Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2840/20.5T8STR.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE CRIANÇAS
MENOR
DIREITO DE AUDIÇÃO
MEDIDA TUTELAR
NOMEAÇÃO DE PATRONO
Data do Acordão: 11/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1- Resultando da análise da tramitação do presente processo de promoção e proteção que o Tribunal a quo teve o cuidado na fase de instrução dos autos de tomar declarações à Jovem de 17 anos de idade a favor de quem o processo foi instaurado com vista a conhecer directamente da mesma o seu entendimento sobre medida a aplicar, bem como de a notificar para se pronunciar sobre a revisão da medida cautelar aplicada no início da instrução no interesse da Jovem, o que esta fez e bem assim, ainda, de a notificar para alegações escritas, através de Patrono nomeado à Jovem, previamente à realização do debate judicial, em cumprimento do disposto no artigo 114.º da Lei de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, só não tendo logrado notificá-la na sua própria pessoa para comparecer na data do debate por virtude da Jovem se ter ausentado sem autorização da Comunidade Terapêutica onde foi cautelarmente acolhida, dois dias antes da expedição de tal notificação e refugiar-se em local que permanece ainda desconhecido no processo, sendo, ademais, de presumir que a Jovem soube com antecedência da data designada para a realização do debate judicial, onde esteve representada por Patrono devidamente notificado para tal, não se afigura defensável, conforme invocado pela mesma no seu recurso, a violação/preterição por parte do Tribunal a quo do direito de audição da Jovem.
2- Tendo ficado apurado que a Jovem se vem colocando, pelo menos desde Outubro de 2019, em situações de grande risco para a sua própria saúde, educação, formação e são desenvolvimento físico e psicológico, sem que a presença diária da sua progenitora, ou de outros familiares de referência, contribua para afastar o perigo subjacente aos comportamentos que a Jovem evidencia nessas situações de crise, havendo registo de tentativas de suicídio, assim como diversas condutas posteriores de automutilação levadas a cabo pela mesma, a par da assunção pela Jovem de consumos exagerados de bebidas alcoólicas, que lhe provocam desorientação, bem como entrega a outros comportamentos aditivos, mormente de produtos estupefacientes tais como haxixe, que a tornam agressiva e predisposta à prática de crimes contra a propriedade, designadamente furtos perpetrados à respectiva progenitora, apenas se vislumbra nesta fase como adequada, proporcional e actual ao superior interesse da Jovem a aplicação de uma medida a executar em regime de colocação, designadamente a medida de acolhimento residencial em Comunidade Terapêutica, desse modo tornando definitiva a medida cautelar de idêntica natureza antes aplicada, sem prejuízo de em futura revisão e com outros pressupostos factuais mais favoráveis à Jovem, mormente no tocante ao seu padrão comportamental e psicológico, se poder substituir tal medida por outra a executar no meio natural de vida junto da progenitora, ou de outro familiar que revele deter condições para tal.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2840/20.5T8STR.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Instância Central - 1ª Secção de Família e Menores - Juiz 2
Apelantes: … (Jovem)
… (Progenitora)
Apelado: Ministério Público
***
Sumário do Acórdão
(Da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)
*
I – RELATÓRIO
Em 27/11/2020 o Ministério Público instaurou a favor da Jovem (…), nascida em 13/08/2004, processo judicial de promoção e protecção requerendo a aplicação em beneficio da (…) de medida de promoção e protecção que se revelasse mais adequada à salvaguarda do superior interesse da jovem alegando, em síntese, carecer a (…) de integração em comunidade terapêutica para tratamento especializado, tempestivo e adequado à intercorrência entre os seus problemas de saúde psíquica e de toxicodependência, para além dos hábitos alcoólicos e tabágicos, acrescentando ainda não reconhecer a progenitora, único familiar direto da menor, esta necessidade (estando em auto negação), mais esclarecendo perceber-se que a jovem se encontra em sério risco para a sua saúde, desenvolvimento, formação e integração educativa e social impondo-se a aplicação à mesma de medida de promoção e de proteção que a retire e proteja do aludido contexto de risco.
Na mesma data de 27/11/2020 foi proferida decisão judicial que determinou a aplicação no interesse da Jovem (…) da medida cautelar de acolhimento residencial a executar em Comunidade Terapêutica a indicar pela Segurança Social pelo período de seis meses enquanto se procedesse à definição do encaminhamento subsequente da Jovem, tendo sido indicada a Comunidade Terapêutica Clínica Dr. (…), após o que foi determinada a emissão de mandados de condução da (…) a tal estabelecimento.
A progenitora da (…) interpôs recurso de tal decisão para este Tribunal da Relação de Évora pugnando pela revogação de tal medida e arquivamento dos autos de promoção e protecção, enquanto o Ministério Público respondeu sustentando o bem fundado da decisão recorrida pugnando pela sua manutenção.
A 25/02/2021 foi proferido acórdão por este Tribunal da Relação de Évora que decidiu negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
O processo prosseguiu os seus termos tendo sido declarada encerrada a instrução e designada a realização de debate judicial, ao qual se seguiu em 01/07/2021 o proferimento de sentença, da qual transcrevemos a parte essencial do respectivo dispositivo:
“IV- Decisão
Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 3.º, n.º 1, alínea g), 35.º, n.º 1, alínea f), 61.º e 62.º, n.º 1 e 2, todos da LPCJP, os juízes que constituem este Tribunal decidem aplicar a favor da (…) a medida de acolhimento residencial, pelo período de 14 (catorze) meses, a qual deverá ser revista semestralmente e executada em Comunidade Terapêutica que, por ora, será a Clínica Dr. (…), onde a jovem se encontra já inserida.”
*
Inconformadas com a decisão reagiram a Jovem (…) e a sua progenitora (…) apresentando cada uma delas requerimento de recurso independente consubstanciado em Apelação autónoma para este Tribunal da Relação.
No seu recurso a progenitora (…) alinhou as seguintes conclusões:
“CONCLUSÕES:
1- Face à escassa factualidade dada como provada no mesmo e ao Direito aplicável, a medida cautelar aplicada revela-se pouco criteriosa, desequilibradamente doseada, mais sendo actualmente desfavorável e contra o superior interesse da menor visada.
2- A menor foi retirada à sua progenitora sem estas terem sido previamente ouvidas, o que constitui uma grave violação e atropelo aos seus básicos direitos, assim como não lhes foi dada qualquer opção de qual a instituição para onde seria conduzida acabando por ser institucionalizada na Clínica Dr. (…), sita na Travessa de (…), n.º 187, (…), 4820-748 Fafe. Importa salientar que a menor reside na cidade de Santarém e foi levada para uma clínica situada a 310 km de distância, o que não se entende nem se concebe como benéfico, tanto para a menor quer como para a própria progenitora.
3- A menor encontra-se a esta data a ser seguida a nível de médico particular pelo Dr. (…), médico psicoterapêutico, custeado inteiramente pela mãe da menor.
3- A menor encontrava-se a esta data do internamento completamente estável a nível familiar, social, escolar, o que a presente medida cautelar veio a ameaçar.
4- A menor tem diversos familiares que se prestam a recebê-la e acolhê-la no seu seio familiar.
5- A menor não se mostra assim neste momento, em situação de perigo pelo que não se percebe a presente medida cautelar aplicada.
6- Deu o Tribunal a quo como provado que “Em 19 de Abril de 2021, a medida cautelar aplicada a favor da (…) foi revista e mantida, face à necessidade de avaliar a possibilidade de reintegração familiar da jovem e qual seria o seu encaminhamento futuro”; ora aqui também se indaga o porquê de havendo a possibilidade de reintegração familiar da jovem não terem sido encetados esforços para procura no apoio e acolhimento junto a familiares, ou sequer estes terem sido ouvidos no presente processo.
7- “... A convicção do tribunal, relativamente aos factos dados como provados e não provados fundou-se na análise crítica da prova ... e na prova produzida em sede de debate judicial, a qual se circunscreveu às declarações da sra. Técnica Gestora do Caso e do Administrador da Clínica Dr. (…), o que de maneira alguma se coaduna com a salvaguarda da protecção dos superiores interesses da criança e menor ou sequer a observar o principio basilar do contraditório a que o Tribunal e Estado Português se propõem.
8- Mais importa salientar que tendo a menor sido conduzida à instituição a 29/12/2020, não se percebe o porquê de apenas lhe ter sido nomeada defensora durante o mês de maio de 2021, mais de quatro meses após a menor se encontrar desprovida da sua liberdade e fora do seu contexto familiar, social e escolar.
9- O direito e obrigatoriedade de defensor é um direito basilar para a defesa dos cidadãos, que toma especial relevo nestes casos em particular, direito esse que foi negado à menor ab initio deixando assim a menor desprotegida e sem possibilidade de ser assegurado o seu bem-estar e superior interesse.
10- Mais uma vez se demonstra que a menor não tem os seus direitos acautelados e mais uma vez o Estado Português não tem os seus superiores interesses em conta, o que nunca deveria acontecer.
11- Dispõe a Lei Tutelar Educativa no seu artigo 60.º, n.º 1, que: “1 - A medida de guarda de menor em centro educativo tem o prazo máximo de três meses, prorrogável até ao limite máximo de mais três meses em casos de especial complexidade devidamente fundamentados. ...” , visto que a menor se encontra tal como referido anteriormente à mais de quatro meses na comunidade e até a este momento não se demonstrou aqui qualquer tipo de complexidade no processo ou sequer devidamente se fundamentou a necessidade de tal internamento, encontra-se neste momento a menor privada da sua liberdade e fora do seu seio familiar indevidamente e em excesso, pelo que deverá esta ser imediatamente restituída ao seu ambiente familiar, social e escolar, devolvendo-lhe assim o seu mais básico direito à liberdade.
12- A esta data tendo decorrido o período de 4 (quatro) meses e 24 (vinte e quatro dias) encontra-se a medida cautelar temporalmente excedida pelo que a menor se encontra privada do seu direito à liberdade injustamente, tendo de ser restituída imediatamente ao seu seio familiar e à sua liberdade.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o douto despacho ser revogado e arquivado em conformidade com a pretensão exposta, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”

