Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3730/19.0T8ENT.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
PRESUNÇÃO REGISTRAL
CONTRATO-PROMESSA
TRADIÇÃO DA COISA
INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. O título constitutivo da propriedade horizontal identifica e individualiza as frações autónomas tendo por base a licença de utilização emitida pela entidade camarária ou o projeto de construção.
2. O adquirente de uma fração, na qual se integra uma determinada garagem, que regista a aquisição em conformidade com o que consta da escritura de compra e venda e título de constituição da propriedade horizontal, goza da presunção de titularidade prevista no artigo 7.º do Código de Registo Predial.
3. O contrato-promessa de compra e venda de coisa imóvel com «traditio rei» não confere ao promitente-comprador posse da coisa a não ser que haja inversão do título da posse.
4. A mera detenção da coisa não ilide a presunção registral acima referida.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO

A... intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra B... e CONSTRUMÂNDIO – EMPREENDIMENTOS URBANÍSTICOS, Ld.ª, pedindo:
- O reconhecimento do direito de propriedade do Autor sobre o prédio identificado no artigo 1.º da p.i. (fração autónoma H correspondente ao 3.º Dt.º do prédio sito na Rua da Fé, n.º 69, Entroncamento) e da garagem n.º 7 que integra o mesmo imóvel;
- A condenação dos Réus a entregarem ao Autor a garagem n.º 7;
- A condenação dos Réus a absterem-se da prática de atos que perturbem a posse, o direito de uso e direito de propriedade do Autor;
- A repor a garagem no estado em que a mesma se encontrava aquando da sua ocupação.

Para fundamentar a sua pretensão alegou, em suma, que:
Tem inscrita a seu favor a aquisição da referida fração H que integra a garagem n.º 7, conforme decorre do título de constituição de propriedade horizontal.
Tem procedido ao pagamento do condomínio e encargos fiscais da fração de acordo com a tipologia da mesma.
Aquando da aquisição do imóvel, por escritura pública datada de 26-08-2014, foi-lhe provisoriamente entregue a garagem n.º 5, a qual integra a fração I, de que é proprietária a 2.ª Ré e que é fruída pelo 1.º Réu.
A Ré e o Réu B… possuem ilegitimamente a posse, gozo e fruição da garagem n.º 7, que lhe devem devolver contra a entrega da garagem n.º 5, nos termos da notificação judicial avulsa que efetuou aos Réus, sem sucesso.

Na contestação, o Réu B... veio excecionar a sua legitimidade por preterição de litisconsórcio necessário (falta de demanda da esposa), bem como a existência de erro na forma do processo e ineptidão da p.i.
Por impugnação alegou que a garagem em causa lhe foi entregue no âmbito de contrato-promessa firmado com a 1.ª Ré, em 12-08-2006, por via do qual vem ocupando a fração I prometida comprar e a garagem n.º 7, o que era do conhecimento do Autor à data em que este adquiriu a fração H.
Mais alegou que a constituição da propriedade horizontal datada de 26-11-2010, onde se faz menção que à fração H (3.º direito) está afeta a garagem n.º 7 incorre em erro, pois as ligações da água e luz desta garagem são feitas através da fração I (3.º esquerdo), de tal modo que a abertura e fecho da luz só pode ser feita do interior da mesma.

O Autor pronunciou-se sobre a matéria excetiva e deduziu incidente de intervenção principal provocada passiva, chamando à lide a esposa do 2.º Réu, C…, chamamento que foi deferido, tendo a chamada sido citada.

Na audiência prévia foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as exceções dilatórias invocadas, fixou o valor da causa, delimitou o objeto do litígio e fixou os temas de prova.
Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que jugou a ação procedente nos seguintes termos:
«- reconheço o direito de propriedade do A. sobre a fracção autónoma descrito na Conservatória do Registo Predial do Entroncamento sob o n.º 2206/20100109 – H, a qual integra a garagem n.º 7;
- condeno os RR. a entregar ao A. no estado em que a mesma se encontrava à data da ocupação pelo 2º R.;
- condeno os RR. a absterem-se da prática de qualquer acto que perturbe a posse e direito de propriedade do A.»

Inconformado, apelou o Réu, apresentando as seguintes CONCLUSÕES (já após aperfeiçoamento):
«1- Na sequência da matéria de facto dada por não provada (2. FACTOS NÃO PROVADOS), cabe alterar a mesma nos seguintes termos;
a) 2.1. A entrega referida em 1.4. foi a título provisório - art. 9º da petição inicial.
Quanto a este facto não pode o mesmo ser dado por não provado. Desde logo porque resulta em termos de confissão da própria PI - do Autor – inserida no seu articulado (artigo 9º).
Do mesmo modo em sede de contestação (artigos 4º a 9º) se referenciou nos termos do artigo 465º do CPC, por correspondência com o artigo 346º do CPC, a par do previsto nos artigos 356º a 358º do CC, que o Réu/Recorrente pretendia, para que não fosse retirado, aceitar o que foi indicado pelo Autor.
Neste sentido, o facto (2.1) dado por não provado, ora mencionado, não pode deixar de ser dado por provado sob pena de violação dos artigos mencionados e de um direito, que assiste ao Réu, previsto processualmente.
Pelo que, a matéria de confissão sob pena de violação do direito das partes e em especial do que consta do artigo 465º do CPC, em especial o n.º 2, não pode ser retirado, porque aceite, como confissão pela parte contrária (Réu).

