Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
142/11.7GAOLH-A.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: RECUSA DE JUÍZ
SUSPEIÇÃO
JUIZ NATURAL
Data do Acordão: 07/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - O simples receio ou temor de que o juiz, no seu subconsciente, já tenha formulado um juízo sobre o thema decidendum, não pode servir de fundamento para a recusa deste, cumprindo demonstrar e provar elementos concretos que constituam motivo de especial gravidade.
II - Os motivos de suspeição são menos nítidos do que as causas de impedimento, podendo ser, por isso, fraudulentamente invocados para afastar o juiz, e, assim sendo, impõe-se que haja uma especial exigência quanto à objetiva gravidade da invocada causa de suspeição, pois, de outro modo, estava facilmente encontrado o meio de contornar o princípio do “juiz natural”.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I


1 – Nos autos de processo comum em referência, em que foram admitidos a intervir como assistentes NB e RB, precedendo acusação do Ministério Público e sequente instrução (a requerimento dos arguidos), a Mm.ª Juiz de instrução decidiu pronunciar o arguido DJR, na prática, em autoria material e em concurso efectivo, de factos consubstanciadores de um crime de ameaça agravada, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto nos artigos 153.º n.º 1, 155.º n.º 1 alínea a) e 131.º, do Código Penal (CP), de um crime de perturbação da vida privada, p. e p. nos termos do disposto no artigo 190.º n.º 2, do CP, e de um crime de coacção agravada na forma tentada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 22.º, 23.º, 154.º n.os 1 e 2, 155.º n.º 1 alínea a) e 131.º, do CP, as arguidas MER e AMR, cada uma, pela prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. nos termos do disposto no artigo 191.º, do CP, e o arguido PMC pela prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de ameaça agravada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 153.º n.º 1, 155.º n.º 1 alínea a) e 131.º, do CP.

2 – Na sequente da audiência de julgamento, em sessão levada a 27 de Maio de 2015, e no decurso das declarações da assistente, a Ex.ma Mandatária dos arguidos requereu nos seguintes termos:

«Vêm os arguidos e atendendo ao factos que consideram que não estão reunidos os pressupostos de uma defesa e de um julgamento no caso concreto isento apresentar incidente de suspeição, o que faz nos seguintes termos e com os seguintes fundamentos:

No dia de ontem primeira sessão de julgamento e não obstante a existência nos autos, inclusive no processo, decisão instrutória de referência aos autos cíveis que correm ora termos no Tribunal de Loulé, não foi admitido por parte do Tribunal o requerimento da defesa para que fosse solicitado certidão das peças processuais indicadas, e que esclareceriam a situação embrionária e que despoletou a desavença entre arguidos e assistentes, tal despacho motivou a apresentação de recurso, porém o recurso não garante o confronte, exibição e valoração como prova ou bem assim para enquadra a motivação e ainda determinadas relevâncias jurídicas, nomeadamente, a questão da posse do imóvel por parte dos arguidos, ou pelo menos de alguém da família dos arguidos, a referência também se a execução tinha como parte os arguidos, a família destes ou terceiros. No dia de hoje e tendo nas declarações do primeiro assistente sido referidos factos que não se encontram no objecto do processo mas que sobre os quais puderam livremente falar, e com essa situação levar e conduzir a um processo de formação da convicção do julgador, mas que posteriormente ao ser inquirido o assistente pela defesa já não foi possível a esta afastar a mácula que havida quedado ao julgador, da actividade continuada dos arguidos, que embora não estejam pronunciados todas essas circunstâncias, continuação de actos de vandalismo e perturbação da paz dos assistentes, como é óbvio ao ser permitido a declaração o que não se põe em causa, também deve ser permitido a contradita deste, até porque da experiência profissional e do que consta da lei e porque à um dos arguidos que se encontra indiciado de perturbação dos assistentes, determina que possa existir uma alteração que até pode ser interpretado como não substancial dos factos, o que prejudica irremediavelmente a defesa, mais tais situações de tal observação são indicados no pedido de indemnização cível, que se encontravam perturbados, a continuação de perturbação, o que assim determina especialmente tendo sido também relativamente à questão de aferir sobre indemnizações.

Considera-se que as interrupções também à mandatária e a protecção que se fez relativamente à assistente de impedir que esta que já tem um intérprete que processa à pergunta através desta e ainda ter de ser processado através da Mma. Juiz, quando se julga que para retirar a palavra ou para retirar a possibilidade de interrogatório directo tem de haver fundamentação e o comportamento do mandatário tem de ser desviante e intolerável, o que se considera que não foi praticado.

Por no dia de ontem ter sido ainda que informalmente referido pela Mandatária da defesa que o assistente RB possuía um documento que quanto à defesa poderia conter não só datas para socorro de memória, e que a defesa não o pode verificar embora tivesse sido solicitado informalmente e o Tribunal tivesse perguntado e claro, acreditado, na mera declaração do assistente, sem verificar, nesses casos deve o Tribunal verificar o suporte de memória que está a ser utilizado pelas testemunhas ou no caso pelos assistente, aplicando-se por analogia as regras estabelecidas no processo civil, o que não sucedeu. No dia de ontem em requerimento foi requerido que se oficiasse ao M.P. e não à própria defesa a emissão de certidão com vista a ser ou instaurado processo de falsas declarações, porém em despacho simples é determinado a entrega de certidão à defesa para que fizesse o que bem entendesse com a certidão, que se saiba as falsas declarações em julgamento é um crime público não se tendo levantado a questão por parte do M.P. quer por parte de qualquer dos sujeitos processuais, pois se trata de uma questão muito grave pondo em causa liberdades e garantias no caso dos arguidos.

Pelas circunstâncias transcritas e outras que neste momento, e não se prescindindo das mesmas se poderão mais tarde relatar, considera a defesa não estar reunidos os pressupostos que determinam um julgamento isento e imparcial, considera a defesa que que houve um tratamento diferencial entre os assistentes e os réus, o que determina o fundamento da suspeição que ora se invoca.