O Ministério Público respondeu a este recurso elencando as seguintes conclusões:
“CONCLUSÕES
1. Da prova mobilizada nos autos, decorre que a jovem (…) tem vindo a assumir comportamentos que revelam que a mesma se encontra emocionalmente instável, necessitando de acompanhamento médico especializado.
2. A progenitora da jovem não tem conseguido demover a sua filha dos comportamentos desajustados que a mesma tem vindo a assumir.
3. A medida de promoção e protecção de apoio junto da mãe não se revela adequada, nem proporcional à situação de perigo em que a jovem se encontra, nem seria eficaz para remover tal situação, já que (…) assume comportamentos que a respectiva mãe não consegue conter.
4. De igual modo, a medida de apoio junto de outro familiar também não se mostra adequada, nem proporcional, nem eficaz.
5. Atendendo aos comportamentos graves que (…) tem vindo a assumir, que colocam em perigo efectivo a sua saúde, a sua vida, a sua segurança e o seu crescimento harmonioso, a mesma está em situação de perigo grave que exige uma resposta contentora, efectiva e multidisciplinar, que só uma medida de acolhimento lhe pode proporcionar.
6. Em suma, a medida de promoção e protecção aplicada ergue-se como uma medida proporcional à situação de perigo em que (…), adequada a sua situação pessoal e eficaz para afastar tal perigo, pelo que é a medida que melhor salvaguarda a jovem e que, de forma efectiva, a protege e promove os seus direitos (cfr. artigo 4.º, alíneas d) e e), da Lei de Proteção das Crianças e Jovens em Perigo).
7. Nos termos do disposto no artigo 103.º, n.º 1, da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, só em três situações é obrigatória a nomeação de patrono à criança ao jovem: quando o seu interesse seja conflituante com o interesse dos seus pais; quando acriança/jovem assim o solicite e em sede de debate judicial.
8. Nos autos, no despacho que determinou o prosseguimento do processo para a fase de debate judicial foi determinada a nomeação de Patrona à jovem, em estrita obediência ao determinado pelo artigo 103.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro.
9. Até à prolação de tal despacho, não se verificava qualquer das duas outras situações em que a lei prevê a obrigatoriedade de ser nomeado patrono à jovem, ou seja, a existência de um conflito de interesses entre a jovem (…) e a respetiva mãe, ou a solicitação da jovem nesse sentido.
10. Não foi, assim, violado o disposto no artigo 103.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro.
11. Neste processo, foi aplicada a favor da jovem, a título cautelar, a medida de promoção e protecção de acolhimento residencial, a executar em comunidade terapêutica, nos termos do disposto no artigo 37.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro.
12. Nos termos do disposto n.º 3 do citado artigo 37.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, as medidas cautelares têm a duração máxima de seis meses.
13. Face à prolação da decisão recorrida, conclui-se que tal prazo não foi excedido.
14. Tudo, para concluir que, ressalvando sempre o devido respeito por opinião diversa, a decisão recorrida não merece reparo.
No entanto V. Exas. farão a habitual Justiça”.

