Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1234/17.4T8STB.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - A eventual contradição entre um facto considerado provado e a fundamentação da decisão de facto não configura, por si só, causa de nulidade da sentença, constituindo fundamento de impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
II – A impugnação da decisão da matéria de facto improcede, se os factos que o recorrente pretende sejam considerados provados não se incluírem na globalidade da matéria de facto carecida de prova, assim não cabendo nos poderes de cognição do tribunal em matéria de facto;
III - Visando a indemnização reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, não tendo a autora sido indemnizada pela perda do veículo e não lhe tendo sido disponibilizado um veículo de substituição, subsiste o dano da privação do uso do veículo.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

BB - …, Lda. intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra Companhia de Seguros CC, S.A., pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 13 610,66, acrescida de juros de mora à taxa de 7%, desde a data da citação até integral pagamento.
A autora peticiona a indicada quantia a título de indemnização por danos sofridos em virtude de acidente de viação que descreve, ocorrido a 02-06-2016, ao km 26,4 da Autoestrada n.º 2, concelho de Palmela, no qual o veículo de matrícula …-GU-…, pertencente à autora, foi embatido por veículo seguro na ré, sustentando que o embate foi imputável ao condutor desta viatura, como tudo melhor consta da petição inicial.
A ré contestou, aceitando a transferência da responsabilidade civil em causa e impugnando factualidade relativa às circunstâncias em que ocorreu o embate e aos danos sofridos pela autora, como tudo melhor consta do articulado apresentado.
Dispensada a audiência prévia, foi fixado o valor da causa e proferido despacho saneador, após o que se identificou o objeto do litígio e se dispensou a enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença, na qual se decidiu o seguinte:
a) Condenar a R. COMPANHIA DE SEGUROS CC, S.A. a pagar à A. BB - …, LDA. as seguintes quantias:
a. € 4934,50 (quatro mil novecentos e trinta e quatro euros e cinquenta cêntimos), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal civil desde a citação até integral pagamento;
b. € 1500,00 (mil e quinhentos euros) pela privação do uso, acrescida de juros de mora à taxa legal civil desde a citação até integral pagamento.
b) Absolver a R. COMPANHIA DE SEGUROS CC, S.A. do demais peticionado pela A. BB - …, LDA.
Custas pelos A. e R., S.A. na proporção do respectivo decaimento.
Inconformada, a autora interpôs recurso desta decisão, invocando a respetiva nulidade e pugnando pela revogação parcial da mesma, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1 - Consubstancia fundamento para a decisão de facto da douta sentença, constante na parte fundamentadora da matéria de facto, na pág. 8, 3º parágrafo, que a viatura da Recorrente tinha as luzes de presença traseiras acesas e na dianteira tinha os médios acesos.
2 - Mas é dado por provado no ponto 22 que a viatura da Recorrente “não dispunha de luz avisadora de perigo”, o que faz incorrer a Douta Sentença em nulidade por contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
3 - A Douta Sentença está assim ferida de nulidade, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.
4 - Em segundo lugar haverá que alterar a redação do ponto 22 da matéria dada por provada.
5 - Ficou provado em audiência de discussão e julgamento que o veículo da Recorrente tinha as luzes de presença traseiras acesas e na dianteira tinha os médios acesos, o que resultou quer do depoimento de Arselino … - minutos 3:58 a 6:45 ( ao dizer que as luzes do veículo da Recorrente da frente e as da traseiras de presença estavam ligadas) e 7:29 a 7:59 (a explicar que, estando as luzes e ligadas as chaves haviam ficado na ignição) do CD do seu depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento do dia 12-06-2017, conforme Ata da Audiência, e das fotos dos autos de fls 19 e 20.
6 - Deveria, pois, ter sido inscrito nos factos dados por provados que o veículo GU tinha a luz de presença traseiras acesas e que na dianteira tinha os médios acesos.
7 - Assim, haverá que alterar a redação do ponto 22 da matéria dada por provada, passando a ter a seguinte redação: Ponto 22: O veículo com matrícula …-GU-… tinha a luz de presença traseiras acesas e na dianteira tinha os médios acesos, e não existia colocada na via qualquer sinalização de perigo, nomeadamente o triângulo de pré-sinalização.
8 - O veículo do ora Recorrente foi embatido pelo veículo seguro na recorrida na Auto-estrada, conduzido pelo condutor do veículo …-QR-…, que, “ao aperceber-se dos veículos imobilizados, guinou o veículo para a faixa central e tentou passar com ele pelo meio dos dois veículos parados, um na sua faixa de rodagem e outro na faixa da esquerda, junto ao separador central”. (cfr ponto 22 dos factos dados por provados), deslocando.se em excesso de velocidade (mais de 120 km à hora), tendo o veículo da Recorrente as luzes médias ligadas e as luzes traseiras acesas; o condutor visualizou o veículo da recorrente, e “não logrou evitar embater, com a frente do lado direito em um deles, o referido veículo de matrícula …-GU-…, que estava imobilizado, em posição oblíqua, na faixa de rodagem por onde circulava o …-QR-… e com a porta aberta do lado do condutor”. (cfr ponto 23 dos factos dados por provados), tudo após o embate traseiro ocorrido no veiculo da recorrente, tendo feito pião (cfr ponto 2 dos factos dados por provados), tendo ficado por momentos a sua condutora sem reacção, atordoada (cfr ponto 3 dos factos dados por provados) e, “quando a condutora do veículo da” Recorrente “retomou a plena consciência viu dirigir-se, contra ela, o veículo seguro na” Recorrida, a velocidade superior a 120 km/h (cfr ponto 4 dos factos dados por provados), que só teve tempo de sair de dentro da viatura e fugir para a berma e, de imediato, a viatura segura na R. embateu na dianteira do veículo que conduzia.”(Cfr. ponto 5 dos factos dados por provados 5); “O condutor da viatura segura na R. não travou, optando por tentar passar no meio das duas viaturas que se encontravam paradas na faixa de rodagem.” (cfr ponto 6 dos factos dados por provados); e devido a tal embate da viatura segura na Recorrida na viatura da Recorrente, esta viatura “ficou com a frente do veículo toda danificada” (cfr ponto 9 dos factos dados por provados); ficando o local do acidente numa reta, em frente à fábrica Auto-Europa na A2, no sentido Coina-Setúbal e, na data e hora do acidente de viação, estava bom tempo. (cfr pontos 7 e 8 dos factos dados por provados na Douta Sentença Recorrida).
