Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
882/80.0PBSTB.E1
Relator: JOSÉ SIMÃO
Descritores: CRIME DE FURTO
CRIME DE NATUREZA SEMI-PÚBLICA
INEXISTÊNCIA DE QUEIXA
INADMISSIBILIDADE LEGAL DO PROCEDIMENTO
Data do Acordão: 10/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Apesar de ter havido uma intenção ilegítima de apropriação de coisa alheia e a execução de tal intento através da subtração da mesma, não se provaram os meios previstos no artº 210º do C. Penal para levar a cabo a subtração que são: a) a violência contra uma pessoa; b) a ameaça com perigo iminente para a vida ou a integridade física ou; c) pondo essa pessoa na impossibilidade de resistir, pelo que os factos não integram aquele crime, mas o de furto previsto no artº 203º nº 1 do C.Penal.
Este crime é de natureza semi-pública e não foi apresentada queixa pela entidade competente.

Impõe-se, assim, manter o acórdão recorrido de absolvição do arguido , em relação ao evento ocorrido em 15-7-2020, pelo crime de roubo previsto no artº 210º nº 1 do C. Penal, e declarar a inadmissibilidade legal do procedimento relativamente à imputação, em autoria material e na forma consumada de um crime de furto simples, p. e p. no artº 203º nº 1 do C.Penal, por ausência de queixa por parte da entidade competente.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I- Relatório

Nos presentes autos de processo Comum Colectivo, com o número acima mencionado, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal (Juízo Central Criminal de Setúbal – Juiz 2), por acórdão de 12 de Maio de 2021 deliberou-se:

a)– ABSOLVER o arguido PJCM do cometimento, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de roubo, p. e p. pelos artigos 210º, n.º 1 do Código Penal (evento ocorrido em 15/07/2020 – estabelecimento comercial “BRUXELAS”);

Após convolação:

b) – DECLARAR A INADMISSIBILIDADE LEGAL DO PROCEDIMENTO relativamente à imputação, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1 do Código, por ausência de apresentação de queixa por parte da entidade ofendida;

c) – CONDENAR o arguido pelo cometimento, na forma tentada, de 1 (um) crime de roubo simples, p. e p. pelo artigo 210º, n.º 1 do Código Penal (tendo por ofendida MHA – factos de 16/07/2020), na pena de 3 (três) anos de prisão efetiva;

d) - Declarar integralmente procedente, por provado, o pedido de ressarcimento compensatório formulado por “Centro Hospitalar de …, EPE” e, em consequência, condenar o arguido (aí demandado) a pagar à referida unidade hospitalar a importância de €309,61 (trezentos e nove euros e sessenta e um cêntimos), a acrescer de juros moratórios à taxa legal desde citação até efetivo e integral pagamento;

(…)

Inconformado o Ministério Público interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

«1. O Ministério Público não se conforma com a decisão de absolver o arguido PJCM, da prática de 1 (um) crime de roubo p. e p. pelos artigos 210.º, n.º 1 do Código Penal, nem com os fundamentos da mesma, impondo-se uma decisão diversa, no sentido de ser dado como provado, o facto não provado: “C) Na situação ocorrida em 15 de julho de 2020, o arguido atuou em plano apto a amedrontar MN fazendo-a recear pela sua integridade física, por forma a, assim, concretizar o intuito subtrativo explicitado em 19.”e ,em consequência, ser o arguido condenado pelo crime de roubo, na forma consumada, relativamente ao qual vinha acusado.

2. Foi violado o artigo 127.º do Código de Processo Penal, porquanto a prova não foi apreciada segundo as regras da experiência.

3. Atenta à prova produzida em sede de audiência de julgamento, deveria o facto não provado C) ter sido dado como provado, pelo existiu um erro na apreciação da prova, impondo-se decisão diversa nesse sentido.

4. Como suporte probatório, indica-se como provas que implicam uma decisão diversa as declarações de MN gravadas em suporte digital tempo: 28-04-2021 10:22:36 a 10:28:54, em concreto as seguintes passagens: 10:25:07 até 10:25:12, 10:25:38 até 10:25:48, 10:26:04 até 10:26:15, 10:26:34 até 10:26:48, 10:27:41 até 10:27:50, 10:27:57 até 10:27:59 (por referência aos tempos do CD: 2m:30s a 2m:37s, 3m:00s a 3m:10s, 3m:28s a 3m:38s, 3m:59s a 4m:08s, 5m:06s a 5m:12s e 5m:21s a 5m:23s).

5. Uma caneta pode ser considerada uma arma, tendo em conta que o artigo 4.º Decreto-Lei n.º 48/95 de 15/03 dispõe que “Para efeito do disposto no Código Penal, considera-se arma qualquer instrumento, ainda que de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado para tal fim”.

6. O arguido pode originar uma ofensa à integridade física grave (por exemplo, caso acertasse com a ponta da mesma na veia jugular desta).

7. Qualquer pessoa (especialmente uma que está sozinha no seu local de trabalho) confrontada com a expressão “isto é um assalto, abre a caixa”, dita por alguém, de modo sério, entende quais as consequências para a sua vida e integridade física que advirão do não acatamento do exigido, nomeadamente ser vítima de agressões físicas.

8. Em bom rigor, nem estamos perante uma ameaça implícita, mas perante uma declaração expressa, por parte do arguido, que informa M que está a ser vítima de um assalto e que deverá agir conforme ordenado.

9. O comportamento global do arguido era apto a criar receio e tal estado de espírito tem um nexo causal adequado com a apropriação dos bens subtraídos.

10. É manifesto que MN, sendo isso que permitiu que o arguido tivesse um acesso sem oposição à caixa registadora, motivou a fuga de M e criou a oportunidade de subtrair as calças, estando estabelecido o nexo causal entre o receio e a apropriação das calças.

11. O arguido, mesmo sem a caneta, é uma pessoa com uma maior desenvoltura física que M, pelo que, o facto de estar próximo desta, no lado do balcão usado exclusivamente pelos funcionários, depois de ter dito que estava a decorrer um assalto, é suficiente para criar tal clima de receio.

