Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
10467/15.7T8STB-A.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITO
HABILITAÇÃO DE ADQUIRENTE OU CESSIONÁRIO
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - A declaração negocial emitida invocando-se representar a sociedade mas sem poderes de representação dela, é ineficaz em relação à sociedade, se não for por ela ratificado;
2 - Consubstancia ineficácia relativa, pois verifica-se apenas em relação àquele que se diz representar e só por ele pode ser invocada;
3 - Logo, o negócio formado a partir de tal declaração negocial não enferma de invalidade substancial de conhecimento oficioso.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio
Recorrente / Requerente: (…)
Recorrida / Requerida: Banco (…), SA

Os presentes autos consistem no incidente de habilitação deduzido nos termos do disposto no art.º 351.º e ss do CPC, com vista a que o Requerente seja habilitado como cessionário do crédito da A. (…) Consultores Comerciais, Lda., por o mesmo lhe ter sido cedido, o que foi deduzido por apenso à ação declarativa que esta move a Banco (…), SA. Foi invocada a escritura de cessão de créditos, outorgada em 23/12/2016, pela dita sociedade autora, representada pelo Requerente, que lhe declarou ceder o crédito que detém sobre o Banco Réu, no montante de € 60.000,00.
II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferido saneador sentença julgando o incidente improcedente.

Inconformado, o Requerente apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que o declare habilitado como cessionário do crédito por este lhe ter sido validamente cedido pela sociedade (…) Consultores Comerciais, Lda. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«1.º - O presente recurso incide sobre a douta Sentença proferida nos presentes autos, que julgou improcedente incidente de habilitação promovido pelo Recorrente, sendo que o mesmo entende estar em causa apenas matéria de direito, passando a indicar as normas jurídicas que entende violadas.
2.º - Neste sentido, no âmbito destes autos em que foi proferida Sentença, resultou que o fundamento do incidente de habilitação em causa, em que o Recorrente havia requerido que fosse habilitado como cessionário do crédito da A. (…) Consultores Comerciais, Lda., por o mesmo lhe ter sido cedido,
3.º - Tendo, para tanto, alegado que por escritura de cessão de créditos, outorgada em 23 de Dezembro de 2016, a dita sociedade autora, por si representada, lhe cedeu o crédito que detém sobre o Banco Réu, no montante de € 60.000,00 (sessenta mil euros).
Pelo que,
4.º - Diversamente da posição acolhida no seio da douta sentença proferida, entende o Recorrente que, não obstante o entendimento em juízo de que do negócio jurídico celebrado, não se podia concluir pela sua invalidade, conquanto que a mesma não padece de qualquer vício substantivo.
Porquanto se alega que,
5.º - Pelo motivo de estarmos perante um acto praticado em nome da sociedade mas sem poderes para tal, o que deve ser tido como admissível, ao abrigo do disposto nos termos do artigo 268.º, n.º 1, do Código Civil, a sua vinculação à sociedade,
6.º - Devendo ser sufragado o entendimento de que os gerentes que figuram como gerentes de direito aos terceiros, porque que confiaram nessa aparência e, mais, porque os gerentes de direito conheciam e toleraram o comportamento deles.
7.º - Donde, como expressamente de escritura pública de cessão de créditos, resulta que em reunião de assembleia geral com tal ordem de trabalhos, estiveram presentes o Recorrente, assim como o sócio-gerente da sociedade e sócio maioritário, tendo os mesmos manifestado o seu assentimento, vinculando, como tal, a sociedade.
Pelo que se deverá concluir,
9.º - Por tudo quanto se expôs, que o Recorrente tem fundamento para lhe ser procedente incidente de habilitação por ele deduzido, visto que a douta Sentença violou o disposto nos termos do artigo 351.º do Código de Processo Civil, porquanto que deve este ser habilitado enquanto cessionário do crédito da (…) Consultores Comerciais, Lda., por o mesmo lhe ter sido validamente cedido.»

Em sede de contra-alegações, o Recorrido Banco (…) pugnou pela improcedência do recurso, mantendo-se a decisão recorrida, uma vez que o negócio para poder ser válido teria de ser ratificado pela sociedade, o que não aconteceu; entretanto, sobreveio a decisão judicial ora em recurso, o que invalida a sua ratificação (art.º 268.º, n.º 2, do CC). Mais sustenta que a doutrina vem entendendo que a irregularidade da representação das sociedades por quotas e anónimas, pela falta de intervenção dos gerentes ou administradores necessários para assegurar a maioria do respetivo órgão representativo ou respeitar a forma de representação expressamente prevista no pacto social, gera a ineficácia do ato em relação à sociedade.