9 - A condutora do veículo da Recorrente em nada contribuiu para o embate do veículo seguro na Recorrida.
10 - O embate de que a viatura da Recorrente foi objeto ocorreu imediatamente após a condutora ter recobrado a total consciência, só tendo tido tempo de fugir da viatura, que deixou com a chave na ignição e os médios ligados, o que cumpria com os requisitos impostos de sinalização do artigo 63º, n.º 4 do CE.
11 - Não ocorre aqui qualquer violação das regras estradais de sinalização em caso de perigo, pois, tendo a condutora acabado de sofrer o primeiro embate e só tendo retomado a consciência imediatamente antes de ver o veículo seguro na recorrida vir “direito” a ela, em excesso de velocidade, aquela só se lembrou de fugir da viatura, tendo até deixado a porta do seu lado aberta e a chave na ignição.
12 - Estava, pois, em primeiro lugar, a vida ou integridade física da condutora do veículo da Recorrente, sendo até impossível que a condutora colocasse o triângulo ou se lembrasse de ligar os “4 piscas”.
13 - O artigo 63º, n.º 4 do CE, em termos de sinalização de um veículo que apresente perigo para outrem, considera assegurada tal situação com a utilização das luzes de presença, quando não seja possível a utilização das luzes avisadoras de perigo (os 4 piscas), o que era o caso dos autos, já que o veículo da Recorrente tinha as luzes ligadas, os médios.
14 - Não ocorre aqui qualquer responsabilidade da condutora do veículo da Recorrente nem da Recorrente em concurso com a do condutor do veículo seguro na recorrida, pelo que mal andou o Tribunal a quo em ter decidido pela divisão das responsabilidades em 50% e a subsunção ao regime da responsabilidade pelo risco.
15 - Ocorreu a violação por parte do condutor da viatura segura na Recorrida das regras estradais contidas nos arts. 24.º n.º 1 e 27.º n.º 1 do Código da Estrada.
16 - Estamos aqui perante um caso de responsabilidade que deverá ser analisado à luz da culpa, com culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na Recorrida, o que implica um juízo de culpa do veículo seguro na Recorrida na produção do acidente, nos termos gerais da responsabilidade civil por facto ilícito consagrada no art. 483.º do Código Civil, e consequente responsabilização deste pela reparação dos danos ocorridos. (Ac TRE – 20-10-2016)
17 - Deveria ainda ter sido dado por provado que a Recorrente liquidou a quantia de 1.247,22€ pelo aluguer de viatura de substituição, conforme resulta provado pela fatura junta aos autos, do valor peticionado, e emitida por uma empresa de alugueres de veículo à Recorrente.
18 - E tal alteração da prova tem como fundamento a fatura junta aos autos, comprovativa do pagamento da quantia peticionada pela Recorrente em virtude do aluguer de viatura de substituição do veículo acidente.
19 - Tal documento não foi impugnado pela ora Recorrida, pelo que faz prova documental do facto que pretende provar.
20 - Assim, deverá ser aditado um ponto à matéria dada provada, o ponto 26 com o seguinte teor:
“A A. despendeu em aluguer de viatura para a sua substituição entre 06-06-2016 e 15-07-2016 o valor de 1.247,22€”.»
A ré apresentou contra-alegações e interpôs recurso subordinado, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1 – Entende a R. que não deverá ser atribuída qualquer quantia a título de privação de uso, atenta a perda total do GU, do conhecimento e aceite pela A., em 6.6.16 – cfr. facto provado 10; se nada há a reparar, se o veículo não vai ser usado, não tem cabimento indemnizar a A. pela privação de um uso que não ocorrerá! Mais se dirá que não foi efectuada qualquer prova da repercussão em termos negativos na situação patrimonial da A. da alegada privação de uso, mais um fundamento para não ser atribuída qualquer quantia a esse título (assim, foi violado o disposto no art. 342º, nº 1 CC).
2 – A não se entender assim, dir-se-á, à cautela e sem conceder que, atenta a improcedência do custo do aluguer do veículo de substituição (€ 1.247,22), o valor total peticionado seria de € 2.494,44 (diferença entre os € 3.741,66 e € 1.247,22) e não € 3.000,00, conforme página 14 da sentença, que, aliás, não se socorre de critérios de equidade (foi violado o disposto no art. 566º, nº 3 CC), mas antes ao pedido do A., o que é contraditório;
No entanto, tanto o valor diário peticionado (razão diária de € 37,23), como o período considerado (16.7.16 a 21.9.16) são excessivos e infundados, o primeiro por exceder o alegado custo de aluguer do veículo de substituição (à razão diária de € 31,98), o qual nem deverá ser sequer considerado, quanto mais excedido, e, quanto ao período, não deveria ter ultrapassado o dia 11.7.16, data em que a A. teve conhecimento da não aceitação da responsabilidade pela R. – cfr. facto provado 15.»