Neste sentido; o facto 2.1. A entrega referida em 1.4. foi a título provisório - art. 9º da petição inicial, deve ser dado por provado.

b) O facto dado por não provado, “2.3. À data referida em 1.1. a placa que se encontrava na garagem n.º 7 referenciava o 3º esquerdo – art. 23º da contestação”, deve ser dado como provado em face das declarações provadas pelas testemunhas; (…); (…) e (…).

Sendo assim, o facto dado por não provado, “2.3. À data referida em 1.1. a placa que se encontrava na garagem n.º 7 referenciava o 3º esquerdo – art. 23º da contestação”, deve ser dado como provado.

c) O Facto dado por não provado; 2.4. À data referida em 1.1. as ligações de água e luz à garagem n.º 7 pertenciam ao apartamento do 3º andar esquerdo – art. 28º da contestação, deve ser dado por provado, exceto no que se refere à expressão: “ligações de água”

Neste sentido, há que verificar as declarações das testemunhas, nomeadamente de (…) (0:00-15:30), que refere textualmente;
Do mesmo modo, (…), reafirma no mesmo sentido, que a ligação à luz à garagem n.º 7 pertencia ao apartamento do 3º andar esquerdo;
Do mesmo modo, (…);
Sendo assim, e em face das respostas que foram concedidas, houve uma errada interpretação e análise das mesmas, pelo que a resposta ao facto não provado; 2.4. À data referida em 1.1. as ligações de água e luz à garagem n.º 7 pertenciam ao apartamento do 3º andar esquerdo – art. 28º da contestação, deveria ter sido dado como provado, exceto no que respeita às ligações de água.

d) Neste sentido, como se referenciou devem ser dados por provados os factos não provados, com as referências; 2.1, 2.3 e 2.4, o que motivará uma conclusão diversa da D. Sentença.

· De facto, além do que se verifica da D. Sentença, em termos de motivação, os factos dados como não provados, pese embora a sua menção, não se pronunciou a D.
Sentença sobre as declarações em concreto de (…), que atualmente habita no respetivo prédio, tendo a Ilustre Juiz considerado que se reportavam a momento anterior à entrada do Autor no respetivo prédio.

· Há pois um erro de apreciação da prova testemunhal evidente, tal como na apreciação do referenciado nos pontos; 2.1 (que tão pouco foi mencionado qualquer motivação), bem como o facto 2.3.

