Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
150/17.4YLPRT.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: DIREITO INTERNACIONAL
ARRENDAMENTO
Data do Acordão: 12/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Se relativamente à determinação dos direitos e deveres recíprocos das partes na relação jurídica sub judice (incumprimento do contrato de arrendamento) se aplica a lei belga, nos termos do Regulamento CE nº 593/2008, de 17/6, já quanto à forma de efectivar e concretizar aqueles direitos, isto é, aos processos e procedimentos que o credor pode adoptar no país do foro competente, deverá aplicar-se a lei desse foro, que é a portuguesa.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 150/17.4YLPRT.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) veio apresentar procedimento especial de despejo contra (…) e (…) para efectivação da cessação do arrendamento relativo ao prédio urbano sito em Arroteia de (…), actualmente União das Freguesias de Luz de Tavira e Santo Estêvão, concelho de Tavira, composto por moradia térrea com sala de estar, cozinha, quatro quartos, casa de banho, garagem e logradouro, com a superfície coberta de 140m2 e descoberta de 9260m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o n.º …/19860728 da freguesia da Luz, inscrito anteriormente na matriz urbana da freguesia da Luz de Tavira sob o artigo (…) e actualmente sob o artigo matricial (…), União das Freguesias de Luz de Tavira e Santo Estêvão. Cumulativamente, pede a condenação dos requeridos no pagamento da quantia de € 2.043,92 de rendas vencidas e não pagas, acrescida, a título de indemnização, de 100% da renda total devida, por cada mês, desde 01-08-2016 até à entrega do locado à Requerente e dos juros de moratórios à taxa legal de 4% ao ano sobre a totalidade dos referidos valores após a entrega do locado até integral pagamento. Fundamenta a sua pretensão na falta de pagamento das rendas devidas entre 01 de Maio de 2015 a 02 de Junho de 2016.
Os Réus deduziram oposição, alegando, em síntese, que:
- A requerente nunca emitiu um recibo de renda desde o início do contrato de arrendamento (em 01- 05-2011) até hoje, não obstante os requeridos repetidamente solicitarem, via telefone e correio electrónico, à requerente a emissão dos recibos de pagamento de renda, razão pela qual, encontrando-se a requerente em mora, podem os requeridos recusar o pagamento das rendas, enquanto a requerente não lhes entregar os recibos.
- Estando a requerente/senhoria em mora, por se recusar a passar os recibos, não constitui fundamento de resolução do contrato a falta de pagamento das rendas no montante referido, nem a dívida importa a contagem de juros quer legais quer convencionais.
- Sendo que os juros em questão, sempre deveriam ser contabilizados de harmonia com as taxas legais supletivas, nos termos do art. 559° do CC, ficando arredada qualquer hipótese de juros usurários, nos termos em que estes são definidos no art.º 1146°, n.º l, do CC, por referência ao art.º 559°-A do CC.
Mais alegam:
- A invalidade das cláusulas 4, 6, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 15, 16, 19 e 20 do contrato de arrendamento por se tratar de um contrato modelo em que a iniciativa da redacção das suas cláusulas não partiu do lado dos inquilinos, nem foi sujeita a uma discussão entre as partes, mas antes de um contrato previamente formulado pela senhoria, a que os arrendatários apenas aderiram, sem serem completamente informados do seu conteúdo na data da assinatura do mesmo e sem terem podido discutir o seu conteúdo.
- A legislação aplicável ao contrato em questão é a lei portuguesa – e não a lei belga, escolhida pela requerente/senhoria para reger este contrato de arrendamento – por não corresponder a qualquer interesse sério da requerente e dos requeridos nem existir qualquer conexão entre a lei belga e o contrato, a não ser o facto da requerente residir em Bruxelas.
- Não foram considerados no cômputo dos juros e das rendas pagas a cessação da mora com o pagamento no prazo de 8 dias a contar do seu começo nas diversas rendas pagas pelos requeridos para além do vencimento.
- O recurso indevido ao procedimento especial de despejo com a consequente condenação da requerente no pagamento aos requeridos da quantia de € 4.500,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos, e do valor dos honorários pagos às mandatárias dos requeridos, estimado em € 2.500,00 (+ IVA) e no pagamento de uma multa de valor não inferior a 10 vezes a taxa de justiça devida.