12. O mero acto de ter levantada a caneta implica, por si só, que está disposto a utilizá-la caso seja necessário.

13. Pelo que, com o devido respeito, não apreciou o Tribunal correctamente a prova ao dar como não provado a aptidão do plano do arguido, sendo tal posição contrária ao que resulta das regras da experiência e ao expectável tendo em conta a postura do homem médio quando colocado no lugar da vítima.

14. Tendo em conta o disposto nos artigos 22.º, n.º 1 e 2, al. b) e c) e 210.º, n.º 1 do Código Penal, é possível afirmar que a conduta do agente do crime de subtrair ou constranger outrem como forma a que lhe seja entregue coisa móvel, por meio de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, preenche o elemento objectivo do tipo legal do crime de roubo, porquanto tal prática configura um acto de execução tendo em vista a apropriação de coisa alheia.

15. Integrar no conceito de furto simples a factualidade supra referida é desconsiderar toda a conduta do arguido marcada pela vontade e actuação de intimidar outrem.

16. Os factos dados como provados no acórdão recorrido, cumulados com o facto c) (que também deve ser dado como provado), levam à conclusão de que o arguido praticou o crime de roubo consumado, relativamente ao qual vinha acusado.

17. O acórdão violou o artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal ao não considerar que os factos em apreço integram a prática de um crime de roubo.

18. O arguido deve ser condenado pela prática de tal crime e aplicada uma pena de prisão efectiva, tal como o Ministério Público pugnou em sede de alegações no Tribunal ad quo, porquanto as finalidades preventivas subjacentes às penas seriam postas em causa pela qualquer outra forma de cumprimento.

Pelo exposto, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, e, em consequência acórdão recorrido ser parcialmente revogado e substituído por outro que dê como provado o facto dado como não provado C), nos moldes supra referidos, e, em consequência, condene o arguido PJCM pela prática de um crime de roubo, na forma consumada, relativamente ao qual vinha acusado, o que se requer aos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora».

O arguido não respondeu ao recurso.

Nesta Relação o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer em concordância com a posição do Digno Procurador Junto do Tribunal da 1ª instância.

Observado o disposto no art. 417º nº 2 do CPPenal, o arguido não respondeu.

Procedeu-se a exame preliminar.

Cumpre apreciar e decidir.

II- Fundamentação

Factos Provados:

Do julgamento da causa, com relevância para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos:

Resultantes da acusação pública:

1) No dia 15 de julho de 2020, cerca das 12h30m o arguido dirigiu-se ao estabelecimento designado “…”, sito na Rua …, nºs … em …;

2) No local encontrava-se MN que aí exerce a sua atividade profissional;

3) O arguido dirigiu-se-lhe e manifestou a intenção de comprar dois pares de calças;

4) MN colocou as calças num saco e iniciou o registo da transação a fim de poder efetuar o pagamento;

5) Enquanto MN procedia do modo descrito, o arguido pegou numa caneta que se encontrava em cima do balcão, dirigiu-se ao espaço reservado aos funcionários e, empunhando a referida caneta na sua direção (porém nunca efetuando qualquer gesto a si dirigido com tal objeto, ou sequer aproximando-se a menos de meio metro de distância de MN), proferiu a seguinte expressão: “Isto é um assalto, abre a caixa”;

6) MN respondeu que só podia abrir a caixa quando o registo estivesse completo e que, para isso, precisava introduzir um número de contribuinte fiscal;

7) Nessa sequência o arguido pegou na sua carteira de onde retirou um documento e começou a introduzir dados na máquina registadora;

8) Aproveitando a distração do arguido, MN fugiu da loja e começou a gritar por socorro;

9) Surpreendido pela conduta de M, o arguido desistiu de abrir a caixa, pegou no saco contendo as calças e fugiu da loja em direção à Praça …;

10) AL, que se encontrava no interior do imóvel contíguo à loja onde os factos ocorreram, alertado pelos pedidos de socorro de M, perseguiu o arguido tendo-o intercetado na Rua …;

11) O arguido, confrontado por AL, entregou-lhe o saco e aproveitando a surpresa do mesmo com a sua passividade, fugiu em direção à Praça …;

12) No dia 16 de julho de 2020, cerca das 18h30m, o arguido encontrava-se na Avenida … em …;

13) No mesmo local encontrava-se MHLA, nascida em 28 de abril de 1953, que caminhava na referida artéria;

14) Ao vê-la, o arguido aproximou-se da mesma e desferiu-lhe uma pancada na cabeça fazendo-a desequilibrar-se e cair no chão, onde acabou por embater com a cara.

15) Encontrando-se já a vítima no chão, o arguido agarrou a mala que a mesma trazia consigo e começou a puxá-la para a fazer sua;

16) No entanto, quando o arguido tentava apoderar-se da mala, NC e AP vieram em socorro da vítima e agarraram-no, mantendo-o preso até à chegada dos agentes da PSP, poucos minutos depois e impedindo dessa forma que se apoderasse da mala;

17) Em consequência da conduta do arguido, e da queda pela mesma gerada, MA sofreu um hematoma no olho esquerdo;

18) Essa lesão demorou para se curar o período de 8 dias;

19) Ao atuar do modo descrito, quis o arguido apoderar-se de bens existentes no interior da loja “…”, o que fez;

20) Quis também o arguido utilizar violência contra MA, provocando-lhe lesões e assim a afetando na sua integridade física para, dessa forma, se apoderar dos bens com valor que a mesma tivesse consigo, o que só não fez por ter sido impedido por terceiros;

21) Sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas por lei e, ainda assim, atuou do modo descrito.

Mais se provou, tendo por referencial o evento de 15 de julho de 2020, que:

22) O arguido, no momento em que atuou nos termos descritos em 7), propondo-se a digitar um número de identificação fiscal na máquina registadora, por forma a permitir a abertura da gaveta da mesma, largou a caneta de que se mostrava antes utilizador.

