Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | SÍLVIO SOUSA | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA DISPENSA DA AUDIÊNCIA DO DEVEDOR PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO | ||
Data do Acordão: | 05/11/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | 1. No processo de insolvência e em certas circunstâncias, o prévio contraditório foi substituído, para “obviar à demora excessiva do processo”, por um contraditório superveniente, ainda que, já, em sede de embargos, garantindo-se, na mesma, o direito de defesa do devedor. 2. Assim, a dispensa da sua audiência (citação) não viola o princípio do contraditório. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora: Relatório AA, sucursal em Portugal, requereu a declaração de insolvência de BB, com domicílio na …, articulando factos que, em seu critério, conduzem à procedência do pedido, que, com dispensa de audição (citação), foi deferido. Inconformado com o decidido, recorreu o requerido BB, com as seguintes conclusões[1]: - a dispensa de citação do devedor - precedida de “três simples tentativas de citação”-, com referência, nas duas últimas, ao seu paradeiro desconhecido, é ilegal; - além disso, a mesma colide com o princípio do contraditório e, por inerência, com o seu direito de se pronunciar; - a impugnada sentença declaratória de insolvência é, por isso, nula; - a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas deve ser conjugada com o ativo do devedor; - O ativo do recorrente/devedor é superior ao passivo; -O recorrente/devedor não se encontra em situação de insolvência. Inexistem contra-alegações. Face às mencionadas conclusões, o objeto do recurso circunscreve-se à apreciação das seguintes questões: a) a alegada irregularidade da dispensa de citação e nulidade da sentença impugnada; b) a invocada inexistência da situação de insolvência. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. Fundamentação A - Os factos A.a - Na sentença recorrida foram considerados os seguintes factos: - Por escritura pública datada de 25 de fevereiro de 2010, o requerente AA, celebrou com CC..., Lda. um contrato de mútuo, com hipoteca, onde esta se confessou devedora da quantia de €250.000,00, dos juros remuneratórios, das despesas judiciais e extrajudiciais fixadas, das comissões e outros encargos, ao abrigo do qual foi entregue ao requerente livrança em branco, subscrita pela mutuária, e à qual prestou aval o requerido BB, autorizando o mutuante a preencher pelo valor que fosse devido, em caso de falta de cumprimento; - A livrança antes referida, com o teor de fls. 28 e 39, foi apresentada a pagamento; - O requerido BB não é detentor de qualquer veículo automóvel, não é conhecido qualquer rendimento ou salário mínimo que o mesmo aufira e tem registada a seu favor locação financeira sobre dois imóveis, com os seguintes valores patrimoniais: a) prédio urbano, constituído por loja, no primeiro andar, letra D, destinada a atividade terciária, com a área de 64,62 m2, (…), com o valor tributável de €33.987,59; b) prédio urbano, constituído por loja, no primeiro andar, letra E, destinada a atividade terciária, com área de 40,48 m2, (…), com o valor tributável de €18.970,88; - No âmbito do processo nº 146/13.5 TYLSB, foi declarada a insolvência da Código Civil…, Lda. e reconhecido o crédito ao requerente AA, no valor de €325.707,24, tendo estes autos seguido para liquidação; - Ao abrigo dos mesmos autos de insolvência, o dito requerente celebrou com a administradora da insolvência escritura pública de compra e venda, decorrente de adjudicação ao requerente AA do imóvel dado em garantia do seu crédito, pelo valor de €56.500,00; - Encontra-se a correr termos as seguintes ações executivas, nas quais o requerido BB figura como executado: a) processo nº 2739/11.6 TBSTB, com o exequente Banco …, S.A.; b) processo nº 2739/11.1 TBSTB, com o exequente Banco …, S.A.. A.b - Outros factos relevantes para a decisão do recurso - A ação de declaração de insolvência foi interposta, em finais de março de 2016; - Em setembro seguinte, o devedor não se encontra ainda citado; - As “certidões negativas “ do agente de execução aludem “que não reside nesta morada há vários anos” e que, ”nunca residiu”, na morada indicada; - O despacho de dispensa de citação - precedido de diligências