A autora apresentou contra-alegações ao recurso subordinado.
Face às conclusões das alegações de ambas as recorrentes e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
- da nulidade da decisão recorrida;
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- dos pressupostos da responsabilidade extracontratual;
- da indemnização pela privação do uso de veículo.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto

2.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:
1. No dia 2 de Junho de 2016, pelas 22:30, na AE 2, ao Km 26,4, no concelho de Palmela, a viatura pertença da A., o Volkwagen Golf, de matrícula …-GU-…, deslocava-se na AE 2 no sentido Norte-Sul quando foi embatida na sua traseira pelo veículo de matrícula …-OM-…, conduzido por DD.
2. Em consequência do embate traseiro, a viatura da A. fez pião.
3. A condutora do veículo da A. ficou por momentos sem reacção, atordoada.
4. Quando a condutora do veículo da A. retomou a plena consciência viu dirigir-se, contra ela, o veículo seguro na R., a velocidade superior a 120 km/h.
5. A condutora do veículo da A. só teve tempo de sair de dentro da viatura e fugir para a berma e, de imediato, a viatura segura na R. embateu na dianteira do veículo que conduzia.
6. O condutor da viatura segura na R. não travou, optando por tentar passar no meio das duas viaturas que se encontravam paradas na faixa de rodagem.
7. O local do acidente fica na recta em frente à fábrica Auto-Europa, no sentido Coina-Setúbal.
8. Na data e hora do acidente de viação estava bom tempo.
9. A viatura da A. ficou com a frente do veículo toda danificada.
10. Em 06 de Junho de 2016 foi efectuado pela Companhia de Seguros EE (seguradora do veículo que embateu na traseira do veículo da A.) o relatório da perda total do veículo devido aos danos causados pelos veículos que embateram no automóvel da A..
11. Como consequência do embate frontal na viatura da A., resultou a perda total da mesma.
12. Os danos do veículo da A. situavam-se na parte frontal e na parte traseira, sendo que os danos da parte fontal importavam em 10.428,77 € e os da parte traseira eram de 2.702,93 €.
13. O valor comercial do veículo GU é de € 12 500,00.
14. A companhia de seguros que segurava o veículo que embateu na traseira do veículo da A. assumiu a responsabilidade pelos danos traseiros da viatura já indemnizou a A..
15. A R. não aceitou a sua responsabilidade no acidente, tendo-a declinado, conforme carta remetida em 11 de Julho de 2016.
16. O automóvel pertença da A. foi para abate e vendido o salvado, em 21.09.2016, pelo valor de 2.631,00€.
17. O veículo seguro pela R. não travou porque não o pretendeu fazer, optando por tentar passar por entre o veículo da A. e outro veículo.
18. A viatura em questão estava afecta às arquitectas paisagísticas da A., que a usavam para se deslocar a clientes e obras, por todo o país.
19. A viatura era necessária para os funcionários da A. se deslocarem a obras e clientes.
20. O veículo automóvel de matrícula …-QR-… estava seguro na Ré mediante contrato que garantia a responsabilidade civil por danos causados a terceiros decorrente da respectiva circulação titulado pela apólice nº 203526040.
21. O condutor do veículo QR, de sua propriedade, seguia pela AE 2, no sentido Norte-Sul e pela faixa de rodagem da direita.
22. O veículo com matrícula …-…-…, não dispunha de luz avisadora de perigo, e não existia colocada na via qualquer sinalização de perigo, nomeadamente o triângulo de pré-sinalização.
23. Era de noite e o local não dispunha de iluminação pública.
24. O condutor do veículo …-QR-…, ao aperceber-se dos veículos imobilizados, guinou o veículo para a faixa central e tentou passar com ele pelo meio dos dois veículos parados, um na sua faixa de rodagem e outro na faixa da esquerda, junto ao separador central.
25. Todavia, não logrou evitar embater, com a frente do lado direito em um deles, o referido veículo de matrícula …-GU-…, que estava imobilizado, em posição oblíqua, na faixa de rodagem por onde circulava o …-QR-… e com a porta aberta do lado do condutor.

2.1.2. Factos considerados não provados em 1.ª instância:
a) Em virtude do embate traseiro a viatura GU ficou virada com a frente da viatura para o sentido Norte (Lisboa).
b) A A. despendeu 1.247,22€ num mês com o aluguer de uma viatura.
c) O condutor do veículo QR conduzia com atenção ao trânsito e a uma velocidade próxima dos 90 km/h.
d) O veículo GU não tinha luz de presença.
e) O condutor do veículo QR travou.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Nulidade da decisão recorrida
Na apelação interposta, a recorrente arguiu a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, com fundamento na contradição, que afirma existir, entre o facto constante do ponto 22 da matéria provada e a fundamentação da decisão de facto.
Baseia a recorrente a invocada causa de nulidade, em síntese, na existência de contradição insanável entre o facto constante do ponto 22 da matéria de facto provada – O veículo com matrícula …-GU-…, não dispunha de luz avisadora de perigo, e não existia colocada na via qualquer sinalização de perigo, nomeadamente o triângulo de pré-sinalização – e a fundamentação da decisão de facto, da qual entende resultar que a viatura em causa tinha as luzes de presença traseiras acesas e na dianteira tinha os médios acesos.