Deve o presente incidente ser instruído com cópia áudio e transcrição do julgamento, cópia das duas actas, a de ontem e a de hoje, do requerimento de junção de certidão, posição das partes, M.P. e assistente, decisão e do recurso e suas alegações.

Espera Deferimento.»

3 – Em sequência, o Ex.mo Magistrado do Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:

«A defesa nas suas doutas motivações requereu o incidente de recusa por suspeição, nos termos do art.º 43º do CPP, alegando várias situações que no seu entender revelam por parte da Mma. Juíza falta de isenção na condução dos trabalhos, não estando portanto reunidos os pressupostos de defesa e julgamento isento. Salvo o devido respeito por opinião contrária o M.P. entende que efectivamente os fundamentos para a suspensão da Mma. Juíza na condução deste julgamento não estão preenchidos, isto porquê: a defesa alega que na primeira sessão de julgamento tendo ao abrigo do disposto no art.º 340º requerido a junção de documentos consistentes em acções cíveis pendentes que esclareceriam a situação embrionária da titularidade da propriedade objecto deste processo criminal, não foi admitido, não foi de uma forma peremptória admitido, coarctando assim os direitos de defesa. O M.P. entende que, e mantém a posição ontem assumida por duas ordens de razões: primeira, a negação da junção desses, como consta da própria decisão gravada, não é uma rejeição peremptória, disse que neste momento nos termos art.º 340º não se mostra a junção desses documentos pertinentes para a descoberta da verdade material, sem prejuízo de no decorrer do julgamento, mais tarde se julgar pertinente tal junção. Portanto não se vê em que medida foi coarctada os direitos de defesa tendo a Mma. Juíza cumprido escrupulosamente o disposto na lei, designadamente o disposto no art.º 340º do C.P.P. Por outro lado aquilo que se discute é se o arguido cometeu o crime previsto e punido nos termos do art.º 191º que é introdução em lugar vedado ao público, que diz “quem sem consentimento ou autorização de quem de direito entrar ou permanecer em pátios, jardins ou espaços vedados, anexos a habitação, etc. ou em qualquer outro lugar vedado ou não livremente acessível ao público é punido com pena de prisão até 3 meses ou pena de multa até 60 dias. Ora na decorrência destas duas sessões de julgamento, designadamente as declarações conjuntas dos assistentes com a demais prova documental existente nos autos e também produzida em instrução verifica-se efectivamente que os arguidos tinham um contrato de comodato em relação à casa ou seja um contrato de comodato é um contrato como toda a gente sabe de empréstimo, os arguidos estavam a ocupar a casa de forma gratuita e pelo que tanto assim é que não houve obstáculo por parte do notário em celebrar a escritura pública, porque se desconfiasse que os arguidos eram os proprietários efectivos da casa tutelada pela lei civil, não estaríamos aqui a discutir a prática deste crime. Portando neste momento isto é demonstrativo que a junção desses documentos é tanto quanto basta para a prática do crime da situação pendente em processo civil, não são para já aqui chamados.

Por outro lado no dia de hoje a assistente referiu factos que não se enquadram, quer a assistente hoje, quer o assistente ontem, referiu factos que não se enquadram, que não fazem parte do objecto deste processo e que a defesa considera por ter sido impedida de fazer perguntar para aqui funcionar o contraditório acerca dessas questões, salvo o devido respeito também não tem razão, isto porquê: estabelece o art.º 127º do CPP que tudo o que é discutido em audiência de julgamento é livremente apreciado em termos de prova pelo juiz. Ora os factos que não fazem do objecto nem sequer podem ser livremente apreciados porque nem sequer fazem parte do objecto do processo. Assim como muitas vezes as testemunhas referem-se a partes que foram objecto de arquivo por parte do M.P., também esses factos na decisão final não são tidos em consideração nem podem ser valorados pelo tribunal, caso o sejam a defesa tem o meio de defesa que é o recurso, e nesses casos o tribunal superior deverá efectivamente decidir no sentido apontado pela defesa caso isso efectivamente tenha acontecido.

A credibilidade do depoimento das testemunhas também é aferida pela espontaneidade das suas declarações. A Mma. Juíza pese embora não vá valorar as declarações respeitantes a factos que não façam parte do objecto deixou as testemunhas falar para não conduzir capciosamente essas mesmas declarações o que isso sim seria fundamento de eventual suspeição ou eventual falta de isenção, o que a Mma. Juiz foi ao contrário mostrar isenção ao deixar as testemunhas falar livremente para não as induzir com datas ou com factos que constam da pronúncia de forma a que a testemunha fosse conduzida a falar conforme o que o tribunal quisesse.

Não foi isso que aconteceu efectivamente, a testemunha falou espontaneamente, referiu factos também que não fazendo parte do objecto do processo revelou espontaneamente e não revelou ter decorado algumas coisas que tivesse previamente elaborado. Também o M.P., por causa disso entende que não há especial protecção dos assistentes uma vez que os assistentes, tendo como língua materna o francês, não obstante algumas das partes aqui puder entender alemão ou francês, também é claro obrigado a que os actos processuais se façam em língua portuguesa. Por isso, mesmo que a testemunha saiba falar francês, o juiz saiba falar francês, o procurador ou os advogados saibam falar francês e compreender francês, tem alguma especial obrigação de fazer as perguntas em português, de esperar que o intérprete traduza para francês, para depois fazer os interrogatórios e contra-interrogatórios. Portanto não se vislumbra que protecção especial hajam as testemunhas a ter por parte do tribunal, porque não obstante as testemunhas poderem compreender e falar português, sendo a sua língua materna não portuguesa mas uma língua estrangeira, até para estarem mais à vontade para falarem espontaneamente, sem distorcer o sentido das suas declarações, mantendo até a sua própria credibilidade, devem ser livre para falar na sua língua materna devidamente traduzida para português como aliás a lei impõe. Portanto aqui também não há qualquer falta por parte do tribunal.

