Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2372/16.6T8STB-C.E1
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: INSOLVÊNCIA
DISPENSA DA AUDIÊNCIA DO DEVEDOR
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 05/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. No processo de insolvência e em certas circunstâncias, o prévio contraditório foi substituído, para “obviar à demora excessiva do processo”, por um contraditório superveniente, ainda que, já, em sede de embargos, garantindo-se, na mesma, o direito de defesa do devedor.
2. Assim, a dispensa da sua audiência (citação) não viola o princípio do contraditório.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:

Relatório
AA, sucursal em Portugal, requereu a declaração de insolvência de BB, com domicílio na …, articulando factos que, em seu critério, conduzem à procedência do pedido, que, com dispensa de audição (citação), foi deferido.


Inconformado com o decidido, recorreu o requerido BB, com as seguintes conclusões[1]:
- a dispensa de citação do devedor - precedida de “três simples tentativas de citação”-, com referência, nas duas últimas, ao seu paradeiro desconhecido, é ilegal;
- além disso, a mesma colide com o princípio do contraditório e, por inerência, com o seu direito de se pronunciar;
- a impugnada sentença declaratória de insolvência é, por isso, nula;
- a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas deve ser conjugada com o ativo do devedor;
- O ativo do recorrente/devedor é superior ao passivo;
-O recorrente/devedor não se encontra em situação de insolvência.

Inexistem contra-alegações.

Face às mencionadas conclusões, o objeto do recurso circunscreve-se à apreciação das seguintes questões: a) a alegada irregularidade da dispensa de citação e nulidade da sentença impugnada; b) a invocada inexistência da situação de insolvência.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Fundamentação

A - Os factos
A.a - Na sentença recorrida foram considerados os seguintes factos:
- Por escritura pública datada de 25 de fevereiro de 2010, o requerente AA, celebrou com CC..., Lda. um contrato de mútuo, com hipoteca, onde esta se confessou devedora da quantia de €250.000,00, dos juros remuneratórios, das despesas judiciais e extrajudiciais fixadas, das comissões e outros encargos, ao abrigo do qual foi entregue ao requerente livrança em branco, subscrita pela mutuária, e à qual prestou aval o requerido BB, autorizando o mutuante a preencher pelo valor que fosse devido, em caso de falta de cumprimento;
- A livrança antes referida, com o teor de fls. 28 e 39, foi apresentada a pagamento;
- O requerido BB não é detentor de qualquer veículo automóvel, não é conhecido qualquer rendimento ou salário mínimo que o mesmo aufira e tem registada a seu favor locação financeira sobre dois imóveis, com os seguintes valores patrimoniais: a) prédio urbano, constituído por loja, no primeiro andar, letra D, destinada a atividade terciária, com a área de 64,62 m2, (…), com o valor tributável de €33.987,59; b) prédio urbano, constituído por loja, no primeiro andar, letra E, destinada a atividade terciária, com área de 40,48 m2, (…), com o valor tributável de €18.970,88;
- No âmbito do processo nº 146/13.5 TYLSB, foi declarada a insolvência da Código Civil…, Lda. e reconhecido o crédito ao requerente AA, no valor de €325.707,24, tendo estes autos seguido para liquidação;
- Ao abrigo dos mesmos autos de insolvência, o dito requerente celebrou com a administradora da insolvência escritura pública de compra e venda, decorrente de adjudicação ao requerente AA do imóvel dado em garantia do seu crédito, pelo valor de €56.500,00;
- Encontra-se a correr termos as seguintes ações executivas, nas quais o requerido BB figura como executado: a) processo nº 2739/11.6 TBSTB, com o exequente Banco …, S.A.; b) processo nº 2739/11.1 TBSTB, com o exequente Banco …, S.A..

A.b - Outros factos relevantes para a decisão do recurso
- A ação de declaração de insolvência foi interposta, em finais de março de 2016;
- Em setembro seguinte, o devedor não se encontra ainda citado;
- As “certidões negativas “ do agente de execução aludem “que não reside nesta morada há vários anos” e que, ”nunca residiu”, na morada indicada;
- O despacho de dispensa de citação - precedido de diligências de informação sobre o paradeiro do devedor - foi lavrado em novembro de 2016.