2 - A fundamentação da sentença baseou-se sobretudo em identificar e estabelecer a diferença entre o direito do proprietário e o direito do detentor. Refere-se na D. Sentença, nesta dicotomia, que o direito do proprietário não sofre exceções – no caso em apreço – e prevalece sobre o direito do detentor. Só que, com todo o respeito, o Réu e ora Recorrente, não deve ser tomado apenas como detentor, mas como promitente comprador, e em especial como possuidor de facto, do espaço de garagem em causa;
3 – Conforme deriva dos factos provados, o Recorrente, promitente-comprador e possuidor utiliza a garagem n.º 7 desde a data da construção do prédio (a sua posse e o contrato promessa reconduz-se á data da construção do prédio) ou seja, inclusive anterior a 2006… Daí que, não se trata de facto de uma mera detenção, por ocupação…
a) Existe um contrato-promessa, que refere textualmente a ocupação da garagem n.º 7, por referência à compra do andar, dado por terceiro andar esquerdo;
b) Há utilização desde essa data da respetiva garagem;
c) Não houve oposição de qualquer pessoa, construtor e proprietários ou de outros inquilinos que ocupam e habitam as suas frações:
d) A ligação de eletricidade está afeta à fração dada por 3º andar esquerdo;
e) Nesse espaço de garagem sempre foi colocado o veículo pertença do Recorrente, bem como bens que são de sua pertença,
pelo que, de facto não se trata de uma mera detenção nos termos que foram promovidos na D. Sentença, por recondução ao artigo 1253º do CC.
4 – Tanto basta, na nossa opinião, para conceder procedência ao próprio aquando da justificação concedida na sentença, identificando o comportamento do Réu e Recorrente, através do conceito de detenção, sem melhor análise da posse e da legitimidade proveniente da utilização de determinada garagem, propriamente a garagem n.º 7;
5 - Não verificou devidamente a D. Sentença – com respeito – o documento que foi junto em sede de audiência de discussão e julgamento emitido pelo Município do Entroncamento. A menção a esse documento é referenciada na D. Sentença sem no entanto precisar do que refere de facto esse mesmo documento. E a importância desse documento, além de destruir o facto descrito em 2.7 permite ao Julgador tomar por referência que, de facto, a garagem que consta do contrato promessa é a garagem efetivamente possuída e ocupada pelo Recorrente. Basta analisar que a correção dos n.ºs da garagem ocorreu passados cerca de quatro anos sobre o contrato-promessa (2010), sem qualquer conhecimento do próprio Recorrente;
6 - O certo é que nenhum proprietário, construtor, engenheiro ou que quer que fosse promoveu qualquer alteração do contrato-promessa ou indicou ao Recorrente qualquer lapso na numeração, qualquer necessidade de mudança de garagem, ou qualquer imposição para que abandonasse o espaço onde sempre esteve e passa-se para outro local.
7 – Conforme foi referido também na D. Sentença, de facto o Recorrente desde o início que atuou como verdadeiro proprietário, nunca tendo sido questionado essa qualidade.
Paga a eletricidade, água e gás do seu apartamento e a eletricidade da própria garagem.
Aliás, aquando do contrato promessa foi imediatamente transferido para si todos os atributos, qualidades e direitos de proprietário, apenas não sendo realizada a escritura pública de compra e venda;
8 - Outra questão também existe, pertinente que não foi avaliada na D. sentença; É que a garagem não tem uma individualidade a autonomia própria em face da respetiva fração. Aliás, tal facto foi inclusivamente reconhecido na própria sentença e escritura publica mencionada. As frações autónomas não têm autonomia entre si, tendo por atenção que a aquisição da fração habitacional, não tem autonomia sobre as arrecadações e garagens.
9 – Não pode isolar-se o espaço de garagem porque não é uma fração independente e autónoma inscrita na Conservatória e matricialmente independente, uma garagem que estava conectada com a fração que é habitada – e que ninguém põe em causa – não tendo essa garagem uma individualidade própria que permita retirá-la de um contrato, sem que afete necessariamente os restantes elementos que compõem a matriz, nomeadamente a fração habitacional e a própria arrecadação.
10 – Aliás, basta verificar inclusive da análise do próprio documento que foi junto em sede de audiência e referenciado na D. Sentença, que indicia pela sua natureza, que os apartamentos com maior área útil tenham também, a maior garagem;
11 – Inclusive, ninguém consegue identificar a numeração atribuída às respetivas garagens do prédio em questão. Pelo critério dessa numeração – que não existe – mas de facto foi tacitamente aceite por todos, tendo por atenção inclusive a ligação de eletricidade de cada fração habitacional à própria garagem, existe de facto uma impossibilidade de reconhecer de determinada garagem com uma correspondência exata a determinada fração;
12 - A entidade bancária vendedora não desconhecia qual a garagem afeta de facto à fração autónoma – não desconhecendo o Autor que de facto essa mesma garagem estava a ser ocupada pelo Réu – ou no mínimo, sem anteriormente a essa venda, e esclarecer dessa ocupação. Ninguém adquire uma fração autónoma em que está afeto uma arrecadação e uma garagem, sem desconhecer e esclarecer qual efetivamente é determinada como garagem pertencente a essa mesma fração habitável;
13 – Sempre se refere que face à inexistência de uma verdadeira fração, por garagem individualmente matricial e registralmente não é passível em rigor determinar a numeração das respetivas garagens. Qual é o critério afinal, se não atendermos aos que acima foram expostos para identificar uma garagem que não é individualizável das respetivas frações. Apenas a sua numeração…
14 – No que respeita à numeração das garagens a D. Sentença nada retira, nem menciona como se identificou essa garagem. Pelo número oposto? Mas não havendo indicação desse número, quem sabe se a garagem n.º 7 não é de facto a número 5 e a número 5 não é de facto a número 7. Apenas se reconhece que havia, aquando da compra e venda da fração pelo Autor, uma garagem disponível … que aliás, foi a que lhe foi concedida, e que ora utiliza, e que sempre utilizou sem por qualquer dúvida desde 26/08/2014… só agora se lembrando afinal que aquela garagem não era a que pertencia à sua fração…
15 – Questão esta, aliás, que tinha sido suscitada nos artigos 32º a 34º da contestação e que a D. Sentença não avaliou devidamente. Ou seja, de facto a D. Sentença não apreciou todas as questões que foram suscitadas em termos de contestação e que seriam relevantes para determinar a decisão que foi proposta. A D. Sentença não resolveu todas as questões que as partes suscitaram e são relevantes para a boa decisão da causa, nos termos do n.º 2 do artigo 608º do CPC;
16 – Como se referiu, a oportunidade e razoabilidade do pedido de reivindicação de posse e propriedade não pode assentar em situações de facto provisórias, mas definitivas que revelam uma efetiva violação de direito, o que leva à afetação do n.º 2 do artigo 2º, 1ª parte dos n.ºs 1 e 2 do artigo 30º, artigos 576º e 579º, com as consequências previstas na al. b) do artigo 577º, 186º e 196º, todos do CPC.
17 - D. Sentença deve atender à confissão que foi efetuada na Pi, como articulado e não conceder provimento a qualquer situação provisória, assim confessada sob pena de estarmos a proteger apenas uma situação jurídica cautelar, cuja ação nos moldes propostos não é adequada; A confissão indicada, ao não ser aceite afeta os termos do artigo 465º do CPC, por correspondência com o artigo 346º do CPC, a par do previsto nos artigos 356º a 358º do CC.
18 - A D. Sentença é nula, nos termos do artigo 615º do CPC, porque não se pronunciou sobre questões que deveria apreciar (a relação entre detenção e posse reconhecida como se de verdadeiro proprietário se tratasse; a diversidade e critério da numeração das garagens; a falta de autonomia e independência matricial e registral dos espaços de garagens e a falta de melhor apreciação do documento proveniente do Município do Entroncamento em sede de audiência de discussão e julgamento);
NESTES TERMOS, se não indicada a nulidade da sentença nos termos acima indicados, deve no entanto revogar-se a mesma e proferir-se decisão de improcedência da PI, se não se reenviar o
presente processo para nova análise da matéria de facto nos termos do artigo 640º do CPC, com todas as consequências daí derivadas.»

