Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
367/10.2T2SNS.E1
Relator: CRISTINA CERDEIRA
Descritores: DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DE UM DOS CÔNJUGES
DEVER DE FIDELIDADE
DEVER DE RESPEITO
RUPTURA CONJUGAL
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I) - O actual regime jurídico do divórcio instituído pela Lei nº. 61/2008 de 31/10 eliminou a culpa como fundamento do divórcio sem o consentimento do outro cônjuge e veio a alargar os fundamentos objectivos da ruptura conjugal. Daí ter acrescentado uma cláusula geral [alínea d) do artº. 1781º do Código Civil], dando relevância a outros factos que mostram claramente a ruptura definitiva do casamento, independentemente da culpa dos cônjuges e do decurso de qualquer prazo.

II) - Embora a culpa seja irrelevante para o efeito de decretar o divórcio, não o é como elemento de avaliação do preenchimento do conceito “ruptura definitiva do casamento”; daí que a questão da violação culposa ou inobservância dos deveres conjugais continua a ser relevante na apreciação da “ruptura definitiva do casamento” consagrada na lei.

III) - Resultando provado que desde 2003, a A. e o R. discutiam com frequência, por constar que o R. tinha relacionamentos amorosos com outras mulheres e quando era confrontado pela A. e pelas filhas, aquele não negava tais relacionamentos, prometendo mudar e que em 6/06/2010, quando a A. comunicou ao R. a sua intenção de requerer o divórcio, este tentou agredi-la fisicamente, chamou-a de “puta” e “víbora” e ameaçou deitar fogo à casa, o que determinou que a A. saísse de casa e fosse residir com as filhas, tais factos praticados são graves e consubstanciam uma manifesta violação por parte do R. dos deveres conjugais de fidelidade e respeito, conduzindo à ruptura definitiva do casamento.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I. RELATÓRIO

BB intentou a presente acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra seu marido CC, pedindo que seja decretado o divórcio entre ambos.

Invoca, para tanto, factos de onde decorre, em seu entender, a ruptura definitiva do casamento e a separação entre A. e R. há mais de um ano consecutivo, não havendo da sua parte o propósito de restabelecer a vida conjugal com o Réu.

Citado o Réu, e frustrada a tentativa de conciliação, veio este contestar, impugnando os factos alegados pela Autora e concluindo pela improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.

Foi proferido despacho saneador, com selecção da matéria de facto assente e organização da base instrutória, que não sofreram reclamações.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo.

Após a resposta à matéria de facto constante da base instrutória, que não sofreu qualquer reclamação, veio a Autora a falecer (fls. 103 e 104), tendo-se procedido à habilitação de herdeiros das suas duas filhas DD e EE, para em substituição da falecida, prosseguirem os ulteriores termos da demanda (fls. 30 a 33 do Apenso A).

O Réu veio aos autos informar de que não pretendia a continuação da presente acção para efeitos patrimoniais (fls. 108 a 110). Todavia, as referidas herdeiras habilitadas vieram requerer o prosseguimento da acção para o efeito previsto no artº. 1785º, nº. 3 do Código Civil, alegando, para tanto, que mantinham interesse patrimonial na demanda, por serem, no caso do divórcio vir a ser decretado, as únicas herdeiras da Autora (fls. 111 a 114).

Após, foi proferida sentença que julgou a presente acção procedente e, em consequência, decretou o divórcio entre a Autora e o Réu, declarando dissolvido o casamento que os unia e considerando que, face ao falecimento da Autora, a dissolução do casamento por divórcio apenas será relevante em termos patrimoniais.

Inconformado com tal decisão, o Réu dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:

«Quanto à violação do dever de fidelidade

1ª - O tribunal a quo julgou pela procedência da acção de divórcio, com base no fundamento da alínea d) do art. 1791º do C Civil – ruptura definitiva do casamento.

2ª - A autora além deste fundamento havia igualmente invocado a separação de facto, nos termos do art. 1782º do C.Civil, fundamento que o tribunal a quo não veio a julgar procedente.