Também em relação ao papel de suporte de memória, a lei entende e permite o recurso a papeis que as próprias testemunhas escrevam para auxiliar a sua memória, porquanto não várias vezes os factos que ocorreram e que são objecto de processos judiciais, são factos já longínquos no tempo e é natural que as testemunhas possam confundir datas e não é por isso que merecem mais ou menos credibilidade. A credibilidade do testemunho é medida por factores exógenos ao próprio teor das suas declarações. A postura da testemunha, os olhares, o comportamento corporal da mesma, tudo isso é avaliado em tribunal, para aferir se a mesma está a mentir ou a falar a verdade. Efectivamente, designadamente da minha experiência profissional em julgamentos que já tive, designadamente apontando por exemplo os crimes fiscais em que as testemunhas que instruíram os processos junto da Autoridade Tributária, trazem o próprio processo que instruíram para a audiência de julgamento socorrendo-se do que aí está escrito, porque são tantos os processos que tramitam que não podem saber se no processo A a divida ao estado é de 10.000 € ou 15.000 € ou 20.000 €. Portanto a lei permite esta situação, essas testemunhas, a sua credibilidade também é avaliada em audiência de julgamento e é-lhes permitido socorrer dessas mnemónicas, sem que isso cause qualquer perplexidade e, normalmente, as condenações que resultam do julgamento da prova feita em audiência de julgamento, não só dessas testemunhas mas também de outras provas que são apreciadas livremente nos termos do art.º 127º do CPP, não são objecto de recurso porque essas testemunhas usaram de mnemónicas. Portanto aqui é mais um facto demonstrativo da, salvo melhor opinião e com o devido respeito, da razão da defesa. Relativamente à certidão que a defesa requereu por falsas declarações, pelo facto da Mma. Juíza não ter ordenado entrega imediata da certidão ao M.P., não parece que é efectivamente uma irregularidade, mas não é fundamento de uma situação grave, motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança de imparcialidade da Mma. Juiz.

Efectivamente o M.P. entende aqui no caso da extracção de certidão por falsas declarações não há ao M.P. que oficiar, é um lapso talvez da defesa, é sim mas é mandada extrair a certidão e é mandado entregar a certidão ao M.P. para efeitos de instauração do respectivo procedimento criminal, do inquérito criminal. Aqui efectivamente o M.P. entende que houve um erro, um lapso talvez da Mma. Juiz, não obstante esse lapso não é suficiente, adequado e proporcional a um incidente de suspeição. É apenas uma irregularidade que a Mma. Juíza poderá efectivamente corrigir mandando entregar a certidão, que a própria Mma. Juíza deferiu o requerido pela defesa, mandando extrair a requerida certidão. Tudo isto ponderado não estão preenchidos os pressupostos legais plasmados no art.º 43º, pelo que o M.P. promove se indefira o requerido fazendo-se assim a acostumada justiça.»

4 – Por sua vez, a Ex.ma Mandatária dos assistentes pronunciou-se, a respeito, nos seguintes termos:

«Faço minhas as palavras do Il. Procurador e apenas quero acrescentar e ressalvar duas situações. A primeira diz respeito ao indeferimento da junção ao processo dos documentos que constam do processo de Loulé, do processo de embargos de terceiro, constam no processo de Loulé, há que ressalvar que os mesmos, os documentos solicitados pela defesa, nomeadamente a P.I. e contestação estão desde 2011 juntos a este processo pelo que, se a defesa entendesse que seria de extrema necessidade a junção dos mesmos para o apuramento da verdade, devia tê-lo feito quando tinha prazo para isso, ou seja, na contestação, o que não o fez. Efectivamente estamos aqui no âmbito de um processo-crime e não a discutir se a venda da quinta para a D. CP foi legal ou não foi legal. Esse processo como eu disse é de 2011. Não foram tomadas as diligências necessárias para juntar ao processo atempadamente, certo é que o art.º 340º deverá ser utilizado sim em situação que não estavam disponíveis à defesa ou ao assistente ou ao processo até à data do julgamento, o que não é o caso, porque essas peças processuais estão disponíveis desde 2011 em Loulé, aliás em Olhão na altura e agora em Loulé. No que diz respeito ao alegado pela defesa na forma como tem a Mma. Juiz tido, em que alegam que é com falta de isenção e parcialidade, não concorda de todo os assistentes sobre esse ponto de vista, e certo é que no que diz respeito ao documento apresentado, estava servindo de auxiliar ao assistente RB, o mesmo foi disponibilizado na sessão de ontem à defesa, não tendo sido requerido que o mesmo fosse junto ao processo. O Sr. RB trazia hoje o documento para ser entregue. A defesa não o solicitou, por isso é que não o foi. Falta de imparcialidade e isenção da Mma. não, pelo que entende os assistentes que não assiste qualquer razão ao pedido formulado no incidente de suspeição formulado à Mma. Juiz.»

5 – A Mm.ª Juiz do Tribunal a quo proferiu depois despacho do seguinte teor:

«Em face do incidente de escusa suspeitado, aliás, suscitado pela Il. Mandatária dos arguidos, determina-se a criação do respectivo apenso de recusa, o qual deve ser instruído com certidão das actas de audiência de julgamento do dia de hoje e do dia de ontem com certidão da transcrição de todos requerimentos, pronúncias, respostas e despachos proferidos em ambas as sessões de julgamento e com cópia da respectiva gravação, nos termos do disposto nos artºs 43 e seguintes do C.P.P. Mais se determina que no apenso de recusa a ser criado seja aberta conclusão de imediato com vista à pronúncia nos termos do disposto no art.º 45º, n.º 3 do C.P.P., após o que os autos de recusa subirão ao Venerando Tribunal da Relação de Évora.