23) Cada um dos pares de calças que se identificam em 3) e 9) tinham o valor de €20,00 (vinte euros).

Da postura evidenciada pelo arguido em julgamento:

24) O arguido confessou parcialmente os factos.

25) O arguido formulou em julgamento pedidos formais de desculpas às MN e MHA, as quais declararam desculpar o arguido.

Do enquadramento vivencial do arguido:

26) PM é oriundo de uma família numerosa e de limitada condição socioeconómica, o pai empregado fabril e a mãe ajudante de cozinha, sendo o mais novo de uma fratria de nove irmãos, cujo processo de desenvolvimento decorreu na periferia rural da cidade de ….

27) O abandono escolar verificou-se aos 14 anos, durante a frequência do 5º ano de escolaridade, começando a trabalhar como operário fabril, transitando aos 17 anos para construção civil, onde se profissionalizou na área da pintura, mantendo-se a viver na casa dos pais.

28) Por volta dos 20 anos o arguido iniciou a relação conjugal com uma companheira e as duas filhas menores desta última, tendo a família ido viver para …, relacionamento que decorreu com muita instabilidade, sucedendo-se os episódios de rutura e reaproximação, associados à progressão em escalada da sua toxicodependência, tendo as enteadas sido retiradas e institucionalizadas em …, culminando na separação do casal em 2004.

29) Na sequência da desorganização comportamental associada à intensidade da sua adição, PM encontra-se há vários anos em situação de sem abrigo e isolamento social, não dispondo de apoio da família, com quem entrou em rutura, devido à toxicodependência e estilo de vida criminal, remontando a 2003 os seus contactos com Sistema de Justiça.

30) Entre março de 2006 e julho de 2014 esteve preso ininterruptamente, saindo aos 5/6 da pena e integrado a instituição “…”, de onde saiu cinco meses depois numa situação de agressão entre utentes, passando a residir em casas abandonadas e a sobreviver de alguns trabalhos na construção civil e como arrumador de carros.

31) A rede social de PM nos períodos em que se encontra em liberdade tem sido constituída por indivíduos com as mesmas vulnerabilidades, sem abrigo e sem apoio familiar, com adições diversas, estilo de vida criminal e com dificuldades em corresponder às regras e rotinas das instituições de apoio social.

32) Para além da adição a substâncias estupefacientes, PM é portador de doença do foro imunológico, tendo em liberdade chegado a manter acompanhamento na … em … de forma a corresponder a obrigações fixadas judicialmente.

33) Em março de 2015 PM reentrou no Sistema Prisional, tendo a 7 de julho de 2020 regressado à liberdade, vindo do EP de …, na sequência do perdão, sob condição resolutiva, do período remanescente (dois anos) do somatório de penas, aplicadas no âmbito do proc. 482/15.6PBLSB – Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 15.

34) Na sequência do perdão acima referido, o arguido veio para …, passando a pernoitar na …, pois não foi possível a sua integração no …, sendo-lhe assegurado por esta instituição a alimentação, a que recorreu durante cinco dias.

35) Quando deixou de ter dinheiro para pagar a pensão em que pernoitava, PM conseguiu descobrir a morada de uma irmã, residente em …, que o acolheu por uns dias na sua casa, nomeadamente até ao incidente que deu origem ao presente processo.

36) À data dos factos que deram origem à instauração do presente processo, PM, recentemente regressado ao meio livre, pois tinha sido abrangido pelo perdão por razões sanitárias (com efeitos partir e 19/05/2019), encontrava-se numa situação de intenso consumo de substâncias, designadamente álcool, associado a medicação, desenvolvendo os expedientes habituais para conseguir os recursos necessários para assegurar a adição.

37) Na sequência dos crimes de que está acusado foi-lhe aplicada em 18 de julho último, a medida de coação de prisão preventiva, que começou por cumprir no EP de …, sendo transferido a 5 de agosto para o EP de …, não sendo desde então visitado nem apoiado por ninguém.

38) PM manteve atividade laboral no EP como faxina de piso entre 4 de setembro e 5 de março último, ocupação que cessou por problemas disciplinares, encontrando-se desde então desocupado.

39) No percurso do arguido tem sido reduzido ou quase nulo o impacto das sanções penais aplicadas, revelando-se persistente a sua toxicodependência, assim como insucedidos os tratamentos que chegou a realizar, prevalecendo a satisfação das necessidades de consumo em detrimento dos bens jurídicos e dos danos causados a terceiros.

40) Na sequência da desorganização comportamental associada à adição, PM tem revelado uma grande dificuldade / incapacidade em antecipar as consequências das suas ações e em conformar o seu comportamento com o normativo sociojurídico.

41) PM encontra-se resignado à medida de coação que lhe foi aplicada, não tendo conseguido realizar qualquer reflexão crítica em relação aos crimes de que está acusado, prevalecendo no seu discurso os custos pessoais da privação da liberdade, não tendo revelado capacidade de descentração nem qualquer empatia pelas vítimas, sendo muito limitada a consciência dos danos causados.

Dos antecedentes criminais do arguido:

42) Do CRC do arguido constam os seguintes averbamentos criminais: a) pelo crime de ofensa à integridade qualificada, p. e p. pelos artigos 143º e 146º do Código Penal, por factos ocorridos em 29/08/1999, sancionados por sentença de 11/07/2002, transitada em julgado em 25/09/2002, na pena de 150 dias de multa (Proc. N.º 1261/99.1PBSTB do 3º Juízo Criminal de Setúbal); b) pelo cometimento de 2 crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, alínea e) do Código Penal, sendo um deles na forma tentada e o outro consumado, ocorridos em 24/08/2003 e 24/09/2003, sancionados por acórdão de 12/03/2004, transitado em julgado em 30/03/2004, na pena única de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos (Proc. N.º 612/03.0PDLSB da 9ª Vara Criminal de Lisboa); c) pela autoria de 1 crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, alínea e) do Código Penal, por factos datados de 9/04/2004, por acórdão de 7/10/2004, devidamente transitado em julgado em 22/10/2004, na pena de 8 meses de prisão efetiva (Proc. N.º 375/04.2PELSB da 4ª Vara Criminal de Lisboa); d) por crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, ocorrido em 8/07/1999, sancionado por sentença de 20/12/2004, transitada em julgado em 18/01/2005, na pena de 50 dias de multa (Proc. N.º 166/99.0GCSTB do 2º Juízo Criminal de Setúbal); e) por decisão condenatória, na qual se procedeu à realização de cúmulo englobando as penas parcelares aplicadas nos processos n.ºs 552/03.3PELSB e 612/03.0PDLSB, proferida em 16/03/2006 e transitada em julgado em 5/05/2006, nas penas de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e 50 dias de multa (Proc. N.º 552/03.3PELSB da 5ª Vara Criminal de Lisboa); f) por decisões cumulatórias proferidas no âmbito do processo n.º 221/04.7PFLSB da 7ª Vara Criminal de Lisboa, englobando penas parcelares aplicadas anteriormente, aplicando-se ao arguido a pena única inicial de 3 anos e 8 meses de prisão efetiva, após reformulada por nova condenação em 4 anos e 9 meses; g) pelo cometimento de 1 crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204º do Código Penal, por factos datados de 1/04/2004, sancionados por acórdão de 30/05/2006, transitado em julgado em 1/09/2006, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão efetiva (Proc. N.º 216/04.0PFLSB da 5ª Vara Criminal de Lisboa); h)por cometimento de 1 crime de furto, p. e p. pelos artigos 203º e 204º, n.º 2, alínea e), ocorrido em 26/11/2005, por acórdão de 8/11/2006, transitado em julgado em 23/11/2006, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão (Proc. N.º 133/05.7SHLSB da 2ª Vara Criminal de Lisboa); i) por acórdão cumulatório proferido neste último processo, englobando sanções parcelares sofridas em condenações anteriores, proferido em 9/05/2007, transitado em julgado em 24/05/2007, na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão; j) por crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo artigo 6º, n.º 1 da Lei 22/97. De 27/06, praticado em 26/09/2005, sancionado por sentença de 26/03/2007, transitada em julgado em 18/04/2007, na pena de 7 meses de prisão (Proc. N.º 1744/05.6PBSTB do 3º Juízo Criminal de Setúbal); k) pelo cometimento de 2 crimes de burla na forma tentada, p. e p. pelo artigo 217 do Código Penal, cometidos no ano de 2006, sancionados por acórdão de 5/05/2008, transitado em julgado em 4/06/2008, na pena única de 1 ano e 3 meses de prisão, resultante do cúmulo das penas parcelares de 9 meses para cada um dos crimes (Proc. N.º 277/06.8PHLSB da ª Vara Criminal de Lisboa); l) pelo cometimento de 2 crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1, 2044, n.º 1, alínea f) e 204º, n.º 2 alínea e) do Código Penal, cometidos em 26/02/2006 e 10/03/2006, na pena única de 4 anos de prisão, aplicada por acórdão de 5/02/2009, transitado em julgado em 25/02/2009 (Proc. N.º 147/06.0PFLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa); m) por acórdão cumulatório, proferido em 1/10/2009, nestes últimos autos, transitado em julgado em 29/10/2009, englobando as penas parcelares ali aplicada, bem como nos processos n.ºs 1744/05 e 277/06, na pena única de 5 anos de prisão; n) por crime de roubo qualificado, p. e p. pelo artigo 210º, n.ºs 1 e 2, alínea b), tido lugar em 16/03/2015, sancionado pro acórdão de 15/12/2015, transitado em julgado em 21/01/2016, na pena de 5 anos de prisão (Proc. N.º 482/15.6PBLSB do Juízo Central Criminal de Lisboa – J15); o) por crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º da Lei n.º 5/2006, de 23/02, ocorrido em 3/10/2016, sancionado pro sentença de 18/10/2018, transitada em julgado em 19/11/2018, na pena de 6 meses de prisão efetiva (Proc. N.º 367/16.9T9GDL do Juízo de Competência Genérica de Grândola).

***

Factos não provados:

Não se provou, cabal e inequivocamente:

A) Que, na situação ocorrida em 16 de julho de 2020, se tivesse o arguido aproximado pelas costas da vítima MHA;

B) Que, no referido evento, após ter o arguido desferido um golpe na cabeça da ofendida, e sem que a mesma se encontrasse ainda caída no chão, tivesse o arguido agarrado os cabelos atrás da cabeça daquela, batendo-lhe com a cara contra o chão;

C) Que, na situação ocorrida em 15 de julho de 2020, tivesse o arguido atuado em plano apto a amedrontar MN fazendo-a recear pela sua integridade física, por forma a, assim, concretizar o intuito subtrativo explicitado em 19).

IV. MOTIVAÇÃO:

O Tribunal fundou a sua convicção na prova carreada para os autos, destacando:

No plano documental:

Toda a constante dos autos, destacando-se:

- autos de notícia de fls. 2 e 3 e de fls.76;

- relatório de inspeção judiciária (e suporte fotográfico respetivo) de fls. 54 a 57;

- ficha hospitalar de fls. 59 a 65;

- talão de fls. 80;

- auto de visionamento de fls. 83 a 89;

- auto de busca e apreensão de fls. 93 a 95;

- relatório social constante de fls. 281 a 283;

- CRC de fls. 254 a 266.

- No domínio declaracional:

- declarações de arguido;

- prova testemunhal produzida.

De cuja análise crítica e complementar, vista à luz das regras da experiência comum e por apelo a padrão de homem comum, se extrai a análise infra:

*

Episódio de 15 de julho de 2020:

O arguido admitiu globalmente os factos, nessa medida reconhecendo a deslocação à loja “…”, nesta cidade, no contexto temporal explicitado na acusação pública, sob o intuito de ali subtrair objetos.