Foi apresentada resposta ao recurso pelo Autor pugnando pela improcedência do mesmo.
Foi dado cumprimento pela 1.ª instância ao disposto no artigo 641.º, n.º 1, do CPC, em sentido negativo, aquando da admissão do recurso.
Em 26-10-2021 foi proferido pela Relatora despacho de aperfeiçoamento das conclusões, seguindo a demais tramitação com vista ao exercício do contraditório.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
- Nulidade da sentença
- Impugnação da decisão de facto
- Titularidade da garagem n.º 7


B- De Facto
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
«1. FACTOS PROVADOS
1.1. Por escrito de 26 de Agosto de 2014, denominado “Compra e venda e mútuo com hipoteca”, (…), na qualidade de procuradora substabelecida e em representação do Banco Comercial Português, S.A., como primeira outorgante, A..., como segundo outorgante, e (…), em representação do Banco Comercial Português, S.A., como terceiro outorgante, declararam:
“Entre os outorgantes acima identificados é celebrado o presente contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca, que se rege pelas cláusulas seguintes:
I
COMPRA E VENDA
Primeira
(Objecto)
A Primeira Outorgante, em nome do seu representado, vende ao Segundo Outorgante , que o aceita, a FRACÇÃO AUTÓNOMA DESIGNADA PELA LETRA H, correspondente a habitação no terceiro andar direito, com tudo o que a compõe, a qual faz parte do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, registada predialmente pela inscrição AP. 5051 de 2010/12/02, sito na Rua da Fé, n.º 69, freguesia de São João Baptista, concelho de Entroncamento, descrito na CONSERVATÓRIA DO REGISTO PREDIAL DE ENTRONCAMENTO sob o número 2206 – S. JOÃO BAPTISTA, com registo de aquisição a favor da PARTE VENDEDORA pela inscrição AP. 662 de 2013/10/02, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 2894, com o valor patrimonial atribuído de Euros: 109.681,03, doravante designada por IMÓVEL.” – art. 1º da petição inicial.
1.2. Encontra-se inscrita, por ap. 2475 de 2014/08/26, a aquisição, a favor de A..., por compra, do terceiro andar direito tipo T-Três, destinado a habitação, arrecadação no sótão com o n.º 4, com a área de 27,65 m2 e garagem na cave com o n.º 7 com a área de 36,77 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial do Entroncamento sob o n.º 2206/20100109 – H – art. 2º da petição inicial.
1.3. Em 26 de Novembro de 2010, por escrito designado de “Título Constitutivo de Propriedade Horizontal”, (…) e (…), na qualidade de sócios-gerentes da sociedade Construmândio – Empreendimentos Urbanísticos, Ld.ª, declararam:
“Primeiro
Que a sociedade por eles representada é dona e legítima possuidora do prédio urbano sito na Rua da Fé, n.º 69, freguesia de São João Baptista, concelho de Entroncamento, descrito na Conservatória do Registo Predial de Entroncamento sob o número dois mil duzentos e seis da freguesia de São João Baptista, com o registo de aquisição a favor da sociedade pela inscrição um de nove de Julho de dois mil e quatro.
Segunda
Que no referido prédio foi construído um edifício composto de cave para garagens, rés-do-chão, primeiro, segundo e terceiros andares para habitação e sótão para arrecadações com a área coberta de trezentos e cinquenta e nove metros quadrados, sito na Rua da Fé, n.º 69 (…)
Que o edifício é composto por nove fracções autónomas, identificadas pelas letras A a I, constituindo unidades independentes, distintas e isoladas entre si, todas com saída para a via pública ou para parte comum do prédio e desta para a via pública.
Terceiro
Que pelo presente, submetem o prédio ao regime de propriedade horizontal, com as seguintes fracções autónomas:
(…)
FRACÇÃO H – Terceiro andar direito tipo T-Três, destinado a habitação, arrecadação no sótão com o número quatro com a área de vinte e sete vírgula sessenta e cinco metros quadrados e garagem na cave com o número sete com a área de trinta e seis vírgula setenta e sete metros quadrados, a que atribuem o valor de oitenta e três mil oitocentos e cinquenta euros, a que corresponde a permilagem de cento e vinte e nove.
FRACÇÃO I - Terceiro andar direito tipo T-Três, destinado a habitação, arrecadação no sótão com o número sete com a área de vinte e cinco vírgula oitenta metros quadrados e garagem na cave com o número cinco com a área de dezassete vírgula trinta e dois metros quadrados, a que atribuem o valor de setenta e sete mil trezentos e cinquenta euros, a que corresponde a permilagem de cento e dezanove.” arts. 4º e 5º da petição inicial.
1.4. Aquando do referido em 1.1. foi entregue ao A. a garagem n.º 5 – art. 9º da petição inicial.
1.5. Em 12 de Agosto de 2006, por escrito denominado “Contrato de promessa de compra e venda e recibo de sinal, Construmândio – Empreendimentos Urbanísticos, Ld.ª, como primeiro outorgante e promitente vendedor, e B… e C…, na qualidade de segundos outorgantes e promitentes compradores, declararam:
O primeiro outorgante é dono e legítimo possuidor da fracção autónoma designada pela Letra -, correspondente ao 3º Andar Esq.º, com arrecadação n.º 7 no sótão e garagem n.º 7, do prédio sito no Prolongamento da Rua da Fé, em Entroncamento, implantado sobre o lote de terreno inscrito na matriz predial do Entroncamento (…)

Por este contrato de promessa de compra e venda, prometem vender ao segundo outorgante a fracção atrás referida, livres de quaisquer ónus ou encargos, pelo preço de 120.000,00€ (Cento e vinte mil euros).