Assim, atentas as conclusões da alegação de recurso, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], a questão a decidir no âmbito deste recurso consiste em saber se a falta de poderes de representação da sociedade na pessoa que outorgou a escritura pública em representação dela constitui fundamento para afirmar a invalidade substancial do negócio jurídico.


III – Fundamentos

A – Os factos provados

1. No dia 23 de Dezembro de 2016 entre (…), na qualidade de sócio e em representação de (…) Consultores Comerciais, Lda., por escritura pública, foi celebrado um acordo escrito denominado “Cessão de Crédito” em que (…) Consultores Comerciais, Lda., A. nos autos principais, declarou ceder ao ora Requerente “o crédito que detém de € 60.000,00 e que corresponde à movimentação ilícita de débito na conta (…), titulada pela sociedade, através do cheque (…), crédito que está a ser reclamado numa ação declarativa de condenação contra o Banco (…) …”.
2. (…) Consultores Comerciais, Lda. obriga-se com a assinatura de um gerente, cargo que desde 23.10.2008 está cometido a (…).
3. Consta da referida escritura pública designadamente o seguinte:
“Que nos termos da deliberação constante da ata supra referida, a sociedade sua representada pretende ceder a ele outorgante, o crédito que detêm no montante de sessenta mil euros e que corresponde à movimentação ilícita de débito na conta bancária nº (…), titulada pela sociedade, através do cheque nº (…), apresentado a pagamento no dia 27 de Junho de 2012, no Balcão do Banco (…) Beja-Parque, tendo sido depositado na conta n.º (…), domiciliada no Banco (…) e titulada por (…), crédito que está a ser reclamado numa ação declarativa de condenação contra o Banco (…), S.A., no processo n.º 10467/15.7T8STB, que se encontra pendente no Tribunal de Comarca de Setúbal, conforme certidão judicial que apresentou”.
“Que foi regularmente convocada a reunião de assembleia geral com tal ordem de trabalhos, na qual estiveram presentes ele outorgante e o gerente (…), e esteve ausente o sócio (…), titular de uma quota no valor nominal de cem euros. Foi deliberado por ele outorgante (sócio maioritário presente nessa assembleia geral) aprovar a mencionada cessão de crédito.”

B – O Direito

Em 1.ª Instância, a questão atinente à (in)validade substancial do negócio exarado na escritura pública apresentada como título da cessão do crédito nela identificado foi apreciada de forma sumária, sem sequer menção do regime jurídico aplicável, conforme segue:
«Acontece que, analisado o negócio jurídico efetuado, não podemos concluir pela sua validade, atendendo a que o representante da cedente, que interveio no ato, não detinha poderes para ceder o direito, já que a sociedade é representada por um gerente e o interveniente não detém essa qualidade.
Assim sendo, estando a cessão de créditos ferida de invalidade substancial, não se admite a habilitação requerida.»

Ora, é certo que as pessoas coletivas, designadamente as sociedades, atuam e praticam atos por disporem de órgãos que as podem representar. Tratando-se, como se trata, de uma sociedade por quotas, a administração e a representação dela cabe a um ou mais gerentes, sem prejuízo de à gerência assistir a faculdade de nomear mandatários ou procuradores da sociedade para a prática de determinados atos ou categorias de atos – cfr. art. 252.º, n.ºs 1 e 6, do Código das Sociedades Comerciais (CSC).

Por isso, os atos praticados pelos gerentes, em representação da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes das deliberações dos sócios – cfr. art. 260.º, n.º 1, do CSC.

Este preceito legal (o art. 260.º do CSC) mais estipula o seguinte:
«2 - A sociedade pode, no entanto, opor a terceiros as limitações de poderes resultantes do seu objeto social, se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias que o ato praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, a sociedade o não assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos sócios.
3 - O conhecimento referido no número anterior não pode ser provado apenas pela publicidade dada ao contrato de sociedade.
4 - Os gerentes vinculam a sociedade, em atos escritos, apondo a sua assinatura com indicação dessa qualidade.»