Nesse desiderato, que refere ser contextualizado em quadro de consumo associado de bebidas alcoólicas (3 ou 4 cervejas e/ou 4 ou mais taças de vinho) e de comprimidos calmantes (Diazepam) que habitualmente tomava, afirma ter ali pegado em dois pares de calças, dirigindo-se à zona de balcão (afirmando inicialmente sob o intuito de efetuar pagamento mas, após reconhecendo, não ter sequer atentado no preço dos itens pretensamente a adquirir, e dispor de apenas €10,00 na sua carteira), nesse momento interagindo com a empregada.

Reconhece ter ali pedido que aquela abrisse a caixa registadora (embora refute a expressão “isto é um assalto”), a fim de poder aceder ao dinheiro ali depositado, isto enquanto pegava numa caneta que se encontrava no referido balcão de atendimento, que apontou à empregada enquanto vociferava a expressão supra, sendo-lhe dito que para ali suceder ter-se-ia de apor no sistema a indicação de contribuinte fiscal,

Concede ter a empregada, no referido momento, acabado por abandonar o local (enquanto se aprontava a digitar ele próprio o respetivo NIF, para o que acedeu ao cartão de identificação que retirou da carteira), vindo ele próprio, na impossibilidade de concretizar a abertura da caixa registadora, a abandonar o estabelecimento, trazendo consigo o saco contendo os dois pares de calças indicados, vindo já no exterior a ser agarrado (na Rua …) por dois indivíduos, aos quais acabou por fugir, já desapossado das referidas peças de vestuário.

O depoimento supra, globalmente confessório, revelou-se corroborado e complementado pelo depoimento da testemunha MN, a qual, confirmando o acesso ao espaço comercial onde se encontrava sozinha a trabalhar, acrescentou ter sido o acesso em referência nos autos o segundo ocorrido naquele dia por banda do arguido, o qual, no horário de abertura da loja (logo pela manhã) teria também ali entrado, vindo todavia a sair prontamente, face à presença de outros clientes.

Assim, e no que à segunda incursão concerne (aquela a que se reportam os autos), referiu ocorrer em momento em que inexistiam outros clientes na referida loja, tendo o arguido, evidenciando nervosismo e tendência de olhar repetidamente para o espaço envolvente, pegado em dois pares de calças de senhora, sem prévio procedimento de observação ou escolha (“agarrando nas peças que encontrou”), dirigindo-se prontamente ao espaço da caixa registadora.

Insinuando a intenção de efetuar pagamento, referiu ter ela própria iniciado o registo de compra, momento em que o arguido, inicialmente do lado de fora do balcão, agarrou numa caneta sem tampa que se encontrava no balcão de atendimento, transpondo o balcão para o seu interior, empunhando a caneta com o braço levantado (mas sem movimento a si dirigido), isto enquanto lhe solicitava que abrisse a caixa registadora, dizendo-lhe tratar-se de um assalto.

No procedimento a que dava seguimento, e segundo refere por via do nervosismo face à situação vivenciada, refere ter inadvertidamente selecionado a opção de registo de compra com aposição de n.º de contribuinte, o que ditou o bloqueio da caixa até á inscrição de NIF, o que transmitiu ao arguido.

Nesse momento, refere ter o arguido prontamente largado a caneta que empunhava, acedendo à sua própria carteira, da qual retirou o documento identificativo, procurando ele próprio digitar o n.º de identificação fiscal.

Aproveitando a distração momentânea do arguido, refere ter facilmente logrado abandonar o local, traspondo o balcão para o exterior e dirigindo-se para a rua, onde solicitou a ajuda de funcionários que levavam a cabo a remodelação de uma loja contígua.

Complementarmente, ainda declarou:

- ter o arguido, na interação a que atrás se faz alusão, assumido a proximidade máxima face à declarante de cerca de meio metro;

- ter sentido medo face à situação em que se viu envolvida;

- terem as calças subtraídas pelo arguido o valor total de €40,00 (€20,00 por par);

- não ter percecionado eventual influenciação do arguido por substâncias de qualquer natureza, sendo-lhe apenas percecionável o estado de nervosismo daquele.

Os elementos supra são complementados face ao teor do auto de notícia de fls. 76, relatório de fls. 54 a 57 auto de visionamento de fls. 83 a 89, com especial enfoque neste último elemento probatório.

Analisando criticamente os elementos probatórios a que atrás se alude, dirá o Tribunal ser a prova confluente na elucidação do comportamento do arguido, em plano de conformidade geral face ao definido em acusação pública, quer no tocante à atuação do arguido, quer em redor do ensejo pelo mesmo assumido.

Aliás, e neste último segmento, permite-se ao Tribunal inferir do discurso do arguido um intuito ou atuação não plenamente coincidente com o inicialmente indicado no texto acusatório, na medida em que não se crê demonstrado existir qualquer propósito de pretensa aquisição lícita de peças de vestuário.

Na realidade, não só o arguido concede não ter visualizado os preços das peças de vestuário com as quais se dirigiu à zona de pagamento, como acabou por conceder ser o valor habitual de tais itens superior ao valor monetário que consigo trazia (€10,00), como a testemunha MN afirma ter a escolha das mesmas ser rápida e aleatória.

Assim, toma-se tal comportamento como gerador ou dissimulador de uma interação após gerada, conducente à apropriação (necessariamente ilegítima) de valores a retirar de tal estabelecimento.

Sem prejuízo, e com o detalhe a assumir infra em sede de enquadramento jurídico, não se permite reconhecer na ação física ou verbal do arguido, primeira das quais concretamente objetivada no empunhamento de uma caneta, uma idoneidade ou aptidão de criar na destinatária um receio ou medo objetivamente considerados, aptos a reduzir ou anular a sua possibilidade de reação.

Senão vejamos:

Não só não se demonstra ter sido tal objeto dirigido ativamente à esfera da vítima (por via de qualquer movimento – arremesso, encosto ou aproximação maior, que não se simples exibição), ou complementado por qualquer conduta verbal que permitisse denotar a intenção do seu uso ou forma através da qual o mesmo se concretizaria, sendo, de resto, de atentar que tal objeto não fora levado pelo próprio arguido para o local, sendo ao invés pré-existente na loja.