3ª - A sentença recorrida, com base na matéria provada veio a julgar verificadas a violação dos deveres de fidelidade e respeito, de forma grave, por parte do Réu.

4ª - Não se provou que o Réu tivesse violado o dever de fidelidade.

5ª - Conforme resulta da resposta de facto aos quesitos 1º e 2ª, apenas se provou que desde 2003 A. e R. discutiam com frequência, por constar que o R. tinha relacionamentos amorosos e que a A. e as filhas o confrontavam com isso e o R não negava.

6ª - Da matéria de facto provada (resposta aos quesitos 1º e 2º) não resulta que o Réu tivesse sido visto com outra mulher em circunstância amorosa e que concretizasse uma violação do dever de fidelidade para com a A.

7ª - Não se provou que o Réu tivesse qualquer relacionamento físico ou sentimental com outra mulher.

8ª - Da prova apenas resulta que a A. imputava ao Réu a existência desse tipo de relacionamentos.

9ª - O facto de o Réu não o negar é irrelevante. O Réu de tanto o acusarem infundadamente já nem sequer respondia negando.

10ª - Não foi sequer alegado pela A. que o Réu tivesse sido encontrado com a mulher A ou B em circunstâncias que revelassem uma relação amorosa, física ou sentimental com outra ou outras mulheres.

11ª - A A. apenas logrou provar que fazia essas imputações ao R., porque constava que existiam relacionamentos amorosos.

12ª - Nem a própria A., nem as filhas, nem outras pessoas alguma vez viram o Réu em tais circunstâncias ou se concretizou alguma dessas circunstâncias como seria expectável e natural, para quem desde 2003 teria relacionamentos amorosos com outras mulheres.

13ª - Não se pode afirmar a violação do dever de fidelidade sem a prova de um relacionamento amoroso (físico ou apenas sentimental) do Réu com outra mulher que tivesse sido visto, constatado e que alguém o confirmasse.

14ª - É impossível poder afirmar essa violação apenas com os factos provados nos quesitos 1º e 2º da resposta á matéria de facto.

15ª É entendimento do Réu que não poderia ter sido decretado o divórcio com fundamento na violação do dever de fidelidade, sem que se tivesse provado a existência efectiva de qualquer relacionamento amoroso do Réu com outra mulher.

16ª - E lendo a resposta aos quesitos 1º e 2º de forma séria apenas se provou que a A. imputava essa violação ao Réu, mas sem que a A. tivesse provado os concretos factos dos alegados relacionamentos.

17ª - Portanto, não poderia ter-se julgado que o Réu violou o dever de fidelidade para com a A.

18ª - Há notório erro na apreciação da prova e como tal não poderia o divórcio ter sido decretado com base em tal fundamento, ao abrigo da al. d) do art. 1791º do C.Civil.

19ª Deve a sentença recorrida ser revogada, substituindo-se por outra que julgue improcedente o pedido de divórcio com base na violação do dever de fidelidade do Réu.

20ª – A sentença recorrida violou o disposto no art. 1791º d) do CPCivil.

***

21ª - A sentença recorrida julgou verificada a violação do dever de respeito porquanto no dia 6 de Junho de 2010 (resposta aos quesitos 6º a 10º) quando a A. comunicou ao Réu que pretendia divorciar-se, este tentou agarrá-la pelo braço e chamou-a de “puta” e “víbora” e posteriormente ameaçou pegar fogo à casa.

22ª - Em primeiro lugar, o facto de tentar agarrar a A. pelo braço é irrelevante pois não se diz, nem ficou provado que a tentativa de agarrar a A. fosse violenta ou para a agredir ou fazer mal.

23ª - Provou-se que o Réu na sequência de a A. lhe ter dito que se pretendia divorciar chamou-a de “puta” e “víbora”.

24ª - Aquilo que no caso se constata é que a A. alega ter discussões com o Réu desde 2003, mas apenas prova uma ocasião em que o Réu lhe chamou os referidos nomes.
O que é estranho, para um relacionamento alegadamente tão mau.