Apresentados os autos à distribuição e recebidos estes, foi a Autora notificada para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, querendo, sobre a matéria das excepções deduzidas.
A Autora apresentou articulado de resposta nos termos e com os fundamentos de fls. 167 a 183, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, pugnando pela improcedência da oposição e pela condenação dos Réus como litigantes de má-fé.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, tendo sido proferida sentença que julgou verificada a excepção inominada da falta de pressupostos legalmente exigidos para a utilização do processo especial de despejo e, em consequência, absolveu os Réus da instância.

Inconformada com tal decisão dela apelou a Autora, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
A) Não obstante o presente recurso ser sempre admissível independentemente do valor da causa e da sucumbência nos termos do disposto no art.º 15.º-Q do NRAU, a recorrente impugna o valor dado à causa pelo Tribunal, o qual deverá ser fixado em € 26.762,92 por força do disposto no art.º 26.º do DL n.º 1/2013, de 07.01.
B) A sentença recorrida confunde a substância com a forma, confunde a lei reguladora da relação jurídica, com a forma de efectivar os direitos e as obrigações emanadas daquela relação jurídica. Os ritos das instituições competentes não mudam em função do direito aplicável.
C) Quanto à determinação dos direitos e deveres recíprocos das partes na relação jurídica sub iudice (i.e., à substância) aplica-se a lei belga nos termos do Regulamento CE n.º 593/2008, de 17 de Junho de 2008 como refere a sentença recorrida; porém, quanto à forma de efectivar aqueles direitos, i.e., aos processos e procedimentos que o credor pode adoptar no país do foro competente (i.e., à forma), deve aplica-se a lei desse foro.
D) Quando através das normas de conflitos se determina a aplicação de direito substantivo estrangeiro, apenas são aplicáveis dessa mesma lei estrangeira as normas que, pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado pela regra de conflitos (art.º 15.º do C.C. e art.º 12.º do REGULAMENTO (CE) N.º 593/2008 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 17 de Junho de 2008 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I).
E) Tendo determinado que ao caso sub iudice era aplicável o direito substantivo belga, deveria o Tribunal ter aplicado as normas substantivas deste ordenamento jurídico, nomeadamente a norma e princípio geral de direito de que qualquer das partes pode resolver o contrato com base em incumprimento da outra parte bem como a norma e o princípio geral de direito pacta sunt servanta e os seus corolários (o que não fez) em vez de ter declarado inaplicáveis ao caso concreto os art.ºs 1083º, n.ºs 3 e 4 e 1084º, n.ºs 1 e 2, do C.C..
F) As disposições dos n.ºs 3 e 4 do art.º 1083.º do C.C. não podem ser entendidas a se mas têm antes de ser integradas ou consideradas em desenvolvimento do princípio geral de direito segundo o qual qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento da outra parte previsto no n.º 1 do mesmo preceito legal.
G) Em face das normas jurídicas e princípios gerais de direito acabados de enunciar, que correspondem a princípios de direito em geral vigentes (pelo menos) nas legislações ocidentais, as normas contidas nos n.ºs 3 e 4 do art.º 1083.º do C.C. devem considerar-se meramente interpretativas em face daqueles princípios. Com efeito, a formulação dos n.ºs 3 e 4 do art.º 1083.º do C.C., visa a conformação das decisões judiciais, no sentido de limitar, em alguma medida, a livre apreciação do julgador no que tange à adequação da invocação da resolução contratual por parte do senhorio em face do incumprimento do inquilino no que se refere ao pagamento pontual da renda.
H) Se não existissem as normas dos n.ºs 3 e 4 do art.º 1083.º do C.C., continuaria a ser possível a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento pontual das rendas, por aplicação do n.º 1 do art.º 1083.º C.C., só que, ao invés, poderia discutir-se se seria ou não exigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento nos casos de mora no pagamento de rendas inferior a 2 meses ou nos casos de mora intermitente inferiores ao número previsto no n.º 4. Os n.ºs 3 e 4 do 1083.º afastam estas discussões, mas a verdadeira norma aplicada em casos de resolução com fundamento no não pagamento de rendas é o n.º 1 do mesmo preceito legal.