Primeiro outorgante recebeu do segundo outorgantes, a título de sinal, na presente data a quantia de 25.000,00€ (Vinte e cinco mil euros), pelo cheque (…)” – art. 12º da contestação.
1.6. Desde data não concretamente apurada, não posterior ao ano de 2008, o 2º R. e esposa vêm ocupando a fracção referida em 1.5., bem como a garagem n.º 7, que lhe foram entregues pela 1ª R. – art. 11º da petição inicial e 13º da contestação.
1.7. Aquando do referido em 1.1. o A. não desconhecia que o 2º R. ocupava a garagem n.º 7 – art. 19º da contestação.

2. FACTOS NÃO PROVADOS
2.1. A entrega referida em 1.4. foi a título provisório - art. 9º da petição inicial.
2.2. Aquando do referido em 1.1., o vendedor necessariamente esclareceu o A. que a garagem n.º 7 não pertencia à fracção H – art. 19º da contestação.
2.3. À data referida em 1.1. a placa que se encontrava na garagem n.º 7 referenciava o 3º esquerdo – art. 23º da contestação.
2.4. À data referida em 1.1. as ligações de água e luz à garagem n.º 7 pertenciam ao apartamento do 3º andar esquerdo – art. 28º da contestação.
2.5. À data a água com ligação à garagem n.º 7 tem por base o contador do 3º esquerdo – art. 29º da contestação.
2.6. O título constitutivo da propriedade horizontal referido em 1.3. padece de erro quanto à atribuição da garagem n.º 7 à fracção H – art. 32º da contestação.
2.7. Encontra-se inscrita a aquisição a favor da 1ª R. do prédio descrito sob o n.º 2206/20101209 – I, correspondente ao terceiro andar esquerdo tipo T-Três, destinado a habitação, arrecadação no sótão com o n.º 7, e garagem na cave com o n.º 5 – art. 10º da petição inicial.»

C- De Direito
1. Nulidade da sentença
Nas conclusões 15 e 18, o Apelante vem arguir a nulidade da sentença nos termos dos artigos 608.º, n.º 2, e 615.º, do CPC, invocando que a mesma não se pronunciou sobre questões que deveria apreciar identificando-as do seguinte modo: «(…) a relação entre detenção e posse reconhecida como se de verdadeiro proprietário se tratasse; a diversidade e critério da numeração das garagens; a falta de autonomia e independência matricial e registral dos espaços de garagens e a falta de melhor apreciação do documento proveniente do Município do Entroncamento em sede de audiência de discussão e julgamento».
Cumpre apreciar.
As nulidades da sentença encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do referido artigo 615.º, do CPC e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.
A nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, na vertente da omissão de pronúncia, está diretamente relacionada com o comando do artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões[1]) alegadas relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor e da reconvenção e/ou das exceções invocadas na defesa[2].
No caso em apreço, a causa de pedir da presente ação consubstancia-se na invocação de factos tendentes à demonstração da aquisição do direito de propriedade do Autor sobre a garagem n.º 7 afeta à fração H por si adquirida através de compra e venda.
Esta é a questão fático-jurídica em discussão nos autos. Contraposta à defesa do Réu que invoca que a dita garagem está afeta à fração I, por si usada e fruída ao abrigo de um contrato-promessa de compra e venda, que qualifica como uma situação possessória e não mera detenção.
A argumentação do Réu para fazer vingar a sua tese estribou-se na alegação de factos circunstanciais relacionados com o tipo de utilização que vem fazendo da garagem, a falta de critério de identificação das garagens, a inexistência de autonomia registral das mesmas e, agora, em sede de recurso, a invocação de erro de apreciação do documento camarário que deferiu o pedido de substituição da ficha de áreas existentes em relação às garagens n.º 5 e n.º 7, passando a garagem n.º 7 a estar afeta à fração H e a garagem n.º 5 à fração I.
Como decorre da sentença recorrida foi identificada a questão a decidir nos seguintes termos: «(…) aferir dos fundamentos do direito de propriedade do A. sobre a fração e garagem id. na petição inicial.»
E, consequentemente, em face dos factos provados e do direito que teve por aplicável ao caso em discussão, a sentença, levando em conta, por um lado, que o Autor provou a aquisição derivada do domínio, por via do contrato de compra e venda, a correspondente presunção registral prevista no artigo 7.º do Código de Registo Predial, já que a aquisição de encontra registada em seu nome, a conformidade registral com o título constitutivo da propriedade horizontal, e, por outro lado, que o Réu apelante, por força do contrato-promessa subjacente ao uso e fruição da garagem n.º 7, é um mero detentor, nos termos do artigo 1253.º, alínea c), do Código Civil, não tendo ilidido a presunção registral de que beneficia o Autor, por não ter demonstrado a prevalência da aquisição originária (usucapião) sobre a derivada, concluiu que a ação não poderia deixar de improceder.
Donde decorre que a sentença apreciou a questão controvertida submetida a julgamento não padecendo do vício de nulidade, independentemente de ter ou não apreciado todos os argumentos do Réu e até do eventual erro de julgamento ao nível da apreciação do facto.
Nestes termos, improcede este segmento da apelação.

