Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
73/15.1T8FTR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: COMPETÊNCIA
ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
Data do Acordão: 11/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I - O tribunal tributário é materialmente competente para o processo judicial instaurado com vista ao reconhecimento do direito de preferência invocado por quem pretenda exercer esse direito na venda realizada em execução fiscal.
II - O meio processual que o titular de direito de preferência deve utilizar para exercer esse direito junto do tribunal tributário é a ação para o reconhecimento de um direito prevista no artigo 145º, nºs 1 e 3, do CPPT.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AA instaurou a presente ação de processo comum contra o Estado Português, BB e mulher CC, DD, EE e FF, pedindo que:
i) o autor seja reconhecido, desde 1992, como arrendatário dos prédios rústicos que identifica;
ii) seja reconhecido ao autor o direito de preferência na venda fiscal, com origem no processo de execução fiscal nº15622011027603 dos prédios em causa.
Alegou para tanto, em síntese, ser arrendatário dos ditos prédios, os quais desde 1992 até à presente data explora, como agricultor, de forma continuada, sem interrupção e oposição de terceiros, sucedendo que em 09.09.2014, tomou conhecimento que o Serviço de Finanças, no âmbito da aludida execução fiscal, tinha posto à venda por meio de leilão eletrónico os mencionados prédios, tendo o autor, nessa mesma data, apresentado um requerimento ao Serviço de Finanças, manifestando a sua pretensão de exercer o direito de preferência, enquanto arrendatário desses prédios, tendo-lhe, porém, sido negado o exercício do direito de preferência, invocando o Chefe do Serviço de Finanças que o contrato exibido, em data posterior às vendas, não cumpria os requisitos previstos no DL 294/2009, de 13 de Outubro.
O autor reclamou para o Tribunal Tributário de 1ª instância que, por sentença de 15.01.2015, julgou improcedente a reclamação, com o fundamento da necessidade do autor (preferente) utilizar a ação de preferência no intuito de ser reconhecido o seu direito, a intentar na jurisdição comum, e a falta de disposição legal que permitisse a anulação da venda em causa por a mesma ter sido efetuada com observância de todas as formalidades legais.
Citados os réus, contestou apenas o réu FF, que alegou a incompetência absoluta da jurisdição comum, designadamente a Instância Local, pelo facto de o Réu ter adquirido o imóvel através de uma adjudicação ocorrida em processo executivo, ou seja, no âmbito de uma relação jus-tributária, sendo, por isso, competentes para a avaliação de qualquer irregularidade ou reclamação de direitos conexos os Tribunais Administrativos e Fiscais.
Respondeu o Autor, defendendo ser da competência dos tribunais comuns e mais concretamente desta instância local, a apreciação da presente ação, nos termos do disposto no artigo 70º, nº 1, do CPC, por ser o tribunal da situação dos bens.
Foi proferido despacho saneador que, conhecendo da exceção dilatória da competência absoluta, julgou a mesma procedente e, em consequência, absolveu os réus da instância.
Inconformado, o autor apelou do assim decidido, finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«I) A jurisdição comum compreende, o Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância;
II) A relação jus tributária está regulada nos artigos 15º a 29º da Lei Geral Tributária;
III) Quer o recorrente, quer os recorridos adquirentes de prédios vendidos em execução fiscal, não são sujeitos de uma relação jus tributária, na medida em que não estão sujeitos ao cumprimento de uma prestação tributária e não estão obrigados a efectuar o pagamento de dívida tributária;
IV) A relação jurídica que se estabelece entre as partes nasce da existência dos contratos de arrendamento rural que oneram os prédios adquiridos em venda fiscal, dos quais nasce o direito de preferência invocado pelo recorrente;
V) Devem ser propostas no tribunal da situação dos bens as acções referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis, a acção de divisão de coisa comum, de despejo, de preferência e de execução específica sobre imóveis, e ainda as de reforço, substituição, redução ou expurgação de hipotecas;
VI) A decisão recorrida violou o disposto no artigo 209.º, nº1, al. a), da CRP, os artigos 31º, 32º e 33, da Lei º62/2013, de 26.08, os artigos – 18.º, nº1 e 3, 30º e 31º, da Lei Geral Tributária e os artigos 70º e 621º do C.P.C.;
VII) Deve a decisão recorrida ser revogada por outra que julgue o Tribunal da Comarca para julgar a causa.
Ao decidirem assim estarão V.Ex.as a fazer a costumada Justiça!»