I) Em conformidade, o n.º 2 do art.º 1084.º ao remeter a sua previsão para os n.ºs 3 e 4 do art.º 1083.º, está a remeter para os casos de incumprimento do inquilino na vertente do não pagamento de rendas, i.e., para os casos de resolução contratual por parte do senhorio prevista no n.º 1 do mesmo preceito, mas com os limites mínimos previstos nos n.ºs 3 e 4.
J) O conteúdo das normas dos n.ºs 3 e 4 do art.º 1083º, do C.C. revestem natureza substantiva, porém interpretativa ou limitadora do mínimo a partir do qual, segundo o direito português (que não é o aplicável), o senhorio pode resolver o contrato de arrendamento.
K) A verdadeira norma jurídica substantiva que, uma vez determinada qual a lei aplicável, o Tribunal deveria ter aplicado é a que prevê o direito de qualquer das partes poder resolver o contrato com base em incumprimento da outra parte, no caso específico, do incumprimento da obrigação de pagamento pontual das rendas. Trata-se de uma norma universal, um princípio geral de direito e uma norma vigente e em vigor no direito belga, que é o substantivamente aplicável.
L) Admitindo-se sem se conceder que não exista no direito belga normas como as dos referidos n.ºs 3 e 4 ainda assim existirá sempre norma como a do n.º 1, todos do art.º 1083.º do C.C. que permite a qualquer das partes poder resolver o contrato, com base em incumprimento da outra parte, que constitui aliás um principio geral de Direito comummente aceite nas legislações europeias.
M) Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida não aplicou o direito substantivo belga ao caso sub iudice e assim violou o disposto nos artigos 3.º, n.ºs 1 e 5, 10.º, 11.º e 12.º do REGULAMENTO (CE) N.º 593/2008 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 17 de Junho de 2008 e a norma do direito belga e princípio geral de direito aceite pelo ordenamento jurídico belga de que qualquer das partes poder resolver o contrato, com base em incumprimento da outra parte.
N) Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida não se pronunciou sobre questões que devia apreciar, o que é causa de nulidade da mesma nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do C.P.C.
O) Nos termos do disposto nos art.º 63.º do C.P.C. e dos n.ºs 1 e 5 do art.º 24.º do REGULAMENTO (UE) N.º 1215/2012 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 12 de Dezembro de 2012, os tribunais portugueses são exclusivamente competentes em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis situados em território português; (…) e em matéria de execuções sobre imóveis situados em território português;
P) O foro competente para o caso sub iudice é o português e à efetivação dos direitos apurados segundo a lei belga para o caso concreto, aplicam-se as normas de carácter processual vigentes no direito interno português (vide art.º 4.º do REGULAMENTO (UE) N.º 1215/2012 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 12 de Dezembro de 2012).
Q) A forma de efectivar p. ex. o direito à resolução do contrato de arrendamento (via judicial necessária ou através de notificação judicial avulsa ou carta registada) reveste natureza adjectiva ou processual pois independentemente da forma que a lei em cada momento estabeleça para o efeito, tal não contende com o conteúdo do direito.
R) As normas contidas no art.º 1084.º, n.º 2, do C.C. e nos art.ºs 9.º a 12.º e dos artigos 15.º a 15.ºS do NRAU regulam a forma de fazer cessar o contrato de arrendamento por falta de pagamento de determinado número de rendas e a forma de efectivar a desocupação do arrendado. Não regulam as consequências do incumprimento consistente naquela falta de pagamento pelo que têm natureza processual ou adjectiva.
S) Assim, a escolha pela senhoria da notificação judicial avulsa dirigida aos inquilinos como forma de efectivar o direito que entendeu ter à resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento das rendas por parte dos inquilinos tem de considerar-se acertada, por ser o meio processualmente adequado para o efeito nos termos do n.º 2 do art.º 1084.º do C.C., norma adjectiva do foro competente, aplicável desde a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006.
T) De igual forma não existe qualquer limitação legal ao facto de a senhoria ter recorrido ao PED por ser o meio legalmente previsto e adequado para o efeito em face da lei processual vigente após a revisão operada pela Lei n.º 31/2012 (artigos 15.º, n.º 1, 2, al. e), 4 e artigos 15.º-A e segs. do NRAU).