25ª - Atendendo ao circunstancialismo em causa, com a A. a imputar consecutivamente ao Réu a existência de relações amorosas (que não logrou provar nos autos) e depois de comunicar ao Réu que pretendia divorciar-se, o facto de o Réu lhe ter chamado tais nomes, numa única ocasião concreta e naquele circunstancialismo dificilmente se pode julgar pela violação do dever de respeito.

26ª - Mais se diga ainda que não se provou que a A. fosse pessoa de elevada sensibilidade ou de educação moral ou religiosa que fosse facilmente perturbada com a atitude do Réu.

27ª - Naquele circunstancialismo de “cabeça quente” do Réu e perante as constantes acusações de que era alvo e com a comunicação da intenção de se divorciar pela A. a reacção do Réu, chamando-lhe tais nomes deve ser encarada como uma reação de “cabeça quente”, de quem perde o auto-controle.

28ª - Julgar pela violação do dever de respeito, atendendo a que se provou que o Réu lhe chamou tais nomes numa única ocasião e na sequência da A. o ter informado que pretendia o divórcio é claramente desajustado à gravidade dos factos provados (6º a 8º da resposta aos quesitos).

29ª - É entendimento do Réu que não se verifica a gravidade necessária, nem sequer a violação do dever de respeito necessária para o decretamento do divórcio.

30ª - Errou a sentença recorrida quando decretou o divórcio com fundamento na violação do dever de respeito de forma grave e que consubstancia a ruptura definitiva do casamento, nos termos do art. 1791º d) do C.Civil.

31ª - Os factos provados nos quesitos 6º a 8º não são suficientes para se entender violado o dever de respeito de forma grave e o consequente direito ao divórcio.

32ª - Houve incorrecta aplicação do art. 1791º d) do C.Civil.

Por todo o exposto, não deveria ter sido decretado o divórcio, tendo a sentença recorrida violado o disposto no art. 1791º d) do C.Civil, devendo substituir-se por outra que julgue improcedente a acção».

As herdeiras da Autora habilitadas contra-alegaram, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:

«1 – A apresentação das alegações é extemporânea, porquanto, a sentença já transitou em julgado.

2 – Tal decisão foi notificada através da plataforma “Citius” ao mandatário do recorrente, Dr. FF, em 6 de Fevereiro de 2013.

3 – Destarte, a sentença transitou em julgado em 11 de Março de 2013.

4 – Não obstante o ora Recorrente, em 11 de Julho de 2012, ter junto aos autos procuração forense outorgado a favor do Il. mandatário subscritor das doutas alegações, tal facto por si só não implica a revogação automática nem, tampouco, tácita do mandato conferido ao Il. mandatário Dr. FF.

5 – Nesta situação verifica-se pluralidade de mandatários judiciais não exigindo a lei a notificação de ambos os advogados, relativamente à tramitação processual.

6 – Nesta conformidade a notificação da sentença efectuada ao Il. mandatário do Réu, ora Recorrente, Dr. FF, em 6 de Fevereiro de 2013, foi validamente efectuada.

À mera cautela e por dever de patrocínio, sempre se dirá que:

7 – A douta decisão proferida pelo Tribunal a quo considerou como provado que Autora e Réu, desde o ano de 2003, discutiam com frequência, por constar que o Réu tinha relacionamentos amorosos com outras mulheres e quando era confrontado pela Autora e filhas o Réu não negava tais relacionamentos, antes prometendo mudar.

8 – Como muito bem se salienta na douta sentença recorrida, o Réu não negava tais relacionamentos, logo admitia-os.

9 – Ora, ao admitir tais relacionamentos ao mesmo tempo que prometia mudar o seu comportamento, ou seja, abster-se de manter tais relacionamentos o Réu, ora Recorrente, violou o dever conjugal de fidelidade que era devido à Autora, e a que o Réu, como seu marido, estava obrigado.

10 – O ora Recorrente, ao apelidar a Autora de “víbora” e “puta” ao mesmo tempo que ameaçava deitar fogo à casa de morada de família infringiu o dever de respeito devido a esta.