Atento o preceituado no art.º 45º, n.º 2 do C.P.P. e porque nos termos do disposto no art.º 328º, n.º 6 do mesmo Código cumpre assegurar que a audiência tenha continuidade no prazo de 30 dias, sendo certo que o referido art.º 45º, n.º 2 do C.P.P. determina que o juiz recusado pratique todos os actos necessários para assegurar a continuidade da audiência, declara-se interrompida a audiência e designa-se desde já para a sua continuação nos termos dos artºs preditos a data que a seguir será aqui combinada com os Il. Mandatários presentes.»

6 – Nos termos prevenidos no artigo 45.º n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo pronunciou-se nos seguintes termos:

«Nos termos do preceituado no artigo 45.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, vem a Juiz signatária, que presidiu à audiência de discussão e julgamento no âmbito do processo crime de que este incidente de recusa constitui apenso (processo comum singular n.º 142/11.7GAOLH), pronunciar-se sobre o pedido de recusa que a visa.

A audiência de discussão e julgamento teve início no transacto dia 26.05.2015, conforme decorre da respectiva acta de fls. 791 e seguintes, tendo prosseguido no dia 27.05.2015 (acta de fls. 797 e seguintes).

A Ilustre Mandatária dos arguidos fundamenta o incidente de recusa, alegando que não estão reunidos os pressupostos de um julgamento isento e imparcial, desde logo, na circunstância de, na primeira sessão de julgamento, ter sido, pela signatária, indeferido o requerimento apresentado pelos arguidos no sentido de ser solicitada certidão da petição inicial do processo n.º 974/11.6TBOLH, cópia dos embargos e da oposição aos mesmos pelos embargados, “uma vez que tais embargos e tais peças processuais poderão mais facilmente apurar a verdade material (…) nos termos do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal”.

Ora, quanto a este ponto em concreto, cabe chamar a atenção para o teor do despacho proferido na sequência do aludido requerimento:

“Dispõe o art.º 340º, n.º 4 do Código de Processo Penal, na sua línea a) que os requerimentos de prova são indeferidos se for notório que as provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou com a contestação, excepto se o Tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa. É certo, por um lado, que as provas ora requeridas podiam ter sido já juntas anteriormente, designadamente com a apresentação da contestação ou no prazo para o efeito, por outro lado não se revelam, neste momento, indispensáveis, tal como impõe a disposição legal em apreço, à descoberta da verdade e boa decisão da causa. Pelo exposto, e ao abrigo da disposição legal citada indefere-se, por ora, o requerido, sendo certo que caso do decurso da audiência de discussão e julgamento se nos afigurar que tais elementos documentais são efectivamente indispensáveis, o Tribunal diligenciará no sentido de as obter.”

Salienta-se que a redacção actual do n.º 4 do artigo 340.º do Código de Processo Penal, fruto da entrada em vigor da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, passou a dispor, na sua alínea a), que os requerimentos de prova apresentados ao abrigo do disposto no n.º 1 do mesmo artigo são indeferidos se for notório que as provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, excepto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade material e boa decisão da causa.

Atento o disposto na aludida disposição legal, e considerando que, sem margem para dúvidas, a certidão cuja solicitação foi agora requerida pelos arguidos, podia ter sido solicitada ou junta com a contestação apresentada pelos mesmos em 9 de Dezembro de 2014 (cfr. fls. 686), viu-se a signatária confrontada com a necessidade de aferir da indispensabilidade ou não, para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, de tal diligência de prova requerida.

Na verdade, diversamente do alegado pela Ilustre Mandatária dos arguidos, o requerimento probatório por si apresentado foi indeferido, “por ora”, e não em termos absolutos, pois que, no momento em que foi apresentado, atento todos os elementos documentais já constantes dos autos e considerando que apenas se havia iniciado a produção da prova com a tomada de declarações ao primeiro dos arguidos, entendeu a signatária, num juízo que lhe compete, que não se mostrava preenchido o pressuposto legal da indispensabilidade de tal diligência probatória para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.

Não concordando com o teor do despacho proferido pela signatária, a Ilustre Mandatária dos arguidos interpôs o competente recurso.

Fundamenta, ainda, a Ilustre Mandatária dos arguidos, o presente incidente de recusa, na circunstância de, alegadamente, não lhe ter sido permitido, pela signatária, formular ao assistente RB perguntas relativamente a factos pelo mesmo relatados e que não fazem parte do objecto dos presentes autos, entendendo a Ilustre Mandatária dos arguidos que tal actuação da signatária prejudica irremediavelmente a defesa dos arguidos.

Neste ponto, cumpre salientar o seguinte:

- Os assistentes RB e NB são ambos de nacionalidade francesa, sendo o francês a sua língua materna, motivo pelo qual foi nomeada e prestou o competente compromisso de honra a Sr.ª Intérprete identificada na acta respectiva;

- Pela circunstância da intervenção da referida Sr.ª Intérprete na tradução das perguntas formuladas para francês e das respostas dadas para português, com vista a permitir um discurso espontâneo e escorreito pelos assistentes, foi-lhes permitido um relato livre dos factos, evitando, assim, conduzir os mesmos nas suas declarações, não ignorando a signatária que, nesse relato livre, foram referidos pelo assistente RB factos que não fazem parte do objecto dos presentes autos.

- Ainda pela circunstância da intervenção da referida Sr.ª Intérprete na tradução das perguntas formuladas para francês e das respostas dadas para português, e pese embora o disposto no artigo 346.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por uma questão de facilidade, a signatária permitiu ao Digno Magistrado do Ministério Público e às Ilustres Mandatárias, a formulação directa de perguntas aos assistentes.

Ora, dada a palavra à Ilustre Mandatária dos arguidos para formular as questões que entendesse pertinentes ao assistente RB, e tendo a Ilustre Mandatária dos arguidos começado a questionar o assistente RB relativamente aos factos por aquele relatados mas que se mostram externos ao objecto dos presentes autos, entendeu a signatária dever interromper para chamar a atenção disso mesmo, de que tais factos não são objecto dos presentes autos.