Crê-se pois que o arguido, em plano de oportunidade gerada pelo momento, e em plano de atuação marcada por nervosismo de atuação (a própria MN o refere), teria optado por pegar tal objeto, sob o intuito de fazer vincar a sua intenção apropriativa, porém não retirando do seu uso efetivo ou iminente qualquer utilidade.

De resto, as características inerentes ao item manuseado, ou a forma e dinâmica do seu apossamento, não só não permitem inferir a intenção do seu uso, como não permitem demonstrar uma aptidão ou idoneidade do mesmo para qualquer gesto de intimidação ou ataque à vítima.

No complemento do que atrás se disse, será de destacar, à luz da prova produzida, que o seu manuseio é temporalmente escasso e circunscrito, sendo rapidamente abandonado quando foi referido ao arguido que a abertura da caixa registadora seria condicionada ao registo de um NIF, em face do que o arguido – ao que cremos no plano do único desígnio de vontade que fez evidenciar – prontamente abandona o uso de tal objeto, apressando-se (diga-se de forma algo ingénua) a assumir ele próprio a ação de digitação do próprio n.º de contribuinte, para o que curou de aceder à sua carteira.

Face ao insucesso de tal ação opta por levar o saco em cujo interior havia sido colocadas dois pares de calças, cujo pagamento não efetuara ou sequer procurara concretizar.

Assim, e em síntese, no presente segmento de ação, crê-se demonstrada a factualidade indicada em 1) a 11), 19) e 21) a 23), porém já não demonstrado o facto C).

*

Episódio de 16 de julho de 2020:

Já no tocante ao segundo evento descrito no texto acusatório, a prova não se veio a relevar tão convergente.

Senão vejamos:

Quer do discurso do arguido, quer por inerência aos depoimentos prestados pelas testemunhas MHA (vítima) e NC, revelou-se implícito o detalhe da existência de ato físico praticado pelo primeiro, e dirigido à segunda.

Em idêntica medida, o discurso do arguido revelou-se igualmente confessório na atuação em plano apto a proporcionar a apropriação, por aquele, da mala que a ofendida trazia ao ombro (e do dinheiro que ali tivesse, que referiu pretender destinar à aquisição de alimentos), na qual concede ter mexido, por forma a permitir a sua libertação, ainda que de forma algo inepta (puxando para a zona do ombro ao invés de no sentido descendente do braço).

Neste plano, e ainda que sob ligeiras nuances ou à luz de uma mesma postura desculpabilizadora/minimizadora que já assumira quanto ao primeiro episódio, transmutando neste segmento a pretensa influenciação por substâncias pela vivenciação de um inesperado surto psicótico, é o cerne dos factos reconhecido pelo próprio arguido.

Não obstante, à semelhança do evento antecedente, apresenta um relato pormenorizado e detalhado da sua atuação (ainda que por vezes associado a um discurso pouco fluído – a que não será alheia a escassa escolaridade ou formação do mesmo), o que em muito contrasta com a pretensa verificação de tais condicionantes externas, realidade que, assim, não nos é merecedora de qualquer crédito.

Assim, e instado a detalhar, pelas próprias palavras, qual a sequência factual alusiva a este evento, o arguido admite ter-se aproximado da ofendida, vindo de frente (isto é, cruzando-se), desferindo-lhe uma chapada na face.

Mais, afirma que, sequencialmente a tal gesto, MH veio a embater num muro contíguo, acabando por cair ao solo, momento em que o arguido (enjeitando qualquer outra agressão complementar), refere limitar-se a tentar puxar a mala nos termos já expostos (ainda que confusa e pouco convictamente declarando tentar também indagar se a mesma se mostrava ou não ferida).

Quanto ao sucesso de tal desígnio, refere ter sido prontamente comprometido pela ação de terceiros, que imediatamente acorreram ao local, vindo a assegurar a sua ulterior detenção pelas forças policiais.

Tal comportamento ou interação não se revela plenamente coincidente com o aventado pelo depoimento da vítima, a qual revelando-se algo incapaz de precisar a origem do arguido (declarando-se distraída a falar ao telemóvel), referiu ter sido agredida na zona posterior da cabeça (na nuca), criando a sensação de que sob o uso de um saco com livros que refere ser o arguido portador, caindo de imediato ao chão.

Enjeita sim ter, no processo de queda, embatido em qualquer obstáculo que não fosse o próprio chão (criando aí, na projeção e queda, um hematoma no olho), mais negando a repetição de qualquer tipo de agressão.

Afirma-se, por último, desconhecedora, face à natureza do evento em que se viu envolvida, incapaz de elucidar se lhe teria ou não sido puxada a mala que trazia ao ombro.

Já o depoimento de NC, indivíduo que refere circular numa viatura junto ao local de ocorrência dos factos, apresentou um depoimento mais expansivo, digamos mesmo algo “voluntarista”, relatando ao Tribunal uma perceção abrangente e dinâmica dos factos, antes e após ocorrência de ação física, no entanto contrastante com a afirmação de que fora chamado a atenção para a situação pelo amigo com o qual seguia numa viatura automóvel.

É pois indelevelmente associado a tal postura que descreve, a par do desferimento de um soco na parte posterior da cabeça, o desferimento complementar (e diga-se inovatório nestes autos) de um pontapé, com o qual procurou o arguido derrubar a vítima para o chão, local no qual refere ter ainda aquela agarrado a vítima pelo cabelo, batendo-lhe com a cabeça na calçada.

Ora, no âmbito do desenrolar dos contributos supra, um denominador comum trespassa aos mesmos, sendo esse a existência de agressão desferida pelo arguido, com uso de mão, na zona da cabeça da vítima, vindo-se com isto a ocasionar a sua queda ao solo.