U) Sendo os meios procedimentais e processuais a utilizar, os previstos na legislação portuguesa, não se justifica, impedir o acesso da recorrente ao PED, apenas por se estar perante relações entre sujeitos de nacionalidades diferentes ou domicílios fora do território português, atenta a ratio que presidiu à instituição deste regime.
V) O que resulta, quer do Memorando de Entendimento quer das alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, foi que as medidas processuais extrajudiciais introduzidas se destinam a ser aplicadas em território nacional, a senhorios e inquilinos, sem qualquer distinção entre relações estabelecidas entre cidadãos nacionais e relações estabelecidas com cidadãos de outras nacionalidades ou domicílios noutros territórios. O que bem se compreende, pois se as medidas introduzidas visavam intervir no mercado do arrendamento, essa intervenção deveria operar independentemente da nacionalidade dos sujeitos para plena eficácia das medidas.
W) Assim, nos termos sobreditos, independentemente das normas legais substantivas aplicáveis ao caso sub iudice, os meios processuais utilizados pela ora Recorrente para fazer cessar a relação de arrendamento e para efectivar essa cessação foram os adequados em face das norma jurídicas aplicáveis, pelo que ao assim não decidir, a sentença recorrida violou os art.ºs 63.º, als. a) e d) do C.P.C., 4.º, e 24.º, n.º 1 e 5 do REGULAMENTO (UE) N.º 1215/2012 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 12 de Dezembro de 2012, 15.º, 1084.º, n.º 2, do C.C., e 9.º a 12 e 15.º a 15.º-S, do NRAU
X) Assim, face à nulidade e à não verificação da excepção inominada da falta de pressupostos legalmente exigidos para a utilização do processo especial de despejo, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por acórdão que, decidindo de mérito, aplique o direito aos factos ou que ordene a remessa dos autos ao Tribunal a quo a fim de ser proferida sentença que conheça do mérito da causa.
Y) Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido, deve ser dado provimento ao presente recurso, com o que se fará a costumada Justiça.
Pelos Réus não foram apresentadas contra alegações de recurso.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.

Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável à recorrente (artigo 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela Autora, ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se, não obstante ao litígio a dirimir serem aplicáveis as normas substantivas da lei belga, sempre a recorrente poderá fazer uso (para eventual obtenção de ganho de causa) do procedimento especial de despejo (PED) previsto na lei portuguesa, atento o carácter adjectivo do referido diploma legal.

Antes de apreciar a questão suscitada pela recorrente importa ter presente qual a factualidade apurada na 1ª instância que, de imediato, passamos a transcrever:
1. Por contrato de arrendamento reduzido a escrito, datado de 29 de Janeiro de 2011, a requerente, na qualidade de proprietária, deu de arrendamento aos requeridos (…) e (…) um prédio urbano mobilado sito em Arroteia de (…), actualmente União das Freguesias de Luz de Tavira e Santo Estêvão, concelho de Tavira, composto por moradia térrea com sala de estar, cozinha, quatro quartos, casa de banho, garagem e logradouro, com a superfície coberta de 140 m2 e a descoberta de 9260 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o n.º …/19860728 da freguesia da Luz, inscrito anteriormente na matriz urbana da freguesia da Luz de Tavira sob o artigo (…) e actualmente sob o artigo matricial (…), União das Freguesias de Luz de Tavira e Santo Estêvão.
2. O arrendamento foi destinado à residência principal (habitação) dos Requeridos, não podendo ser-lhe dado outro uso, qualquer que ele fosse nem ser subalugado ou cedido a terceiros por qualquer forma.
3. O contrato de arrendamento foi celebrado por um período de dois anos com início em 01 de Maio de 2011, data em que o locado foi entregue aos Requeridos.
4. O contrato de arrendamento renovou-se, encontrando-se em vigor na presente data.
5. Entre a requerente e os requeridos foi estabelecida a renda mensal de € 800,00 com a obrigação dos requeridos a pagarem antecipadamente, de modo a ser creditada na conta da requerente na Caixa Geral de Depósitos, balcão de Tavira com nº (…), no dia um de cada mês.
