Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
145/06.3GDTVD.E2
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
JUIZ PRESIDENTE
TRATO SUCESSIVO
Data do Acordão: 03/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário:
I. O princípio da plenitude da assistência dos juízes, consagrado no art. 654º, n.º 1, do CPC, aplicável ao processo penal ex vi do art. 4.º do CPP, reserva a intervenção na decisão da matéria de facto aos juízes que “tenham assistido a todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência final”.
II. No caso de uma comunicação de alteração substancial de factos, ordenada por decisão proferida por tribunal superior, em recurso, não se está perante qualquer acto de instrução ou discussão da causa.
III. Não enferma de nulidade a comunicação de tal alteração, em processo comum com intervenção de tribunal colectivo, efectuada pelo presidente do tribunal desacompanhado dos demais juízes que compõem esse colectivo, além do mais tendo o arguido se oposto à continuação do julgamento pelos novos factos.
IV. Provando-se que o arguido manteve com a vítima, entre os 10 e os 13 anos de idade desta, relações sexuais de cópula completa, “numa pluralidade de ocasiões que seguramente ultrapassam largas dezenas de vezes”, no âmbito e em execução da decisão anteriormente tomada, aproveitando-se do mesmo tipo de condições existentes (co-habitação e ascendente resultante da relação de parentesco) e, portanto, sem necessidade de (re)criar as condições propícias à prática dos actos, justifica-se qualificar tal conduta como um único crime (de trato sucessivo) de abuso sexual de crianças.
Decisão Texto Integral:
Proc. 145/06.3GDTVD.E2


ACORDAM OS JUÍZES QUE COMPÕEM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I. No processo comum colectivo que, com o nº 145/06.3GDTVD, corre seus termos no 2º Juízo Criminal de Portimão, o arguido A, com os demais sinais dos autos, foi julgado e condenado, como autor de 1 crime de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelo nº 1 do artº 172º e al. a) do nº 1 do artº 177º, ambos do Cod. Penal, na pena de 2 anos de prisão; como autor de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelos nºs 1 e 2 do artº 172º e al. a) do nº 1 do artº 177º, ambos do Cod. Penal, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão; como autor de 49 crimes de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelos nºs 1 e 2 do artº 172º e al. a) do nº 1 do artº 177º, ambos do Cod. Penal, na pena de 5 anos de prisão por cada um deles; em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, o arguido foi condenado na pena única de 15 anos de prisão.
Inconformado, recorreu o arguido, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):
«questão prévia:
O Acórdão de 13-7-2011 foi declarado nulo pelo Acórdão desta Veneranda Relação Évora de 20-3-2012.
Em 4-6-2013 pelas 15 Horas no gabinete, o Sr Juiz Presidente indagou ao defensor se se opunha à continuação do julgamento.
O arguido opôs-se à continuação do julgamento pelos factos/crimes que os Srs Juízes Julgadores alegam que o Ministério Publico não descobriu nem contabilizou....
O Sr Juiz Presidente estava acompanhado do Sr Procurador da República sem a presença dos demais Juízes que integram o Tribunal Coletivo.
O Sr Juiz Presidente não se dirigiu à sala de audiências nem viu o arguido que esperou cerca de 1 hora pelo início da audiência e nunca viu o Tribunal Colectivo pois este não se reuniu em 4-6-2013.
Até hoje não foi possível ter acesso ao teor da Acta de 4-6-2013.
O julgamento de 4-6-2013 é nulo pois o Tribunal Colectivo não se reuniu!!!
A não comunicação ao Ministério Público para efeitos do art. 359-2 do CPP traduz nulidade do processado e do Acórdão....e manifesto ostracismo pelo Acórdão desta Relação de Évora de 20-3-2012, o que deve ser declarado de imediato.
1- A Ofendida desistiu da queixa em fins de Maio 2011: “ venho desistir da queixa e dizer que não disse a verdade e que o meu Avô está inocente pelo que peço que o caso seja arquivado” cfr. documento não apreciado no Acórdão.
2- O Tribunal a quo ostracizou a Desistência e omitiu in totum no Acórdão este documento que é relevante para apurar da credibilidade da Ofendida: violou o Princípio fundamental da apreciação da prova, pelo que é NULO o Acórdão.
3-O recorrente apresentou Contestação com 32 artigos e solicitou diligências; Tribunal a quo omite os factos provados ou não provados constantes da Contestação do recorrente bem como as diligências.