B - O direito/doutrina/jurisprudência
Quanto à alegada irregularidade da dispensa de citação e nulidade da sentença impugnada
-A motivação da dispensa da audiência (citação) do devedor “(…) é obviar à demora excessiva do processo (…)”, decorrente do desconhecimento do seu paradeiro, ou seja, “acautelar a celeridade do processo” [2];
- O solicitador/agente de execução “é um misto de profissional liberal e funcionário público, cujo estatuto de auxiliar da justiça implica a detenção de poderes de autoridade no processo executivo”, com consequente “desempenho de um conjunto de tarefas, exercidas em nome do tribunal, sem prejuízo da possibilidade de reclamação para o juiz dos atos e omissões por ele praticados” [3];
- Para além dos deveres a que está sujeito, por estar inscrito como solicitador, o solicitador/agente de execução deve, nomeadamente, praticar, de forma diligente, os atos processuais de que seja incumbido, com observância escrupulosa dos prazos legais ou judicialmente fixados, e submeter a decisão do juiz os atos que dependam de despacho ou autorização judicial e cumpri-los nos precisos termos fixados[4];
- Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que neles são referidos com base nas perceções do documentador[5];
- Estes factos são tidos “(…) não só como verdadeiros, como cobertos pela força probatória plena do documento autêntico. A parte que pretender impugná-los terá de provar o contrário, não lhe aproveitando a simples contraprova, como bem se compreende em face da fé pública atribuída ao documentador. Mas só poderá fazer prova do contrário, arguindo o documento de falso (…)”, no âmbito de um incidente probatório [6];
- “(…) quando haja sido dispensada a audiência prévia (…) tem de ser conferida ao devedor a oportunidade para questionar a sentença, seja por meio de embargos, havendo razões de facto suscetíveis de os fundamentar, seja optando pela via do recurso, se é de direito o motivo invocado (…)”[7];
- “ (…) os embargos serão necessariamente fundados em razões de facto - novos factos alegados ou novas provas requeridas (…)”; por seu turno, “(…) o recurso deve basear-se em razões de direito - inadequação da decisão à factualidade apurada por má aplicação da lei (…)”, assim, os embargos e o recurso “(…) devem abster-se de invocar motivos que são próprios do outro meio de reação e, quando não suportados em fundamentos adequados, serão necessariamente indeferidos” [8];
- São taxativos os vícios previstos na lei, conducentes à nulidade da sentença[9].

Quanto à invocada inexistência da situação de insolvência
- “Os recursos ordinários são, entre nós, recursos de reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a ação e a julgá-la, como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último. É, por isso, constante a jurisprudência no sentido de que aos tribunais de recurso não cabe conhecer de questões novas (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la” [10];
- Considera-se insolvente o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações já vencidas[11]; só o incumprimento de obrigações vencidas suscetibiliza ”o requerimento de insolvência por iniciativa de outro legitimado que não o próprio devedor”[12];
- A “paralisação generalizada do cumprimento das obrigações do devedor de índole pecuniária” constitui um facto-índice ou presuntivo da insolvência[13].
- Também constitui facto-índice “a falta de cumprimento de uma só ou mais obrigações que, pelas respetivas circunstâncias, revele a impossibilidade do devedor de prover à satisfação pontual da generalidade das suas obrigações” [14].
- “Cabe ao requerente da insolvência a alegação e prova dos factos que integram os pressupostos da declaração requerida, e enumerados nas diversas alíneas do nº 1 do art. 20º. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE). Com efeito, o legislador, através da enumeração desses factos-índice, pretendeu enunciar os critérios indispensáveis à identificação da insolvência e, por isso, o credor interessado na declaração de insolvência tem que demonstrar que o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações, provando que tal impossibilidade se manifesta através de sintomas inequívocos que o legislador descreve” [15].
- “Caberá então ao devedor trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir” [16].

C - Aplicação do direito aos factos

Quanto à alegada irregularidade da dispensa de citação e nulidade da sentença impugnada
O recorrente/devedor BB não fez prova - nem o podia fazer, em sede de recurso - de que a informação prestada pelos “residentes” ao agente de execução de “que o embargante nunca residiu em tal morada” é falsa.
Como tal, é verdadeiro o teor do relatado, nos ofícios elaborados pelo agente de execução: o paradeiro desconhecido do dito recorrente/devedor.
Face a este facto, conjugado com a circunstância de o processo se encontrar pendente, há já cerca de seis meses, sem citação, apenas restava ao Tribunal recorrido, para acautelar a sua celeridade, dispensar a “audiência” do recorrente/devedor BB.
De referir, a propósito que o fez apenas após a realização das típicas diligência de informação.
Assim sendo, a decidida dispensa de citação não violou a lei.
Sucede que esta não colidiu com o princípio do contraditório, uma vez que o recorrente/devedor BB, apesar disso, tinha a faculdade de, através de contraditório superveniente, ainda que, já, em sede de embargos, se pronunciar, questionando a sentença, com fundamento em razões de facto - novos factos ou novas provas.
Ou seja: no processo de insolvência e em certas circunstâncias, o prévio contraditório foi substituído, para “obviar à demora excessiva do processo”, por um contraditório superveniente, garantindo-se, na mesma, o direito de defesa.
De mencionar, finalmente, que a uma eventual violação do princípio do contraditório não conduz à nulidade da sentença, uma vez que esta irregularidade não se enquadra em qualquer dos vícios, taxativamente, consagrados na lei.
Pelo exposto, improcede esta parte do recurso.