Noutro prisma, o arguido admite ter agarrado a carteira da vítima, em plano imediatamente subsequencial à agressão, visando apropriar-se do dinheiro que a mesma ali trazia, o que, todavia, não se veio a revelar possível por motivo alheio à sua vontade.

Nessa medida, e para o que revelará em sede de enquadramento jurídico infra a explanar, é inequívoca a intenção da apropriação ilegítima de património da vítima, recorrendo para tanto a uma ação violenta.

Já a discrepância em redor da concreta atuação agressória do agente, ou em redor da sua repetição, revelar-se-á inócua, na medida em que o reconhecido pelo arguido se revelará em plano bastante.

E, assim sucedendo, não deixará o Tribunal de apontar para uma maior (embora não plena) aproximação dos relatos de agressor e vítima, por contraponto a uma maior intensidade inerente ao único depoimento de testemunha exterior, o qual, não obstante a ausência de vivenciação traumática ou em interesse próprio de um evento, apresenta do mesmo um relato mais impressivo ou abrangente, o que não se deixará de estranhar.

Dizendo por outras palavras, não estando o Tribunal em crer que a testemunha, ao apresentar dos factos um relato mais abrangente, o fez propositadamente por forma a falsear a verdade dos factos, não estaremos tão certos que o fez sob um mesmo domínio de perceção ou percetibilidade dos mesmos, sendo muitas vezes tentadora ou até natural, na postura voluntarista que atrás se faz referência, a criação de uma narrativa que interligue os pontos de visualização de evento, e apresente do mesmo uma sequência e lógica que se tome como a mais crível ou lógica.

Nesta medida, e suportando-se a convicção do julgador, em especial, nos pontos de confluência dos depoimentos supra, tem-se por demonstrada a factualidade ínsita em 12) a 18), 20) e 21), ao invés da matéria indicada em A) e B), cuja demonstração probatória não se revelará, em entendimento do Tribunal, e à luz da indicada prova e do juízo crítico que sobre a mesma se faz incidir, inequívoca.

*

Em plano transversal aos dois eventos acabados de analisar, e em reforço do que atrás se deixou dito, dirá o Tribunal não se ter explicitado um qualquer contexto externo à própria atuação do arguido, apto a condicionar esta última ou excluir a capacidade de conformação da mesma, isto na medida em que o arguido assume dos factos um relato presente e pormenorizado, que não se toma em tudo consentâneo com tal enquadramento de exclusão da capacidade de perceção ou de domínio de ação e vontade.

*

No respeitante à fixação das condições vivenciais do arguido, o Tribunal atendeu ao relatório social junto aos autos, sendo a matéria factual atinente à postura pelo mesmo observada em julgamento e perante as vítimas objetivada na análise própria do julgador – permitindo assim a demonstração probatória dos factos 24) a 41).

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Em matéria de antecedentes criminais, valorou-se o CRC junto aos autos (fls. 254 a 266) – demonstração probatória do facto 42).

III –- Apreciação do recurso

O objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação, artºs 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP.

As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).

Perante as conclusões do recurso a questão a decidir consiste em saber se foi incorrectamente julgado o facto C) da matéria não provada com o seguinte teor:” Que na situação ocorrida em 15 de Julho de 2020, tivesse o arguido atuado em plano apto a amedrontar MN fazendo-a recear por forma a, assim concretizar o intuito subtrativo explicitado em 19”.

O Ministério Público indica como provas que implicam decisão diversa deste facto os seguintes excertos das declarações da ofendida MN que transcreve: « eu estive sempre sozinha. Não estava ninguém na loja. Não estava cliente nenhum,» ; « Eu vi logo que ia acontecer alguma coisa porque ele estava muito nervoso (…); «(…) entretanto agarra numa caneta, tava sem tampa e veio direito a mim, “abre a caixa, abre a caixa, abre a caixa»; «Ele vinha com a caneta em punho (…) Sim, ele vinha com a caneta assim direito a mim… Ai não, ele ficou mesmo junto a mim»; « Logo quando agarrou a caneta disse isto é um assalto e veio logo junto ao balcão, abra a caixa, abra a caixa, abra a caixa. Sempre com o braço levantado». Questionada se na altura teve medo respondeu que “sim muito”.

Mais alega que, uma caneta pode ser considerada uma arma nos termos do artº 4ºdo DL nº 48/95, de 15-03 e que com a mesma pode originar uma ofensa à integridade física grave (por exemplo, caso acertasse com a ponta da mesma na veia jugular da ofendida); qualquer pessoa (especialmente uma que está sozinha no seu local de trabalho) confrontada com a expressão “isto é um assalto, abre a caixa” entende quais as consequências que advirão do não acatamento do exigido; que o comportamento global do arguido era apto a criar receio para a ofendida e tal estado de espírito tem nexo causal adequado com a apropriação dos bens; que mesmo sem a caneta o arguido é uma pessoa com uma maior desenvoltura física que a de M, pelo que, o facto de estar próximo desta, ao lado do balcão usado exclusivamente pelos funcionários, depois de ter dito que estava a decorrer um assalto é suficiente para criar receio na ofendida.

Conclui, assim, que é possível afirmar que a conduta do agente constrangeu a ofendida para que lhe fosse entregue coisa móvel, por meio de ameaça com perigo para a vida ou para a sua integridade física.

Cumpre decidir.

A questão que se coloca é se se pode concluir dos factos provados, se a ação do arguido de empunhar uma caneta na direção da ofendida e ao dizer-lhe: “isto é um assalto, abre a caixa” constituem uma ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física da ofendida.

Importa analisar a dinâmica dos factos provados relativos ao episódio ocorrido, no dia 15 de Julho de 2020, no estabelecimento designado “…” entre o arguido e a ofendida M para daí retirar as devidas ilações.

O arguido entrou no estabelecimento comercial referido e manifestou a intenção de comprar dois pares de calças e entregou-as à funcionária. Esta colocou-as num saco e iniciou o registo de transação para efetuar o pagamento.