A causa de nulidade invocada pelo recorrente, prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC, verifica-se quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, o que ocorre quando aqueles, seguindo um raciocínio lógico, devam conduzir a resultado decisório diverso.
Conforme explica José Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 333), “(…) se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica, ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade (…)”.
Eventuais vícios da decisão sobre a matéria de facto não configuram, sem mais, a invocada causa de nulidade, desde logo porque, conforme explicam José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 734), “a invocação de vários dos vícios que a esta dizem respeito é feita nos termos do art. 640 e porque a consequência desses vícios não é necessariamente a anulação do ato (cf. os n.ºs 2 e 3 do art. 662)”.
A previsão do preceito em análise não se encontra preenchida com a situação invocada pela recorrente, relativa a uma suposta contradição entre um facto considerado provado e a fundamentação da decisão de facto, a qual constitui fundamento de impugnação da decisão de facto, não sendo causa de nulidade da sentença.
Em conclusão, não enferma a sentença recorrida da causa de nulidade arguida pelo recorrente.

2.2.2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A recorrente põe em causa a decisão sobre a matéria de facto incluída na sentença recorrida, sustentando que deve ser alterada a redação do ponto 22 da factualidade provada e aditado um ponto à matéria de facto assente.
Sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, dispõe o artigo 662.º do Código de Processo Civil, no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Esta reapreciação da decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto deve, de forma a assegurar o duplo grau de jurisdição, ter a mesma amplitude que o julgamento efetuado na 1.ª instância, o que importa a apreciação da prova produzida, com vista a permitir à Relação formar a sua própria convicção.
Está em causa, no caso presente, a reapreciação da decisão proferida pela 1.ª instância, relativa determinados pontos da matéria de facto, com vista a apurar se, face à prova produzida, o concreto facto indicado pela recorrente deve ser alterado, bem como se determinado facto deve ser acrescentado à matéria provada.
Quanto ao ponto 22 da factualidade provada – O veículo com matrícula …-GU-…, não dispunha de luz avisadora de perigo, e não existia colocada na via qualquer sinalização de perigo, nomeadamente o triângulo de pré-sinalização –, sustenta a recorrente que deverá passar a ter a redação que se transcreve: «O veículo com matrícula …-GU-… tinha a luz de presença traseiras acesas e na dianteira tinha os médios acesos, e não existia colocada na via qualquer sinalização de perigo, nomeadamente o triângulo de pré-sinalização».
Com relevo para a apreciação da impugnação da decisão de facto, na parte em análise, há que ter em conta que a decisão recorrida considerou não provado o facto seguinte: d) O veículo GU não tinha luz de presença.
A recorrente fundamenta a indicada pretensão no depoimento prestado pela testemunha Arselino …, conjugado com as fotos juntas aos autos a fls. 19-20.
No entanto, previamente à pretendida reapreciação da prova produzida, há que verificar se o facto em causa se inclui na globalidade da matéria de facto carecida de prova, isto é, se cabe nos poderes de cognição do tribunal em matéria de facto.
O artigo 5.º do Código de Processo Civil, com a epígrafe Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal, dispõe, no n.º 1, o seguinte: Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. O n.º 2 do preceito acrescenta: Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Analisando a petição inicial verifica-se que a autora não alegou a matéria que pretende se acrescente ao ponto 22 da factualidade provada, relativa à invocada circunstância de ter o veículo as luzes de presença traseiras acesas e os médios acesos na dianteira, facto que igualmente não foi alegado pela parte contrária.
Como tal, não se tratando de um facto alegado pelas partes nos seus articulados, nem se vislumbrando que se trate (o que não foi sequer invocado pela recorrente) de um facto instrumental, de um facto complementar ou concretizador dos que as partes hajam alegado ou de um facto notório, cumpre concluir, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, do CPC, que não se trata de um facto a considerar pelo juiz, assim não integrando a matéria de facto carecida de prova.
Nesta conformidade, não se tratando de um facto a considerar pelo juiz, não há que proceder à pretendida reapreciação da prova produzida, no que respeita à alteração do ponto 22 da matéria de facto provada, dado que o elemento que a recorrente pretende seja acrescentado não integra a matéria de facto carecida de prova.
Improcede, nesta parte, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Pretende, ainda, a autora se acrescenta à matéria de facto provada um ponto com a redação que se transcreve: «A A. despendeu em aluguer de viatura para a sua substituição entre 06-06-2016 e 15-07-2016 o valor de 1.247,22€».
Com relevo para a apreciação desta questão, há que ter em conta que a decisão recorrida considerou não provado o facto seguinte: b) A A. despendeu 1.247,22€ num mês com o aluguer de uma viatura.
A recorrente baseia a indicada pretensão no teor da fatura que juntou aos autos com a petição inicial, como documento n.º 11, sustentando que a mesma não foi impugnada pela parte contrária e que comprova o pagamento em causa.