O Ministério Público, em representação do réu Estado, contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a decidir é a de saber se a jurisdição competente para apreciar a pretensão formulada pelo autor/recorrente é a jurisdição administrativa e fiscal e, dentro desta, os tribunais tributários, ou se, pelo contrário, tal competência é da jurisdição comum e, dentro dela, o Tribunal a quo.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos a considerar são os que constam do precedente relatório.

O DIREITO
A exemplo do que acontece com o pressuposto da legitimidade processual, a competência em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal qual o autor a apresenta na petição inicial. É enten­di­mento há muito firmado no Supremo Tribunal de Justiça, no Supremo Tribunal Administrativo e no Tribu­nal de Conflitos[1], que a questão da competência material deve ser resolvida tendo em conta a relação jurídica a discu­tir na ação, mas à luz do “retrato”, da estrutura­ção concreta apresentada pelo autor, e, logicamente, dando especial aten­ção à natureza intrínseca e aos fundamentos da pretensão deduzida, embora, sem avaliar o seu mérito, isto é, sem logo apre­ciar se o lesado tem ou não razão face ao direito substantivo.
Assim, cumpre relembrar a configuração da pretensão do autor, tal como foi formulada na petição inicial:
- Vários prédios descritos na Conservatória do Registo Predial foram objeto de penhora em execução fiscal a correr termos no Serviço de Finanças, vindo aí a ser vendidos aos aqui 2º, 3º, 4º, 5º e 6º réus, tendo o Chefe daquele Serviço de Finanças desatendido a pretensão do autor em exercer o direito de preferência sobre os aludidos prédios, do que reclamou o autor para o Tribunal Tributário de 1ª instância, sem sucesso.
- O autor veio pedir ao Tribunal que reconheça o autor, desde 1992, como arrendatários dos prédios rústicos em questão e o seu direito de preferência na venda fiscal daqueles prédios.
Dispõe o artigo 211º, nº 1, da CRP que «[o]s tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais».
Por seu turno, estatui o artigo 212º, nº, 3, da mesma Lei Fundamental que «[c]ompete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Decorre dos citados preceitos constitucionais que os tribunais administrativos e fiscais são hoje os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, isto é, apresentam-se com uma área própria, uma reserva de jurisdição, que espelha o seu núcleo essencial, ainda que algumas matérias possam ser pontualmente atribuídas, por lei especial, a outra jurisdição[2].
Tal doutrina está, aliás, vertida em dezenas de acórdãos quer do Supremo Tribunal Administrativo, quer do Tribunal Constitucional[3].
Em concretização do último dos citados preceitos constitucionais, prescreve o nº 1 do art. 1º do ETAF que «[o]s tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais», especificando o artigo 4º do mesmo diploma, os casos em que a competência para uma ação pertence aos tribunais administrativos e fiscais.
Por sua vez, o art. 2º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) dispõe que «[s]ão de aplicação supletiva ao procedimento e processo judicial tributário, de acordo com a natureza dos casos omissos:
a) As normas de natureza procedimental ou processual dos códigos e demais leis tributárias;
b) As normas sobre a organização e funcionamento da administração tributária;
c) As normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e tributários;
d) O Código do Procedimento Administrativo;
e) O Código de Processo Civil».
E o art. 249º, nº 7, do mesmo Código, prescreve que «[o]s titulares do direito de preferência na alienação dos bens são notificados do dia e hora da entrega dos bens ao proponente, para poderem exercer o seu direito no acto da adjudicação».
Já o art. 145º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo dispõe que «[a]s ações para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária podem ser propostas por quem invoque a titularidade do direito ou interesse a reconhecer”, estipulando o n.º 3 que “as ações apenas podem ser propostas sempre que esse meio processual for o mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efetiva do direito ou interesse legalmente protegido».
Face às normas transcritas, entendeu o STA, no Acórdão de 23.05.2012[4], que «o tribunal tributário pode e deve conhecer da existência do direito de preferência invocado por quem pretenda exercer esse direito na execução fiscal, sendo sua (e não dos tribunais judiciais) a competência em razão da matéria para conhecer desse pedido (…), devendo considerar-se que «todas as questões relativas ao exercício do direito de preferência em sede de execução fiscal são da competência dos tribunais tributários, como decorre do disposto no art. 212.º, n.º 3, da Constituição da República, no art. 49.º, n.º 1, alínea d), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e nos arts. 10.º, n.º 1, alínea f), 97.º, n.º 1, alínea o), e 151.º, n.º 1, do CPPT»[5].
De acordo com este entendimento, que sufragamos, se num processo de execução fiscal se suscita a pretensão de exercer o direito de preferência, «aí devem ser solucionadas todas as questões relativas a tal exercício, designadamente a existência ou não do direito, enquanto questão incidental»[6].
Ademais, como bem se observa na decisão recorrida, da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal, que indeferiu a reclamação apresentada pelo ora recorrente, não resulta que aquele Tribunal se tenha declarado materialmente incompetente, mas apenas a “insusceptibilidade” de conhecer naquele recurso do direito de preferência do arrendatário na transmissão da propriedade de bens imóveis controvertidos.
Mas isso, como também certeiramente se observa na decisão recorrida, citando o Acórdão do STA de 16.12.2015[7], decorre do facto de «no âmbito de uma venda em execução fiscal, o meio processual que o titular de direito de preferência deve utilizar para exercer o seu direito junto do tribunal tributário é a ação para o reconhecimento de um direito», e não a reclamação do ato do órgão de execução fiscal[8].
Nenhuma censura merece, pois, a decisão recorrida que, contrariamente ao que afirma o recorrente, não violou nenhumas das normas invocadas ou quaisquer outras.