4- “...ao relatório segue-se a fundamentação dos factos provados e não provados.....” sendo NULA a sentença que não contiver as menções referidas no art. 374- 2 e 3 –art. 379 CPP. O Tribunal limitou-se a dizer: “…o arguido contestou sem conclusões.”-fls 1 Acórdão; esta omissão acarreta nulidade - art. 379 CPP - e repetição do julgamento!
5- O Tribunal a quo “ inovou” em Processo Penal:
- ignorou olimpicamente a Contestação e a Defesa;
- leu a Acusação, julgou e, de 1 crime, “passou” para 77 crimes;
- não comunicou a “ descoberta de 77 crimes“ à defesa nem ao arguido;
- e condenou em 15 anos de prisão…,tudo sob a mesma Acusação….
- E ostracizou o Acórdão deste Tribunal Superior, fazendo copy-paste do Acórdão de 13-7-2011
6- O Tribunal a quo partiu da presunção de culpa para a condenação quando ab initio o que conta é a presunção de inocência: inexiste algo mais que as declarações contraditórias da Ofendida que acabou por reconhecer que “não disse a verdade e que o meu Avô está inocente pelo que peço que o caso seja arquivado”.
7- O Tribunal a quo presumiu a culpa ab initio, ostracizou a declaração de inocência do arguido, violou o art. 32 da Lei Fundamental; o(s) Princípios do Contraditório e da igualdade de armas são elementos incindíveis do Processo equitativo o que de per si inexiste quando o Juiz Julgador “recebe os autos” formulando previamente uma convicção sobre o bem ou mal do Inquérito, declarações, intercepções telefónicas, apreensões, relatos de diligência externa, conversas informais, juízos de valor, etc…
8- “RECEBER A PRONUNCIA ou RECEBER A ACUSAÇÂO” é diferente de ”RECEBER os autos”; “RECEBER A PRONUNCIA” não equivale a RECEBER OS AUTOS… deve ser declarada a nulidade do processado, face ao art. 6º - 1 CEDH.
9- O Tribunal optou por condenar o arguido sem sopesar a possibilidade de DÚVIDA o que evidencia ERRO NOTÓRIO - art. 410-2-C) CPP e violou o Principio in dubio pro reo – art. 32 da Lei Fundamental.
10- Perícias diversas efectuadas no INSTITUTO de MEDICINA LEGAL provam, entre outras, que: “…só consegue ter uma tumiscência peniana não obtendo erecções sustentadas que o capacitem para a prática do coito.” –Dr (…); ...“ficando incapacitado de ter erecções a partir de 1990….Dr (…) - fls 1057 – 1058.
11- O Tribunal ostracizou e omitiu Pareceres Médicos: não se percebe a razão de divergir da Perícia Médica ordenada pelo próprio Tribunal e alegar, sem mais que “se deverá ter a maior das cautelas…”-. Fls 4 do Acórdão. O Tribunal ostracizou os Relatórios Periciais e a declaração do arguido que gera inocência e absolvição: violou os arts 32º -2 e 5. e 205 da C.R.P. praticando arbitrariedade inaceitável que violou, o princípio da PRESUNÇÃO de INOCÊNCIA !!!
12- O Tribunal violou o Princípio in dúbio pró reo, - art 32- CRP, incorrendo em erro notório na apreciação da matéria de facto; e condenou o arguido sem sopesar a possibilidade de ERRO ou DÚVIDA, o que traduz ERRO NOTÓRIO - art. 410-2-C) CPP; a interpretação dada ao estabelecido no artº 127º é inconstitucional: viola o art 32 CRP.
13- Erro que não se pode dissociar da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – 410-2 al. a), já que ao incorrer no erro na apreciação da prova, o Tribunal esgotou as suas provas, inexistindo matéria para condenar o arguido; deve ser renovada a prova - art 430 e 410-2 CPP ou ordenar o reenvio do processo para novo julgamento– artº 426 CPP.
14- Impugna-se a decisão sobre a matéria de facto- artigo 412, n.ºs 3 e 4, CPP, quanto aos pontos tidos como provados em 2 e 3. Não existe fundamento fáctico algum que justifique o juízo condenatório, pois da prova conduzida em julgamento o Tribunal deu relevância para condenar o arguido A a uma “espécie de adivinha”: “QUANTOS CRIMES COMETEU O ARGUIDO ?....NÂO SABEMOS, TAL COMO ENTÂO JÁ NÂO SE SABIA E É IMPOSSÍVEL SABER…..fls 17 - linhas 3 e 4 in Acórdão!!!!