Contudo, e atenta a insistência da Ilustre Mandatária dos arguidos em questionar o assistente acerca desses factos, acabou a signatária por dizer à Ilustre Advogada que considerava que tal matéria nenhum interesse tinha para a decisão da causa, contudo, se considerava tão essencial à defesa dos arguidos formular questões quanto a tal matéria, então que as fizesse.

Assim, não se vê como pode a Ilustre Mandatária dos arguidos considerar que a actuação da signatária na condução da audiência de julgamento, e neste concreto aspecto, prejudica irremediavelmente a defesa dos arguidos.

Pela Ilustre Mandatária dos arguidos é ainda alegado, para fundamentar o incidente de recusa suscitado, o facto de a signatária lhe ter retirado a palavra e a possibilidade de interrogatório directo da assistente NB.

Ora, o que sucedeu e consta da gravação da sessão de julgamento do dia 27.05.2015 foi que, tendo o tribunal permitido, por uma questão de facilidade que já se referiu, a formulação directa de perguntas aos assistentes, quer pelo Digno Magistrado do Ministério Público, quer pelas Ilustres Mandatárias, dada a palavra à Ilustre Mandatária dos arguidos a mesma começou a formular questões cuja relevância não se vislumbrava, fazendo referência a elementos que, afinal, não conseguiu localizar nos autos e, por mais de uma vez, confrontando a assistente com factos que, em boa verdade, não tinham sido pela mesma referidos.

Assim, e no seu dever de condução da audiência, a signatária viu-se obrigada a interromper a Ilustre Mandatária dos arguidos, quer para questionar acerca da relevância das questões, quer para esclarecer que, conforme se mostra gravado, não havia sido referido pela assistente aquilo que a Ilustre Advogada afirmava ter sido referido.

Porque se gerou discussão, pelo facto da Ilustre Advogada não ter gostado de ter sido interrompida, e porque, afinal, a formulação de perguntas directamente pela Ilustre Mandatária não estava a facilitar, mas antes a dificultar, o decorrer da audiência de julgamento, a signatária comunicou à Ilustre Mandatária dos arguidos que a partir daquele momento as demais perguntas a formular à assistente seriam feitas por seu intermédio, tal como o impõe a lei.

Neste instante, a Ilustre Mandatária dos arguidos disse que, então, não queria fazer mais perguntas, queria sim a acta para apresentar um requerimento, o que lhe foi concedido, tendo a Ilustre Advogada formulado o requerimento de recusa que deu origem a este apenso.

Por conseguinte, em momento algum foi retirada a palavra à Ilustre Mandatária dos arguidos, simplesmente lhe foi retirada a possibilidade de formular questões de forma directa à assistente, o que se havia permitido apenas pela questão de facilidade já referida, tendo-lhe sido explicado o motivo pelo qual as perguntas passariam a ser feitas por intermédio da signatária.

Alega, ainda, a Ilustre Mandatária dos arguidos que a signatária deveria ter verificado se o documento auxiliar de memória de que se socorreu o assistente RB, aquando das suas declarações, era apenas isso mesmo, um auxiliar de memória, referindo, ainda, a Ilustre Advogada que não o pode verificar embora tivesse sido solicitado informalmente.

Neste concreto aspecto, chama-se a atenção para o disposto no artigo 461.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal, nos termos do qual a parte não pode trazer depoimento escrito, mas pode socorrer-se de documentos ou apontamentos de datas ou de factos para responder às perguntas.

Dito isto, é um facto que o assistente RB prestou declarações em sede de audiência de julgamento com alguns papéis manuscritos nas mãos, dos quais se socorreu em determinadas alturas. Tal foi notório para todos os presentes na sala de audiências, tal a forma explicita como o assistente o fazia, à vista de todos.

Para a signatária foi também claro que o assistente procedia ao relato dos factos propriamente ditos sem olhar sequer para os papéis que tinha consigo, socorrendo-se dos mesmos para confirmar datas, essencialmente.

Questionado, directamente, o assistente, o mesmo afirmou tratar-se de apontamentos seus que fez no passado, porque sabia que não seria capaz de lembrar-se de todas as datas caso não as tivesse apontado, tendo-se disponibilizado, inclusive, para mostrar os aludidos papeis à signatária, que lhe disse não ser necessário.

Efectivamente, bastou-se a signatária com a palavra do assistente, mas não só. Também com a percepção clara que para si resultou da atitude do mesmo à medida que prestava as suas declarações, do facto de relatar as diversas situações sem necessitar de olhar para os papéis manuscritos que tinha consigo, consultando os mesmo apenas quando referia as concretas datas em questão.

Não se tendo suscitado dúvidas, para a signatária, quanto ao carácter de mero auxiliar de memória, certo é que nenhum dos sujeitos processuais fez qualquer requerimento no sentido de ser analisado tal suporte de memória.

Veja-se que o assistente esteve a prestar declarações desde as 14h46 até às 17h28 do dia 26.05.2015 (conforme consta da respectiva acta) sem que qualquer requerimento tenha sido feito nesse sentido.

Não se percebe, por conseguinte, como pode a Ilustre Mandatária dos arguidos afirmar que a defesa não pode verificar o aludido suporte, quando nenhum requerimento fez nesse sentido.

Finalmente, invoca a Ilustre Mandatária dos arguidos, para fundamentar o presente incidente de recusa, o facto de a signatária ter proferido despacho a deferir a requerida extracção de certidão das declarações prestadas pelo assistente RB com vista a ser instaurado processo por falsas declarações, tendo sido ordenada a entrega da mesma à Ilustre Advogada para os fins tidos por convenientes, em vez de se ter determinado, tal como havia sido requerido, que se oficiasse ao Ministério Público.

Mais uma vez, não se vislumbra, como pode a Ilustre Mandatária dos arguidos considerar que tal actuação configura uma atitude de protecção dos assistentes em detrimento dos arguidos, pois que foi efectivamente ordenada a extracção da requerida certidão.

