir a reiteração de conduta.
Com a alteração legislativa operada pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, veio decidir-se no sentido de bastar para o preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica a prática de um acto isolado e sem que se exija a reiteração de conduta.
Pondo-se, desta forma, fim à polémica que existia no seio da doutrina e da jurisprudência, a respeito. Sendo hoje inequívoco que a tutela da violência doméstica se projecta não apenas sobre casos de reiteração ou habitualidade de comportamentos violentos, mas também potencialmente aplicável a uma conduta violenta.
Porém, não é qualquer acção isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo.
Como refere Nuno Brandão, in ob. cit., a págs. 21, com a revisão de 2007 foi inequivocamente aberto caminho para a integração de alguns dos casos (do facto único) no ilícito-típico de violência doméstica. Na versão final da revisão deixou de constar a referência à intensidade dos maus-tratos como alternativa à reiteração, que fazia parte da proposta de Lei 98-X.
Na jurisprudência anterior á revisão era já largamente maioritária a posição de que o crime de maus tratos não prossupunha uma reiteração de condutas, podendo bastar-se com um único comportamento agressivo.
Para tal, muitas vezes, erigiu-se como critério relevante que a ofensa se revestisse de uma certa gravidade, que, fundamentalmente, traduzisse crueldade e insensibilidade ou até vingança desnecessária por parte do agente.
Mais recentemente, na Relação de Coimbra, vem-se aflorando a ideia da dignidade pessoal da pessoa ofendida e à possibilidade de à mesma ser atribuído o estatuto de vítima, considerando-se que “o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apresentados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”.[8]
Apesar de entender de que os citados arestos apontam na direcção correcta, entende, porém, o Autor que há que exigir que o comportamento violento seja um tal que, pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima.[9]
Ou como se deu nota no Acórdão da Relação do Porto, de 19.09.2012, no Processo n.º901/11.0PAPVZ.P1, como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”. E estes só se verificam quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.
Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável.
Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.
O tipo subjectivo só pode ser preenchido dolosamente. Sendo que o conhecimento correcto da identidade e das características da vítima é fundamental para a conformação do dolo do agente, como refere Pinto de Albuquerque, in ob. cit., págs. 406.
Com base nos ensinamentos acabado de mencionar, debrucemo-nos sobre o caso em apreço nos autos.
Importando, desta feita, descortinar se a conduta do agente no caso em apreço, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como “maus tratos”.[10]
O mesmo é dizer se estamos perante uma especial gravidade da conduta maltratante, onde se incluem os casos mais chocantes de maus tratos em cônjuges ou em pessoa em situação análoga.
Onde se tem de incluir o tratamento cruel, excessivo, sem respeito pela dignidade do companheiro, tudo com aproveitamento de uma autoridade do agente que lhe advém do uso e abuso da sua força física.
Visando-se, dessa feita, proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano.[11]
Desde logo, importa reter que o vertido no ponto 7. - Que a arguida já pelo menos desde 07 de Janeiro de 2017 que agredia o assistente com murros, arranhões, unhadas e exercia sobre ele constantes maus-tratos psíquicos não passa de imputações genéricas, sem que se concretize factualmente a actuação da arguida, de forma a se poder concluir pela verificação de actos violentos que, pela sua imagem global e pela sua gravidade, devam ser tidos como desrespeitadores da pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, e, logo, susceptíveis de serem classificados como maus tratos. Ou mesmo a serem punidos no âmbito dos tipos legais de ofensas à integridade física ou injúrias.
Porquanto, e como vem sendo entendido pelo nosso mais alto Tribunal, não são factos susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado.[12]
Tudo, por as mesmas não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, art.º 32.º, n.º 1, da C.R.P.[13]
Ou como lapidarmente se deu nota no Acórdão do S.T.J., de 21.02.2007, no Processo n.º 06P4341, o princípio ou cláusula geral estabelecido no n.º 1 do art. 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objecto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender. Devendo, por tal, ter-se por não escritas as mencionadas imputações genéricas.
A restante factualidade integra a prática, pela arguida BB de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, do Cód. Pen.
Dada a natureza semi-pública do ilícito em presença – cfr. n.º 3 do citado normativo – e tendo o aqui impetrante, queixoso, declarado não pretender procedimento criminal contra a denunciada (cfr. fls 98 dos autos), nada mais resta, de como o fez o Magistrado do Ministério Público no seu despacho de arquivamento, do que declarar extinto o procedimento criminal, não podendo, pois, prosseguir os autos com a prolação de despacho de pronúncia, como almejado.
Face à conclusão alcançada, inútil o pronunciamento sobre qualquer outra questão trazida por via recursiva.

Termos são em que Acordam em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida, ainda que por fundamentos diversos dos aí expressos.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 Ucs, a taxa de justiça devida.

(texto elaborado e revisto pelo relator).
Évora, 20 de Março de 2018
José Proença da Costa (relator)
António Clemente Lima)
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[1] Ver, Curso de Processo Penal, Vol. II, págs. 182 e segs..
[2] Na C.J., ano XXIII, tomo IV, págs. 261.
[3] Ver, Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. I, Comentário ao art.º 152.º, § 4.
[4] Ver, A Tutela Penal Especial Reforçada Da Violência Doméstica, págs. 14 e 15.
[5] Ver, O Direito Penal Passo a Passo, Vol. I, págs. 205.
[6] Ver, Violência Doméstica- Novo Quadro Legal e Processual Penal, Revista do C.E.J., n.º 8, págs. 305.
[7] Ver, Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, págs. 405 e Ac. Rel. Porto, de 296.09.2012, no Processo n.º 176/11.1SLPRT.P1.
[8] Ver, Ac., de 29-01-2003, e bem assim os Acórdãos da mesma Relação de 13.06.2007 e de 28.01.2010, no Processo n.º 361/07.0GCPBL.C1.
[9] Ver, Ac. S.T.J., de 6.04.2006, no Processo 1167/06.
[10] Ver, ainda, Acórdão da Relação do Proto, de 8 de Outubro de 2014, no Processo n.º 956/10.5PJPRT.P1.
[11] Ver, Acórdão da Relação de Lisboa, de 7 de Dezembro de 2010, no Processo n.º 224/05.4GCTVD.L1-5.
[12] Ver, entre outros, o Acórdão do STJ, de 5.04.2006, no Processo n.º 05P2932.
[13] Ver, Acórdão do S.T.J., de 2.04.2008, no Processo n.º 07P4197 e o Acórdão do mesmo Tribunal, de 10.05.2006, no Processo n.º 06P1190.