15- O Tribunal auto-questiona-se sobre o numero de crimes, não sabe, responde até que É IMPOSSÍVEL SABER e depois condena por 77 CRIMES em 15 anos….sem se apurar como chegou a tal conclusão face à ausência de prova; nem sequer a Ofendida relatou algo que pudesse levar o Tribunal a concluir por 1, 7 ou 77 crimes….
16- Não foi produzida prova alguma que permita concluir que o Recorrente praticasse 77 crimes, uma vez que não foram relatados factos pelas testemunhas que permitissem concluir ao douto Tribunal a quo, com a certeza que é exigível, que o Recorrentes tenha 77 erecções ou sequer 1 só, face á operação cirúrgica de que foi alvo anos antes dos factos!!!!
17- O Juiz Julgador não pode remeter-se a um papel passivo, limitar-se a dizer que “É IMPOSSIVEL SABER QUANTOS CRIMES”: deve exercitar o poder-dever de Investigação Oficiosa- artºs 340º C.P.P. e 32º- 5 C.R.P.; não o tendo feito violou o Modelo Acusatório,-Princípio da investigação - artºs 323º a) e 340- 1 C.P.P. ,32º -5 C.R.P e artº 6º da C.E.D.H..
18 - Tal princípio traduz-se, segundo Figueiredo Dias ( D.Proc.penal, p. 215 ) na “ persistência de dúvida razoável, após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e por conseguinte, conduzir à consequência imposta, no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido.”
19- Nos termos do nº 1 do artº 430ºdo C.P.P., quando deva conhecer de facto e de direito, a Relação admite a renovação da prova se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artº 410º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio…
20-Na motivação da Decisão é deficiente a justificação, o que constitui falta/insuficiência de exame crítico das provas, em violação do art. 374 nº2 do CPP, que constitui falta de análise critica da prova e gera nulidade da sentença: art. 379 nº1 al. a) do CPP.
21- O Tribunal partiu da Culpa; violou a Presunção de Inocência; o 127º CPP,, face às declarações do arguido, da Ofendida e DESISTENCIA viola o 32º nº 1 da CRP.
22-O Tribunal ERROU na apreciação da prova, incorreu no vício – artº 410- 2- c) C.P.P., que não pode ser dissociado da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
23-O arguido foi acusado por 1 crime. O Tribunal, alegando “IMPOSSÍVEL SABER quantos crimes foram praticados”, condena em 77 crimes: este modus faciendi viola os arts 359 do CPP.,32 e 205 da CRP;..Deverão V. Exªs proceder, cfr. artºs 380ºCPP e 731 CPC à correcção do acórdão, impondo a ABSOLVIÇÃO do Recorrente…
24- Caso seja outro, o entendimento de V. Exªs, requer-se a reapreciação da prova factos provados em 2 a 4, depoimento da Ofendida, DESISTENCIA, interrogatório do arguido, e consequente ABSOLVIÇÂO do arguido- Recorrente – artº 430º nº 1 e 410º 2 CPP
25- O crime de violação pressupõe violência; inexiste no Acórdão qualquer referência à conduta da vítima e a eventual violência /resistência, pelo que não estão reunidos os pressupostos do crime- Ac. Rel. Porto 13-4-2011- 476/09.0pbbgc.p1
Ou em última instância, procederem ao reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do objecto ou a questões, concretamente identificadas na decisão de reenvio – artº 426º do C.P.P Ou se não forem aceites os argumentos supra, aplicar uma pena suspensa nunca superior a 2 anos atenta a ausência de prova. Foram violados: Art.4º, 127, 151, 323, 340, 374, 410, nºs 2 al.s c) e a), 410-2 c) do C.P.P.- ,l72 e 177 C.P., 32º, nºs 1, 2 e 5 e 205 da C.R.P. Artº 6º da C.E.D.H.
Inexiste prova pelo que se impunha a absolvição do arguido! Em suma: as penas aplicadas violam o Princípio do art. 40 do Código Penal. Qualquer pena face à “prova produzida” é desajustada mas, mesmo que se considere que há culpa a pena nunca poderia exceder os 2 anos suspensa na sua execução atenta as circunstancias pessoais do arguido! Foi violado o art. 127 CPP pois o Tribunal a quo interpretou-o partindo da Presunção de Culpa ao invés de presumir a inocência do arguido; 374 e 379 CPP e art 32 da CRP….O Tribunal a quo deveria ter interpretado a DESISTENCIA da vitima como sinal de PRESUNÇÂO DE INCOCENCIA / DUVIDA e absolver.