2. Impugnação da decisão de facto
O Apelante impugna a decisão de facto em relação aos pontos 2.1., 2.3. e 2.4. dos factos não provados por entender que, em face das provas que identifica, a matéria dos mesmos deveria ter sido dada como provada.
Cumpridos que estão os pressupostos do artigo 640.º do CPC, passamos à apreciação da impugnação.
(…).
Em face da improcedência, quer da arguida nulidade, quer da impugnação da decisão de facto, não existe fundamento legal para sequer ser perspetivada a remessa dos autos à 1.ª instância para os fins preconizados pelo Apelante.

3. Titularidade da garagem n.º 7
O Apelante nas conclusões 3 e 4 das alegações vem defender que, ao contrário da fundamentação da sentença, não é mero detentor da garagem n.º 7, mas sim possuidor por a usufruir desde data anterior a 2006 ao abrigo de um contrato-promessa de compra e venda do 3.º andar esquerdo. No seu entender, esta circunstância determina o afastamento do artigo 1253.º do Código Civil e a improcedência da pretensão do Autor.
Vejamos, então, se assim será.
Decorre da sentença que o Autor tem a seu favor a presunção de propriedade proveniente do registo da aquisição da fração H, nos termos do artigo 7.º do Código de Registo Predial. Presunção esta que está em conformidade com o título constitutivo da propriedade horizontal. O que decorre dos factos provados sob os números 1.1. a 1.3.
Também resulta da sentença que tendo o Autor a seu favor a referida presunção a mesma pode ser ilidida caso seja invocada contra a mesma, com sucesso, a usucapião.
Sendo que o Réu apenas invocou o contrato-promessa de compra e venda da fração correspondente à fração I e utilização da garagem n.º 7, o que decorre do facto provado sob o número 1.5.
No entender da sentença, o Réu enquanto promitente-comprador da fração I apenas tem o estatuto jurídico de mero detentor por aplicação do artigo 1253.º, alínea c), do Código Civil, o que não lhe permitia invocar a aquisição originária por via da usucapião que, de resto, não invocou.
Ora, não podíamos estar mais de acordo com o decidido e com a fundamentação jurídica explanada na sentença recorrida.
Pelas razões que passamos a enunciar de forma mais concreta.
Antes de mais, importa referenciar que estando o imóvel constituído em propriedade horizontal há que atentar ao prescrito no artigo 1418.º, n.º 1, do Código Civil, do qual decorre que naquele instrumento são «especificadas as partes do edifício correspondentes às várias frações, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas (…).», tendo tal requisito como escopo a individualização e localização das frações proporcionando ao titular de cada uma delas através do simples exame do título a identificação inequívoca e exata do que pode usufruir individualmente, a título exclusivo, e aquilo que pode usufruir coletivamente como comproprietário.
As frações autónomas são aquelas que obedecem ao disposto no artigo 1415.º do Código Civil, ou seja, as que constituem «unidades independentes» (critério da autonomia), «distintas e isoladas entre si» (critério do isolamento) e que tenham «saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública» (critério da acessibilidade).
No que concerne à composição de cada fração, para além da unidade fisicamente autónoma com referenciação à identificação e localização da fração (a fração é normalmente identificada por uma determinada letra e pelo andar onde se situa, com explicitação das várias frações em cada piso se for o caso), o título constitutivo da propriedade horizontal pode abranger partes do edifício que seriam presuntivamente comuns (cfr. artigo 1421.º do Código Civil), não fosse aquele estatuto convencional de condomínio, o que sucede, por exemplo, com as arrecadações na cave ou no sótão e com as garagens.
Se assim for, apenas com a menção dessa parte que passa a integrar a fração se encontra individualizada a fração.
Dito isto, importa referir que de acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal junto aos autos, cada fração autónoma (excetuando a fração A que apenas é composta por uma garagem na cave) é composta por uma determinado «andar» ou «fogo» e uma garagem (para além da arrecadação).
No caso da fração H a garagem que integra tal fração é nº 7; no caso da fração I, a garagem que a integra tem o n.º 5.
Por outro lado, decorre da certidão do registo predial junto aos autos que o Autor registou através da Ap. 2475 de 2014/08/26 a aquisição do «Terceiro andar direito tipo T-três, destinado a habitação, arrecadação no sótão com o n.º 4 com a área de 27,65m2 e garagem na cave com o n.º 7 com a área de 36,77 m2.»
A aquisição do direito de propriedade sobre a fração H com todas as suas componentes que a integram concede-lhe a presunção de propriedade por via do artigo 7.º do Código de Registo Predial que, todavia, poderia ser ilidida pelo Réu caso demonstrasse a aquisição originária de parte que integra a dita fração, ou seja, apenas a parte referente à dita garagem n.º 7.
As formas de aquisição originária do direito de propriedade de imóveis encontram-se previstas no artigo 1316.º do Código Civil, a saber: usucapião (artigos 1287.º 1301.º) e acessão (artigos 1325.º a 1343.º) caraterizando-se por não existir anteriormente uma relação jurídica de transmissão do direito do propriedade ao contrário do que sucede na aquisição derivada.
No caso, o Réu apenas invoca que detém a posse da garagem n.º 7 por via de um contrato-promessa de compra e venda.
Não invoca explicitamente qualquer das formas de aquisição originária acima referidas, ainda que a invocação da posse inculque a ideia que se está a reportar à usucapião por ser a forma de aquisição originária que tem na sua base uma situação possessória sobre uma única e determinada coisa desde que seja uma posse pública, pacífica, contínua, de boa-fé e durante o tempo necessário (artigos 1287.º, 1294.º a 1297.º do Código Civil).
A usucapião enquanto forma de aquisição originária de direitos reais opera pela transformação de uma situação de facto ou de mera aparência numa situação jurídica em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa, ou seja, confere ao possuidor o direito real correspondente à sua posse, desde que esta, seja dotada de determinadas caraterísticas e se tenha mantido pelo lapso de tempo determinado na lei.
A usucapião para ser eficaz carece de ser invocada (artigo 1287.º do Código Civil), não produz efeitos de forma automática e nem é de conhecimento oficioso.
Como resulta do artigo 1251.º por contraposição ao artigo 1253.º do Código Civil, a aquisição da propriedade por usucapião tem como pressuposto a existência de uma posse em nome próprio, não apenas com «corpus», mas também com «animus».
É consabido que no contrato-promessa de compra e venda de imóveis com «traditio rei», a posse em nome próprio do promitente-comprador pode resultar de superveniente inversão do título da posse, a qual pressupõe a sua efetivação por oposição à contraparte, levada ao conhecimento desta, em termos de poder razoavelmente inferir-se uma oposição séria ao seu direito de propriedade.[3]
A eficácia da oposição referida nos artigos 1265.º e 1290.º do Código Civil depende da prática de atos inequivocamente reveladores de que o detentor quer atuar, a partir da oposição, como titular do direito sobre a coisa. A oposição deve, além disso, ser dirigida contra a pessoa em nome de quem o opositor detinha a coisa e tornar-se dela conhecida.[4]
No caso em apreço, o Réu não invocou a usucapião, não invocou a inversão do título da posse, nem o decurso do tempo necessário para a usucapião poder ser eficaz.
Limita-se a defender que é possuidor, o que nem sequer encontra respaldo nos factos provados, uma vez que a falta de inversão do título da posse determina que o Réu por via da utilização que faz da garagem n.º 7 ao abrigo de um contrato-promessa lhe conceda apenas a posição jurídica de mero detentor ou possuidor precário nos termos do artigo 1253.º, alínea a), do Código Civil, precisamente nos moldes analisados na sentença recorrida.
Efetivamente, sem inversão do título da posse não existe «animus possidendi» imprescindível para converter a detenção em posse em nome próprio, relevante para a aquisição da propriedade por usucapião.
Não assiste, pois, razão ao apelante na crítica que apôs à sentença recorrida em relação a esta matéria.