Por seu turno, a Jovem (…) delineou as seguintes conclusões recursivas:
“III CONCLUSÕES
1. A decisão recorrida desconsiderou o superior interesse da (…), pois não se socorreu de todos os meios que tinha ao seu dispor para a defesa do superior interesse da jovem, recusando a audição da jovem, o que constituiria um meio de garantia da efetiva realização do seu superior interesse, e que, por estar em causa um princípio com relevância direta na aferição do seu superior interesse, determina a nulidade do acórdão, por falta de pronúncia sobre questões que deveria apreciar, por força do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, o que aqui se requer para todos os efeitos legais.
2. O Tribunal desvalorizou em absoluto o medo evidenciado pela jovem, ao não querer voltar para a Clínica, onde não se sentia segura, e onde claramente não estava bem.
3. Pois se estivesse bem e segura não teria continuado a automutilar-se, para além de fugir, não tendo regressado até ao presente.
4. Era absolutamente essencial que o tribunal atendesse o pedido da jovem, para que ser ouvida remotamente, para se perceber as suas razões, nomeadamente para a fuga da clínica.
5. O Tribunal descurou completamente o superior interesse desta jovem, negando-lhe a proteção a que está obrigado, face à natureza do processo em questão, ao recusar o seu direito a ser ouvida antes de proferir uma decisão!
6. Desconsiderou inclusivamente os indícios de que a jovem efetivamente pode não estar em segurança naquela clínica.
7. Como resulta dos factos considerados provados e na fundamentação feita pelo douto tribunal a quo “Após a instauração do presente processo judicial de promoção e proteção em 27 de novembro de 2020, foi proferido, nesse mesmo dia, o despacho com a ref. 85365601, no qual se aplicou a favor da jovem, a titulo cautelar, a medida de acolhimento residencial, a executar em comunidade terapêutica, por um período de seis meses (…) em 17 de dezembro de 2020, o ISS indicou aos autos a existência de vaga na Comunidade Terapêutica Clínica Dr. (…), sita em Fafe. (…) No dia 29 de dezembro de 2020 a (…) foi conduzida pela PSP de Santarém à Clínica (…).
8. A jovem fez juntar aos autos a carta constante da ref. 7614452 datada de 31 de março de 2021, na qual manifestou pretender regressar para junto da família ou ser transferida para uma Comunidade mais perto de casa, devido ao custo das deslocações da família para a visitar e porque a Clínica tem pessoas com idade superior à sua.
9. A jovem evidenciando baixa aderência ao programa de tratamento, levou a equipa terapêutica da Comunidade a manifestar que o retorno da jovem ao ambiente familiar, com supervisão local e tratamento em ambulatório (em consulta de Psicologia e Pedopsiquiatria) lhe pudesse ser benéfica, permitindo igualmente uma maior proximidade da família e um regresso à escola.
10. Não obstante, o Tribunal entendeu manter a medida cautelar aplicada, aquando da revisão da mesma em 19 de abril de 2021, justificando essa decisão pela necessidade de avaliar a possibilidade de reintegração familiar da jovem;
11. A jovem no dia 29/04 e 02/05 de 2021 auto mutilou-se na coxa esquerda com vidros;
12. A jovem, no dia 3 de maio de 2021 foi observada no Hospital de Guimarães por automutilação na coxa direita;
13. No dia 20 de maio de 2021 a jovem apresentou mais um episódio de autoagressão com uma lata de salsichas, tendo de ser suturada no Hospital de Guimarães;
14. Todos estes episódios ocorreram enquanto a jovem se encontrava à guarda e cuidado da Comunidade Terapêutica Dr. (…);
15. No dia 31 de maio de 2021 a jovem ausentou-se da clínica sem autorização, não tendo aí regressado até ao presente.
16. Realizado debate judicial a sra. Técnica Gestora do caso relatou sumariamente o percurso da jovem, tendo dado nota do que por esta lhe foi contado e constava já dos relatórios sociais juntos aos autos.
17. Foi ouvido o Diretor da Clínica, com o mesmo nome, Dr. (…), que referiu que o programa terapêutico da jovem não foi executado dada a postura da jovem na Clínica e subsequente fuga, atribuindo a origem dos comportamentos de auto-mutilação ao facto de a jovem estar contrariada, por estar longe da família.
18. Não obstante, o Diretor da Comunidade Terapêutica admitiu que a jovem tem acesso na clínica à limpeza de copos e pratos;
19. Dos autos consta também relatório elaborado pelo Psicólogo Clínico Dr. (…) que refere terem sido agendadas e realizadas duas consultas uma em 24 de novembro de 2020 e a outra em 2 de dezembro de 2020, estando agendada uma terceira, [que só não ocorreu dada a integração da jovem na comunidade terapêutica a 29 de dezembro de 2020] além de ter evidenciado na (…) motivação relacional ao cumprimento das orientações terapêuticas, que a sua mãe mostrou total colaboração e disponibilidade para ajudar a filha e que sic “mais direi que fui surpreendido por uma interrupção de um trabalho psicoterapêutico em curso e do que observei a (…) mostrou sinais de colaboração no seu tratamento bem como a sua mãe. Parece-me ainda evidente que as medidas de retirada de responsabilidade parental que inviabilizaram e perturbaram um tratamento em curso não se aplicam aos recursos familiares que foram expressos na consulta”.
20. Pois bem, é certo que alguns direitos foram postergados e diligências de prova essenciais à determinação das necessidades de afastamento da jovem da sua família e da escola, enfim do seu meio natural, assim como à conclusão de que a aplicação de uma medida de acolhimento em Comunidade terapêutica seja a única solução configurada como passível de satisfazer os interesses da (…) e promover os seus direitos.
21. Impunha-se saber a opinião da jovem, enquanto titular de direitos e liberdades fundamentais, com autonomia e identidade próprias.
22. A Convenção sobre os Direitos da criança aprovada pela Resolução da Assembleia da república n.º 20/90 estabelece no seu artigo 12.º que “os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade”.
23. De igual modo, a Convenção Europeia sobre o exercício dos Direitos da Criança, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, estabelece no art. 3.º que “à criança que à luz do direito interno se considere ter discernimento suficiente deverão ser concedidos, nos processos perante uma autoridade judicial que lhe digam respeito, os seguintes direitos, cujo exercício ela pode solicitar:
d) Obter todas as informações relevantes;
e) Ser consultada e exprimir a sua opinião;
f) Ser informada sobre as possíveis consequências de se agir em conformidade com a sua opinião, bem como sobre as possíveis consequências de qualquer decisão”.
24. Nesta linha, o artigo 4.º, n.º 1, alínea c), do RGPTC estabelece atualmente que “a criança com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito”.
25. A criança como sujeito titular de direitos, tem o direito de participar e ser ouvida em todos os assuntos da sua vida, e este princípio constitui-se como meio de concretização do seu superior interesse. Logo a audição da jovem num processo que lhe diga respeito não pode ser encarada apenas como um meio de prova, mas também como um meio de garantia da efetiva realização do seu superior interesse, permitindo que o seu ponto de vista seja considerado na decisão que a afeta.
26. Reconhecendo-se que o exercício do direito de audição da criança está dependente da maturidade desta, a decisão de dispensa da sua audição deve ser expressa e devidamente fundamentada, o que s.m.o não sucedeu no caso sub judice.
27. E porque está em causa um princípio com relevância direta na aferição do superior interesse da criança, a sentença que venha a ser tomada com postergação desse direito, revela-se nula, por falta de pronúncia sobre questões que deveria apreciar – artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
28. No caso, ao decidir indeferir o requerido, audição da menor antes da tomada de qualquer decisão, e ao mesmo tempo afirmar que a poderá ouvir posteriormente (incluindo pelos meios remotos que antes havia desconhecer existir) o Tribunal a quo, atua com prepotência e desrespeito pela Lei a que está vinculado, e pelo superior interesse da (…), o único para o qual o Tribunal deve direcionar os seus meios e esforços, a favor da criança, não contra ela!
30. No caso, não foi tomada uma decisão fundamentada acerca da dispensa de audição da (…), tanto mais que, nem estaria em causa a sua (in)maturidade que a impedisse em absoluto de exercer esse seu direito, uma vez que a (…) faz 17 anos no próximo mês de agosto e, portanto, é capaz de responder a questões abertas, de manifestar os seus desejos e responder a questões concretas.
31. A audição da jovem (…) não só era possível como desejável, e não podia ser dispensada em especial quando se discute uma medida com a gravidade da que pesa nos autos, e atento o especial pedido da jovem para que fosse ouvida!
32. Acima de tudo deveria ter sido respeitado o seu desejo e direito a ser ouvida numa questão absolutamente marcante para toda a sua vida.
33. Como se nota nos pontos 45 e 46 das Diretrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a Justiça adaptada às crianças, aprovadas em 17.11.2020 “devem ser tidos em devida conta os pontos de vista e as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade. O direito de ser ouvido é um direito e não um dever da criança”.
34. Conclui-se pois que a decisão recorrida ao confiar a (…) à Comunidade Terapêutica, sem ponderar sequer a sua audição, como exigido pelos artigos 4.º al J) e 84.º da LPCJP, e sendo essa audição necessária, porquanto se trata de um direito da criança com relevância direta na aferição do seu superior interesse revela-se nula – artigo 615.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil.
35. Em face de tudo o que ficou exposto impõe-se pois, que a final seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que dê procedência às nulidades no presente recurso invocadas, nos termos que se explanaram, determinado pelo superior interesse da criança e nos termos supra explanados, tomando-se as providências necessárias a assegurar tal decisão.
Decidindo como se conclui, farão V. Exas., Venerandos Desembargadores sempre com mui douto suprimento, a devida e acostumada JUSTIÇA!”
*
O Ministério Público também respondeu a este recurso introduzindo nele as seguintes conclusões:
III- CONCLUSÕES
1. Neste processo, nos termos do disposto no artigo 107.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, no dia 23 de Março de 2021 (cfr. acta com a referência 86287011) foram tomadas declarações à jovem (…).
2. Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 37.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, a jovem foi notificada, ao abrigo do preceituado pelo artigo 84.º do mesmo diploma legal, para se pronunciar sobre a revisão dos pressupostos da medida de promoção e protecção que lhe foi aplicada a título cautelar.
3. Nessa sequência, (…) juntou o requerimento com a referência 7614452 de 14 de Abril de 2021.
4. Vemos, assim, que a jovem foi, como se impunha em estrita obediência ao preceituado pelos artigos 4.º, alínea i) e 84.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro ouvida, presencialmente sobre a medida de promoção e protecção que lhe foi aplicada a título cautelar e, posteriormente, sobre a revisão dos pressupostos de tal medida.
5. Tal equivale a dizer que foi respeitado o inquestionável e legítimo direito da jovem a ser ouvida sobre a medida de promoção e protecção a ser-lhe aplicada, direito esse que foi exercido, de forma efectiva, pela jovem.
6. O Tribunal tomou em boa nota a opinião emitida pela jovem, como resulta do despacho de 19 de Abril de 2021 (referência 86484828).
7. Na pendência dos autos, ao ser determinado o seu prosseguimento para a fase de debate judicial, foi nomeada Ilustre Patrona à jovem.
8. Apesar de ter sido efectuada a notificação prevista no artigo 114.º da lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, a jovem não apresentou alegações.
9. No dia 31 de Maio de 2021, a jovem (…) ausentou-se sem autorização da Comunidade Terapêutica, encontrando-se, até este momento, em lugar desconhecido.
10. A jovem não foi ouvida em sede do debate judicial realizado apenas, porque não compareceu ao mesmo, dado que foi notificada da data e hora agendadas para a realização dessa diligência.
11. A jovem encontra-se em local desconhecido, em situação de ausência não consentida da comunidade terapêutica onde estava acolhida, e não responde às notificações do Tribunal, pelo que vemos como difícil proceder-se, ante este quadro, à respectiva audição.
12. Ao acima referido, acresce a circunstância de a medida de promoção e protecção que foi aplicada à jovem na decisão recorrida ser exatamente a mesma que lhe foi aplicada a título cautelar, por decisão de 27 de Novembro de 2020 (referência 85365601), ou seja, não se tratou de uma medida nova, de uma decisão surpresa, que uma decisão que tenha representado uma alteração da situação pessoal da jovem.
13. Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 116.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, “o debate judicial não pode ser adiado e inicia-se com a produção da prova e audição das pessoas presentes, ordenando o juiz as diligências necessárias para que compareçam os não presentes na data que designar para o seu prosseguimento”.
14. Transpondo este normativo para o caso dos autos, conclui-se que, face ao desconhecimento do local onde a jovem se encontra, não podia o Tribunal ordenar qualquer diligência para que a jovem comparecesse no debate judicial.
15. Teria sido muito importante e desejável que a jovem (…) tivesse comparecido no debate judicial.
16. Todavia, certo é que a jovem, que estás prestes a completar 17 anos de idade, optou por não comparecer a tal diligência, mantendo-se em situação de ausência não consentida, permanecendo em local desconhecido, do qual não informou o Tribunal, inviabilizando, assim, a sua audição no decurso de tal debate.
Tudo, para concluir que, ressalvando sempre o devido respeito por opinião diversa, a decisão recorrida não merece reparo”.