11 – É indiscutível que o comportamento do Réu, ora Recorrente, é ofensivo da integridade moral da Autora.

12 – A atitude da Autora ao decidir sair da casa de morada de família e ir residir para casa das filhas, revela que não perdoou ao Réu tal comportamento.

13 – Tal facto, é também, demonstrativo da gravidade que para a Autora assumiu o comportamento do Réu e da impossibilidade de continuar a viver com ele.

14 – Da conjugação dos factos que consubstanciam violação dos deveres de fidelidade e respeito com o facto de Autora e Réu, desde 2008 não tomarem refeições um com o outro nem dormirem na mesma cama concluiu, e bem, o Tribunal a quo, sem dúvida, pela ruptura do casamento.

15 – Tais factos não podem deixar de transparecer a quebra dos laços afectivos que devem unir um casal, denunciando, assim a própria ruptura do casamento.

16 – Por outro lado, em relação à Autora, a própria invocação processual desses factos, demonstram, inequivocamente, que esta ruptura é definitiva.

17 – No Projecto de Lei nº 509/X, Exposição de Motivos, refere-se expressamente que, de acordo com “o princípio da liberdade, ninguém deve permanecer casado contra a sua vontade ou se considerar que houve quebra do laço afectivo”.

18 – Destarte, no âmbito da alínea d) do art.º 1781º do Cod. Civil, sempre se poderia integrar a própria instauração desta acção de divórcio por parte da Autora, como um fundamento autónomo para o próprio pedido de divórcio formulado,

ou seja,

19 – A Autora ao instaurar esta acção de divórcio está por si só a afirmar que, em relação à sua pessoa, ocorreu ruptura definitiva do casamento e, nessa medida o divórcio teria de ser decretado.

20 – Tendo em consideração a matéria de facto provada, não poderia o Tribunal a quo deixar de declarar a dissolução do casamento entre Autora e Réu, decretando o respectivo divórcio.

21 – Por conseguinte, a douta sentença faz uma correcta apreciação da prova e consequentemente do Direito.

22 – Não merecendo qualquer reparo.

Nestes termos deve ser declarado que a sentença não é susceptível de recurso, porquanto, já transitou em julgado, ou, caso assim se não entenda, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida nos seus precisos termos.

Porém,

V. Exas. melhor apreciando,

decidirão,

fazendo, como sempre, a costumada

JUSTIÇA!»

O recurso foi admitido por despacho de fls. 165.

Tendo as recorridas, nas suas contra-alegações, suscitado a questão da rejeição do recurso por extemporaneidade, por determinação da relatora nesta Relação foi cumprido o disposto no artº. 703º, nº. 2 “ex vi” do artº. 704º, nº. 2 ambos do CPC, na versão anterior à Lei nº. 41/2013 de 26/6 aplicável “in casu”, e em obediência à regra do contraditório.

Notificado o recorrente nos termos e para os efeitos das supra citadas disposições legais, este veio responder pugnando pela admissibilidade do recurso, alegando que o seu mandatário foi notificado da sentença que decretou o divórcio apenas em 9/07/2013, conforme ordenado por despacho de 3/07/2013, com o qual as recorridas se conformaram, pois do mesmo não recorreram, sendo que qualquer notificação anterior à de 9/07/2013 não é válida, conforme resulta do aludido despacho, uma vez que o novo mandatário do recorrente se mostrava constituído nos autos desde 11/07/2012.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.




II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 660º, nº. 2, 684º, nº. 3 e 685º-A, nº. 1 todos do Código de Processo Civil, na versão anterior à Lei nº. 41/2013 de 26/6, aplicável “in casu”.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pelo Réu, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à questão de saber se houve erro notório na apreciação da prova e se, com base na factualidade dada como provada, poderia ter sido decretado o divórcio com fundamento no artº. 1781º, al. d) do Código Civil (e não artº. 1791º como, certamente por lapso, é referido na sentença recorrida e nas alegações de recurso e suas conclusões).