Sumário:
I - O tribunal tributário é materialmente competente para o processo judicial instaurado com vista ao reconhecimento do direito de preferência invocado por quem pretenda exercer esse direito na venda realizada em execução fiscal.
II - O meio processual que o titular de direito de preferência deve utilizar para exercer esse direito junto do tribunal tributário é a ação para o reconhecimento de um direito prevista no artigo 145º, nºs 1 e 3, do CPPT.

IV - DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
*
Évora, 3 de Novembro de 2016


Manuel Bargado


Albertina Pedroso


Francisco Xavier
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[1] Cfr., inter alia, o Ac. do Tribunal de Conflitos de 23.09.2004, proc. 05/04, in www.dgsi.pt, com largas referências jurisprudenciais e doutrinais sobre o assunto.
[2] Cfr. Ac. do Tribunal de Conflitos de 07.07.2009, proc. 010/09, o qual, como os demais adiante citados sem indicação de outra fonte, se encontra disponível in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Acórdãos do STA de 03.10.96 (Pleno), rec. 41.403, de 26.02.97 (Pleno), rec. 41 487, de 2.02.98 (Pleno), rec. 40247, e de 27.02.2003, rec. 285/03, e Acórdãos do TC, proc.372/94, DR 07.09.94, proc. 347/97, DR 25.07.97, e proc. 508/94, DR 13.12.94, citados no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 07.07.2009, proc. 010/09, a que aludimos na nota anterior.

[4] Proc. 0155/11.
[5] Cfr., no mesmo sentido, o Ac. do STA de 10.092008, proc. 0884/07.
[6] Cfr. Ac. da Relação de Guimarães, de 13.11.2008, proc. 1879/08-1.
[7] Proc. 01704/13.
[8] Cfr., no mesmo sentido, o Ac. do STA de 07.07.2009, citado na nota 2.