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O recurso foi recebido na 1ª Instância como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Recebidos os autos neste Tribunal da Relação foi proferido a seguinte despacho pelo relator:
“I- Resulta do artigo 639.º, n.º 1, do CPC, que:
O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.”.
II- Decorre, outrossim, do artigo 652.º, n.º 1, do CPC, que ao relator incumbe deferir todos os termos do recurso até final, designadamente:
a) […] convidar as partes a aperfeiçoar as conclusões das respetivas alegações, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º”.
III- Por seu turno, dispõe o referido n.º 3 do artigo 639.º do CPC, que:
Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetiza-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada”.
IV- A este propósito diz-nos o Conselheiro António Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª edição, 2018, a páginas 155), que:
“As conclusões serão complexas quando não cumpram as exigências de sintetização a que se refere o n.º 1 (prolixidade) ou quando, a par das verdadeiras questões que interferem na decisão do caso, surjam outras sem qualquer interesse (inocuidade) ou que constituem mera repetição de argumentos anteriormente apresentados.
Complexidade que também poderá decorrer do facto de se transferirem para o segmento que deve integrar as conclusões, argumentos, referências doutrinais ou jurisprudenciais propícias ao segmento da motivação… Nestes casos, trata-se fundamentalmente de eliminar aquilo que é excessivo, de forma a permitir que o tribunal de recurso apreenda com facilidade as verdadeiras razões nas quais o recorrente sustenta a sua pretensão de anulação ou de alteração do julgado”.
V- Ora, analisando criteriosamente o segmento das conclusões introduzidas no requerimento de recurso da Jovem Apelante (…) verifica-se que as mesmas padecem notoriamente de falta da necessária sintetização percebendo-se que aquela logrou canalizar para o segmento das conclusões recursivas uma massiva parte da argumentação que deverá constar apenas do segmento reservado à motivação.
VI- Na verdade, cotejando o teor do segmento da motivação com o reservado às conclusões constata-se que estas últimas repetem o conteúdo motivatório, espraiando-se por 35 pontos, alguns deles indesejavelmente extensos, ocupando sete páginas, quando a motivação recursiva se estende por nove páginas, apenas se distinguindo do segmento das conclusões por integrar a questão do efeito do recurso, também ali levantada pela Apelante (…), abordado em duas páginas!
VII- O procedimento seguido em concreto pela Apelante em apreço contende, assim, com a razão de ser das conclusões recursivas não contribuindo para que o Tribunal de recurso filtre com a desejável facilidade e rapidez as concretas razões que justificam a pretensão daquela em ver alterado o julgado da 1ª instância, apresentando, sublinhe-se, conclusões de teor praticamente idêntico ao da própria motivação, repetindo esta.
VIII- Destarte, convido a Apelante … a, no prazo de cinco dias, apresentar segmento de conclusões recursivas devidamente sintetizado.
3. DN”.
*
A Apelante (…) respondeu ao convite apresentando as seguintes conclusões aperfeiçoadas:
CONCLUSÕES:
1. A decisão recorrida desconsiderou o superior interesse da jovem, pois não se socorreu de todos os meios que tinha ao seu dispor para a defesa do seu superior interesse, recusando a sua audição, o que constituiria um meio de garantia da efetiva realização do seu superior interesse, e que, por estar em causa um princípio com relevância direta na aferição do seu superior interesse, determina a nulidade do acórdão, por falta de pronúncia sobre questões que deveria apreciar, por força do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, o que aqui se requer para todos os efeitos legais.
2. O Tribunal desvalorizou em absoluto o medo evidenciado pela jovem, revelado na sua recusa em voltar para a Clínica, onde não se sentia segura, e onde claramente não estava bem e em segurança, como se referiu supra nas alegações.
3. Pois bem, é certo que alguns direitos foram postergados e diligências de prova essenciais à determinação das necessidades de afastamento da jovem da sua família e da escola, enfim do seu meio natural, assim como à conclusão de que a aplicação de uma medida de acolhimento em Comunidade terapêutica seja a única solução configurada como passível de satisfazer os interesses da (…) e promover os seus direitos.
4. Impunha-se saber a opinião da jovem, enquanto titular de direitos e liberdades fundamentais, com autonomia e identidade próprias.
5. A Convenção sobre os Direitos da criança aprovada pela Resolução da Assembleia da república n.º 20/90 estabelece no seu artigo 12.º que “os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade”.
6. De igual modo, a Convenção Europeia sobre o exercício dos Direitos da Criança, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, estabelece no artigo 3.º que “à criança que à luz do direito interno se considere ter discernimento suficiente deverão ser concedidos, nos processos perante uma autoridade judicial que lhe digam respeito, os seguintes direitos, cujo exercício ela pode solicitar:
a) Obter todas as informações relevantes;
b) Ser consultada e exprimir a sua opinião;
c) Ser informada sobre as possíveis consequências de se agir em conformidade com a sua opinião, bem como sobre as possíveis consequências de qualquer decisão”.
7. Nesta linha, o artigo 4.º, n.º 1, alínea c), do RGPTC estabelece atualmente que “a criança com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito”.
8. A jovem como sujeito titular de direitos, tem o direito de participar e ser ouvida em todos os assuntos da sua vida, e este princípio constitui-se como meio de concretização do seu superior interesse. Logo a audição da jovem num processo que lhe diga respeito não pode ser encarada apenas como um meio de prova, mas também como um meio de garantia da efetiva realização do seu superior interesse, permitindo que o seu ponto de vista seja considerado na decisão que a afeta.
Reconhecendo-se que o exercício do direito de audição da jovem está dependente da maturidade desta, a decisão de dispensa da sua audição deve ser expressa e devidamente fundamentada, o que s.m.o não sucedeu no caso sub judice.
9. E porque está em causa um princípio com relevância direta na aferição do superior interesse da jovem, a sentença que venha a ser tomada com postergação desse direito, revela-se nula, por falta de pronúncia sobre questões que deveria apreciar – artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
10. No caso, ao decidir indeferir o requerido, audição da jovem antes da tomada de qualquer decisão, e ao mesmo tempo afirmar que a poderá ouvir posteriormente (incluindo pelos meios remotos que antes havia desconhecer existir) o Tribunal a quo, atua com prepotência e desrespeito pela Lei a que está vinculado, e pelo superior interesse da (…), o único para o qual o Tribunal deve direcionar os seus meios em esforços, a favor da jovem, não contra ela!
11. No caso, não foi tomada uma decisão fundamentada acerca da dispensa de audição da (…), tanto mais que, nem estaria em causa a sua (in)maturidade que a impedisse em absoluto de exercer esse seu direito, uma vez que a (…) faz 17 anos no próximo mês de agosto e, portanto, é capaz de responder a questões abertas, de manifestar os seus desejos e responder a questões concretas.
12. Acima de tudo deveria ter sido respeitado o seu desejo e direito a ser ouvida numa questão absolutamente marcante para toda a sua vida.
13. Como se nota nos pontos 45 e 46 das Diretrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a Justiça adaptada às crianças, aprovadas em 17.11.2020 “devem ser tidos em devida conta os pontos de vista e as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade. O direito de ser ouvido é um direito e não um dever da criança”.
14. Conclui-se pois que a decisão recorrida ao confiar a (…) à Comunidade Terapêutica, sem ponderar sequer a sua audição, como exigido pelos artigos 4.º, alínea j) e 84.º da LPCJP, e sendo essa audição necessária, porquanto se trata de um direito da criança com relevância direta na aferição do seu superior interesse revela-se nula – artigo 615.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil.
15. Em face de tudo o que ficou exposto impõe-se pois, que a final seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que dê procedência às nulidades no presente recurso invocadas, nos termos que se explanaram, determinado pelo superior interesse da criança e nos termos supra explanados, tomando-se as providências necessárias a assegurar tal decisão.
Decidindo como se conclui, farão V. Exas., Venerandos Desembargadores sempre com mui douto suprimento, a devida e acostumada JUSTIÇA!”
*
O Ministério Público não respondeu à peça contendo as conclusões aperfeiçoadas.
*
Colheram-se os legais Vistos.
*
Dispõe o artigo 639.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), que:
“3- Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada”.
A Recorrente (…) foi convidada a aperfeiçoar as respectivas conclusões recursivas no sentido de as sintetizar e apresentou em prazo nova peça recursiva, à qual o Ministério Público não respondeu.
Apreciando:
Cotejando o teor das conclusões inicialmente apresentadas com o das conclusões constantes da peça processual enviada aos autos em resposta ao convite ao aperfeiçoamento verifica-se que houve algum esforço da parte da Apelante no sentido de as tornar menos extensas em prol do cumprimento legal do dever de sintetização sendo certo que se mostram perceptíveis os fundamentos pelos quais se pede a alteração do julgado.
Por outro lado, não se olvida o sentido jurisprudencial emanado do Supremo Tribunal de Justiça que vem sustentando a necessidade de parcimónia e cautela na apreciação das conclusões aperfeiçoadas, com vista a determinar a rejeição do recurso apenas em situações limitadas.
Neste sentido, entre outros, destacamos o recente Acórdão, relatado pela Conselheira Rosa Ribeiro Coelho, proferido em 19/10/2017 (Proc. n.º 1577/14.9T8STR.E1.S1), de que nos permitimos reproduzir o seguinte trecho, constante da respectiva nota sumativa:
“II-Vem, desde há muito, sendo sedimentado na jurisprudência deste STJ o entendimento segundo o qual só em casos extremos a deficiente reformulação das conclusões, após convite dirigido pelo relator à parte deve dar lugar ao não conhecimento do recurso.
III-Introduzindo o recorrente, após convite formulado para o efeito, uma significativa redução do número e conteúdo das conclusões e sendo facilmente apreensível, embora ainda longe da perfeição, a linha de raciocínio, não há motivo para deixar de conhecer o recurso”.
Dito isto, sem embargo de no caso concreto a Recorrente poder certamente ter ido ainda um pouco mais longe em sede de redução do conteúdo das conclusões recursivas, entendemos ser de conhecer do objecto do recurso.
*
O recurso é o próprio e foi admitido adequadamente quanto ao modo de subida e efeito.
*
II- OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do CPC, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo , pelo que as questões a apreciar e decidir traduzem-se objectivamente no seguinte:
1- Quanto ao recurso de apelação da Jovem (…) conhecer das nulidades de sentença invocadas pela mesma;
2- Quanto ao recurso de apelação apresentado pela progenitora da (…), (…):
a) Patrocínio nos autos da Jovem (…);
b) Mérito da decisão focado na medida aplicada à (…).
*