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos [transcrição]:

1. «Autora e réu contraíram entre si casamento civil, sem convenção antenupcial, em 16 de Setembro de 1972 (Al. A da matéria assente).

2. Com referência aos artigos 6º a 9º da BI, a autora apresentou queixa-crime contra o réu, a qual corre termos na comarca do Alentejo Litoral, serviços do MºPº, com o número (...)GHSTC (Al. B) da matéria assente).

3. Desde 2003 a A. e o R. discutiam com frequência, por constar que o réu tinha relacionamentos amorosos com outras mulheres e quando era confrontado pela autora e pelas filhas, o R. não negava tais relacionamentos, prometendo mudar (N.º 1 e 2 da base instrutória).

4. A partir de 2008, a Autora e Réu passaram a dormir em quartos separados, na casa em que ambos habitam (Nº 3 da base instrutória).

5. A partir da mesma data, deixaram de conviver e tomar refeições juntos (Nº 4 da base instrutória).

6. Em 6 de Junho de 2010, quando a autora comunicou ao autor a sua intenção de requerer o divórcio, este tentou agarrá-la pelo braço, chamou-a de “puta” e “víbora” e posteriormente ameaçou pegar fogo à casa, o que motivou que a autora fosse viver com as filhas (Nº 6, 7, 8 e 9 da base instrutória)».


*

Apreciando e decidindo.

Independentemente da apreciação do objecto do recurso, delimitado nos termos atrás referidos, constitui pressuposto do seu conhecimento a prévia admissibilidade do mesmo, sendo que as recorridas, nas suas contra-alegações, vieram suscitar a questão da rejeição do recurso por extemporaneidade da sua apresentação.

Tal questão não pode deixar de se assumir como prévia, sendo indiscutível que a decisão de admissão do recurso, proferida na 1ª instância, não vincula este Tribunal da Relação (artº. 685º-C, nº. 5 do CPC).

Nesta parte, acompanhamos a posição defendida no despacho proferido pelo Mº Juiz “a quo” em 11/11/2013, que considerou tempestivo o recurso interposto pelo Réu e o admitiu.

Conforme se alcança dos autos, a sentença sob censura foi notificada através da plataforma Citius ao primitivo mandatário do recorrente, Sr. Dr. FF, e ao mandatário da Autora em 6/02/2013 (fls. 123, 124 e 191), quando o Réu já tinha constituído um novo mandatário nos autos desde 10/07/2012 (fls. 69 do Apenso A).

O novo mandatário do Réu, ora recorrente, apenas foi notificado da sentença que decretou o divórcio através da plataforma Citius em 9/07/2013, conforme ordenado por despacho de 3/07/2013 (fls. 137, 139 e 192), na sequência de requerimento apresentado por aquele em 13/05/2013 (fls. 133 a 136).

Ter-se-á, pois, de concluir que qualquer outra notificação anterior à de 9/07/2013 é ineficaz, conforme resulta do despacho proferido em 3/07/2013, que ordenou a notificação da sentença ao novo mandatário do Réu, que se mostrava constituído nos autos desde 11/07/2012.

Considerando a data em que ocorreu a última notificação da sentença, o prazo de 30 dias previsto no artº. 685º, nº. 5 do CPC para a interposição de recurso terminou em 27/09/2013. Ora, tendo o Réu apresentado o presente recurso precisamente naquela data, é o mesmo tempestivo e legalmente admissível, tal como decidiu o Tribunal “a quo”.


*

Analisemos agora a questão que integra o objecto do recurso.

Entende o recorrente ter havido erro notório na apreciação da prova, alegando que em face da resposta dada aos quesitos 1º e 2º (ponto 3 dos factos provados) não poderia o divórcio ter sido decretado com fundamento na violação do dever de fidelidade e que a resposta dada aos quesitos 6º a 9º (ponto 6 dos factos provados) não é suficiente para se concluir ter o Réu violado o dever de respeito por forma a conduzir à ruptura definitiva do casamento.

Vejamos se lhe assiste razão.

De acordo com o disposto no artº. 1672º do Código Civil, os cônjuges estão reciprocamente vinculados aos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.