Foi violado o art 177 e 172 CP pois as penas são de uma severidade extrema, a roçar o máximo quando o arguido está no limite da Vida, com 66 anos, o que viola o art 40 C.Penal. O Tribunal deveria partir da Presunção de Inocência e ABSOLVER os arguidos. Devem V. Exªs proceder, cfr. artºs 380º C.P.P. e 731º do C.P.C., à correcção do acórdão, impondo a ABSOLVIÇÃO dos Recorrentes».
Respondeu o Digno Procurador da República na 1ª instância, pugnando pela improcedência do recurso e extraindo da sua resposta as seguintes conclusões (igualmente transcritas):
«1ª – A invocada nulidade do Julgamento é inexistente: o Tribunal a quo expurgando os factos que consubstanciavam a alteração substancial mais não tinha que proceder à elaboração de um novo Acórdão, o que fez, reunindo o Colectivo, como resulta do Acórdão estar assinado pelos três Juízes que o compunham.
2ª – As questões levantadas pelo recorrente sobre a desistência de queixa e sobre a contestação que apresentou já foram decididas no douto Acórdão do TRE a primeira no sentido que “nenhum relevo probatório assume tal documento, nem sequer para afectar a credibilidade do depoimento da ofendida” e a segunda que “o Tribunal recorrido apreciou toda a factualidade relevante por si alegada na contestação”, sem qualquer oposição por parte do recorrente, pelo que sobre estas questões há caso julgado material.
DO RECURSO
3ª – O Relatório do INML de fls. 1056/1060 conclui com a insistência que para uma avaliação mais completa das consequências médico-legais são necessários 2 relatórios - de médicos psiquiatra e urologista, sendo abusivo o que o recorrente refere na Conclusão 10ª, já que no referido Relatório se está a fazer a história do evento descrevendo um parecer de um médico consultado pelo recorrente começa " … O Sr. A refere … ", ou seja não está o próprio médico a emitir no início qualquer juízo científico.
4ª – O Tribunal não ostracizou qualquer parecer médico, nem muito menos os omitiu, antes deu cumprimento ao disposto no artigo 152º do CPP no que respeita a quem faz as perícias, sob pena de os pareceres serem da conveniência de quem os paga, daí não estranhar o próprio Relatório do INML de fls.1108/1109, ou a Perita daquele Instituto ouvida em Tribunal, nem o que se refere no Acórdão e que tanta estranheza causou ao condenado: "Mas, como esclareceu a perita em audiência, toda a documentação junta pelo arguido é passada por médicos privados, pelo que ao nível das respectivas conclusões, por razões óbvias, se deverá ter a maior das cautelas".
5ª – O Acórdão está fortemente sustentado na prova produzida, (no que respeita à disfunção sexual reclamada pelo recorrente, nomeadamente na documentação clínica junta e perícia médico-legal realizada, o testemunho da vítima, apoiado na compra do teste de gravidez, o testemunho prestado por B que relata circunstanciadamente ter sido vítima de avanços sexuais do arguido já no Verão de 2003 e a carta de fls.304 e ss/. em que o recorrente não refere o que seria para si essencial, que sofria de impotência sexual) mostrando de forma inequívoca o percurso da convicção do Tribunal, não resultando, pois, patente da motivação da convicção do Tribunal que tinha ficado com dúvidas, mas mesmo assim decidiu contra o arguido, o que manifestamente não aconteceu, antes o contrário, pelo que não havendo dúvida não existe violação do princípio in dubio pro reo e também do de presunção de inocência.
6ª – O recorrente pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, mas não deu cumprimento ao artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP, exigência imprescindível para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto levando, por isso, a que a sua omissão impeça a apreciação, pelo Tribunal ad quem, do recurso nesta perspectiva, permitindo tão só a impugnação com fundamento na existência de qualquer dos vícios do artigo 410º nº 2 do CPP.
7ª – Por outro lado o Tribunal ter condenado o recorrente no número de crimes em que o condenou, não se tratou de uma espécie de adivinhação como parece pretender o recorrente a modos que a desacreditar a Decisão, antes e como consta dos factos provados, tal número é aquele em relação ao qual o Tribunal não teve qualquer dúvida.
8ª – Ao pretender o recorrente que face à ausência de prova, nomeadamente que nem sequer a ofendida relatou algo que pudesse levar o Tribunal a concluir pelo número de crimes, está manifestamente a impugnar a matéria de facto, mas, como se referiu, tem de ser vista na perspectiva da verificação dos vícios do artigo 410º nº 2 do CPP, concretamente o da sua alínea a), não com fundamento na reapreciação da prova e assim, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 410º do CPP, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
9ª – Assim o que seria o pretenso vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, é afinal insuficiência de prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito da livre apreciação da prova que é insindicável em reexame da matéria de direito, que não consubstancia aquele vício, em qualquer dos casos não resulta do Acórdão por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
10ª – O Tribunal quando manifesta que é impossível saber quantos crimes cometeu o recorrente fá-lo exactamente no sentido referido, que o número exacto é impossível saber, o que não acontece quanto ao mínimo pois relativamente a este, por muito que custe ao recorrente, foi feita prova cabal e está expressa no facto provado sob o nº 2, a partir do qual, simples operações aritméticas levam ao número de actuações do recorrente que correspondiam a cada crime e daí surgir o número de crimes, sem qualquer dúvida, praticados pelo recorrente.