III – FUNDAMENTOS DE FACTO
Consta da sentença recorrida a seguinte matéria de facto:
(…)
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1 - Recurso de Apelação da Jovem (…):
Invoca a Jovem (…) terem sido cometidas nulidades na sentença recorrida, subsumindo as mesmas à alínea b) e à alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
a) - Comecemos por analisar a primeira:
Sustenta a Apelante que o Tribunal recorrido não cuidou de fundamentar na sentença recorrida a decisão de dispensa da sua audição, o que teria que ter feito pois o exercício de tal direito está dependente da sua maturidade, incorrendo a sentença recorrida, por postergação desse direito, na nulidade prevenida na mencionada alínea b).
Diz o artigo 615.º do CPC o seguinte:
1.É nula a sentença quando:
[ …]
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
A este propósito defendeu o Prof. José Alberto dos Reis que só a falta absoluta de motivação constitui nulidade, sendo que a insuficiência ou a mediocridade da motivação afecta o valor doutrinal da sentença, mas não produz nulidade (cfr. Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, página 140).
Por seu turno, em douto Parecer, o Prof. Calvão da Silva deixou bem claro que na sentença, o tribunal tem de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, sob pena de se verificar falta de fundamentação de direito (cfr. Col. Jur., 1995, 1º-7).
Jurisprudencialmente podemos, a este respeito, destacar, entre outros, os acórdãos do STJ de 05/05/2005, Processo 05B839; de 21/12/2005, Processo 05B2287; de 18/05/2006, Processo 06B1441; de 19/12/2006, Processo 06B3791; de 10/04/2008, Processo 08B396 e de 06/07/2017, Processo 121/11.4TVLSB.L1.S1 (todos acessíveis para consulta in www.dgsi.net), reportando-se os indicados, à excepção do último, ao artigo 668.º, n.º 1, b), do CPC, anterior ao NCPC, cuja redacção, todavia, é idêntica à do actual artigo 618.º, n.º 1, b).
Neste último aresto do STJ de 2017 refere-se a propósito da nulidade prevista no supra citado normativo o seguinte:
“A nulidade apontada tem correspondência com o n.º 3 do artigo 607.º do mesmo C.P.Civil, que impõe ao juiz o dever de, na parte motivatória da sentença, «descriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes…».
Significa tal que não basta que o Juiz decida a questão que lhe é colocada, tornando-se indispensável que refira as razões que o levaram a ditar aquela decisão e não outra de sentido diferente; torna-se necessário que demonstre que a solução encontrada é legal e justa”.
Ora bem, aqui chegados percebemos pela simples leitura do acórdão recorrido que nele constam especificados os factos considerados como provados e não provados, sendo certo que no segmento atinente ao enquadramento jurídico constam as normas jurídicas entendidas como pertinentes para resolver o caso concreto.
Não se verifica, pois, o vicio de nulidade de falta de fundamentação fáctica e/ou de direito da sentença recorrida invocado pela Apelante.
Diga-se, ainda, a talhe de foice, que a fundamentação da decisão de dispensa da audição da Apelante nunca poderia consubstanciar tal vício de sentença uma vez que não integraria em caso algum os fundamentos justificativos da decisão de mérito da causa, sendo certo que é a estes que a previsão da mencionada alínea b) se pretende referir.
Acresce que da leitura dos autos não é possível descortinar qualquer intenção prévia da parte do Tribunal recorrido de dispensar a audição da Apelante no debate judicial, que determinou e bem o prosseguimento do mesmo ao constatar a falta ao acto da Apelante e da respectiva progenitora estribando-se no normativo do artigo 116.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (doravante apenas LPCJP), o qual, norteado pela natureza urgente do processo de promoção e protecção, estatui que o “debate judicial é contínuo, decorrendo sem interrupção ou adiamento até ao encerramento…” (n.º 1).
Improcede, pois, a invocada causa de nulidade da sentença prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC.
b) - Argumenta também a Apelante (…) que ao ser confiada pelo Tribunal recorrido à Comunidade Terapêutica sem que aquele tivesse ponderado a sua audição, necessária por força do disposto nos artigos 4.º, j) e 84.º da LPCJP, o mesmo violou um direito da criança com relevância directa na busca do seu superior interesse, traduzindo-se tal na nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por falta de pronúncia sobre questões que deveriam ter sido apreciadas.
Vejamos então.
Segundo o já citado artigo 615.º do CPC:
1.É nula a sentença quando:
[…]
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Relativamente à nulidade prevista na alínea d) do aludido artigo 615.º do CPC, concretamente a chamada “Omissão de pronúncia”, a que alude a primeira parte da dita alínea, dizem-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2020, 2ª edição atualizada, Almedina, Coimbra), em anotação ao mencionado artigo (página 764), que a omissão de pronúncia afere-se “seja quanto às questões suscitadas, seja quanto à apreciação de alguma pretensão.“ E acrescentam ainda que, “[…] o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões de conhecimento oficioso”, não obrigando, todavia, “[…] a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com «questões» […]”.
Neste sentido saliente-se, entre vários outros, os acórdãos do STJ de 27/03/2014, proferido no Processo n.º 555/2002 e de 08/02/2011, proferido no processo n.º 842/04TBTMR.C1.S1 (ambos acessíveis para consulta in www.dgsi.pt).
Neste último aresto de 08/02/2011 decidiu-se de forma bastante clara o seguinte:
“Não há que confundir as questões colocadas pelas partes com os argumentos ou razões que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões em determinado sentido: as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões…”.
E acrescenta-se ainda no dito acórdão que “Se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia”.
Prevê o artigo 4.º da LPCJP, respeitante aos princípios orientadores da intervenção, o seguinte:
A intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo obedece aos seguintes princípios:
[…]
j) Audição obrigatória e participação- a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos autos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção;”
Por seu turno estatui o artigo 84.º da mesma LPCJP, epigrafado “Audição da criança e do jovem” que:
As crianças e os jovens são ouvidos pela comissão de protecção ou pelo juiz sobre as situações que deram origem à intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção, nos termos previstos nos artigos 4.º e 5.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro”.
O artigo 4.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (doravante apenas RGPTC), afere-se aos “Princípios orientadores” da intervenção tutelar cível prevendo na sua alínea c), concernente à “Audição e participação da criança”, que:
A criança com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse”.
O n.º 2 desse mesmo artigo esclarece que:
Para efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, o juiz afere, casuisticamente e por despacho, a capacidade de compreensão dos assuntos em discussão pela criança, podendo para o efeito recorrer ao apoio da assessoria técnica”.
Já no artigo seguinte (5.º), epigrafado “Audição da criança”, salienta-se no seu n.º 1 que:
A criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse”, esclarecendo o seu n.º 3 que “A audição da criança é precedida de prestação de informação clara sobre o significado e alcance da mesma.
Convêm recordar que o direito de audição da criança e jovem surge reconhecido em importantes instrumentos internacionais, alguns de aplicação directa, com franca influência no ordenamento jurídico nacional.
Com efeito, já na década de noventa do século passado, concretamente no dia 26 de Janeiro de 1990, foi assinada em Nova Iorque a “Convenção sobre os Direitos da Criança”, que veio a ser aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, publicada no Diário da República em 12/09/1990 e ratificada pelo Decreto do Presidente da Republica n.º 49/90 dessa mesma data.
No âmbito deste instrumento de que é Parte o Estado Português e que se traduz numa autêntica “Magna Carta” para as crianças de todo o mundo (adoptada pela Assembleia das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989), traduzindo o instrumento de direitos humanos mais aceite na história universal por ter sido ratificado por 196 países, revela-se particularmente relevante no que tange ao direito de audição da criança o artigo 12.º que prevê no seu ponto 1.º que:
Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem , sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança , de acordo com a sua idade e maturidade “, esclarecendo o ponto 2.º que “ para este fim é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja directamente, seja através de representante, ou de organismo adequado segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional”.
No início do actual século surgem importantes consagrações quanto ao direito de audição da criança desde logo no âmbito do Regulamento (C.E.) n.º 2201/2003 do Conselho da União Europeia de 27/10/2003, publicado no jornal oficial da União Europeia em 23/12/2003, relativo à “competência , reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental”, alterado pelo Regulamento (C.E.) n.º 2116/2004 do mesmo Conselho de 02/12/2004, publicado no jornal oficial da União Europeia em 14/12/2004, instrumento este directamente aplicável no nosso ordenamento jurídico.
Quase contemporânea do Regulamento (C.E.) 2201/2003 há ainda a considerar a “Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança”, adoptada em Estrasburgo em 25/01/1996, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014 em 13/12/2013, que entrou em vigor em Portugal a 01/07/2014.
Poderemos dizer que no âmbito deste importante instrumento jurídico transnacional encontramos agora um reconhecimento inequívoco e reforçado do direito de audição da criança enquanto autêntico direito de participação da mesma em decisões que lhe tracem o destino desdobrado, por seu turno, no direito da mesma exprimir, informar e ser informada, designadamente em processos perante autoridade judicial.
Logo no seu artigo 1.º, sobre o âmbito e objecto da Convenção, percebemos que a mesma se aplica a menores de 18 anos e, em vista à prossecução do seu superior interesse, visa promover os seus direitos, conceder-lhe direitos processuais e facilitar o exercício desses direitos, nomeadamente o direito de participação a menores de 18 anos em processos perante autoridades judiciais que lhes digam respeito, máxime processos em matéria de família.
Por seu turno, o artigo 3º consagra expressamente o direito da criança de ser informada e de exprimir a sua opinião no âmbito dos processos ao prever que:
“À criança que à luz do direito interno se considere ter discernimento suficiente deverão ser concedidos, nos processos perante uma autoridade judicial, que lhe digam respeito, os seguintes direitos, cuja execução ela pode solicitar:
a) Obter todas as informações relevantes; b) Ser consultada e exprimir a sua opinião; c) Ser informada sobre as possíveis consequências de se agir em conformidade com a sua opinião, bem como sobre as possíveis consequências de qualquer decisão”.
Recordado o quadro normativo plasmado nos instrumentos jurídicos internacionais acabados de mencionar e que indiscutivelmente influenciaram e influenciam o nosso ordenamento jurídico nacional vigente sobre a questão do direito de audição da criança, o qual deve ser interpretado em conformidade com as soluções vertidas em tais instrumentos, julgamos ser de retirar, em suma, as conclusões que passamos a adiantar aplicáveis a processos prevenidos no nosso RGPTC, bem como ao processo de promoção e proteção, por aplicação a este último dos artigos 4.º e 5.º daquele primeiro diploma, ex vi do artigo 84.º da LPCJP:
- No caso do processo correr relativamente a criança com idade superior a 12 anos o juiz deve convoca-la para a ouvir sem necessidade de o justificar especificamente nos autos, por se presumir, em face da idade atingida, a existência de capacidade de discernimento suficiente para compreender os assuntos em discussão podendo, todavia, se tiverem sido carreados dados relevantes para o processo, justificar por despacho no processo a decisão de não audição da criança com tal idade se em concreto se convencer da existência de limitações cognitivas acentuadas, ou de transtornos severos da personalidade, que toldem a capacidade de compreensão e entendimento da criança.
- No caso de crianças com idade inferior a 12 anos o juiz deve justificar sempre por despacho no processo a sua decisão de ouvir, ou não, a criança consoante o processo revele, ou não, elementos factuais relevantes sobre a capacidade da criança dos autos compreender os assuntos em discussão, atenta a sua idade e grau de maturidade que espelhe, tendo sempre como pano de fundo a prossecução do superior interesse da mesma, que poderá desaconselhar em concreto essa audição.
Dito isto, quais as consequências processuais no nosso ordenamento jurídico da preterição do direito de audição da criança?
Gerará uma nulidade processual, que determine o apagar de uma sucessão de actos praticados num processo, ou uma anulação pura e simples da sentença proferida, como o defende a Apelante?
A segunda hipótese tem na sua base o entendimento de que a falta da audição da criança em procedimento tutelar cível não se traduz propriamente na postergação de um meio de prova através do qual se pretende provar um facto relevante no processo, mas antes a preterição não apenas de um direito, mas sim de um princípio geral com relevância substantiva (e, por isso mesmo, com reflexo processual), que afecta a decisão final proferida no processo arrastando, em consequência, a anulação de tal decisão.
É esta a solução para que pendemos!
Compulsando jurisprudência recente dos nossos tribunais superiores sobre a matéria encontramos o acórdão do STJ de 14/12/2016 relatado pela Srª Juíza-Conselheira Maria dos Prazeres Beleza (Proc. 268/12.0TBMGL.C1.S1), acessível para consulta in http://jurisprudencia.csm.org.pt . Este acórdão afere-se a um processo de promoção e protecção, relativamente ao qual o direito de audição e participação da criança se encontra reconhecido em termos análogos ao sucedido no RGPTC (mormente nos artigos 4.º, n.º 1, j) e 84.º da LPCJP, sendo que este último, como já acima referimos, remete expressamente para o regime dos artigos 4.º e 5.º do RGPTC mencionados), no qual se afasta o rótulo de meio de prova com o qual se pretende fazer prova de um facto relevante no processo quanto à audição obrigatória da criança, sustentando-se nele que se trata de um direito da criança a que o seu ponto de vista seja tido no processo decisório relativo a assunto que a afecta, daí não se discutir sequer a questão da nulidade processual. Em consequência nele se decidiu pela anulação do acórdão sindicado e baixa do processo a fim se serem ouvidos os menores se a sua capacidade de compreensão o determinasse ou, na negativa, ser justificada a sua não audição, encontrando-se destacado no respectivo sumário o seguinte, que nos permitimos transcrever:
“I - A audição da criança num processo que lhe diz respeito – no caso, de promoção e protecção – não pode ser encarada apenas como um meio de prova, tratando-se antes de um direito da criança a que o seu ponto de vista seja considerado no processo de formação da decisão que a afecta.