Como explica o Prof. Antunes Varela, o dever de fidelidade recíproca corresponde ao compromisso da dedicação exclusiva dos cônjuges entre si e envolve a proibição de qualquer deles manter relações sexuais com terceiras pessoas (in “Direito da Família”, 1982, pág. 275). De acordo com o mesmo autor, a forma extrema da quebra do dever de fidelidade, a que se dá o nome de adultério, denomina-se por infidelidade material, mas existem, segundo defende, outras formas de violação de tal compromisso conjugal que podem designar-se por infidelidade moral, como sejam as “relações sexuais sem cópula, inseminação artificial com esperma de outro homem, flirt ou namoro com outra pessoa, ligação sentimental com outrem” (cfr. ob. cit., pág. 276).

Por seu turno, o dever de respeito corresponde à obrigação que sobre cada um dos cônjuges recai de não atentar contra a integridade física ou moral do outro, os seus direitos individuais, conjugais e familiares (cfr. Antunes Varela, ob. cit., pág. 295), compreendendo-se na “integridade moral” todos os bens ou valores de personalidade: a honra, a consideração social, o amor próprio, a sensibilidade e ainda a susceptibilidade pessoal. Infringe o dever de respeito o cônjuge que maltrata ou injuria o outro.

A presente acção de divórcio rege-se pelo regime jurídico introduzido pela Lei nº. 68/2008 de 31/10, a qual veio permitir o decretamento do divórcio a pedido apenas de um dos cônjuges, independentemente de qualquer conduta culposa do outro, com base apenas na constatação de situações objectivas que só por si demonstrem a ruptura definitiva do vínculo conjugal.

Não existindo acordo de ambos os cônjuges para que seja decretado o divórcio, qualquer um deles pode pedir o divórcio sem consentimento do outro, em conformidade com o disposto nos artºs 1773º, nº. 3 e 1779º ambos do Código Civil, encontrando-se os respectivos fundamentos objectivos e/ou subjectivos no artº. 1781º do mesmo diploma legal.

Estabelece esta norma que:

“São fundamentos do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:

a) A separação de facto por um ano consecutivo;

b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;

c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano;

d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento”.

Assim, o actual regime jurídico do divórcio instituído pela citada Lei nº. 61/2008 afastou/eliminou a culpa como fundamento do divórcio sem o consentimento do outro cônjuge e veio a alargar os fundamentos objectivos da ruptura conjugal. Daí ter acrescentado uma cláusula geral [alínea d) do artº. 1781º do Código Civil], dando relevância a outros factos que mostram claramente a ruptura definitiva do casamento, independentemente da culpa dos cônjuges e do decurso de qualquer prazo.

Dada a importância actualmente atribuída aos afectos para o bem-estar das pessoas, passou a considerar-se que, em caso de persistente desentendimento no casamento, os cônjuges não devem ser obrigados a manter o vínculo conjugal a qualquer preço.

E sempre que a modalidade do mútuo acordo não seja possível e não haja consentimento de uma das partes, a lei procura assentar em causas objectivas a demonstração da ruptura da vida em comum e a vontade de não a continuar (cfr. acórdão da RC de 6/07/2011, proc. nº. 394/10.0TMCBR, acessível em www.dgsi.pt).

Embora a culpa seja irrelevante para o efeito de decretar o divórcio, não o é como elemento de avaliação do preenchimento do conceito “ruptura definitiva do casamento”. Melhor explicitando, o legislador não aboliu a questão da culpa na prática de factos que constituem violação dos deveres conjugais; o que pretendeu foi que o divórcio, haja ou não culpa, deve ser decretado quando esteja demonstrada a ruptura definitiva do casamento, bem como eliminar de forma definitiva a culpa, enquanto fundamento de divórcio, e suas consequências patrimoniais.

Tanto assim que não modificou, revogou ou alterou os deveres conjugais a que os cônjuges se mostram reciprocamente vinculados; antes, os manteve, em consequência do casamento.