6. Dá-se aqui como integralmente reproduzido o estipulado nos arts. 4, 6, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 15, 16, 19 e 20 do contrato.
7. A renda mensal foi unicamente aumentada uma vez, por acordo entre as partes, para o montante de € 824,00 (oitocentos e vinte e quatro euros) para vigorar a partir do dia 01 de Maio de 2012 em diante, o qual se mantém até à presente data.
8. Os Requeridos não pagaram as rendas devidas desde 1 de Maio de 2015 até 2 de Junho de 2016.
9. Por notificação judicial avulsa requerida em 02-06-2016 a requerente comunicou aos requeridos que resolvia o contrato de arrendamento por falta de pagamento das rendas devidas entre 1 de Maio de 2015 a 2 de Junho de 2016 e exigiu o montante destas.
10. A requerida (…) foi notificada em 23-06-2016 e o requerido (…) foi notificado em 01-07-2016.
11. Nesta notificação judicial avulsa a requerente fixou o prazo aos requeridos para a entrega do imóvel limpo, livre e desocupado de pessoas e bens seus, com todos os móveis da senhoria objecto do arrendamento até ao final do mês seguinte ao da recepção da mesma.
12. Até à presente data os requeridos não entregaram o locado à requerente.
13. Na sequência da referida notificação judicial avulsa os requeridos efectuaram em 29-07-2016 o pagamento à requerente da quantia de € 14.008,17.
14. A requerente nunca emitiu um recibo de renda desde o início do contrato de arrendamento, em 01- 05-2011, até hoje.
15. O requerido repetidamente solicitou via telefone à requerente a emissão dos recibos de pagamento de renda, referindo a necessidade dos recibos para efeitos de declaração de rendimentos.
16. Só em 05-02-2016, na sequência da solicitação via correio electrónico, a requerente enviou aos requeridos a listagem com os dizeres “Recibos de todas as quantias recebidas a título de renda da casa da Arroteia de (…), 8800-102 Luz de Tavira, de (…) e (…)”, junta a fls. 136, cujo teor se dá aqui como integralmente reproduzido.
17. A requerente é cidadã de nacionalidade belga e reside na Bélgica.
18. Os requeridos têm nacionalidade alemã e residem em Portugal.
19. O contrato foi assinado pelos requeridos em Portugal e remetido à requerente para assinatura por correio.
20. O contrato foi assinado pela requerente em Maio de 2011 na Arroteia, Luz de Tavira, contra o pagamento da “caução” de € 1.600,00 pelos requeridos. 21. Os requeridos procederam aos pagamentos das rendas indicadas no quadro I do complemento do requerimento de despejo nas datas aí indicadas.
22. A requerente foi contactada pelos requeridos que pretendiam arrendar-lhe o locado, em Janeiro de 2011, tendo acedido em alugar o locado em causa aos requeridos, nas seguintes condições:
a) Contrato seria celebrado por 2 anos;
b) Renda seria de € 800,00 por mês;
c) Os Requeridos teriam de tomar conta de tudo, i.e., da casa e de todo o jardim e mesmo daquelas coisas que normalmente competem ao proprietário, pagando todas as despesas;
d) Os Requeridos teriam de substituir as janelas de vidro simples por janelas de vidro duplo.
23. Após a aceitação dos requeridos, com vista à formalização do contrato, foram trocadas entre a requerente e os requeridos as mensagens de correio electrónico datadas de 28.01.2011, de 29.01.2011 e de 30.01.2011, juntas a fls. 191 a 193,cujos teores se dão aqui como integralmente reproduzidos.
24. A notificação do PED desestabilizou psicologicamente os requeridos que, com dois filhos menores, se viram confrontados com o pedido de despejo no meio do ano lectivo das crianças e sem casa para onde ir.
25. Passando a andar mais nervosos.
26. Com a notificação do requerimento de despejo e a necessidade de se oporem ao mesmo, os requeridos tiveram que despender o seu tempo para procurar um advogado e reunir com ele.
27. Tiveram ainda os requeridos que depositar uma caução no valor das rendas que a requerente invoca que estão em falta, deixando de poder usufruir desse dinheiro enquanto o procedimento de despejo decorrer em Tribunal.