II - O exercício do direito de audição, enquanto meio privilegiado de prossecução do superior interesse da criança, está, naturalmente, dependente da maturidade desta.

III - A lei portuguesa actual, seguindo os diversos instrumentos internacionais, alterou a forma de determinar a obrigatoriedade dessa audição, tendo passado a prever – onde antes se estabelecia que era obrigatória a audição de criança com mais de 12 anos “ou com idade inferior quando a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção o aconselhe” – que a criança deve ser ouvida quando tiver ”capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em conta a sua idade e maturidade” (artigo 4.º, al. c), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08-09).

IV - A ponderação acerca da maturidade da criança terá de se revelar na decisão, só estando dispensada a justificação para a sua eventual não audição quando for notório que a sua baixa idade não a permite ou aconselha.

V - A falta de audição da criança afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva, não sendo adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais.”

Na esteira do acabado de expor surgem-nos ao nível da jurisprudência dos Tribunais da Relação, (entre vários outros), o acórdão proferido no Tribunal da Relação de Lisboa em 17/11/2011 (Processo n.º 3473/05.1TBSXL.D.L1.8), no âmbito de uma acção de alteração à regulação do exercício das responsabilidades parentais, que decidiu pela “anulação da sentença“ por falta de audição da criança, o acórdão proferido no Tribunal da Relação do Porto em 22/11/2016 (Proc. n.º 292/12.2TMMTS.A.P1) , que determinou a “revogação de sentença “ em procedimento tutelar cível de incumprimento por virtude do menor não ter sido ouvido e o acórdão proferido pela mesma Relação em 20/06/2017 (Proc. n.º 3484/16.1T8STS.A.P1 ), que determinou a “anulação da sentença“ em processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais por falta de audição de criança de 3 anos, todos acessíveis para consulta in http:jurisprudência.csm.org.pt.

Perante o exposto afigura-se correcto sustentar que a falta de audição da criança no âmbito do processo de promoção e proteção em situação processual que concretamente implique o dever para o julgador de viabilizar e assegurar essa audição previamente ao proferimento de decisão, repercute-se na própria decisão gerando a nulidade da mesma, não propriamente por omissão, mas antes por “excesso de pronúncia”, dado que o julgador acaba por conhecer de questões, mormente através da aplicação de medidas, que pressupõem salvaguardar o superior interesse da criança, ou jovem, sem previamente ter assegurado a realização de diligência obrigatória e directamente dirigida à auscultação e captação desse interesse, qual seja a audição da própria criança e jovem., dessa forma apreciando e decidindo quando ainda não detinha condições para o fazer, podendo, como tal, tal nulidade ser invocada em sede de recurso de apelação interposto da decisão final e no prazo previsto para apresentar o mesmo.

Volvendo de novo aos contornos do caso concreto verificamos que a Apelante não chegou efectivamente a ser ouvida em sede de debate judicial.

No entanto foi expedida em 02/06/2021 notificação directamente à Jovem (…), dirigida à Comunidade Terapêutica Clínica Dr. (…), onde provisoriamente se determinara o acolhimento residencial da (…), com vista à sua audição no dito debate, sendo que por essa altura a Apelante já deixara, por sua iniciativa e sem qualquer autorização, a referida Comunidade, o que terá sucedido a 31/05/2021, ausentando-se a Jovem para local desconhecido, onde permanece até ao presente, tendo sido ordenadas diligências pelo Tribunal recorrido com vista à localização e recondução da jovem (…) à Comunidade acima identificada, sem sucesso até ao momento.

Diz-nos o artigo 116.º, n.º 2, da LPCJP, o seguinte:

2- O debate judicial não pode ser adiado e inicia-se com a produção da prova e audição das pessoas presentes, ordenando o juiz as diligências necessárias para que compareçam os não presentes na data que designar para o seu prosseguimento.”

No caso vertente, face ao desconhecimento do paradeiro da Apelante desde 31/05/2021 e pese embora as diligências realizadas com o intuito de o apurar, percebemos que teria sido inglório e mesmo dilatório designar o prosseguimento do debate judicial noutra data com vista a convocar a Jovem para nele ser ouvida, não devendo esquecer-se a natureza urgente do processo de promoção e protecção aliado ao facto da Jovem (…) atingir a maioridade no próximo dia 13 de Agosto de 2022, ou seja pouco mais de um ano contabilizado desde a data da realização do debate judicial, que decorreu a 25/06/2021, faltando neste momento pouco mais de nove meses para o advento de tal maioridade.

A ora Apelante esteve representada no dito debate pela sua actual Patrono que a ele compareceu.

Como argumentou o Tribunal recorrido em despacho prolatado no decurso do debate deve entender-se que a Jovem de algum modo teve conhecimento da data da realização do debate, uma vez que manifestou à sua ilustre Patrono, que o fez saber em requerimento apresentado durante tal acto judicial, vontade em ser ouvida pelo tribunal “por meios remotos a fim de esclarecer a sua situação”.

Não obstante e como bem decidiu o Tribunal recorrido no aludido despacho prolatado no debate judicial, (despacho esse que admitia recurso, não tendo sido expressamente impugnado, pelo que transitou pacificamente em julgado), não se mostrava viável determinar a audição noutra data da Jovem através de “meios remotos”, aliás não concretizados pela ilustre Patrono da Jovem, desde logo por se desconhecer o paradeiro da (…).

Se a Apelante pretendia ser ouvida no debate judicial para “esclarecer a sua situação” e, sublinhe-se, não podendo deixar de se presumir que estava informada sobre a data de realização do debate judicial, deveria ter comparecido no Tribunal recorrido nessa data, não podendo deixar igualmente de se rotular como desrazoável a referência a “medo e receio” constantes do requerimento feito no debate judicial orientado para a audição da Jovem, desde logo por carecidos de qualquer concretização fáctica.

A Apelante não compareceu, porque certamente não queria ser reconduzida posteriormente à Comunidade Terapêutica onde foi determinada a execução da medida cautelar de acolhimento residencial que lhe foi aplicada preferindo manter-se, como continua a suceder, a violar flagrantemente tal medida que foi aplicada pelo Tribunal recorrido e confirmada superiormente por este Tribunal da Relação de Évora há poucos meses atrás.

Note-se ainda que o debate judicial terminou a 25/06/2021 tendo, porém, o acórdão sido proferido em 01/07/2021, pelo que se a Jovem Apelante pretendesse convictamente ser ouvida com o fito de esclarecer perante o Tribunal recorrido “a sua situação” e de algum modo influenciar a decisão final sempre poderia durante o hiato temporal que existiu entre 25/06/2021 e 01/07/2021 ter contactado o Tribunal recorrido e colocar-se de imediato à disposição do mesmo para ser ouvida, devendo interpretar-se nesse sentido o último parágrafo do despacho proferido e exarado na acta de debate judicial no dia 25/06/2021, que passamos a transcrever: “Assim, indefiro, sem prejuízo de a jovem poder vir a indicar aos autos o respectivo paradeiro ou apresentar-se na Clínica em cumprimento da medida que está aplicada, a partir de onde sempre poderá ser ouvida em momento ulterior…”

Com efeito, afigura-se-nos que para assegurar tal audição nenhum impedimento legal do ponto de vista processual existiria para a reabertura do debate judicial.

De modo que carece de qualquer razoabilidade a imputação dirigida ao Tribunal recorrido de “prepotência e desrespeito pela Lei”, constante designadamente do ponto 10 das conclusões recursivas da Jovem Apelante (…).