Enquanto MN procedia ao ato de registo da transação, o arguido pegou numa caneta que estava em cima do balcão do estabelecimento, dirigiu-se ao espaço reservado aos funcionários, empunhando a caneta na sua direção e disse: “Isto é um assalto, abre a caixa”.

A ofendida comunicou-lhe que só podia abrir a caixa quando o registo estivesse completo e para isso, precisava introduzir um número fiscal de contribuinte. Nessa sequência, o arguido retirou da sua carteira um documento e começou a introduzir dados na caixa registadora. Aproveitando a distração do arguido, MN fugiu da loja e começou a gritar por socorro. O arguido surpreendido pela conduta da M pegou no saco das calças e fugiu da loja.

A conduta do arguido tem de ser analisada na sua globalidade. O facto de ter empunhado a caneta (arma), que se encontrava em cima do balcão e ter proferido a expressão: “Isto é um assalto, abre a caixa” não pode ser analisado só por si e daí concluir sem mais que teve em vista ameaçar a integridade física da vítima ou até lhe poderia originar uma ofensa à integridade física grave (por exemplo, caso acertasse com a ponta da mesma na veia jugular desta).

O arguido ao entrar no estabelecimento para se apropriar de bens não estava munido de qualquer objeto, limitou-se a pegar, a empunhar a caneta que se encontrava em cima do balcão do estabelecimento, na direção de MN e a proferir a expressão em causa, desprovida de qualquer mal que lhe pudesse acontecer, quando esta estava na caixa a efetuar o registo da transação.

O arguido não dirigiu ativamente a caneta ao corpo da vítima, não arremessou, não encostou, nem se aproximou a menos de meio metro da mesma.

Ao ser dito ao arguido que para abrir a caixa teria que digitar o nº de contribuinte na mesma, largou a caneta, abriu a sua carteira, retirou o seu cartão e passou ele próprio a digitar o nº de contribuinte na máquina junto da qual se encontrava MN.

Esta perante uma distração do arguido fugiu do local e como o arguido com a sua conduta de digitar o nº de contribuinte não teve sucesso, decidiu fugir, levando consigo o saco com os dois pares de calças.

Portanto, o arguido ao apoderar-se da caneta que estava em cima do balcão, ao empunhá-la, isto é, ao exibi-la na direção da ofendida e ao proferir a expressão em causa não levou a cabo qualquer gesto suscetível de evidenciar risco iminente para a ofendida, não encostou a caneta ao corpo da vítima, nem se aproximou a menos de meio metro da mesma, nem verbalmente manifestou a intenção do seu uso ou a forma como o mesmo se concretizaria.

E ao ser informado da necessidade de apor na máquina registadora o nº de contribuinte para a abrir, de imediato largou a caneta abriu a sua carteira, retirou um documento e passou ele a introduzir os dados na máquina registadora, altura em que MN fugiu do estabelecimento, e como o arguido não obteve êxito com a sua conduta ao tentar abrir a caixa saiu do estabelecimento levando consigo as calças. O período de utilização da caneta é diminuto, uma vez que a largou, de imediato, ao receber aquela informação.

A dinâmica com que ocorreram os factos, apesar do natural receio demonstrado pela ofendida, não nos permite inferir que o arguido teve intenção de fazer uso da caneta no sentido de a agredir, ou que a ação levada a cabo por ele, seja idónea ou apta para qualquer gesto de intimidação ou ataque á mesma.

Assim, apesar da ofendida ter ficado com receio face á situação em que se viu envolvida, não se demonstrou objetivamente face ao desenrolar dos factos, que com o uso da caneta, tivesse o arguido atuado em plano apto a amedrontar MN fazendo-a recear pela sua integridade física, por forma a, assim, concretizar o intuito subtrativo dos bens existentes no interior da loja “…”.

Não assiste assim razão, ao recorrente ao alegar, que o comportamento global do arguido era apto a criar receio para a ofendida e tal estado de espírito tem nexo causal adequado com a apropriação dos bens, nem ao referir que a desenvoltura física do arguido é maior que a de M, facto que nem sequer consta da matéria provada, que não pode ser tido em consideração, e daí inferir que o facto de estar próximo desta depois de ter dito que estava a decorrer um assalto é suficiente para criar receio na ofendida.

Pelos motivos referidos não nos merece reparo o ter sido considerado como não provado o facto constante da alínea C) da matéria não provada.

Os factos ocorreram no dia 15 de Julho de 2020 e apesar de ter havido uma intenção ilegítima de apropriação de coisa alheia e a execução de tal intento através da subtração da mesma, não se provaram os meios previstos no artº 210º do C. Penal para levar a cabo a subtração que são: a) a violência contra uma pessoa; b) a ameaça com perigo iminente para a vida ou a integridade física ou; c) pondo essa pessoa na impossibilidade de resistir, pelo que os factos não integram aquele crime, mas o de furto previsto no artº 203º nº 1 do C.Penal.

Este crime é de natureza semi-pública e não foi apresentada queixa pela entidade competente.

Impõe-se, assim, manter o acórdão recorrido de absolvição do arguido , em relação ao evento ocorrido em 15-7-2020, no estabelecimento comercial “…” pelo crime de roubo previsto no artº 210º nº 1 do C. Penal e declarar a inadmissibilidade legal do procedimento relativamente à imputação, em autoria material e na forma consumada de um crime de furto simples, p. e p. no artº 203º nº 1 do C.Penal, por ausência de queixa por parte da entidade competente.

IV- Decisão

Termos em que se nega provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se o acórdão recorrido, quanto à absolvição do arguido pela prática de um crime de roubo quanto aos factos ocorridos no dia 15 de Julho de 2020 e declarar a inadmissibilidade legal do procedimento criminal em relação ao crime de furto p. e p. no artº 203º nº 1 do C.Penal, por ausência de queixa por parte da entidade competente.

Sem custas.

Notifique.

Évora, 12 de Outubro de 2021

(Texto elaborado e revisto pelo relator)

José Maria Martins Simão

Maria Onélia Vicente Neves Madaleno