Simplesmente, em lugar de se ordenar logo a remessa da mesma ao Ministério Público para eventual instauração de procedimento criminal, entendeu-se determinar a entrega da mesma à sua Requerente, para que, caso assim entendesse, a entregasse no Ministério Público.

Admite-se que possa não ter sido, em termos formais, a decisão mais correcta, dado tratar-se, o crime de falsidade de depoimento ou declaração, previsto e punido no artigo 359.º do Código Penal, de um crime público.

Contudo, não há na decisão de entrega da certidão à Ilustre Mandatária dos arguidos em vez da sua remessa ao Ministério Público, qualquer atitude de protecção ou favorecimento dos assistentes em detrimento dos arguidos, tal como é alegado pela Ilustre Mandatária destes.

Analisados todos fundamentos invocados pela Ilustre Mandatária dos arguidos no seu requerimento de recusa, quer por si só, quer conjugados entre si, não se vislumbra qualquer factualidade susceptível de configurar uma situação de recusa, nos moldes definidos pela lei.

A signatária considera que dirigiu a audiência de forma serena, objectiva, com respeito por todos os intervenientes, sejam arguidos ou assistentes, tendo votado a todos o mesmo tratamento respeitoso, como entende que se lhe impõe em face de qualquer cidadão, seja qual for a qualidade em que intervém em audiência de julgamento.

Salvo melhor opinião, a signatária entende que pautou sempre a sua conduta de direcção e condução da audiência de forma isenta e imparcial, permitindo, ao que crê - e como é seu timbre -, o cabal exercício do direito de defesa pelos arguidos.

Por todo o exposto, entende a signatária não existir motivo, e muito menos, sério ou grave, adequado a gerar qualquer tipo de desconfiança sobre a sua imparcialidade, a qual considera ter sido manifestada ao longo de ambas as sessões de audiência de discussão e julgamento.

Em face do que antecede considera a signatária inexistir qualquer motivo determinante da recusa em intervir na audiência de discussão e julgamento do processo comum singular n.º 142/11.7GAOLH da signatária, mas Vª Exa. melhor decidirá.»

7 – Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, louvado na resposta do Ministério Público ao requerimento dos arguidos, é de parecer que o pedido de recursa deve ser indeferido.

8 – Tal parecer não suscitou réplica.

9 – A questão incidental a decidir reporta-se a saber se há fundamento para a recusa da intervenção da referenciada Mm.ª Juiz do Tribunal a quo no julgamento do processo em referência.


II

10 – De harmonia com o disposto no n.º 1 do art. 43.º, do CPP, «a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade».

11 – Trata-se, sabidamente, de regra que, constituindo excepção ao princípio do «juiz natural», prevenido no artigo 32.º n.º 9, da Constituição da República Portuguesa (CRP), configura uma garantia fundamental do processo criminal, inserida, prevalentemente (em vista, maxime, da sua inserção sistemática), no âmbito da protecção dos direitos de defesa, para protecção da liberdade e do direito de defesa do arguido, garantindo o julgamento por um tribunal (um juiz) predeterminado e não ad hoc criado ou arvorado competente.

12 – O «juiz natural» só deve ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz pré definido como competente (de modo aleatório) deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.

13 – Vale por dizer que, em relação a qualquer processo, o juiz deve sempre ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados.

14 – É sabido que a administração da Justiça não é pensável sem um Tribunal independente e imparcial – artigo 203.°, da CRP.

15 – A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo – artigo 10.°, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 14.° n.º1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e artigo 6.° n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

16 – Na perspectiva das partes, as garantias de imparcialidade referem-se à independência do juiz e à sua neutralidade perante o objecto da causa.

17 – Ainda que a independência dos juízes seja, antes do mais, um dever ético-social, uma responsabilidade que tem a dimensão ou a densidade da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz, não pode esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que promova e facilite aquela independência vocacional, por isso que é necessário, além do mais, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.

18 – No dizer do Prof. Figueiredo Dias (em «Direito Processual Penal», I, 1974, pag. 320), trata-se de «(…) um verdadeiro princípio geral de direito, actuante no domínio da política judiciária, que se esconde atrás de toda a matéria respeitante aos impedimentos e suspeições do juiz: o de que é tarefa da lei velar por que, em qualquer tribunal e relativamente a todos os participantes processuais, reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional jurisdicidade» .

19 – Outro tanto ensinava o Prof. Cavaleiro de Ferreira (no «Curso de Processo Penal», 1986, pp. 141/142): «Não importa que, na realidade, o juiz permaneça imparcial; interessa sobretudo considerar se, em relação com o processo, poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição que a lei indica».

20 – Salientava Manzini (ut Figueiredo Dias, ob. cit., nota 33, pp. 315/316), com impressiva clareza, que «o judex suspectus deve, em vista de qualquer motivo sério, ser dispensado como juiz num processo em que, tendo em conta a força média de resistências às causas internas que possam influir danosamente sobre o julgamento, seja razoavelmente de presumir que possa estar sujeito a paixões ou preocupações contrárias à recta administração da justiça».

21 – O mesmo pensamento correu no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: «a imparcialidade da jurisdição não é só a imparcialidade subjectiva. É também a imparcialidade objectiva que deve ser assegurada... Afinal, trata-se da confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar às partes... Deve pois recusar-se qualquer juiz relativamente ao qual se possa legitimamente recear a existência de uma falta de imparcialidade... O elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem ter-se como objectivamente justificadas» - Caso Hauschildt, cit. no acórdão, do Tribunal Constitucional, n.º 52/92, no DR, I-A, de 14-3-92. Ver ainda, por mais significativo, Renée Koering-Joulin, «La notion européenne de tribunal indépendant et imparcial au sens de l’article 6.º, par. 1, de la Convention européenne de sauvegarde des droits de l’homme», na «Revue de science criminelle e de droit pénal comparé», n.º 4, Out/Dez 1990, pp. 766 e segs., ut Cons.º Henriques Gaspar, no voto de vencido referenciado infra.