Como também se afigura infundado o teor do ponto 11. das ditas conclusões uma vez que o Tribunal recorrido não terá manifestado em algum momento, antes ou durante o debate judicial, o propósito de dispensar a Apelante de ser ouvida, pois notificou-a para alegações e apresentação de prova ao abrigo do disposto no artigo 114.º, n.º 1, da LPCJP, notificação essa realizada na pessoa da Patrono que lhe fora nomeada e que produziu efeitos, nada tendo sido requerido pela Apelante no prazo legalmente disponível para tal, mais determinando subsequentemente a notificação da Jovem para comparecer presencialmente no debate para ser ouvida pelo Tribunal, esta última desprovida de sucesso devido a, no entretanto, a (…) ter fugido da Comunidade Terapêutica onde fora determinada a execução da medida cautelar que lhe fora aplicada.

De resto e como bem assinala o Ministério Público na resposta ao recurso da Jovem (…), patenteado nas respectivas conclusões da resposta, nem sequer se pode afirmar que a (…) não tenha sido ouvida no âmbito destes autos pelo Tribunal recorrido.

Na verdade, na fase vestibular da instrução do presente processo de promoção e protecção e perspectivando a possibilidade de realização imediata de conferência visando a concretização de acordo de promoção e protecção em beneficio da … (que não se afigurou viável face à posição da Jovem), realizou-se em 23/03/2021 em tempo real através de meios electrónicos (Plataforma webex), uma diligência de tomada de declarações à Jovem (…) que permitiu assegurar a sua audição sobre o seu destino e designadamente sobre a medida a aplicar, tendo-se a … pronunciado sobre a questão ficando devidamente sumariadas as suas declarações na acta elaborada e que consta do processo.

Acrescente-se que a (…) também teve o ensejo de se manifestar por escrito previamente à decisão de revisão da medida cautelar proferida em 19/04/2021, para que foi devidamente notificada, através da missiva dirigida aos autos em 14/04/2021, datada de 31/03/2021 e assinada pela (…).

No contexto factual concreto dos presentes autos a que acima fomos aludindo percebemos não se mostrar fundada a invocada violação do direito de audição da Jovem Apelante.

Na realidade, como fomos verificando pelos apontamentos que vincamos supra de partes relevantes do processado, o Tribunal recorrido não descurou o exercício do direito de audição da Jovem (…) no decurso dos autos, antes procurando salvaguardar o seu exercício mesmo na fase de debate judicial.

Simplesmente, desconhecendo-se o paradeiro da Jovem (…) a partir do dia 31/05/2021, fruto da ausência não autorizada da mesma da Comunidade Terapêutica onde se encontrava em execução da medida cautelar de acolhimento residencial que lhe foi aplicada, naturalmente que a efectivação de tal direito de audição em tempo compatível com a natureza urgente dos autos, mormente em sede de debate judicial, ficou claramente comprometida.

Por isso, se alguma nota patológica é possível apontar no caso concreto relativamente à concretização em sede de debate judicial do direito de audição da Jovem (…) não a direcionamos ao Tribunal recorrido, mas sim à própria Apelante, que ao ausentar-se sem autorização da Comunidade Terapêutica refugiando-se em local ainda desconhecido, passando a ter paradeiro incerto, causou inegáveis transtornos ao normal exercício nos autos do direito a ser ouvida.

Improcedem, pois, as conclusões recursivas da (…) no tocante a esta segunda questão objecto do recurso, sendo, como tal, de negar provimento a este recurso interposto pela Jovem Apelante (…).

*

2- Recurso de Apelação da progenitora da Jovem, (…).

a) Patrocínio nos autos da Jovem (…):

Invoca a Apelante nas suas conclusões recursivas ter sido negado à Jovem (…), sua filha, a assistência por parte de um defensor antes de Maio de 2021, sendo certo que ficou desprovida da sua liberdade e fora do seu contexto familiar, social e escolar, a partir de 29/12/2020, quando foi determinada a sua condução a instituição.

Na sua resposta ao recurso o Ministério Pública pugna pela improcedência da invocada questão.

Apreciando:

Resulta do artigo 103.º da LPCJP epigrafado “Advogado”, o seguinte:

1- Os pais, o representante legal ou quem tiver a guarda de facto podem, em qualquer fase do processo, constituir advogado ou requerer a nomeação de patrono que o represente, a si ou à criança ou ao jovem.

2-É obrigatória a nomeação de patrono à criança ou jovem quando os seus interesses e os dos seus pais, representante legal ou de quem tenha a guarda de facto sejam conflituantes e ainda quando a criança ou jovem com maturidade adequada o solicitar ao tribunal.

3-A nomeação do patrono é efetuada nos termos da lei do apoio judiciário.

4-No debate judicial é obrigatória a constituição de advogado ou a nomeação de patrono aos pais quando esteja em causa a aplicação da medida prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º e, em qualquer caso, à criança ou jovem.”

Sendo esta a norma aplicável ao caso vertente, pois temos em mãos um processo de promoção e proteção e não um processo tutelar educativo (!), percebemos que a Jovem (…) poderia estar assistida nos autos por Patrono desde momento anterior àquele em que lhe foi nomeado tal Patrono, inclusive desde o inicio da fase instrutória do processo, caso o tivesse solicitado/requerido directamente ao Tribunal recorrido considerando que a sua idade, mesmo à data da instauração do processo (16 anos de idade), permitia já presumir a existência de maturidade adequada para o fazer por si.

Mas mesmo admitindo a viabilidade de tal solicitação ser dirigida ao Tribunal pela Apelante em representação da … (obnubilando nesse caso de certa forma a idade da Jovem), certo é que não decorre inequívoco da análise dos mesmos que a Jovem, ou a sua progenitora, tenham manifestado expressamente tal pretensão.

Assim, a nomeação de Patrono à (…) revelar-se-ia obrigatória apenas a partir do momento em que se constatasse a existência de interesses conflituantes no tocante às questões a resolver no processo, mormente quanto ao destino da Jovem e possíveis medidas a aplicar a seu favor, entre a própria Jovem e a sua progenitora, bem como em sede de debate judicial.

Ora, relendo as peças processuais em que progenitora e filha tiveram ensejo de se pronunciar sobre as questões a dirimir nesta acção percebemos, sem margem para rebuços, inexistir incompatibilidade de interesses no tocante ao destino da (…) sustentando ambas que a melhor prossecução do superior interesse da Jovem se orienta no sentido de a manter em meio natural de vida junto de familiares, recusando ambas veementemente qualquer acolhimento residencial, o que desonerou o Tribunal recorrido da obrigação de nomear Patrono à (…) antes de declarar encerrada a fase de instrução e determinar o prosseguimento dos autos no sentido da realização de debate judicial, sendo certo que no próprio despacho em que decidiu orientar a processo com vista a tal debate o Tribunal a quo determinou (e bem), a nomeação de Patrono à (…).

Assim sendo nenhuma violação ao disposto no supra transcrito artigo 103.º da LPCJP foi cometida pelo Tribunal recorrido no tocante à nomeação de patrono à Jovem (…), carecendo de qualquer fundamento o teor dos pontos 8, 9 e 10 das conclusões recursivas.

b) Excesso de medida cautelar:

Invoca ainda a progenitora da (…) nas suas conclusões recursivas ter sido excedido o tempo da medida cautelar de acolhimento residencial em Comunidade Terapêutica aplicada a favor da Jovem.

O Ministério Público sustentou na sua resposta ao recurso carecer, também nesta questão, de razão a Apelante.

E, de facto, a Apelante está carecida de razão.

Desde logo se percebe pela análise da motivação e conclusões recursivas (cfr. especialmente o ponto 11 das conclusões), que a Apelante confunde o enquadramento jurídico pertinente no caso em apreço, que respeita inequivocamente a matéria de promoção e protecção, com o atinente a questões tutelares educativas, ao trazer à colação o artigo 60.º, n.º 1, da Lei Tutelar Educativa (vulgo LTE), que regendo sobre a medida cautelar de guarda em Centro Educativo nada tem a ver com a medida cautelar de acolhimento residencial aplicada no âmbito desta causa.

De todo o modo, sempre se acrescenta que tendo a medida cautelar aplicada nestes autos sido decidida em 27/11/2020, pelo período de seis meses, com respectiva execução iniciada apenas em 29/12/2020, bem como sido revista em 19/04/2021, (ou seja menos de três meses após ter sido confirmada por acórdão proferido neste Tribunal da Relação de Évora em 25/02/2021, pacificamente transitado em julgado a 16/03/2021, no âmbito do recurso que tramitou no apenso A)), não olvidando, ademais, que no dia 01/07/2021 foi aplicada medida definitiva de acolhimento residencial a favor da (…) pelo período de 14 meses, a rever semestralmente, impugnada por via do presente recurso, ao qual, todavia, foi (e bem), fixado efeito meramente devolutivo, percebemos por confronto com o disposto nos artigo 37.º, n.ºs 1 e 3 e 62.º, nºs 1 e 3, c) e 6, ambos da LPCJP, não ter, também no tocante a esta questão, incorrido o Tribunal recorrido na violação a que aludiu a Apelante consubstanciada no período temporal excessivo da medida cautelar aplicada a favor da (…).

Improcedem, em consequência, as conclusões recursivas da Apelante, mormente as vertidas sob os pontos 11 e 12 do seu recurso.

c) Medida aplicada pelo Tribunal a quo a favor da (…):

Quanto a este item importa previamente deixar claro que a factualidade pertinente e a considerar para aferir da medida de promoção e protecção mais adequada à prossecução do superior interesse da Jovem (…) reconduz-se àquela que integra o segmento respeitante aos factos provados incluído na parte respeitante à “fundamentação” de facto no acórdão recorrido, uma vez que não foi impugnada no recurso da Apelante pela mesma a decisão relativa à matéria de facto.

