Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
255/16.9T8STR.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
Data do Acordão: 12/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A falta de pagamento pontual dos valores e rendas previstos no contrato de locação financeira, configurando incumprimento contratual, permite que a locadora proceda à resolução do contrato.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Ré: (…), Unipessoal. Lda.

Recorrida / Autora: (…) Investimento, SA.

Trata-se de uma ação declarativa de condenação através da qual a A. peticiou a condenação da R a entregar-lhe definitivamente o imóvel descrito no art. 4.º da p.i. dada a resolução do contrato de locação financeira imobiliária c por via do incumprimento contratual por parte da R.

II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação totalmente procedente, confirmando a entrega ordenada em sede de procedimento cautelar.

Inconformada, a R apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da sentença recorrida, a substituir por outra que decrete a improcedência ação. Concluiu a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«A) Modificada, como se espera, a matéria de facto nos termos propostos, ou similarmente, haverá de concluir-se haver causas impeditivas da resolução do contrato por parte do (…).
B) Por um lado, haverá de concluir-se que esta instituição financeira, não era credora da ré por quaisquer rendas em atraso, porquanto tinha em seu poder e à sua exclusiva disposição, quantia mais que suficiente para se fazer pagar dos seus créditos vencidos e emergentes do contrato de leasing em execução.
C) Por outro lado, há que concluir que a ré, sem culpa sua, face ao incêndio que destruiu o armazém locado, propriedade do autor e maquinaria, ficou totalmente impossibilitada de laborar e, por conseguinte, de gerar receitas que possibilitassem pagar as rendas que sucessivamente se foram vencendo ao autor - repare-se que o (…), mesmo sabendo que nada estava a facultar à ré, foi debitando rendas como tudo decorresse na maior normalidade. E o seu contributo para a ressuscitação da ré seria, ao que se deduz da sua posição processual e dos depoimentos das suas testemunhas, a disponibilização de uma linha de crédito à ré, para a reconstrução do seu (dele …) armazém.
D) Assim é que, com a mais sincera modéstia, a ré continua achar que a resolução do contrato por parte do (…) não era legítima e, além do mais, constitui um clamoroso abuso de direito, redundando a solução jurídica dada ao presente litígio, sem menosprezar as fragilidades de prova, a seu cargo e que não enjeita, numa clamorosa injustiça.
E) Por isso espera, em face do que deixou dito, mas sobretudo em apelo ao douto suprimento desse Venerando Tribunal da Relação, seja alterada a matéria factual assente no sentido pugnado ou similar e, a final considerar procedentes as excepções, de pagamento e/ou de abuso de direito, declarando-se ilegítima a resolução do contrato e, em consequência improcedente a acção, com todas as legais consequências.»

A Recorrida, em sede de contra-alegações, sustentou que deve manter-se a decisão de 1.ª Instância.

Assim, em face das conclusões da alegação das Recorrentes, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso[2] e sendo certo que apenas cabe apreciar as questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso[3], são as seguintes as questões a decidir, salvo prejudicialidade decorrente do anteriormente apreciado:
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- da falta de fundamento para a resolução do contrato pela Recorrida;
- do abuso do direito de resolução do contrato.


III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª instância

A) (…) Investimento, S.A. é uma instituição de crédito, tendo por objeto social a prática da atividade bancária.

B) (…) E, na aludida qualidade e de proprietário do prédio urbano, que corresponde a casa para avicultura, destinado a armazéns e atividade industrial, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Benavente, sob o artigo (…) e do prédio rústico, correspondente a terra de semeadura, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Benavente, sob o artigo (…), secção (…), que fazem parte do prédio misto, sito na (…) do Miradouro, freguesia e concelho de Benavente, descrito na Conservatória do Registo Predial de Benavente, sob o número (…), celebrou, na qualidade de locador, com a sociedade (…) 2, S.A., na qualidade de locatária, denominado “contrato de locação financeira imobiliária n.º …”, datado de 2 de outubro de 2007.
C) (…) Segundo o qual deu em locação à Locatária o imóvel, que foi entregue na data da celebração do contrato.

D) (…) Ficando convencionado que o mesmo teria duração de 180 meses, com início na data sua celebração, correspondentes a 180 rendas de periodicidade mensal, cada, no valor de 4.311,31 €, vencendo-se a primeira na data da celebração do contrato e as demais no dia 5 do mês a que respeitem.