Consagra-se, assim, a ilimitação dos poderes representativos das sociedades. Como os gerentes se apresentam perante terceiros como representantes das sociedades, evita-se que aqueles fiquem sujeitos a restrições da representação criadas pelos sócios no seu próprio interesse e cujo conhecimento pelos terceiros não é seguro. Visa proteger-se os direitos e interesses de terceiros em face da sociedade, daqueles que com ela estabelecem relações jurídicas, pelo que está em causa norma de interesse e ordem pública, de natureza imperativa.[2] Trata-se, pois, de defender os interesses de terceiros, relegando-se para as relações internas as consequências inerentes ao eventual desrespeito das regras da representatividade constantes do pacto social. Importa compatibilizar a vida negocial e económica, salvaguardando incertezas sobre a correta representação da sociedade, pois, uma constante consulta dos elementos registrais não seria consentâneo com o ritmo célere que envolve tal sector.[3]
Em consonância, determina o acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ n.º 1/2002 que «A vinculação de uma sociedade, nos termos do art. 260º, nº 4, do CSC, contenta-se com a assinatura do respetivo gerente, podendo esta qualidade ser, apenas, deduzida, nos termos do art. 217º do Cód. Civil, de factos que, em toda a probabilidade a revelem, não exigindo a indicação textual daquela qualidade».

No caso em apreço, não foi o gerente que se apresentou a praticar atos em representação da sociedade, pelo que não está em causa a questão atinente à vinculação da sociedade a atos praticados pelo gerente.

Antes a sociedade foi dada como representada por (…). Este outorgou a escritura pública atinente à cessão do crédito nela identificado «na qualidade de sócio e em representação de (…) Consultores Comerciais, Lda.». Porém, (…) Consultores Comerciais, Lda. obriga-se com a assinatura de um gerente, cargo que desde 23/10/2008 está cometido a (…). Além disso, não consta que ao outorgante tivessem sido conferidos poderes de representação da sociedade (cfr. art. 252.º, n.º 6, do CSC).

Este enquadramento factual implica, efetivamente, a aplicação do regime inserto no art. 268.º do CC. O n.º 1 de tal normativo legal estatui que «O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.»

Por conseguinte e em face disso, a declaração negocial emitida por (...), invocando representar a sociedade mas sem poderes de representação dela, é ineficaz em relação à sociedade, se não for por ela ratificado. Efeito jurídico que foi invocado pelo Recorrente e reconhecido pelo Recorrido (cfr. alegações e contra-alegações do recurso). E dos factos provados não se extrai que tenha tido lugar a ratificação por parte da sociedade: ainda que previamente o sócio maioritário tenha aprovado que a sociedade viesse a declarar ceder-lhe o crédito, o gerente, que representa a sociedade e a administra, não emitiu pronúncia.

Porém, a ineficácia em relação à sociedade não constitui invalidade substancial de conhecimento oficioso, que implique que o ato praticado não tenha qualquer efeito tout court, tal como sentenciado em 1.ª Instância.

A ineficácia consiste na cessação dos efeitos negociais, implica que o negócio não produza os efeitos que tenderia a produzir segundo as declarações negociais que foram emitidas. Mas enquanto que a ineficácia absoluta atua automaticamente, erga omnes, podendo ser invocada por qualquer interessado, a ineficácia relativa verifica-se apenas em relação a certas pessoas (inoponibilidade), em favor das quais foi estabelecida, só por elas podendo ser invocada (o negócio, embora eficaz noutras direções, é inoponível a certas pessoas). Os negócios feridos de ineficácia relativa são apelidados de negócios bifrontes ou negócios com cabeça de Jano, negócios com duas caras. E no rol de negócios com eficácia relativa consta elencado precisamente o negócio celebrado sem poderes de representação, atento o regime previsto no art. 268.º, n.º 1, do CC.[4]

Uma vez que a sociedade (…) Consultores Comerciais, Lda., regularmente notificada no âmbito do presente incidente, não invocou a ineficácia, em relação a si, do negócio praticado em seu nome, inexiste fundamento legal para que se declare oficiosamente que o negócio está ferido de invalidade substancial, e que não se tenha operado o efeito decorrente da declaração negocial emitida por quem atuou em representação da sociedade.

O que implica na revogação da decisão recorrida, impondo-se a baixa do processo à 1.ª Instância para ulterior processamento, atentas as demais questões suscitadas nos autos, designadamente em sede de contestação ao incidente de habilitação deduzido.

As custas recaem sobre a Recorrida – art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Concluindo:
(…)

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, determinando-se a baixa do processo à 1.ª Instância para ulterior processamento, atentas as demais questões suscitadas nos autos, designadamente em sede de contestação ao incidente de habilitação deduzido.
Custas pela Recorrida.
Évora, 28 de Junho de 2018
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

__________________________________________________
[1] Cfr. arts. 637.º n.º 2 e 639.º n.º 1 do CPC.
[2] Cfr. Raúl Ventura, Sociedade dos Quotas, vol. III, p. 172.
[3] Ac. TRL de 17/03/2009 (Rosário Gonçalves).
[4] Aqui se seguindo de perto a lição de Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, p. 606 e 607 e, bem assim, de Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica. Vol. II, 2003, p. 412.