Clarificada esta situação verificamos pelo teor das conclusões recursivas elaboradas pela Apelante, mormente pelas descriminadas nos pontos 1 a 7, que aquela entende que a medida de acolhimento residencial aplicada pelo período de 14 meses, se revela “pouco criteriosa”, “desequilibradamente doseada”, assim como “actualmente desfavorável e contra o superior interesse” da filha (…), sustentando que a Jovem deve “ser imediatamente restituída ao seu ambiente familiar, social e escolar, por não se mostrar “neste momento em situação de perigo”.

Na respectiva resposta ao recurso o Ministério Público expressa a sua discordância com o entendimento sufragado pela Apelante e pugna pela manutenção da medida aplicada no acórdão recorrido.

Não alvitrando a Apelante nas suas conclusões recursivas a eventual aplicação a favor da (…), em substituição da que foi decidida aplicar pelo Tribunal a quo, de qualquer medida entre as que são executadas em meio natural de vida, o que, aliás, está em linha com a sua convicção expressa de que a Jovem não se encontrará neste momento em situação de perigo, temos de concluir que a pretensão última da Apelante passa pela revogação do acórdão recorrido e decisão de arquivamento dos autos sem aplicação de qualquer medida.

Contudo, os factos contrariam, sem margem para rebuços, o entendimento da Apelante, como veremos já de seguida.

Estatui o artigo 3.º da LPCJP relativo à “Legitimidade da intervenção” o seguinte.

1- A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.

2- Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações:

[…]

g) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.”

Prevê o artigo 4.º do aludido diploma, ao elencar os “Princípios orientadores da intervenção”, que:

“A intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo obedece aos seguintes princípios:

a) Interesse superior da criança e do jovem – a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;

[…]

e) Proporcionalidade e atualidade – a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade;

[…]

h) Prevalência da família – na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável;”

Dispõe o artigo 34.º da LPCJP que:

As medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e dos jovens em perigo, adiante designadas por medidas de promoção e proteção, visam:

a) Afastar o perigo em que estes se encontram;

b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;

c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.”

No artigo 35.º do dito diploma, atinente à identificação das medidas admissíveis, consta o seguinte:

“1- As medidas de promoção e proteção são as seguintes:

[…]

f) Acolhimento residencial.”

Já no artigo 49.º da LPCJP encontramos a seguinte definição sobre a medida de acolhimento residencial:

1- A medida de acolhimento residencial consiste na colocação da criança ou do jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados.

2- O acolhimento residencial tem como finalidade contribuir para a criação de condições que garantam a adequada satisfação de necessidades físicas, psíquicas, emocionais e sociais das crianças e jovens e o efetivo exercício dos seus direitos, favorecendo a sua integração em contexto sociofamiliar seguro e promovendo a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral.”

Por seu turno, o artigo 50.º, sempre do referido diploma legal, concretiza o conceito do seguinte modo:

1- O acolhimento residencial tem lugar em cas de acolhimento e obedece a modelos de intervenção socioeducativos adequados às crianças e jovens nela acolhidos.

2- As casas de acolhimento podem organizar-se por unidades especializadas, designadamente:

a) Casas de acolhimento para resposta em situações de emergência;

b) Casas de acolhimento para resposta a problemáticas específicas e necessidades de intervenção educativa e terapêutica evidenciadas pelas crianças e jovens a acolher.

[…]

3- Para além das casas de acolhimento, as instituições que desenvolvem respostas residenciais, nomeadamente nas áreas da educação especial e da saúde podem, em situações devidamente fundamentadas e pelo tempo estritamente necessário, executar medidas de acolhimento residencial relativamente a crianças, ou jovens com deficiência permanente, doenças crónicas de carácter grave, perturbação psiquiátrica ou comportamentos aditivos, garantindo os cuidados socioeducativos e terapêuticos a prestar no âmbito da execução da medida.”

De salientar ainda a previsão do artigo 52.º da LPCJP que nos informa que:

“As instituições de acolhimento podem ser públicas ou cooperativas, sociais, ou privadas com acordo de cooperação com o Estado.”

Volvendo à consideração dos factos considerados como provados no acórdão recorrido percebemos que pelo menos desde Outubro de 2019 que a Jovem (…) se coloca em situações de grande risco para a sua própria saúde, educação, formação e são desenvolvimento físico e psicológico, sem que a presença diária da sua progenitora, ora Apelante, ou de outros familiares de referência, contribua para afastar o perigo subjacente aos comportamentos que a Jovem evidencia nessas situações de crise, havendo registo de tentativa de suicídio há cerca de dois anos, assim como diversas condutas posteriores de automutilação levadas a cabo pela (…), a par da assunção pela Jovem de consumos exagerados de bebidas alcoólicas, que lhe provocam desorientação, bem como a sua entrega a outros comportamentos aditivos, mormente de produtos estupefacientes tais como haxixe, que a tornam agressiva inclusive para com a Apelante e predisposta à prática de crimes contra a propriedade, designadamente furtos perpetrados a esta última, sendo certo não ter resultado como provado, como a Apelante sustentou, que o quadro patológico descrito não se verificava já aquando da aplicação a favor da (…) da medida cautelar de acolhimento residencial em Comunidade Terapêutica medida essa que, recorde-se, foi confirmada por este Tribunal da Relação de Évora em acórdão proferido no final do mês de Fevereiro deste ano na sequência de recurso de apelação interposto pela ora Apelante.

Os factos provados no acórdão recorrido também permitem saber que os problemas comportamentais, causados frequentemente pelas dependências reveladas pela (…) refletiram-se a nível escolar gerando absentismo e processos disciplinares em diversos equipamentos escolares que frequentou em pouco tempo, além de terem conduzido a Jovem entre Outubro de 2019 e a data em que foi determinado cautelarmente o seu acolhimento na comunidade Terapêutica a várias consultas de pedopsiquiatria (Clínica da Juventude-Hospital de …), curtos períodos de internamento designadamente na Unidade Partilhada do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, que estabilizou a (…) com recurso a medicação e propôs à Apelante a integração da Jovem em Comunidade Terapêutica, sugestão desde logo rejeitada por aquela.

Por outro lado, como decorre dos factos vertidos essencialmente sob os pontos 17, 27, 32, 42, 45, 46, 47 da matéria de facto provada no acórdão recorrido, presentemente não se configura como viável na perspectiva da salvaguarda do superior interesse da Jovem (…) a aplicação a favor desta de medida de promoção e proteção de apoio junto da respectiva progenitora, ou de outro familiar, designadamente avó materna, ou qualquer uma das duas tias maternas da Jovem, a saber, (…) e (…), por razões diversas, pese embora todas relevantes.

Centrando a atenção sobre uma eventual medida de apoio junto da Apelante percebemos do relato constante da factualidade considerada como provada no acórdão recorrido que aquela tende a desvalorizar a gravidade dos comportamentos aditivos várias vezes manifestados pela … (o mesmo sucedendo, aliás, com a própria avó materna da Jovem), conotando-os com condutas típicas da adolescência resultantes da convivência em grupo “com más companhias”, pese embora tenha sido já visada por mais que uma vez pela agressividade da filha quando influenciada por tais substancias, a que acresce o facto da própria Apelante também estar a braços com problemas de saúde resultantes igualmente de consumo de bebidas alcoólicas que terá que tratar, os quais já lhe trouxeram vários dissabores designadamente a nível da circulação rodoviária, conforme se alcança dos factos descritos sob os pontos 43 e 44 do segmento atinente à matéria de facto provada no acórdão recorrido.

De resto também decorre da factualidade provada no acórdão recorrido estar em curso uma perícia, neste momento comprometida pelo desaparecimento da Jovem (…), tendente a aferir das reais capacidades parentais da Apelante para prestar cuidados à filha bem como da prioridade e empenho demonstrados nesses cuidados.

Certo é que neste momento e de acordo com a base factual provada nos autos, a que temos vindo a aludir, a prossecução do superior interesse da Jovem não pode passar por conferir prevalência a uma imediata solução junto da Apelante, ou de algum outro familiar, mormente dos que foram abordados durante a instrução do processo, necessitando a (…) nesta fase de uma resposta com outro nível de contenção, afigurando-se que a aplicação de medida a executar em regime de colocação, mormente a medida de acolhimento residencial em Comunidade Terapêutica pelo período de tempo fixado no acórdão recorrido, a rever, no limite, semestralmente, se revela necessária, adequada, proporcional e actual, face às condutas problemáticas já manifestadas pela Jovem, através de um acompanhamento especializado e constante, (que o dito acolhimento pressupõe), por forma a planificar devidamente a intervenção terapêutica necessária à (…) e ajudar a construir um projecto de vida para a Jovem, que passe, logo que viável, pela sua reintegração familiar num cenário tranquilo e saudável para a mesma.

Improcedem, pois, em consequência e na totalidade as conclusões recursivas da Apelante, sendo de confirmar o douto acórdão recorrido.

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V- DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes que constituem este Tribunal Colectivo em negar provimento ao recurso de apelação independente interposto pela Jovem (…), bem como em negar, igualmente, provimento ao recurso de apelação independente interposto pela progenitora da Jovem, (…), decidindo, em consequência, o seguinte:
a) Confirmar o acórdão recorrido;
b) Fixar custas a cargo da progenitora Apelante, (…), no tocante ao respectivo recurso em que decaiu, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC, considerando-se a Jovem (…) isenta de custas relativamente ao recurso interposto por si, em que também decaiu, ao abrigo do disposto no artigo 4.º, n.º 1, l), do Regulamento das Custas Processuais.
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Évora, 11/11/2021
José António Moita (Relator)
Silva Rato (1º Adjunto)
Mata Ribeiro (2º Adjunto)