E) (…) Com valor residual no montante de 10.000,00 €.

F) (…) Prevendo-se que a taxa aplicável resultaria da média aritmética das cotações diárias referentes à Euribor a três meses, acrescida de uma margem de dois porcento.

G) (…) Tendo a margem de dois porcento sido alterada para cinco por cento, por carta datada de 14 de maio de 2009 e dirigida pela Autora à sociedade (…) 2 – Produção Nacional de (…), S.A..

H) Por documento particular assinado no dia 17 de maio de 2013, e cujas assinaturas nele apostas foram reconhecidas, a sociedade, transmitiu a sua posição contratual no contrato de locação financeira imobiliária à sociedade Ré, assumindo esta última todos os direitos e obrigações contratuais daquela e confessando-se devedora à data de 5 de maio de 2013 perante o ora Requerente da quantia de 376.433,00 €.
I) Na sequência de incêndio deflagrado no prédio urbano objeto da locação, Autora e sociedade (…)2 – Produção Nacional de (…), S.A. acordaram, por documento assinado a 3 de maio de 2012, que do valor da indemnização recebido das seguradoras (…) Seguros, S.A. e (…) Mundial, S.A. referente às apólices n.º (…) e (…), foi aplicado 138.062,95 € no pagamento de valores vencidos e não pagos, 35.000,00 € na remoção dos escombros, e o remanescente 201.937,05 € foi entregue à sociedade.

J) A 21 de novembro de 2013, a Ré deixou de proceder ao pagamento das rendas a que se obrigou, no âmbito do contrato.

K) (…) Ascendendo o valor em dívida, na data de 5 de fevereiro de 2014, à quantia de 7.216,05 €, referente às rendas n.º 63 e 64, dos meses de Dezembro de 2013 e Janeiro de 2014.

L) (…) Pelo que a 20 de fevereiro de 2014, acordaram um período de carência de capital e juros de 2 meses, seguindo-se de um período de carência de capital de 12 meses, a contar de 5 de fevereiro de 2014.

M) (…) Obrigando-se a Ré a pagar, no período compreendido entre 5 de abril de 2014 e 5 de março de 2015, 12 rendas, mensais e sucessivas, compostas apenas por juros, cada uma no montante de 1.725,45 €.
N) (…) Findo o qual, sobrevinha a obrigação do pagamento de 150 rendas, mensais e sucessivas, compostas por capital e juros, cada uma no montante de 3.557,14 €, mantendo-se inalterável tudo o demais constante do clausulado do contrato de locação financeira.

O) A Ré não procedeu ao pagamento da quantia de 7.216,05 €, referente às rendas dos meses de Dezembro de 2013 e Janeiro de 2014.

P) (…) E não liquidou os montantes mensais compostos por juros, no valor de 1.752,45 €.

Q) Por carta datada de 15 de Dezembro de 2014, e face ao incumprimento das rendas e juros devidos, que à data totalizava o montante de 25.326,27 €, a Autora procedeu à interpelação da Ré para o cumprimento em 30 dias.

R) (…) Findo o qual e não tendo sido liquidados os valores em dívida, através da carta registada com aviso de receção, registada a 21 de Janeiro de 2015 e recebida pela Ré a 23 de janeiro de 2015, procedeu à resolução do contrato de locação financeira referido a B.

S) (…) Solicitando a restituição do imóvel locado, o pagamento das rendas vencidas e não pagas, e a indemnização de 20 % da soma das rendas ainda não vencidas, com o valor residual, acrescida da cláusula penal por mora, nos termos contratualizados, tudo no valor total de 123.481,25 €.

Mais se mostra documentalmente provado que (cfr. arts. 666.º, n.º 1 e 607.º, n.º 4, do CPC):
T) No âmbito do contrato de locação financeira imobiliária referido nos autos, as partes consignaram como obrigação do locatário «manter o prédio em bom estado de conservação, efetuando por sua exclusiva conta e responsabilidade as obras ordenadas pelas Autoridades Públicas, as obras de conservação, ordinárias, extraordinárias ou de beneficiação realizando as benfeitorias, necessárias ou úteis, nas quais se incluem as obras quer pequenas (como pinturas, arranjos, substituição de fechaduras, portas, janelas, soalhos e tetos, peças de equipamento, casas de banho, etc.), quer ainda as grandes reparações, designadamente por caso fortuito ou de força maior, vícios ou defeitos de construção, exceto se lhe for possível conseguir obrigar à realização de tais obras de reparação qualquer terceiro, eventualmente responsável por esses vícios, defeitos ou danificações.» – cfr. doc. de fls. 23.