Extrai-se da sentença recorrida que a decisão da matéria de facto, na parte ora em causa, se baseou no seguinte:
“Os factos provados sob os números 9 a 15 assentaram nos depoimentos de Miguel … e Vítor …, à data dos factos trabalhadores na Setseguros, agência de seguros onde a A. tinha o seu veículo segurado, e que tiveram contacto com o processo de regularização deste sinistro. Estas testemunhas, apesar de se mostrarem indignados com a posição assumida pela R., na fase extra-judicial, de declinar pro completo a sua responsabilidade, depuseram de forma clara e escorreita. Esclareceram todo o processo de regularização do sinistro, tendo explicado que a EE, seguradora do veículo OM, efectuou peritagem ao veículo GU e concluiu pela perda total do veículo GU, devido aos danos que este veículo apresentava na dianteira, cujo valor de reparação seria quase idêntico ao valor do veículo, o que se mostra em harmonia com os documentos de fls. 21 a 23 e 24 a 32, não tendo sido produzida qualquer prova em contrário.
O depoimento destas duas testemunhas foi crucial para dar como não provado o facto sob a al. b), porquanto estas testemunhas foram peremptórias e esclarecedoras ao afirmar que não foi a A. que suportou os custos derivados do aluguer de veículo de substituição à Sadorent, mas sim a EE, que procedeu ao pagamento desta quantia.”
Considerando que o facto em causa foi alegado na petição inicial (cf. artigo 22.º), vejamos se foi indevidamente considerado não provado.
Analisando o documento invocado pela recorrente, junto aos autos a fls. 34, verifica-se que configura uma fatura-recibo no montante de € 1247,22, datada de 29-07-2016 e com vencimento na mesma data, emitida na titularidade da autora pela firma Sado Rent – Automóveis de Aluguer Sem Condutor, S.A., relativa ao aluguer da viatura Fiat Punto com a matrícula …-PS-…, no período de 06-06-2016 a 15-07-2016.
Tratando-se de uma fatura-recibo, o aludido documento atesta a prestação dos serviços nele descritos e o respetivo pagamento. Assim, decorre do documento que os serviços de aluguer de veículo em causa foram prestados pela firma Sado Rent à autora e que os mesmos lhe foram pagos por esta. Não resultando dos autos qualquer indicação relativa à subsequente anulação daquela fatura recibo, há que considerar que o pagamento do montante titulado pela mesma foi efetuado pela autora, não assumindo a prova testemunhal mencionada no excerto supra transcrito da decisão recorrida, desapoiada de qualquer outro meio de prova, força probatória suficiente para pôr em causa o teor da fatura-recibo junta aos autos pela autora.
Procede, assim, nesta parte, a impugnação da decisão de facto, pelo que cumpre retirar da factualidade não provada o facto constante da alínea b) e acrescentar à matéria provada o facto indicado pela recorrente.
Em suma, procede parcialmente a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, em consequência do que se determina o seguinte:
i) se retire da factualidade não provada o facto constante da alínea b);
ii) se acrescente à matéria provada um facto com o n.º 26 e a redação seguinte:
A autora despendeu em aluguer de viatura, para a substituição do veículo GU, entre 06-06-2016 e 15-07-2016, o valor de € 1247,22.

2.2.3. Pressupostos da responsabilidade extracontratual
Está em causa, no presente recurso, a responsabilidade civil emergente de embate ocorrido a 02-06-2016, ao km 26,4 da Autoestrada n.º 2, entre o veículo de matrícula …-GU-…, pertencente à autora, e o veículo de matrícula …-QR-…, relativamente ao qual se encontrava transferida para a ré, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 203526040, a responsabilidade emergente de danos causados a terceiros.
Considerou a decisão recorrida que existiu concorrência de culpas entre a atuação da condutora do veículo GU – ao deixar o veículo imobilizado na faixa de rodagem da autoestrada sem ligar as luzes avisadoras de perigo, em violação do disposto nos artigos 60.º, n.º 2, al. c), e 63.º, n.ºs 1 e 3, al. a), do Código da Estrada – e a atuação do condutor do veículo QR – ao conduzir desatento, a velocidade superior a 120 km/h, em violação do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, daquele Código, pelo que, não se apercebendo da presença daquele veículo imobilizado na estrada, sem sinalização de perigo, não travou e veio a embater-lhe ao tentar passar –, tendo sido fixada em 50% a medida da contribuição de cada um para o embate ocorrido.
Nas alegações da apelação, afirma a autora que “mal andou o Tribunal a quo a socorrer-se do regime da responsabilidade pelo risco e atribuir a responsabilidade de 50% para cada condutor na produção do acidente de viação”, acrescentando que deve ser imputada ao condutor do veículo segurado na ré a culpa exclusiva na produção do embate.
Porém, não assiste razão à autora ao afirmar que a 1.ª instância enquadrou o caso presente no regime da responsabilidade pelo risco, quando decorre claramente da fundamentação constante da sentença que a decisão proferida se baseou na responsabilidade por factos ilícitos, nos termos do princípio plasmado no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, tendo-se analisado a conduta de cada um dos intervenientes e determinado a medida da respetiva contribuição, concluindo-se que ambos concorreram culposamente, e em igual medida, para a verificação do embate.
Alega a recorrente que a condutora do veículo da autora em nada contribuiu para a produção do embate, pelo que entende dever ser imputada ao condutor do veículo segurado na ré a culpa exclusiva na eclosão do evento lesivo. Porém, fundamenta tal alegação em factualidade que não se encontra provada, ao afirmar que o veículo de matrícula …-GU-… tinha as luzes de presença traseiras acesas e na dianteira tinha os médios acesos, ponto relativamente ao qual improcedeu a impugnação da decisão de facto, conforme decorre de 2.2.2., o que importa a improcedência da solução que defende para o litígio.