Apreciando agora a questão levantada pela Autora, ora apelante – saber se não obstante ao litígio a dirimir serem aplicáveis as normas substantivas da lei belga, sempre a recorrente poderá fazer uso (para eventual obtenção de ganho de causa) do procedimento especial de despejo (PED) previsto na lei portuguesa, atento o carácter adjectivo do referido diploma legal – haverá que referir, desde já, a tal propósito que o entendimento sufragado na decisão recorrida confunde a substância com a forma, ou seja, confunde a lei reguladora da relação jurídica, com a forma de efectivar os direitos e as obrigações emanadas dessa mesma relação jurídica.
Na verdade, se relativamente à determinação dos direitos e deveres recíprocos das partes na relação jurídica sub judice (incumprimento do contrato de arrendamento) se aplica a lei belga, nos termos do Regulamento CE nº 593/2008, de 17/6, já quanto à forma de efectivar e concretizar aqueles direitos, isto é, aos processos e procedimentos que o credor pode adoptar no país do foro competente, deverá aplicar-se a lei desse foro, que é a portuguesa.
Com efeito, se é verdade que aos direitos e obrigações das partes e às consequências do cumprimento ou incumprimento contratual – que é, afinal, o que está em causa neste processo – se aplica a lei belga, à relação jurídica sub judice apenas são aplicáveis dessa mesma lei estrangeira as normas que, pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado pela regra de conflitos, conforme estipula o art. 15º do Cód. Civil e, no mesmo sentido, o disposto no art. 12º do Regulamento CE nº 593/2008, de 17/6 (sobre a lei aplicável às obrigações contratuais).
Por outro lado, quanto à forma de efectivar o direito estrangeiro no país do foro, deve aplicar-se o direito processual desse foro, uma vez que os procedimentos das instituições competentes não mudam em função do direito aplicável.
A este respeito importa ter presente o disposto no art. 63º do C.P.C., onde se estipula que:
Os tribunais portugueses são exclusivamente competentes:
- a) Em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis situados em território português; todavia, em matéria de contratos de arrendamento de imóveis celebrados para uso pessoal temporário por um período máximo de seis meses consecutivos, são igualmente competentes os tribunais do Estado membro da União Europeia onde o requerido tiver domicílio, desde que o arrendatário seja uma pessoa singular e o proprietário e o arrendatário tenham domicílio no mesmo Estado membro.
(…)
d) Em matéria de execuções sobre imóveis situados em território português.

Assim sendo, o foro competente é o português e para a efectivação dos direitos apurados segundo a lei belga para o caso concreto, aplicam-se as normas de carácter processual vigentes no direito interno português.
Deste modo, resulta claro que, a forma de efectivar o direito à resolução do contrato de arrendamento reveste natureza adjectiva, já que, independentemente da forma que a lei em cada momento estabeleça para o efeito, tal não contende com o conteúdo do direito (substantivo) em causa.
Daí que, as normas contidas nos arts. 15º a 15º-S do NRAU regulam a forma de fazer cessar o contrato de arrendamento por falta de pagamento de determinado número de rendas e a forma de efectivar a desocupação do arrendado, não regulando, de todo, as consequências do incumprimento consistente naquela falta de pagamento.
Por isso, se a lei estipula que para efectivar a desocupação efectiva do arrendado e, nomeadamente, para procurar receber as rendas em dívida e/ou a indemnização (apurados segundo o direito substantivo) o senhorio tem necessariamente de recorrer ao Tribunal, ou pode apenas enveredar por um mecanismo extrajudicial que visa tais efeitos (com eventual controle judicial), estamos em presença de direito adjectivo.
Ora, “in casu”, a escolha feita pela senhoria, da notificação judicial avulsa dirigida aos inquilinos, como forma de efectivar o direito que entendeu ter à resolução do contrato, com fundamento na falta de pagamento das rendas por parte dos inquilinos, tem de ser considerada acertada, uma vez que é o meio processualmente adequado para o efeito (cfr. nº 2 do art. 1084º do Cód. Civil, norma adjectiva do foro competente aplicável), desde a entrada em vigor da Lei 6/2006, de 27/2.