11ª – Tendo resultado da prova produzida os factos que sustentaram a condenação, não faz sentido falar-se em violação do princípio da investigação porque não tendo restado qualquer dúvida ao Tribunal nada mais havia a investigar, para além do que estando este princípio condicionado pelo princípio da necessidade, levaria à violação deste.
12ª – Não tendo o recorrente cumprido o disposto no artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP tal impede o Tribunal da Relação de conhecer de facto o que obsta desde logo a admissão da renovação da prova, para além de que não enferma o Acórdão de qualquer dos vícios do artigo 410º nº 2 do CPP, nem resultam do seu texto por si ou conjugado com as regras da experiência comum, não havendo lugar ao reenvio.
13ª – O Acórdão é claro e objectivo na descrição do caminho que trilhou para chegar à Decisão, estando descrito o raciocínio e a apreciação do conjunto das provas, testemunhal, documental e pericial que levaram à condenação, resultando assim não haver violação do artigo 374º nº 2 e consequentemente não ser nula a sentença por força do artigo 379º nº 1 alínea a) ambos do CPP.
14ª – O recorrente foi condenado pela prática de crimes de abuso sexual de crianças agravado e não de violação, pelo que só por mero lapso se pode entender que não estão reunidos os pressupostos do crime por não haver referência a eventual violência/resistência.
15ª – O recorrente ao admitir que a ser-lhe aplicada uma pena de prisão deve a mesma ser suspensa na sua execução e nunca superior a dois anos atenta a ausência de prova está a manter a mesma postura de falta de arrependimento e de não assumpção de culpa face ao carácter reprovável e repugnante da sua conduta que se manteve durante um longo período de tempo, conforme facto provado sob o nº 2.
16ª – Em função da culpa do agente e das fortes exigências de prevenção geral e especial, a pena aplicada em cúmulo jurídico é justa e adequada.
17ª – O Acórdão recorrido fez uma correcta aplicação dos artigos 127º, 151º, 323º, 340º, 374, 410, nºs 2 al. c) e a), 410-2 c) do CPP, 172º e 177º do CP, 32°, nºs 1,2 e 5 e 205º da C.R.P. art. 6° da C.E.D.H.».

Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso. Respondeu o recorrente, pugnando mais uma vez pelo provimento do recurso.
Para a eventualidade de este tribunal concluir pela qualificação jurídica dos factos constantes da acusação e dados como provados no acórdão recorrido, como dois crimes de abuso sexual de crianças, um deles de trato sucessivo, foi dado cumprimento ao disposto no artº 424º, nº 3 do CPP. E o arguido recorrente respondeu, opondo-se a tal alteração.

II. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.
Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP [1] - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber se
1. O facto de a comunicação da alteração substancial dos factos ter sido feita pelo Presidente do colectivo, sem a presença dos juízes adjuntos, determina a nulidade do julgamento? E não foi feita tal comunicação ao Magistrado do MºPº, o que determina a nulidade do processado e do acórdão?
2. Qual a relevância a atribuir ao requerimento de fls. 1242?
3. É nulo o acórdão recorrido por omissão dos factos provados e não provados elencados na contestação?
4. O artº 311º do CPP viola o princípio do processo equitativo fixado no artº 6º, nº 1 da CEDH e, por tal razão, é nulo o processo?
5. Enferma o acórdão recorrido de erro notório na apreciação da prova? E mostra-se violado o princípio in dubio pro reo?
6. Enferma o acórdão recorrido do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada?
7. É nulo o acórdão por falta de exame crítico das provas?
8. Violou o tribunal recorrido o princípio da investigação?
9. Deve ser modificada a matéria de facto fixada na 1ª instância?
10. Procedeu o tribunal recorrido a uma errada subsunção dos factos ao direito? O crime de violação pressupõe a violência e no acórdão recorrido não existe qualquer referência à mesma?