Assim, cumpre manter a decisão recorrida, na parte em que se considerou que os condutores dos veículos GU e QR contribuíram culposamente, em igual medida, para a produção do embate, improcedendo, nesta parte, a apelação deduzida pela autora.

2.2.4. Indemnização pela privação do uso de veículo
Não vem suscitada na apelação deduzida pela autora, seja no corpo das alegações ou nas respetivas conclusões, qualquer questão relativa à quantificação da indemnização arbitrada pela decisão recorrida, não sendo retirada qualquer consequência jurídica da eventual procedência da impugnação da decisão de facto, no que respeita ao facto cujo aditamento à matéria provada se determinou em 2.2.2., pelo que nada há a apreciar, a este título.
No recurso subordinado, a ré, não questionando a atribuição à autora, pelo Tribunal de 1.ª instância, de uma indemnização no montante de € 4934,50 pela perda total do veículo GU, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, põe em causa o montante concedido pela privação do uso da aludida viatura, sustentando que não é devida qualquer quantia a este título ou, subsidiariamente, que deverá a indemnização arbitrada ser objeto de redução.
No que respeita à indemnização pela privação do uso do veículo, extrai-se da decisão recorrida, além do mais, o seguinte:
In casu, provou-se que a A. era a proprietária do veículo GU, e que utilizava aquela viatura no desempenho da sua actividade comercial, tendo ficado privada de a poder utilizar, nessas mesmas funções, desde a data do acidente, pois houve perda total do veículo. Não ficou provado que a A. tivesse despendido 1.247,22€ num mês com o aluguer de uma viatura, visto que este montante terá sido pago pela seguradora do veículo OM. Daqui resulta que a privação do uso da viatura GU acarretou para a A. um prejuízo patrimonial, o qual é indemnizável, uma vez que a A. ficou impedida de usar e fruir as utilidades que normalmente este veículo lhe proporcionava no seu dia-a-dia.
Ora, a A. ao ver-se privada do uso do veículo automóvel GU sofreu prejuízos na sua actividade comercial, desde o dia do acidente até 21.09.2016, cerca de três meses e meio, sendo certo que, de acordo com o que resultou da prova, entre 06.06.2016 e 15.07.2016, a A. circulou em veículo alugado pela seguradora do veículo OM.
Perfilhamos, como já referimos, a tese acompanhada pelo Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes, pois a utilização dos bens faz parte dos interesses patrimoniais inerentes ao próprio bem e que a simples possibilidade de utilização ou de não utilização constitui uma vantagem patrimonial que, uma vez afectada, deve ser ressarcida. A fixação desta indemnização é pautada por critérios de equidade, pelo que tendo em atenção que a A. utilizava aquela viatura para fazer deslocar as trabalhadoras do departamento técnico para os locais onde tinham obras e clientes, desde Lisboa à Comporta, em face do período de cerca de três meses e meio e bem assim, a circunstância de ter usufruído de um veículo pago pela seguradora do veículo OM, considera o Tribunal justo e razoável a fixação de uma indemnização no montante peticionado, isto é no montante de € 3000,00. Todavia, uma vez que a R. apenas é responsável por metade dos danos que a A. sofreu, conforme supra melhor explanado, a indemnização devida a título de privação do uso é no montante de € 1500,00 (mil quinhentos euros).
Sustenta a ré recorrente que não deveria ter sido atribuída qualquer indemnização a este título, por estar em causa uma situação de perda total do veículo, a qual foi do conhecimento da autora a 06-06-2016; acrescenta que a simples privação do uso do veículo, desacompanhada da demonstração de outros danos, não é suscetível de fundar a obrigação de indemnizar; subsidiariamente, afirma que o valor arbitrado a este título se mostra excessivo, pelos motivos que expõe.
Vejamos se lhe assiste razão.
Provou-se que, em consequência do embate da viatura segura na ré na dianteira do veículo da autora, este ficou com a parte da frente toda danificada, do que resultou a perda total do veículo; acresce que a ré não assumiu a responsabilidade pelo acidente, o que comunicou à autora por via postal remetida a 11-07-2016.
Tendo o veículo sido considerado em situação de perda total, o que não vem questionado na presente apelação, não há lugar à reconstituição natural, devendo a indemnização ser fixada em dinheiro, conforme dispõe o artigo 566.º, n.º 1, do Código Civil.
Decorre da indicada factualidade que a ré não reparou os danos causados pelo embate, não tendo indemnizado a autora ou colocado à disposição desta a indemnização devida, relativa à medida da responsabilidade que lhe cabe na perda total do veículo, igualmente lhe não tendo disponibilizado um veículo de substituição até ser processado tal pagamento.
Visando a indemnização reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, conforme princípio geral estatuído no artigo 562.º do Código Civil e que preside à obrigação de indemnizar danos patrimoniais, verifica-se que, não tendo a autora sido indemnizada pela perda do veículo e não lhe tendo sido disponibilizado um veículo de substituição, subsiste o dano da privação do uso do veículo.