de informação sobre o paradeiro do devedor - foi lavrado em novembro de 2016. B - O direito/doutrina/jurisprudência Quanto à alegada irregularidade da dispensa de citação e nulidade da sentença impugnada -A motivação da dispensa da audiência (citação) do devedor “(…) é obviar à demora excessiva do processo (…)”, decorrente do desconhecimento do seu paradeiro, ou seja, “acautelar a celeridade do processo” [2]; - O solicitador/agente de execução “é um misto de profissional liberal e funcionário público, cujo estatuto de auxiliar da justiça implica a detenção de poderes de autoridade no processo executivo”, com consequente “desempenho de um conjunto de tarefas, exercidas em nome do tribunal, sem prejuízo da possibilidade de reclamação para o juiz dos atos e omissões por ele praticados” [3]; - Para além dos deveres a que está sujeito, por estar inscrito como solicitador, o solicitador/agente de execução deve, nomeadamente, praticar, de forma diligente, os atos processuais de que seja incumbido, com observância escrupulosa dos prazos legais ou judicialmente fixados, e submeter a decisão do juiz os atos que dependam de despacho ou autorização judicial e cumpri-los nos precisos termos fixados[4]; - Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que neles são referidos com base nas perceções do documentador[5]; - Estes factos são tidos “(…) não só como verdadeiros, como cobertos pela força probatória plena do documento autêntico. A parte que pretender impugná-los terá de provar o contrário, não lhe aproveitando a simples contraprova, como bem se compreende em face da fé pública atribuída ao documentador. Mas só poderá fazer prova do contrário, arguindo o documento de falso (…)”, no âmbito de um incidente probatório [6]; - “(…) quando haja sido dispensada a audiência prévia (…) tem de ser conferida ao devedor a oportunidade para questionar a sentença, seja por meio de embargos, havendo razões de facto suscetíveis de os fundamentar, seja optando pela via do recurso, se é de direito o motivo invocado (…)”[7]; - “ (…) os embargos serão necessariamente fundados em razões de facto - novos factos alegados ou novas provas requeridas (…)”; por seu turno, “(…) o recurso deve basear-se em razões de direito - inadequação da decisão à factualidade apurada por má aplicação da lei (…)”, assim, os embargos e o recurso “(…) devem abster-se de invocar motivos que são próprios do outro meio de reação e, quando não suportados em fundamentos adequados, serão necessariamente indeferidos” [8]; - São taxativos os vícios previstos na lei, conducentes à nulidade da sentença[9]. Quanto à invocada inexistência da situação de insolvência - “Os recursos ordinários são, entre nós, recursos de reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a ação e a julgá-la, como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último. É, por isso, constante a jurisprudência no sentido de que aos tribunais de recurso não cabe conhecer de questões novas (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la” [10]; - Considera-se insolvente o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações já vencidas[11]; só o incumprimento de obrigações vencidas suscetibiliza ”o requerimento de insolvência por iniciativa de outro legitimado que não o próprio devedor”[12]; - A “paralisação generalizada do cumprimento das obrigações do devedor de índole pecuniária” constitui um facto-índice ou presuntivo da insolvência[13]. - Também constitui facto-índice “a falta de cumprimento de uma só ou mais obrigações que, pelas respetivas circunstâncias, revele a impossibilidade do devedor de prover à satisfação pontual da generalidade das suas obrigações” [14]. - “Cabe ao requerente da insolvência a alegação e prova dos factos que integram os pressupostos da declaração requerida, e enumerados nas diversas alíneas do nº 1 do art. 20º. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE). Com efeito, o legislador, através da enumeração desses factos-índice, pretendeu enunciar os critérios indispensáveis à identificação da insolvência e, por isso, o credor interessado na declaração de insolvência tem que demonstrar que o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações, provando que tal impossibilidade se manifesta através de sintomas inequívocos que o legislador descreve” [15]. - “Caberá então ao devedor trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir” [16]. C - Aplicação do direito aos factos Quanto à alegada irregularidade da dispensa de citação e nulidade da sentença impugnada O recorrente/devedor BB não fez prova - nem o podia fazer, em sede de recurso - de que a informação prestada pelos “residentes” ao agente de execução de “que o embargante nunca residiu em tal morada” é falsa. Como tal, é verdadeiro o teor do relatado, nos ofícios elaborados pelo agente de execução: o paradeiro desconhecido do dito recorrente/devedor. Face a este facto, conjugado com a circunstância de o processo se encontrar pendente, há já cerca de seis meses, sem citação, apenas restava ao Tribunal recorrido, para acautelar a sua celeridade, dispensar a “audiência” do recorrente/devedor BB. De referir, a propósito que o fez apenas após a realização das típicas diligência de informação. Assim sendo, a decidida dispensa de citação não violou a lei. Sucede que esta não colidiu com o princípio do contraditório, uma vez que o recorrente/devedor BB, apesar disso, tinha a faculdade de, através de contraditório superveniente, ainda que, já, em sede de embargos, se pronunciar, questionando a sentença, com fundamento em razões de facto - novos factos ou novas provas. Ou seja: no processo de insolvência e em certas circunstâncias, o prévio contraditório foi substituído, para “obviar à demora excessiva do processo”, por um contraditório superveniente, garantindo-se, na mesma, o direito de defesa. De mencionar, finalmente, que a uma eventual violação do princípio do contraditório não conduz à nulidade da sentença, uma vez que esta irregularidade não se enquadra em qualquer dos vícios, taxativamente, consagrados na lei. Pelo exposto, improcede esta parte do recurso. Quanto à invocada inexistência da situação de insolvência A esta Relação compete, apenas, “controlar a correção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último”, ou, por outras palavras, saber se a decisão ora impugnada, considerando a factualidade apurada pelo tribunal de 1ª instância, é ou não conforme à lei. Não releva, assim, aqui e agora, a questão da bondade da “adjudicação ao requerente AA do imóvel dado em garantia do seu crédito, pelo valor de €56.500,00”, a decidir noutra ação. Implicitamente, reconhece o recorrente/devedor BB que o seu passivo é elevado[17]. Todavia alega que o seu ativo é superior. Sucede, porém, que a realidade que emergiu da discussão da causa, relativamente ao ativo, não está em linha que o alegado, antes pelo contrário. Na verdade, o recorrente/devedor BB não é detentor de qualquer veículo automóvel, não lhe é é conhecido qualquer rendimento ou salário mínimo, sendo, apenas, titular de dois espaços, destinados à atividade terciaria, com as áreas de 64,62 m2 e 40,48 m2, em regime de locação financeira. Assim sendo, não corresponde à realidade dizer-se que o seu ativo é suficiente para a cobertura do passivo. Dúvidas inexistem que o dito recorrente/devedor não pagou a dívida que tem para com o recorrido/credor AA, materializada na livrança, no valor de €269 207, 24. Pacifico é, também, o facto de o referenciado ter dois débitos para com outra instituição financeira, já objeto de cumprimento coercivo. Estas circunstâncias apontam, manifestamente, para uma situação de penúria, por parte do recorrente/devedor BB. Verifica-se, pois, o facto-índice, previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 20º. do CIRE. Improcede, igualmente, este segmento do recurso. Em síntese[18]: no processo de insolvência e em certas circunstâncias, o prévio contraditório foi substituído, para “obviar à demora excessiva do processo”, por um contraditório superveniente, ainda que, já, em sede de embargos, garantindo-se, na mesma, o direito de defesa do devedor; assim, a dispensa da sua audiência (citação) não viola o princípio do contraditório. Decisão Pelo exposto, decidem os Juízes desta Relação, julgando o recurso improcedente, manter a sentença recorrida. Custas pela massa insolvente. ******* Évora, 11 de maio de 2017 Sílvio José Teixeira de Sousa Maria da Graça Araújo Manuel António do Carmo Bargado _________________________________________________ [1] Conclusões elaboradas por esta Relação, a partir das longas (60) e prolixas “conclusões” do recorrente. |