B – O Direito

Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto

Nos termos do n.º 1 do art. 640.º do CPC, “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

O n.º 2 de tal preceito, por sua vez, estabelece que “no caso previsto na al. b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;”

Trata-se de um regime espartano, que estabelece quais são os requisitos formais das alegações de recurso em que seja colocada em crise a decisão sobre a matéria de facto. Tem em vista definir concretamente o que está sujeito a instância recursional e aquilo que resulta cristalizado e imutável, transitado em julgado. Dele decorre que a matéria de facto provada apenas há de ser colocada em causa na medida em que seja expressamente indicado pelo recorrente nas conclusões da alegação do recurso, não bastando mera alusão encapotada. “As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.”[4] A não verificação de tais requisitos implica na rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, não havendo lugar, sequer, à prolação de despacho com vista ao aperfeiçoamento.[5]

Como é sabido, a jurisprudência que vem sendo consolidada pelo STJ no que respeita ao sentido e alcance do regime inserto no art. 640.º do CPC assenta, designadamente e no que aqui importa salientar, nos seguintes vetores:
- no recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorretamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe[6];
- servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso[7];
- na impugnação da decisão de facto, recai sobre o recorrente “um especial ónus de alegação”, quer quanto à delimitação do objeto do recurso, quer no que respeita à respetiva fundamentação[8];
- na delimitação do objeto do recurso, deve especificar os pontos de facto impugnados; na fundamentação, deve especificar os concretos meios probatórios que, na sua perspetiva, impunham decisão diversa da recorrida (art. 640.º, n.º 1, do CPC) e, sendo caso disso (prova gravada), indicando com exatidão as passagens da gravação em que se funda (art.º 640.º, n.º 2, al. a), do CPC)[9];
- o recorrente, nas conclusões, deve fazer alusão à pretensão de impugnação do julgamento da prova, mais não seja pela resumida indicação dos pontos concretos que pretende ver reapreciados, de modo a que delas resulte, inquestionavelmente, que pretende impugnar o julgamento da matéria de facto;[10]
- o incumprimento de tais ónus – prescritos para a delimitação e fundamentação do objeto do recurso de facto – impedem a Relação de exercer os poderes-deveres que lhe são atribuídos para o respetivo conhecimento.[11]

No caso em apreço, analisadas as conclusões que integram a alegação de recurso (sem as quais o recurso seria indeferido – art. 641.º, n.º 2, al. b), do CPC), constata-se que não se mostram enunciados os concretos factos submetidos a instrução que a Recorrente considera terem sido incorretamente julgados impondo-se decisão diversa. Apela-se à modificação da matéria de facto nos termos propostos, mas não se mostram indicados, nas conclusões e como se impunha, os concretos factos cuja decisão é colocada em crise.

Assim, e ao abrigo do regime processual civil já citado, vai rejeitado o recurso atinente à decisão relativa ao julgamento da matéria de facto.

Da falta de fundamento para a resolução do contrato pela Recorrida

A recorrente invoca que a Recorrida não podia ter resolvido o contrato porquanto não era credora de rendas em atraso, tinha em seu poder e à sua disposição quantia suficiente para se fazer pagar dos seus créditos vencidos e emergentes do contrato de leasing aqui em causa.

O contrato de locação financeira encontra-se previsto no art. 1.º do DL n.º 149/95, de 24.06, com as alterações que lhe foram sucessivamente introduzidas, como o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.

No âmbito da relação contratual de locação financeira imobiliária, a Recorrente deixou de proceder ao pagamento de rendas e juros a que estava contratualmente obrigada, sendo que, a 15 de dezembro de 2014, encontrava-se em falta o pagamento de € 25.326,27. Então, a Recorrida interpelou a Recorrente para que procedesse ao pagamento do que estava em falta. Não tendo sido liquidados, na sequência de tal interpelação, os valores em dívida, foi comunicada a resolução do contrato.