Alega o Apelante na conclusão n.º 5 que a sentença não «verificou devidamente» o documento camarário junto em audiência, embora o referencie na fundamentação sem referir precisamente o que o mesmo refere, sendo que, no entender do Apelante, o teor do mesmo permite concluir que a garagem n.º 7 é aquela que o recorrente possuí e ocupa, tendo a correção ocorrido depois de quatro anos sobre o contrato-promessa e sem conhecimento do mesmo, o que destrói o facto descrito no Ponto 2.7.
Na apreciação do alegado pelo recorrente dir-se-á que não se alcança qual a questão que o mesmo pretende ver apreciada.
Não obstante o despacho de aperfeiçoamento das conclusões de recurso, o Apelante optou por mencionar nas conclusões, não as questões que pretende ver apreciadas, mas grande parte do arrazoado que verteu no corpo da alegação, o que dificulta sobremaneira a correta compreensão da impugnação vertida no recurso.
De qualquer modo, sempre se dirá que não impugnando o Apelante a decisão de facto em relação ao facto visado provar com o documento, a crítica que faz à sentença e a conclusão que retira em relação ao Ponto 2.7. não pode ser reapreciada nesta sede.
Ademais, a sentença limita-se a mencionar na fundamentação da decisão de facto que o referido documento evidencia que não houve erro na identificação das garagens e respetivas frações a que pertencem aquando da constituição da propriedade horizontal, tendo o documento camarário, por via da alteração requerida e deferida, vindo a compatibilizar o que consta da licença de utilização com o teor da propriedade horizontal.
Não se justifica, pois, qualquer crítica ao decidido em relação a este segmento da fundamentação da sentença.

Nas conclusões 6 e 7, o Apelante invoca o seu desconhecimento quanto a qualquer alteração do contrato-promessa que celebrou por haver lapso da numeração das garagens e necessidade de mudança de garagem ou que lhe tivesse sido imposto que abandonasse o espaço que ocupa desde a celebração do contrato-promessa, tendo agido ao longo dos anos como verdadeiro proprietário «apenas não tendo sido realizada a escritura pública de compra e venda.»
É evidente que não está em causa aferir da boa-fé do Réu baseada no alegado desconhecimento, já que o Autor não fundamentou a sua pretensão questionando a boa-fé do Réu.
A questão em discussão é sobre a titularidade da garagem n.º 7. E para esse efeito regem as disposições legais sobre aquisição do direito de propriedade acima melhor explicitadas e para as quais remetemos, bem como para a conclusão ali retirada no sentido de não ter sido ilidida a presunção registral de aquisição derivada do direito de propriedade do Autor sobre a garagem n.º 7 enquanto parte integrante da fração H.