Donde, como refere Tomé D’Almeida Ramião (in “O Divórcio e Questões Conexas – Regime Jurídico Atual”, 3ª ed., 2011, Quid Juris, pág. 75 e 76), a questão da violação culposa ou inobservância dos deveres conjugais continua a ser relevante na apreciação da “ruptura definitiva do casamento” consagrada na lei. Aliás, se os factos traduzirem uma violação culposa de deveres conjugais, evidenciam, acentuam e clarificam a ruptura definitiva do casamento.

Refere, ainda, este mesmo autor que «… porque a culpa deixa de constituir fundamento do direito ao divórcio, nem só a violação ou inobservância dos deveres conjugais poderão conduzir a uma rutura definitiva do casamento. Outros factos poderão demonstrá-lo, embora se reconheça que na esmagadora maioria dos casos a violação dos deveres conjugais está na base da rutura definitiva do casamento.

Esta leitura que parece resultar do texto legal, é reforçada pela exposição de motivos, onde refere que: “(…) Por isso, acrescenta-se uma cláusula geral que atribui relevo a outros factos que mostram claramente a rutura manifesta do casamento, independentemente da culpa dos cônjuges e do decurso de qualquer prazo (…)”.

Veja-se, por exemplo, o caso em que os cônjuges mantêm uma persistente relação conflituosa, com discussões e desentendimentos constantes, com a consequente perda de afectividade entre ambos, provocando sentimentos de mal-estar, angústia e sofrimento, e em que não estamos em presença de qualquer facto que traduza violação dos deveres conjugais, mas que poderá revelar uma rutura definitiva do casamento, com o consequente direito ao divórcio. São por isso admitidos outros factos para além daqueles que possam configurar violação objectiva de deveres conjugais desde que revelem uma rutura definitiva do casamento. Nesse sentido, é maior a amplitude dos factos que poderão conduzir à rutura definitiva do casamento e, consequentemente, permite-se aos cônjuges maior facilidade na obtenção do divórcio» (in ob. cit., pág. 77).

O Tribunal recorrido, em face da matéria dada como provada e acima explanada, decidiu decretar o divórcio entre a Autora e o Réu por julgar verificado o fundamento da alínea d) do artº. 1781º do Código Civil (e não artº. 1791º como, por lapso, é indicado na sentença recorrida), argumentando na “fundamentação de direito” o seguinte:

«No caso concreto a autora invoca como causa de pedir a separação de facto entre si e o seu cônjuge por mais de um ano consecutivo, bem como factos susceptíveis de integrar a violação dos deveres de fidelidade (relações extraconjugais com outras mulheres) e de respeito (chamando-lhe vários impropérios como “víbora ordinária”, “puta”, ameaças de pegar fogo à casa de morada de família, tentativa de agressões físicas).

Ora, da factualidade provada e fixada supra resulta provado que a autora e o réu desde o ano de 2003 discutiam com frequência, por constar que o réu tinha relacionamentos amorosos com outras mulheres e quando era confrontado pela autora e pelas filhas, o R. não negava tais relacionamentos, antes prometendo mudar. Desde 2008, autora e réu deixaram de conviver um com o outro, passando a dormir em quartos separados. Num dos últimos episódios de discussão, o réu apelidou a autora de “víbora ” e “puta”, ameaçou deitar fogo à casa e tentou agredi-la fisicamente. A autora decidiu então sair de casa e ir residir para casa das filhas. Foi a autora que tomou a iniciativa de se divorciar intentando a presente acção.

(…)

A autora e réu não vinham tomando as refeições um com o outro nem dormiam na mesma cama, embora partilhassem a mesma casa. Esta vivência, por si só poderá não integrar o conceito de separação de facto acima explanado, mas associada às frequentes discussões entre o casal suscitadas por relacionamentos extraconjugais do réu que este não negava, logo admitia-os, e ao último episódio em que o réu apelidou a autora de “víbora” e “puta”, ameaçando deitar fogo à casa de morada de família, factos que determinaram a saída da autora de casa, são factos graves que consubstanciam uma manifesta violação do dever de fidelidade e respeito por parte do réu. A conjugação de todos estes factos permitem concluir, sem dúvida, pela rotura definitiva do casamento, pois não era exigível à autora que continuasse a viver com o seu consorte como marido e mulher».