A figura da resolução do contrato vem prevista nos arts. 432.º e ss do C.C., cujo n.º 1 estabelece que é admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção. De todo o seu regime decorre tratar-se de um campo onde pode ter pleno exercício o princípio da liberdade contratual consagrado no art. 405.º do CC, valendo as cláusulas estipuladas pelas partes (v. arts. 433.º e 434.º/1 do C.C. donde se alcança que os efeitos da resolução não são impostos pela lei, antes se harmoniza à vontade das partes que sobre a matéria houver disposto).

A resolução do contrato implica a destruição da relação contratual, validamente constituída, operada com base em facto posterior à celebração do contrato e que tem que ver com o inadimplemento da contraparte.[12] Como ensina Brandão Proença[13], a resolução consiste no poder unilateral de extinguir um contrato (maxime bilateral) válido, em virtude de circunstâncias posteriores à sua conclusão (o facto subjetivo de um certo incumprimento) e frustrantes do interesse na execução contratual ou desequilibradoras (o facto objetivo de uma anómala alteração ou a não verificação das condições contratuais pressupostas) da relação de equivalência económica entre as prestações, desencadeando uma normal “liquidação” retroativa. Do ponto de vista da estrutura negocial, surge como um negócio unilateral recetício, integrando normalmente uma declaração extrajudicial não sujeita a qualquer formalidade (arts. 436.º, nº 1 e 224.º e ss do CC). Assim, o direito à resolução tem por fundamento um certo incumprimento contratual e a dupla necessidade desvinculativa e (ou) de restituição das prestações cumpridas, função realizada pela resolução enquanto instrumento de liquidação contratual, e consiste na faculdade do credor adimplente de contrato bilateral poder reagir contra o incumprimento lato sensu da contraparte.[14] Determina a destruição da relação contratual, operada por ato posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado.[15]

Revertendo ao caso em apreço, uma vez que, à luz do regime instituído no art. 801.º, n.º 1, do CC, a Recorrente incorreu em incumprimento contratual, assistia à Recorrida o direito de fazer operar a resolução do contrato, por via do disposto nos arts. 432.º e 801.º, n.º 2, do CC, pondo termo à relação contratual que vinculava as partes.

Não se alcança fundamento para acolher a pretensão da Recorrente. As quantias recebidas a título de indemnização dos danos decorrentes do incêndio que deflagrou no prédio urbano dado em locação, a ser utilizado pela Recorrente, foram aplicadas, nos termos do acordo firmado a 3 de maio de 2012, no pagamento de valores contratuais vencidos e não pagos, na remoção dos escombros, sendo o remanescente, no montante de € 201.937,05, entregue à sociedade. Inexiste, pois, fundamento fáctico que sustente que os pagamentos das quantias relativamente aos meses de dezembro de 2013 e ss (já para não mencionar os atrasos nos pagamentos verificados anteriormente) não fossem devidos por a Recorrida dispor de quantias para se fazer pagar desses créditos, que a Recorrente admite estarem vencidos (cfr. conclusão B).

Do abuso do direito de resolução do contrato

Na ótica da Recorrente, a Recorrida incorreu em abuso do direito de resolver o contrato pois bem sabia que, por causa do incêndio que deflagrou nas instalações por si ocupadas, destruindo-as, ficou impossibilitada de laborar e de gerar receitas que possibilitassem o pagamento das rendas.

O instituto do abuso do direito está consagrado no art. 334.º do CC. Nos termos daquele preceito, “É ilegítimo o exercício do direito quando exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” A toda a conduta é inerente a responsabilidade e a expectativa de que cada um atue com retidão e autenticidade. Por conseguinte, o princípio da boa-fé ou, até mesmo, o princípio da confiança, é um princípio ético-jurídico fundamental que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar e preservar.

Nas palavras de Antunes Varela[16] «há abuso de direito, segundo a concepção objectiva aceite no artigo 334.º, sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito. Não basta que o exercício do direito cause prejuízos a outrem. Naturalmente, a reclamação do crédito pelo credor abastado ao devedor em má situação económica será contrária aos interesses deste. O proprietário que constrói, no seu terreno, tirando as vistas ou a luz ao prédio vizinho, também pode prejudicar este. Mas em nenhum dos casos haverá, em princípio, abuso de direito, visto a atribuição do direito traduzir deliberadamente a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com eles conflituantes. Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar. Se, para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade, a consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei. Não pode em qualquer dos casos afirmar-se a exclusão dos factores subjectivos nem o afastamento da intenção com que o titular tenha agido, visto este poder interessar, quer à boa-fé ou aos bons costumes, quer ao próprio fim do direito.»