22 – Com efeito, a imparcialidade do juiz e do Tribunal não se apresenta sob uma noção unitária – as diferentes perspectivas, vistas do exterior, do lado dos destinatários titulares do direito a um tribunal imparcial, reflectem dois modos, diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva.

23 – Do lado subjectivo, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, pressupondo a demonstração e determinação daquilo que um juiz, integrando um tribunal, pensa e pondera, no seu íntimo foro, perante um certo dado ou circunstância, envolve saber se este guarda em si qualquer motivo que possa determiná-lo a favorecer ou a desfavorecer um interessado na decisão, importando demonstrar ou indiciar, de modo relevante, uma tal predisposição – como, de modo impressivo e incontornável, refere o Senhor Conselheiro Henriques Gaspar, no voto de vencido tirado no Acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Maio de 2003 (Proc. 03P2156, disponível em www.dgsi.pt/jstj), cujos ensinamentos aqui, expressamente, se acompanham, é por isso que a imparcialidade subjectiva se presume até prova em contrário, funcionando os impedimentos, neste conspecto, como modo cautelar de garantia da imparcialidade subjectiva.

24 – Já a perspectiva objectiva, consequencial à intervenção no direito processual, suportada no adágio justice must not only be done, it must also be seen to be done, relevando as aparências, faz intervir não apenas considerações de carácter orgânico e funcional, mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa que, do ponto de vista de um destinatário da decisão, possam fazer suscitar dúvidas, dando causa ao receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que contra si possa ser negativamente considerado.

25 – Pode pois concluir-se que a recusa do «juiz natural» só pode lograr provimento quando se demonstre que a sua intervenção no processo pode ser considerada suspeita, por se verificar, para tanto, motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a respectiva imparcialidade.

26 – No caso, tanto quanto pode sumariar-se o teor da minuta, pretendem os arguidos impetrantes que a imparcialidade da Mm.ª Juiz de julgamento resulta de uma suspeição de «tratamento diferencial entre os assistentes e os réus [arguidos]», decorrente do seguinte quadro de incidências processuais: (i) na sessão da audiência de julgamento levada a 26 de Maio de 2015, a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo não admitiu a junção, requerida pelos arguidos, de documentos relativos a processo civil pendente, não consentiu a verificação, pela defesa, de um documento («suporte de memória») de que o assistente se munira, não deferiu à Defesa a remessa, ao Ministério Público, de certidão «com vista a ser instaurado processo por falsas declarações», antes determinando a entrega de tal certidão à Defesa; (ii) na sessão da audiência de julgamento levada a 27 de Maio de 2015, tendo as declarações do assistente reportado factos alheios ao objecto do processo, sobre os quais lhe foi consentido «livremente falar», a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo não permitiu a consequente «contradita»; (iii) na mesma sessão, a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo interrompeu a mandatária dos arguidos e «protegeu» a assistente, retirando àquela, sem fundamento, a possibilidade de interrogatório directo.

27 – Tendo por referência as gravações e transcrições das duas, referenciadas, sessões da audiência de julgamento levada na instância, importa, desde logo, isolar os factos da interpretação levada, designadamente pelos arguidos requerentes, dos mesmos factos.

28 – Assim: (i) a certidão cuja junção os arguidos requereram na sessão da audiência de julgamento levada a 26 de Maio de 2015, não foi oferecida ou feita juntar, na contestação (fls. 686); (ii) o requerimento dos arguidos, formulado em audiência, para junção aos autos de certidão do processo civil em curso, foi indeferido «por ora», por despacho de que os arguidos interpuseram recurso; (iii) sendo os assistentes de nacionalidade francesa, foi adrede nomeada intérprete, vindo a ser consentido (em suprimento da falta de fluidez das declarações, decorrente necessária intermediação da intérprete), a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo não atalhou as declarações levadas, pelo assistente, para além do objecto do processo, tendo consentido a formulação, directa, pelo Ex.mo Magistrado do Ministério Público, como pelas Ex.mas Mandatárias dos arguidos e dos assistentes, vindo a interpelar a Ex.ma Mandatária dos arguidos, no sentido de limitar as questões aos factos pertinentes ao tema da prova, sendo que, perante a reiterada inquirição do assistente, pela mesma Ex.ma Mandatária, relativamente a factos alheios ao objecto do processo, a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo veio a avocar o interrogatório (na decorrência do que a mesma Ex.ma Mandatária formulou, em acta, o pedido de recusa de juiz); (iv) o assistente prestou declarações, em audiência, durante quase três horas, tendo em mãos alguns papéis manuscritos, e, tendo sido questionado sobre os mesmos, disse tratar-se de apontamentos seus, para se lembrar de todas as datas do caso sob juízo, disponibilizando-se para os mostrar à Ex.ma Mandatária dos arguidos, que referiu que tal não era necessário; (v) a Ex.ma Mandatária dos arguidos requereu a extracção de certidão das declarações prestadas pelo assistente e sua sequente remessa ao Ministério Público, com vista a ser instaurado processo por falsas declarações, ao que a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo decidiu deferir a requerida extracção da certidão em causa, com entrega da mesma aos arguidos.

29 – Antes de tudo, importa dar nota, sem qualquer desdouro para a sensibilidade da Ex.ma Mandatária dos arguidos, de que, visitada a gravação audio dos actos da audiência de julgamento levada na instância, nada se detecta que possa configurar um tom menos próprio ou qualquer indício de tratamento faccioso, ou de qualquer tendenciosidade em desfavor dos arguidos e da respectiva Ex.ma Mandatária.

30 – Por outro lado, em vista da materialidade de facto acima arrolada, não pode deixar de ter-se presente o disposto no artigo 340.º n.os 1 e 4 alínea a), do CPP, que manda indeferir os requerimentos atinentes à produção de provas que podiam ter sido arroladas na contestação, sem prejuízo de se ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento de afigure, ao tribunal, necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, por isso que não pode deixar de ter-se como abonado de prudencial rigor o despacho que, «por ora», indeferiu a impetrada junção da certidão do processo cível.