Conforme se entendeu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-2010 (relator: Moreira Alves), proferido na revista n.º 70/06.8TBCVL.C1.S1 - 1.ª Secção (cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt), a privação mantém-se enquanto o responsável não reparar o veículo ou não indemnizar, em equivalente, no caso de perda total, o lesado, obrigação jurídica que lhe compete exclusivamente; só com a reparação ou a indemnização cessa o dano e, por isso, só nessa altura pode deixar de falar-se na privação do uso. Neste sentido, cf., entre outros, os seguintes acórdãos do STJ: o acórdão de 21-04-2005 (relator: Lucas Coelho), proferido na revista n.º 2246/03 - 2.ª Secção (publicado em www.dgsi.pt); o acórdão de 20-09-2005 (relator: Ribeiro de Almeida), proferido na revista n.º 1992/05 - 6.ª Secção (cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt); o acórdão de 10-07-2007 (relator: Oliveira Vasconcelos), proferido na revista n.º 2102/07 - 2.ª Secção (cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt); o acórdão de 07-02-2008 (relator: Sousa Leite), proferido na revista n.º 4505/07 - 6.ª Secção (cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt).
No caso presente, não tendo a ré ressarcido a autora pela perda total do veículo, a privação mantém-se, pelo que subsiste o dano da privação do uso do veículo.
Defende ainda a ré, no recurso subordinado, que a simples privação do uso do veículo, desacompanhada da demonstração de outros danos, não é suscetível de fundar a obrigação de indemnizar.
No entanto, extrai-se da matéria de facto provada que o veículo GU era necessário para os funcionários da autora se deslocarem a obras e clientes, bem como que o mesmo se encontrava atribuído às arquitetas paisagísticas da autora, que o usavam para se deslocar a clientes e obras, por todo o país.
Decorre destes elementos factuais que a privação do uso do veículo GU causou concretos danos à autora, encontrando-se provada a existência de prejuízos diretamente decorrentes da não utilização do bem, pelo que se mostra dispensável tomar posição quanto à questão, controvertida na jurisprudência, de saber se a indemnização pela privação do uso de certo bem dependerá da prova do dano concreto ou se a simples privação do uso constitui, só por si, um dano indemnizável[1].
Tendo a autora ficado impedida de exercer os poderes correspondentes ao seu direito de propriedade sobre a viatura, designadamente de a disponibilizar aos seus funcionários para as deslocações a obras e clientes, assiste-lhe o direito a ser indemnizada pela privação do uso do veículo.
No que respeita ao montante arbitrado à autora a este título, a ré manifesta a sua discordância relativamente ao período temporal tido em conta na decisão recorrida, de 16-07-2016 a 21-09-2016, sustentando não dever ser considerado o período posterior a 11-07-2016, data em que a autora teve conhecimento da não aceitação pela ré da responsabilidade pelo acidente.
No entanto, conforme decorre da análise supra efetuada, o dano da privação do uso do veículo subsiste enquanto a ré não ressarcir a autora pela perda total da viatura, mediante o pagamento do equivalente em dinheiro, na proporção da responsabilidade de lhe cabe. Como tal, carece de fundamento legal a pretensão, que deduz, de se não contabilizar o período posterior à comunicação que dirigiu à autora no sentido da não assunção da responsabilidade pelo acidente.
Sustenta a ré, ainda, que o montante arbitrado se mostra excessivo, não precisando, no entanto, o concreto montante que entende adequado, pelo que se não procederá à reapreciação da quantificação da quantia fixada a este título.
Improcedem, assim, ambos os recursos.

Em conclusão:
I - A eventual contradição entre um facto considerado provado e a fundamentação da decisão de facto não configura, por si só, causa de nulidade da sentença, constituindo fundamento de impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
II – A impugnação da decisão da matéria de facto improcede, se os factos que o recorrente pretende sejam considerados provados não se incluírem na globalidade da matéria de facto carecida de prova, assim não cabendo nos poderes de cognição do tribunal em matéria de facto;
III - Visando a indemnização reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, não tendo a autora sido indemnizada pela perda do veículo e não lhe tendo sido disponibilizado um veículo de substituição, subsiste o dano da privação do uso do veículo.

3. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar improcedentes ambas as apelações e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Notifique.

Évora, 22-03-2018
Ana Margarida Leite
Bernardo Domingos
Silva Rato)



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[1] A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem divergido sobre a questão da indemnização pela privação do uso, podendo detetar-se as duas indicadas correntes.
No sentido de que a mera privação do uso de um veículo gera obrigação de indemnizar, independentemente de alegação e prova de dano concreto que seja consequência dessa privação, podem indicar-se, por exemplo: os acórdãos de 05-03-2002 – Revista n.º 3968/01 - 1.ª Secção, 09-05-2002 – Revista n.º 935/02 - 1.ª Secção, 23-09-2004 – Revista n.º 2093/04 - 2.ª Secção, 21-04-2005 – Revista n.º 2246/03 - 2.ª Secção, 20-09-2005 – Revista n.º 1992/05 - 6.ª Secção, 29-11-2005 – Revista n.º 3122/05 - 7.ª Secção, 10-10-2006 – Revista n.º 2503/06 - 6.ª Secção, 19-12-2006 – Revista n.º 4077/05 - 7.ª Secção, 03-05-2007 – Revista n.º 966/07 - 7.ª Secção, 05-07-2007 – Revista n.º 1849/07 - 2.ª Secção, 10-07-2007 – Revista n.º 2102/07 - 2.ª Secção, 13-12-2007 – Revista n.º 3958/07 - 1.ª Secção, 15-01-2008 – Revista n.º 4436/07 - 6.ª Secção, 07-02-2008 – Revista n.º 4505/07 - 6.ª Secção, 17-04-2008 – Revista n.º 478/08 - 2.ª Secção, 06-05-2008 – Revista n.º 1279/08 - 1.ª Secção, 10-07-2008 – Revista n.º 958/08 - 7.ª Secção, 04-11-2008 – Revista n.º 3113/08 - 6.ª Secção, 12-02-2009 – Revista n.º 14/09 - 6.ª Secção, 31-03-2009 – Revista n.º 287/09 - 6.ª Secção, 16-06-2009 – Revista n.º 146/09.0YFLSB - 6.ª Secção, 08-10-2009 – Revista n.º 1362/06.1TBVCD.S1 - 2.ª Secção, 03-12-2009 – Revista n.º 1252/08.3TBFUN.L1.S1 - 7.ª Secção, 12-01-2010 – Revista n.º 314/06.6TBCSC.S1 - 1.ª Secção, 29-06-2010 – Revista n.º 1040/07.4TVPRT.S1 - 6.ª Secção, 03-02-2011 – Revista n.º 1705/05.5TBLLE.E1.S1 - 7.ª Secção, 05-05-2011 – Revista n.º 1292/04.1TBPTL.S1 - 2.ª Secção, 10-05-2011 – Revista n.º 1253/07.9TBVFR.P1.S1 - 6.ª Secção, 12-07-2011 – Revista n.º 319-A/2001.C1.S1 - 6.ª Secção, 27-09-2011 – Revista n.º 2365/04.6TCLRS.L1.S1 - 6.ª Secção, cujos sumários se encontram publicados em www.stj.pt.