11. Deve ser reduzida e suspensa na sua execução a pena aplicada ao recorrente?

O tribunal recorrido considerou assente a seguinte matéria de facto:
1. No ano de 1998, o arguido, avô de C, nascida em 12.7.1992, em noite durante a qual a neta ficou em sua casa, nos Caixeiros, em Santa Cruz, acariciou-a na zona genital;
2. Quando C tinha cerca de 10 anos, o arguido desflorou-a e tendo então esta passado a viver com o arguido e a sua mulher, a tempo inteiro, passou a manter relações sexuais de cópula completa com a criança, numa pluralidade de ocasiões que seguramente ultrapassam largas dezenas de vezes, o que sucedia no quarto da mesma, durante a noite, e se manteve nos cerca de 6 meses que tal vivência em comum durou, passando a partir de então a suceder apenas em alguns fins de semana e férias, quando a criança ficava em casa dos avós paternos, o que durou até ao final de 2005;
3. Numa daquelas ocasiões, o arguido pretendeu que a neta lhe fizesse sexo oral, o que acabou por não acontecer;
4. O arguido sabia perfeitamente a idade da sua neta, mas para se satisfazer, agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo a sua conduta proibida;
5. O arguido não tem antecedentes criminais. Em audiência e depois de afirmar a inocência, não prestou mais declarações, fazendo-o depois para referir tratamento recente;
6. Nascido em Lisboa, em 14.11.1945, o arguido é o mais novo de dois irmãos provenientes de uma família de condição social modesta. O progenitor foi maquinista de navios e a mãe doméstica. A destruturação familiar com origem na separação dos progenitores quando tinha cerca de 14/15 anos desencadeou a sua mudança habitacional para junto de uns tios. Frequentou o sistema de ensino até ao antigo 2° ano do ciclo. Abandonou a escola com cerca de 14 anos para integrar o mercado de trabalho na área de serralharia e mecânica naval;
7. Com cerca de 17 anos, numa excursão a Torres Vedras, conheceu a actual esposa tendo o relacionamento evoluído rapidamente para coabitação integrando o casal o agregado dos sogros. Do casamento nasceram quatro filhos actualmente com idades compreendidas entre os 41 e 36 anos de idade;
8. Do seu percurso destaca-se um período de cerca de 10 anos de emigração em França, onde residiu com a família e trabalhou na área automóvel como preparador de automóveis. Em 1979 regressou a Portugal, para a zona de Torres Vedras. Estabeleceu-se por conta própria na área da restauração. Paralelamente integrou os quadros dos Caminhos-de-ferro como despachante, actividade que manteve durante cerca de 7 anos. Profissionalmente destacou-se de forma positiva tendo efectuado um percurso empresarial na área da restauração, revelador de competência, iniciativa e ascensão sócio-laboral o que lhe permitiu ter um bom nível de vida. A actividade revelou-se de cariz familiar com colaboração da esposa e dos filhos, existindo a este nível uma forte coesão e proteccionismo incentivados pelo arguido e pela esposa;
9. A partir dos primeiros anos de 2000 a situação sócio-familiar foi perturbada por uma sequência de acontecimentos negativos associados à separação conjugal do filho mais velho (pai da vítima). O mesmo foi sujeito a julgamento tendo sido condenado a pena de prisão por tráfico de estupefacientes;
10. Há cerca de seis anos o arguido e a esposa optaram por fixar residência no Algarve, zona do país onde já tinha casa e residia uma filha. Venderam os bares que possuíam na zona de Santa Cruz e encetaram a exploração de um café na Praia da Rocha que acabaram por trespassar em 2007;
11. Integra um agregado constituído pela esposa de 61 anos e por um neto de 17 anos. Estabelece relações próximas com as filhas e com os netos, alguns residentes na zona de Portimão e frequentadores regulares da habitação do arguido, um apartamento T3, próprio e com boas condições de habitabilidade;
12. A nível económico é descrita uma situação favorável que garante a satisfação das necessidades da família. Os rendimentos provêm da sua reforma e do arrendamento de dois imóveis, um apartamento e uma loja. É caracterizado por ser uma pessoa generosa e com boas capacidades de sociabilidade. Tem uma imagem social positiva e um modo de vida direccionado para a família;
13. O arguido, desde Fevereiro de 2011, foi tratado a doença do foro oncológico, tendo recentemente acabado a correspondente radioterapia, com sucesso;
14. O arguido sofre, tal como em 2007, de insuficiência arterial peniana ligeira;
Prova-se ainda que:
15. O arguido por vezes convencia a neta a tomar a pílula do dia seguinte. De outras vezes usava preservativo;
16. Durante a sua estada em França, o arguido sofreu acidente de viação.

O tribunal colectivo entendeu que se não provaram outros factos, nomeadamente:
1.1 Outros pormenores e circunstâncias, de tempo, lugar e modo, relativos às ocasiões em que o arguido teve contacto carnal com a sua neta;
2.2 Que o arguido padeça de impotência total desde os seus 49 anos, sequer que a insuficiência de que padece determinasse, ou sequer actualmente determine, incapacidade eréctil;
3.3 Que a queixa apresentada pela assistente fosse determinada por vingança, ou com vista a auferir lucros, sequer que esta ou a sua filha hajam exigido qualquer quantia ao arguido;
4.4 Que o arguido suportasse outras despesas com a neta ou nora, para além das que decorriam da vivência da primeira em sua casa;
5.5 Que o arguido padeça de outras doenças, ou outras consequências do seu acidente em França.

E desta forma fundamentou a sua convicção:
«A convicção do tribunal quanto aos factos provados relativamente ao núcleo essencial do caso, isto é, quanto aos actos sexuais praticados pelo arguido, formou-se com base no testemunho da vítima, que os relatou em audiência, tendo revelado total e pessoal conhecimento dos factos relatados, depondo por forma sincera e dando pormenores congruentes (designadamente quanto a métodos contraceptivos usados pelo arguido) de maneira a não deixar qualquer tipo de dúvida sobre a veracidade do seu depoimento e da ocorrência daqueles factos, contando actos que o arguido praticou, de forma espontânea pese embora o evidente e violento esforço que teve de fazer para produzir as correspondentes declarações, não obstante, de uma autenticidade impressionante, quase emudecendo sempre que teve de relatar os actos sexuais que o arguido lhe impôs ao longo da vida.
De notar que o seu testemunho foi colhido de surpresa e sem qualquer preparação, já que a vítima não estava sequer convocada para a audiência (havia sido inquirida em declarações para memória futura), tendo sido chamada pelo tribunal minutos antes de prestar as suas declarações.
O seu testemunho encontra ainda forte apoio no de D, farmacêutica que se lembra de ter vendido ao arguido um teste de gravidez, sem dúvida um dos que a vítima referiu ter sido obrigada a fazer pelo avô.
Também a mãe da vítima, assistente, prestando declarações em audiência referiu um quadro de insucesso escolar e de acompanhamento psicológico, consentâneos com quadros de abusos sexuais.
É contudo e neste momento incontornável a abordagem da impotência alegada pelo arguido, respaldada em documentação médica variada, para além de se ter concluído por real existência de patologia, consistente em insuficiência arterial peniana ligeira, como consta do último relatório da perícia médico-legal efectuada.
Mas, como esclareceu a perita em audiência, toda a documentação junta pelo arguido é passada por médicos privados, pelo que ao nível das respectivas conclusões, por razões óbvias, se deverá ter a maior das cautelas.
Depois, porque a patologia do arguido não é por si impeditiva de erecção, não explicando a disfunção de que o mesmo diz sofrer, como do mesmo relatório consta.
Para tanto, ou melhor, para fazer uma aproximação científica à realidade, necessário seria proceder a realização de fármaco-cavernosometria, exame que para além de agressivo, apenas garantiria a etiologia da disfunção e em qualquer caso, seria impossível afirmar há quanto tempo teria começado.
Ou seja, pela documentação clínica junta e pela perícia médico-legal realizada, não podemos concluir que o arguido alguma vez sofreu, ou sequer se sofre de impotência.
Mas temos, por outro lado, poderosos indicadores de que tal não se verifica.
Já se referiu o testemunho da vítima, apoiado na totalmente absurda compra do teste de gravidez, caso o arguido sofresse do mal que alega.
Temos ainda o testemunho prestado por B (por carta rogatória) que relata circunstanciadamente ter sido igualmente vítima de avanços sexuais do arguido já no Verão de 2003.
E finalmente é o próprio arguido quem, sem querer, desvenda não padecer de semelhante mal, designadamente quando em 3.4.2006 e na sequência da sua fuga para França depois dos factos terem sido denunciados, dali escreve à sua esposa explicando a razão da sua ausência sem aviso prévio. Repare-se que ali (a fls. 304 e seguintes) no seu primeiro contacto com a esposa depois da fuga, do mesmo passo que jura a sua inocência, nunca afirma à sua mulher o óbvio, caso sofresse de impotência. Ora, essa, no âmbito da relação do casal, seria a primeira das razões invocadas e não deixaria de o ser certamente, já que se ainda é possível afirmar que o arguido não queria que a sua incapacidade fosse conhecida por terceiros (daí que não a tivesse convocado senão depois da acusação) nenhum motivo haveria para não invocar tal facto em correspondência dirigida à sua mulher. Bem pelo contrário.