Quanto à invocada inexistência da situação de insolvência
A esta Relação compete, apenas, “controlar a correção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último”, ou, por outras palavras, saber se a decisão ora impugnada, considerando a factualidade apurada pelo tribunal de 1ª instância, é ou não conforme à lei.
Não releva, assim, aqui e agora, a questão da bondade da “adjudicação ao requerente AA do imóvel dado em garantia do seu crédito, pelo valor de €56.500,00”, a decidir noutra ação.
Implicitamente, reconhece o recorrente/devedor BB que o seu passivo é elevado[17]. Todavia alega que o seu ativo é superior.
Sucede, porém, que a realidade que emergiu da discussão da causa, relativamente ao ativo, não está em linha que o alegado, antes pelo contrário. Na verdade, o recorrente/devedor BB não é detentor de qualquer veículo automóvel, não lhe é é conhecido qualquer rendimento ou salário mínimo, sendo, apenas, titular de dois espaços, destinados à atividade terciaria, com as áreas de 64,62 m2 e 40,48 m2, em regime de locação financeira.
Assim sendo, não corresponde à realidade dizer-se que o seu ativo é suficiente para a cobertura do passivo.
Dúvidas inexistem que o dito recorrente/devedor não pagou a dívida que tem para com o recorrido/credor AA, materializada na livrança, no valor de €269 207, 24.
Pacifico é, também, o facto de o referenciado ter dois débitos para com outra instituição financeira, já objeto de cumprimento coercivo.
Estas circunstâncias apontam, manifestamente, para uma situação de penúria, por parte do recorrente/devedor BB.
Verifica-se, pois, o facto-índice, previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 20º. do CIRE.
Improcede, igualmente, este segmento do recurso.

Em síntese[18]: no processo de insolvência e em certas circunstâncias, o prévio contraditório foi substituído, para “obviar à demora excessiva do processo”, por um contraditório superveniente, ainda que, já, em sede de embargos, garantindo-se, na mesma, o direito de defesa do devedor; assim, a dispensa da sua audiência (citação) não viola o princípio do contraditório.

Decisão
Pelo exposto, decidem os Juízes desta Relação, julgando o recurso improcedente, manter a sentença recorrida.
Custas pela massa insolvente.

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Évora, 11 de maio de 2017

Sílvio José Teixeira de Sousa
Maria da Graça Araújo
Manuel António do Carmo Bargado

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[1] Conclusões elaboradas por esta Relação, a partir das longas (60) e prolixas “conclusões” do recorrente.
[2] João A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 2ª edição, págs. 106 e 107, e artigo 12º., nº 1 do mesmo diploma.
[3] José Lebre de Freitas, in A Ação Executiva Depois da Reforma da Reforma, 5ª edição, págs. 26 e 27( no mesmo sentido, Fernando Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 10ª edição, págs. 131 a 139) e artigo 723º., nº 1, c) do Código de Processo Civil.
[4] Artigo 123º., nº 1, a) e b) do Estatuto da Câmara dos Solicitadores (Decreto-Lei nº 88/2003 de 26 do abril).
[5] Artigo 371º., nº 1 do Código Civil e Profs. Ires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, pág. 327.
[6] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, 1985, pág. 520, e artigos 444º. e seguintes do mesmo diploma.
[7] João A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 2ª edição, págs. 209 e 210 e artigos 40º., nºs 1, a) e 2 e 42º. do mesmo diploma.
[8] João A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 2ª edição, pág. 209.
[9] Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, págs. 137 e 138, e artigo 615º., nº 1 do mesmo diploma.
[10] José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, tomo I, 2ª edição, págs. 7 e 8, e artigo 627º. do mesmo diploma.
[11] Artigo 3º., nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[12] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição (2008), pág. 71.
[13] Artigo 20º., nº 1, a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[14] Artigo 20º., nº 1, b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição (2008), pág. 134.
[15] Artigo 341º., nº 1 do Código Civil e acórdão da Relação de Coimbra de 14 de dezembro de 2005 (processo nº 2956/05), in João Botelho (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Notas de Jurisprudência, pág. 66).
[16] Artigo 341º., nº 2 do Código Civil e acórdão da Relação do Porto de 26 de outubro de 2006, in João Botelho (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Notas de Jurisprudência, pág. 67).
[17] Ponto nº 38 das “conclusões”
[18] Artigo 663º., nº 7 do Código de Processo Civil