De igual forma não existe qualquer limitação legal ao facto de a senhoria, aqui Autora, ter recorrido ao procedimento especial de despejo (PED), por ser o meio legalmente previsto e adequado para o efeito, face à lei processual vigente após a revisão operada pela Lei 31/2012, de 14/8 – cfr. artigo 15º, nºs 1 e 2, alínea e), 4 e 15º-A e segs. do NRAU.
Por isso, sempre se dirá que, sendo os meios procedimentais e processuais a utilizar, no caso em apreço, os previstos na legislação portuguesa, não se justifica, de todo, impedir o acesso da recorrente ao procedimento especial de despejo (PED), apenas por se estar perante relações entre sujeitos de nacionalidades diferentes ou domicílios fora do território português, atenta a ratio que presidiu à instituição deste regime.
Na verdade, a Lei 31/2012, de 14/8, que veio a criar o procedimento especial de despejo (PED), correspondeu à concretização de compromissos que foram assumidos pelo Estado Português no Memorando de Entendimento sobre as condicionalidades da política económica de 17/5/2011 (Memorando da Troika).
Com efeito, tratou-se de um conjunto de alterações legislativas que, de uma forma geral, visaram agilizar o mercado do arrendamento, para tornar este, não só uma opção válida para quem procura casa mas também para cativar e incentivar o investimento imobiliário (nacional e estrangeiro), alterando o sistema judicial com vista a combater a morosidade do mesmo (criando mecanismos para acelerar certas formas de cessação do contrato de arrendamento, em especial, em caso de incumprimento por falta de pagamento de rendas) e o procedimento tendente à desocupação dos imóveis.
Estas alterações legislativas foram tidas por essenciais para a economia Portuguesa, numa época de grave crise económica e financeira, não só pelo Estado Português mas também pelos organismos internacionais que vieram a ajudar financeiramente Portugal, e visaram, essencialmente, prever um procedimento de despejo extrajudicial por violação de contrato, com o objectivo de encurtar o prazo de despejo para três meses.
O que resulta, quer do Memorando de Entendimento, quer das alterações introduzidas pela Lei 31/2012, foi que as medidas processuais extrajudiciais se destinam a ser aplicadas em território nacional, a senhorios e inquilinos, sem qualquer distinção entre relações estabelecidas entre cidadãos nacionais e relações estabelecidas com cidadãos de outras nacionalidades ou domicílio noutros territórios, o que bem se compreende, pois se as medidas introduzidas visavam intervir no mercado do arrendamento, essa intervenção deveria operar independentemente da nacionalidade dos sujeitos para plena eficácia das medidas.
Assim sendo, forçoso é concluir que – independentemente das normas legais substantivas aplicáveis ao caso sub judice – os meios processuais (PED) utilizados pela Autora, ora apelante, para fazer cessar a relação de arrendamento com os Réus e para efectivar essa cessação, foram os adequados em face das normas jurídicas aplicáveis (cfr., entre outros, os arts. 63º, alíneas a) e d), do C.P.C., 12º do Regulamento CE nº 593/2008, de 17/6, 15º e 1084º, nº 2, do Cód. Civil e 9º a 12º e 15º a 15º-S do NRAU), pelo que a sentença recorrida não se poderá manter, de todo, revogando-se a mesma em conformidade e, em consequência, determina-se a remessa dos autos à 1ª instância, a fim de aí ser proferida nova sentença que conheça do mérito da causa (aplicando a lei substantiva belga para o efeito).

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Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
- Se relativamente à determinação dos direitos e deveres recíprocos das partes na relação jurídica sub judice (incumprimento do contrato de arrendamento) se aplica a lei belga, nos termos do Regulamento CE nº 593/2008, de 17/6, já quanto à forma de efectivar e concretizar aqueles direitos, isto é, aos processos e procedimentos que o credor pode adoptar no país do foro competente, deverá aplicar-se a lei desse foro, que é a portuguesa.
- A forma de efectivar o direito à resolução do contrato de arrendamento reveste natureza adjectiva, já que, independentemente da forma que a lei em cada momento estabeleça para o efeito, tal não contende com o conteúdo do direito (substantivo) em causa.

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Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, nos exactos e precisos termos acima explanados.
Sem custas.
Évora, 07-12-2017
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Canelas Brás

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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).