Com efeito, tendo resultado provado que:

- desde o ano de 2003, a Autora e o Réu discutiam com frequência, por constar que o Réu tinha relacionamentos amorosos com outras mulheres e quando era confrontado pela Autora e pelas filhas, o Réu não negava tais relacionamentos, prometendo mudar;

- a partir de 2008, a Autora e o Réu deixaram de conviver um com o outro e de tomar refeições juntos, passando a dormir em quartos separados;

- e em 6 de Junho de 2010, quando a Autora comunicou ao Réu a sua intenção de requerer o divórcio, este tentou agredi-la fisicamente, chamou-a de “puta” e “víbora” e ameaçou deitar fogo à casa, o que determinou que a Autora saísse de casa e fosse residir com as filhas;

bem andou o Tribunal “a quo” ao concluir que tais factos praticados pelo Réu são graves e consubstanciam uma manifesta violação dos deveres conjugais de fidelidade e respeito, que eram devidos à Autora e a que o Réu, como seu marido, estava obrigado.

O cônjuge que injuria o outro e que admite ter relacionamentos extraconjugais, para além de estar a ofender a integridade moral do visado, não respeita a personalidade do outro cônjuge e infringe o correspondente dever.

A atitude da Autora de sair da casa de morada de família e ir residir com as filhas, revela que não perdoou ao Réu tal comportamento, sendo este facto demonstrativo da gravidade que para a Autora assumiu o comportamento do Réu, ora recorrente, e da impossibilidade de continuar a viver com ele como marido e mulher.

Ademais, foi a Autora que tomou a iniciativa de se divorciar intentando a presente acção, pelo que concordamos com o Tribunal “a quo” quando refere que a conjugação de todos estes factos supra descritos permite concluir, sem margem para dúvidas, pela ruptura definitiva do casamento.

Com efeito, se é certo que não se tecem considerações ligadas à culpa na assumpção destes comportamentos por parte do Réu, a verdade é que esses mesmos factos não podem deixar de transparecer a quebra dos laços afectivos que devem unir um casal denunciando, assim, a própria ruptura do casamento.

Por outro lado, em relação à Autora, a própria invocação processual destes factos demonstram, inequivocamente, que essa ruptura é definitiva.

Nesta mesma linha de pensamento, veja-se o Projecto de Lei nº. 509/X - Exposição de Motivos, em que se refere expressamente que, de acordo com “o princípio da liberdade, ninguém deve permanecer casado contra a sua vontade ou se considerar que houve quebra do laço afectivo”.

Aliás, no âmbito da mencionada alínea d) do artigo 1781º do Código Civil, sempre poderíamos integrar a própria instauração desta acção de divórcio por parte da Autora, como um fundamento autónomo para o próprio pedido de divórcio formulado, ou seja, a Autora ao instaurar esta acção de divórcio está, por si só, a afirmar que, em relação à sua pessoa, ocorreu a ruptura definitiva do casamento e, nessa medida, o divórcio sempre teria de ser decretado.

Por fim, considera-se que não é eticamente aceitável que um dos cônjuges tenha de se submeter à vontade imposta pelo outro, no sentido de se manter o casamento, sendo inquestionável que a lei vigente não permite que se possa efectuar essa leitura (cfr. acórdão da RL de 15/05/2012, proc. nº. 1017/09.5TMLSB, acessível em www.dgsi.pt).

Assim sendo, tendo em consideração a matéria de facto provada, sempre seria de se declarar a dissolução do casamento entre a Autora e o Réu, decretando-se o respectivo divórcio.

A sentença recorrida não merece, pois, qualquer censura, razão porque terá o presente recurso de improceder.




III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Réu CC e, em consequência, manter a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente.
Évora, 12 de Março de 2015
(Maria Cristina Cerdeira)
(Maria Alexandra de Moura Santos)
(António Manuel Ribeiro Cardoso)