31 – Por outro lado ainda, não se vê qualquer infracção processual relevante, muito menos qualquer parcialismo por parte da Mm.ª Juiz, no facto de, nas descritas circunstâncias de interrogatório de cidadãos estrangeiros, com a necessária intermediação de intérprete, ter consentido (mesmo ao irregular arrepio do disposto no artigo 346.º n.º 1, do CPP, em benefício da desejável espontaneidade e fluência do declarado) o interrogatório directo do assistente, fosse pelo Ex.mo Magistrado do Ministério Público, fosse pelas Ex.mas Mandatárias do próprio assistente e do arguido, como não se vê que a extensão, para além do thema probandum, de tais declarações, tenha prejudicado a Defesa dos arguidos, mesmo quando se consentiu à Ex.ma Mandatária dos arguidos a persistência na inquirição do assistente sobre matéria alheia à causa e ao julgamento, vindo a Mm.ª Juiz a avocar o interrogatório que esta levava, repondo o cumprimento estrito do citado segmento normativo, apenas quando, perante o excesso de incidência em matéria fora do tema da prova, e não sendo atendido o correspondente reparo, a mesma Ex.ma Mandatária persistiu numa inquirição que se mostrava para além de tudo o que fosse pertinente à descoberta da verdade e à boa decisão daquela concreta causa.

32 – No que respeita ao memorial de que o assistente se munira, cabe fazer lembrete do disposto no artigo 461.º n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC) em vigor (que reproduz, sem alterações o artigo 561.º do CPC pré-vigente), aplicável por via do disposto no artigo 4.º, do CPP, que consente que a parte se socorra de documentos ou apontamentos de datas ou de factos para responder às perguntas, e, de par, ressaltar que os apontamentos em referência foram facultados para consulta da Ex.ma Mandatária dos arguidos, consulta que lhe mereceu expressa refusão.

33 – No que respeita ao facto de a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo ter determinado a entrega da certidão aos arguidos, e não ao Ministério Público, como fora impetrado pela Ex.ma Mandatária daqueles, figura-se (ainda aqui ressalvado o muito e devido respeito pela susceptibilidade da mesma), ademais pela presença, na audiência de julgamento, do Ex.mo Magistrado do Ministério Público (ao qual cumpriria, desde logo e sendo caso, suprir, de ofício, a irregularidade), que se trata de matéria que, objectiva e subjectivamente, não traduz qualquer desfavorecimento dos arguidos, menos configurando uma atitude menos isenta ou de menor imparcialidade por parte da Ex.ma julgadora.

34 – Isto posto e apreendido, fazendo presente, de novo, o disposto no artigo 43.º n.º 1, do CPP, que determina no sentido de que a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, devendo recusar-se o requerimento se manifestamente infundado, e ademais concedendo que a seriedade e a gravidade do motivo causador do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz só são susceptíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objectivamente consideradas, deve concluir-se que não basta um puro convencimento subjectivo por parte de um dos sujeitos processuais ou do próprio juiz para que se possa ter por verificada a suspeição.

35 – Como se sublinha, com perene acuidade, no acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 6-11-1996 (Colectânea de Jurisprudência, tomo III, pp. 187 e segs.), «embora nesta matéria as aparências possam revestir se de alguma importância, entrando em linha de conta com a óptica do acusado, sem todavia desempenhar um papel decisivo, o elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem considerar se objectivamente justificadas».

36 – No caso, mesmo admitindo que a Ex.ma Mandatária dos arguidos possa desavir-se relativamente à intervenção directiva da Mm.ª Juiz que presidiu à audiência de julgamento, já se não vê, por parte desta, de todo em todo, qualquer acto que traduza qualquer vigor presuntivo de parcialidade ou de pré-juízo.

37 – Acresce que as considerações aduzidas em abono do requerido, acima sumariadas, não traduzem, a se, o exigido motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da intervenção da Mmª Juiz do julgamento.

38 – Vale por dizer que as conclusões dos requerentes, porque carregadas de lacunar subjectivismo, não podem, por si só, justificar a pretextada recusa.

39 – Com efeito, o simples receio ou temor de que o juiz no seu subconsciente já tenha formulado um juízo sobre o thema decidendum, não pode servir de fundamento para a recusa deste, cumprindo demonstrar e provar elementos concretos que constituam motivo de especial gravidade.

40 – É que, como alerta Maia Gonçalves (no «Código de Processo Penal – Anotado», 9.ª edição, pág. 163), «os motivos de suspeição são menos nítidos do que as causas de impedimento, podendo ser, por isso, fraudulentamente invocados para afastar o juiz».

41 – Por isso se justifica que haja uma especial exigência quanto à objectiva gravidade da invocada causa de suspeição, pois, de outro modo, estava facilmente encontrado o meio de contornar o princípio do «juiz natural».

42 – No caso sub specie, é patente que a Mmª Juiz do Tribunal a quo não aborda a direcção da audiência em desfavor dos arguidos.

43 – Tanto basta para concluir pela falência do pedido de recusa de juiz formulado pelos arguidos requerentes, pedido que (sem necessidade de quaisquer diligências de prova, nos termos prevenidos no artigo 45.º n.º 4, do CPP) não pode deixar de considerar-se manifestamente infundado.

44 – São devidas custas pelos arguidos requerentes, nos termos prevenidos nos artigos 513.º n.º 1 e 514.º n.º 1, do CPP, cumprindo, ademais, sancionar os mesmos, nos termos prevenidos no n.º 7 do artigo 45.º, do CPP.


III

48 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se: (a) indeferir o requerimento dos arguidos, por que manifestamente infundado; (b) condenar os arguidos nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) unidades de conta; e (c) sancionar os requerentes com a taxa de justiça de 6 (seis) unidades de conta.

Évora, 14 de Julho de 2015

António Manuel Clemente Lima (relator)

Alberto João Borges (adjunto)