No sentido de que a indemnização pela privação do uso de certo bem, designadamente de veículo automóvel, dependerá da prova do dano concreto, isto é, da prova da existência de prejuízos decorrentes diretamente da não utilização do bem, podem indicar-se, por exemplo: os acórdãos de 17-11-1998 – Revista n.º 977/98 - 1.ª Secção, 23-01-2001 – Revista n.º 3670/00 - 2.ª Secção, 04-12-2003 – Revista n.º 3030/03 - 7.ª Secção, 12-01-2006 – Revista n.º 4176/05 - 7.ª Secção, 19-12-2006 – Revista n.º 4157/06 - 6.ª Secção, 31-01-2007 – Revista n.º 4575/06 - 7.ª Secção, 17-04-2007 – Revista n.º 2122/06 - 2.ª Secção, 03-05-2007 – Revista n.º 1184/07 - 7.ª Secção, 26-06-2007 – Revista n.º 982/07 - 6.ª Secção, 05-07-2007 – Revista n.º 2138/07 - 1.ª Secção, 05-07-2007 – Revista n.º 2111/07 - 7.ª Secção, 04-10-2007 – Revista n.º 2457/07 - 2.ª Secção, 04-10-2007 – Revista n.º 3012/07 - 2.ª Secção, 04-10-2007 – Revista n.º 1961/07 - 7.ª Secção, 13-12-2007 – Revista n.º 3927/07 - 1.ª Secção, 18-12-2007 – Revista n.º 4058/07 - 6.ª Secção, 17-04-2008 – Revista n.º 273/08 - 1.ª Secção, 16-09-2008 – Revista n.º 2094/08 - 1.ª Secção, 30-10-2008 – Revista n.º 2662/08 - 2.ª Secção, 30-10-2008 – Revista n.º 2131/07 - 7.ª Secção, 06-11-2008 – Revista n.º 3402/08 - 7.ª Secção, 09-12-2008 – Revista n.º 3401/08 - 1.ª Secção, 13-01-2009 – Revista n.º 3575/08 - 1.ª Secção, 28-04-2009 – Revista n.º 789/04.8TBCTX.S1 - 1.ª Secção, 02-06-2009 – Revista n.º 1583/1999.S1 - 1.ª Secção, 10-09-2009 – Revista n.º 376/09.4YFLSB - 7.ª Secção, 27-10-2009 – Revista n.º 4769/06.0TBAVR.C1.S1 - 1.ª Secção, 19-11-2009 – Revista n.º 31/04.1TBLSD.S1 - 1.ª Secção, 09-03-2010 – Revista n.º 1247/07.4TJVNF.P1.S1 - 1.ª Secção, 16-03-2010 – Revista n.º 440/06.1TBACB.C1.S1 - 1.ª Secção, 21-04-2010 – Revista n.º 17/07.4TBCBR.C1.S1 - 1.ª Secção, 04-05-2010 – Revista n.º 5780/04.1TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, 04-05-2010 – Revista n.º 727/06.3TBBCL.G1.S1 - 1.ª Secção, 07-07-2010 – Revista n.º 2286/04.2TBOVR.P1.S1 - 7.ª Secção, 07-10-2010 – Revista n.º 3515/03.5TBALM.L1.S1 - 7.ª Secção, 19-10-2010 – Revista n.º 70/06.8TBCVL.C1.S1 - 1.ª Secção, 21-10-2010 – Revista n.º 4487/04.4TBSTB.E1.S1 - 2.ª Secção, 28-10-2010 – Revista n.º 87/06.2TBEPS.G1.S1 - 7.ª Secção, 28-10-2010 – Revista n.º 272/06.7TBMTR.P1.S1 - 7.ª Secção, 23-11-2010 – Revista n.º 2393/06.7TBSTS.P1.S1 - 1.ª Secção, 08-02-2011 – Revista n.º 5466/05.0TBSXL.L1.S1 - 6.ª Secção, 16-03-2011 – Revista n.º 3922/07.2TBVCT.G1.S1 - 1.ª Secção, 03-05-2011 – Revista n.º 2618/05.6TBOVR.P1.S1 - 6.ª Secção, cujos sumários se encontram publicados em www.stj.pt.