Nas conclusões 8 a 16, o Apelante enverada por questionar o modo como foram identificadas as garagens, alegando que não existe numeração, que o Autor sabia que o Réu ocupava a garagem n.º 7 e só agora se lembrou que afinal a garagem que utiliza não era a que pertencia à sua fração.
A questão que nos parece ser aflorada nestas conclusões prende-se com a identificação e localização de parte das frações autónomas H e I, ou seja, na parte concernente às respetivas garagens que integram cada uma daquelas frações.
Já antes se referiu que a lei não prescinde da individualização das frações e das suas componentes de modo claro e inequívoco, em ordem a evitar conflitos como o presente, como decorre do artigo 1418.º do Código Civil, sendo tal individualização essencial para a validade do título constitutivo da propriedade horizontal.
Acrescentando-se ainda que existem regras administrativas no que diz respeito à identificação e individualização das frações que têm de ser cumpridas para que possa ser emitido o título constitutivo da propriedade horizontal.
Como prescreve o artigo 1417, n.º 1, do Código Civil, a constituição da propriedade horizontal pode sê-lo por várias formas jurídicas, mormente por negócio jurídico unilateral típico, embora inominado, mediante o qual o proprietário ou o comproprietário do edifício, sejam pessoas singulares ou coletivas, declaram a sua vontade de o submeter ao regime da propriedade horizontal, operando o seu parcelamento jurídico em frações autónomas para serem objeto de propriedade singular a favor de diversas pessoas, seja de imediato por já se verificar a pluralidade de condóminos, seja em momento ulterior quando ocorrer a condição da pluralidade de proprietários, desde que o prédio tenha sido projetado para a transmissão em frações autónomas.[5]
Estando assim prevista a construção e alienação das frações, o projeto tem de evidenciar essa realidade, que tem de ter aprovação camarária, ou seja, tem de constar do projeto a identificação das frações autónomas que satisfaçam os requisitos legais para assim serem qualificadas.
Trata-se de pressuposto necessário à constituição da propriedade horizontal, como decorre do artigo 59.º do Código do Notariado (Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto, posteriormente alterado) ao prescrever que os instrumentos de constituição da propriedade horizontal só podem ser lavrados se for junto documento, passado pela câmara municipal, comprovativo de que as frações autónomas satisfazem os requisitos legais (n.º 1), ou, tratando-se de prédio construído para transmissão em frações autónomas, o documento a que se refere o número anterior pode ser substituído pela exibição do respetivo projeto de construção e, sendo caso disso, dos posteriores projetos de alteração aprovados pela câmara municipal (n.º 2).
O que decorre do regime legal supra referido é que a individualização das frações (incluindo todas as suas componentes) consta, desde logo, do projeto de construção e qualquer alteração tem de ser avalizada pela entidade camarária.
Ora o documento camarário junto em audiência vem precisamente revelar a identificação das frações do prédio por tipologia, áreas bruta, habitável e útil, as varandas e sacadas, o número de terraços, o número e áreas das arrecadações, o número e áreas das garagens privativas e a numeração das garagens, identificando cada número com o respetivo fogo, ali mencionado como fração identificada por letras, bem como a correção que foi pedida de modo a fazer coincidir a fração H com a garagem n.º 7 e a fração I com a garagem n.º 5.
Por conseguinte, a atribuição de números às garagens, a sua identificação por áreas e integração nas frações decorre do projeto de construção e da licença de utilização passada pela Câmara Municipal do Entroncamento, podendo ser identificada com todo o rigor e assertividade qual a garagem que integra qualquer uma das frações do prédio em causa.
Qualquer circunstância que tenha determinado num concreto momento a alteração factual desta realidade não pode ser oposta aos titulares do direito de propriedade das frações.
Improcedem também as conclusões recursórias supra referidas.

Nas conclusões 16 a 17, o Apelante volta a relançar a questão da provisoriedade em que, no seu entender, assenta a presente ação de reivindicação, aludindo à confissão dessa provisoriedade pelo Autor.
Não há mais nada a dizer sobre esta matéria, quer pelo que foi decidido no despacho saneador que julgou improcedente a exceção de erro no processo e ineptidão da p.i. com base na mesma argumentação, decisão que transitou em julgado, quer pelo que já foi referido quanto à alegada confissão do Autor e improcedência da impugnação da decisão de facto em relação ao Ponto 2.1. dos factos não provados.

Em face de todo o exposto, improcede «in totum» a apelação.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo do Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 13-01-2022
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)
__________________________________________________
[1] Cfr., entre outros, AC. STJ, de 06/05/2004, proc. 04B1409 e AC. STJ, de 27/10/2009, proc. 93/1999.C1.S2, em www.dgsi.pt
[2] Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 16/09/2008, proc. 08S321, em www.dgsi.pt
[3] Ac. do STJ de 12-3-2015, processo n.º 3566/06.8TBVFX.L1.S2 (Lopes do Rego), em www.dgsi.pt.
[4] Acs. do STJ de 12-3-2015, já citado, e de 20-03-2014, processo n.º 3325/07.0TJVNF.P1S2 (Nuno Cameira), em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. ABÍLIO NETO, Manual da Propriedade Horizontal, Ediforum, 4.ª ed. reformulada, março 2105, p. 119.