A relação contratual estabelecida entre as partes é uma relação atinente ao contrato de locação financeira imobiliária. É certo que o locador está obrigado a conceder ao locatário o gozo de bem para os fins a que se destina – art. 9.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 149/95. Porém, em consonância com o regime legal inserto no art.º 10.º, n.º 1, als. e) e f), do citado DL, encontra-se consignado no contrato que a locatária Recorrente está obrigada a manter o prédio em bom estado de conservação e a realizar nele obras, ainda que avultadas, necessárias que sejam por via de caso fortuito ou de força maior. A obrigação de pagamento pontual das rendas acordadas, conforme determina a al. a) do n.º 1 do art. 10.º do DL n.º 149/95, não é abalada pela redução da atividade da Recorrente ou pela sua incapacidade de gerar receitas (caso assim estivesse provado, que não está). As obrigações legais e contratuais decorrentes da vigência do contrato de locação financeira não se mostram estabelecidas em conexão com a produtividade da Recorrente nem se determinam por via dela. Nem dos factos assentes resulta que a Recorrida tenha dado indicações em sentido diverso à Recorrente. Não obstante ter deflagrado o incêndio, ainda que, eventualmente, sem culpa da Recorrente, tendo o valor da indemnização recebido das seguradoras sido aplicado no pagamento de valores vencidos e não pagos (€138.062,95), na remoção dos escombros (€35.000) e o remanescente entregue à sociedade Recorrente (€201.937,05), conforme acordo estabelecido em maio de 2012, a resolução do contrato pela Recorrida, com fundamento na falta de pagamento de rendas e valores em dívida referentes aos meses de dezembro de 2013 e ss, não traduz qualquer ofensa do sentido ético-jurídico vigente nem excede, muito menos de forma manifesta, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Termos em que improcedem integralmente as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre a Recorrente – art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Concluindo:
- atento o regime legal atinente à impugnação, em sede de recurso, da decisão relativa à matéria de facto, impõe-se, designadamente, que recorrente, nas conclusões, onde se delimita o objeto do recurso, concretize os pontos de facto que considera incorretamente julgados, sob pena de a Relação resultar impedida de exercer os poderes-deveres que lhe são atribuídos para o respetivo conhecimento;
- a falta de pagamento pontual dos valores e rendas previstos no contrato de locação financeira, configurando incumprimento contratual, permite que a locadora proceda à resolução do contrato;
- o facto de a locatária se encontrar incapacitada de gerar receitas não implica que a resolução do contrato pelo locador, por falta de pagamento de rendas, seja ofensiva do sentido ético-jurídico vigente, pelo que não consubstancia exercício abusivo do direito de resolução contratual.


IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Évora, 21 de Dezembro de 2017

Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos
__________________________________________________
[1] Cfr. arts. 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] Cfr. art. 608.º do CPC, aplicável ex vi art. 663.º, n.º 2, do CPC.
[3] À luz do regime inserto no art. 130.º do CPC – cfr. Ac. TRL de 30/04/1992 (Pires Salpico); Ac. STJ de 17/05/2017 (Fernanda Isabel Pereira).
[4] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª edição, p. 143.
[5] V. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª edição, p. 141 e 142.
[6] Ac. STJ de 01/10/2015 (Ana Luísa Geraldes).
[7] Ac. STJ de 01/10/2015 (Ana Luísa Geraldes).
[8] Ac. STJ de 22/09/2015 (Pinto de Almeida).
[9] Ac. STJ de 22/09/2015 (Pinto de Almeida).
[10] Ac. STJ de 23/02/2010 (Fonseca Ramos).
[11] Ac. STJ de 19/02/2015 (Maria dos Prazeres Beleza).
[12] V. Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª edição, Antunes Varela, págs. 275, Ac. STJ de 21.04.94 in BMJ 436.º-363.
[13] A Resolução do Contrato no Direito Civil, Coimbra Editora, pág. 74.
[14] Cfr. Brandão Proença, ob. cit., p. 69 e 76.
[15] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2.ª edição, p. 138.
[16] Das Obrigações em Geral, vol. I, p. 436.