Uma só explicação racional é possível, segundo elementares de regras de experiência comum e à luz da normalidade dos comportamentos humanos: o arguido, ao menos até então, não sofria de qualquer incapacidade eréctil.
O que, por outro lado, tem o condão de por a nu a efabulação e destapa a intenção óbvia desta: a de esconder a verdade, que assim só pode ser a contada pela vítima.
Não há pois qualquer dúvida sobre a veracidade dos factos tal como relatados por C.
O mais apurado resulta do relatório social, do C.R.C. do arguido e das suas declarações relativas à doença oncológica que acabou de tratar, bem como da perícia médico-legal levada a cabo.
A idade da vítima está confirmada pela sua identificação junto da Polícia Judiciária (constando os dados do seu bilhete de identidade, naturalmente então exibido) tal como no exame médico-legal, o qual ainda se debruça sobre a idade real da examinada, a qual de resto nunca foi posta em causa durante o processo, designadamente pela defesa (fazemos esta aparentemente desconcertante referência por termos testemunhado recentemente a grave retrocesso processual promovido pelo Ministério Público junto da Relação de Évora, justamente em caso de abuso sexual de crianças, atendido, com o fundamento na falta de prova da idade das vítimas, a qual só se poderia demonstrar... por certidão do registo. O artº 127º do Código de Processo Penal dispõe algo diverso, dele resultando precisamente o inverso, ou seja, a proibição da prova tarifada em processo penal).
Quanto aos factos não provados e para além do que já foi referido cumpre dizer que tal se fica a dever à circunstância de sobre os mesmos não ter sido produzida prova, sendo perfeitamente compreensível que a vítima não se tenha detido nos pormenores mais sórdidos, por um lado e por outro, os queira evitar, sem deixar contudo de dar o seu testemunho quanto ao essencial do que sofreu. Insistir além disso, para além de desnecessário, constituiria mais uma violação, escusada, da sua personalidade».

III. Decidindo:
1. O facto de a comunicação da alteração substancial dos factos ter sido feita pelo Presidente do colectivo, sem a presença dos juízes adjuntos, determina a nulidade do julgamento? E não foi feita tal comunicação ao Magistrado do MºPº, o que determina a nulidade do processado e do acórdão?
Entende o recorrente que “o julgamento de 4-6-2013 é nulo pois o Tribunal Colectivo não se reuniu”.
Segundo afirma, nesse dia foi perguntado pelo Sr. juiz presidente ao defensor se se opunha à continuação do julgamento pelos novos factos, sendo que estava apenas acompanhado do Magistrado do MºPº e, portanto, na ausência dos restantes dois juízes que integram o colectivo.
A acta de fls. 1604 não atesta coisa distinta. Com efeito, aí se afirma a presença, no acto, do juiz presidente do colectivo, do Digno procurador, do arguido, da assistente e dos respectivos defensores.
Não vemos, porém, que com tal facto se tenha cometido qualquer nulidade.
É bem verdade que o artº 119º, al. a) do CPP qualifica de nulidade insanável “a falta do número de juízes (…) que devam constituir o tribunal (…)”. Como não desconhecemos, aliás, a existência de pertinente jurisprudência que sustenta a nulidade da sessão de julgamento em que o juiz presidente do tribunal colectivo, desacompanhado dos restantes juízes, procede à comunicação da alteração substancial ou não substancial de factos ou da qualificação jurídica [2].
Mas não nos parece que assim tenha que ser.
O princípio da plenitude da assistência dos juízes, consagrado no artº 654º, nº 1 do CPC, aplicável ao processo penal ex vi do artº 4º do CPP, reserva a intervenção na decisão da matéria de facto aos juízes que “tenham assistido a todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência final”.
No caso de uma comunicação de alteração substancial de factos, ordenada por decisão proferida por tribunal superior, em recurso, não estamos propriamente perante qualquer acto de instrução ou discussão da causa. Naturalmente que se, porventura, o arguido, a assistente e o Magistrado do MºPº estivessem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, sempre tal continuação de julgamento (com eventual produção de prova nova, alegações finais e últimas declarações do arguido) teria que decorrer perante tribunal colectivo, regularmente constituído (o mesmo tribunal colectivo que, aliás, assistira à restante produção de prova). Porém, a intervenção singular do juiz presidente restringiu-se ao cumprimento de uma determinação proferida por tribunal superior em sede de recurso; feita a comunicação (seguramente que o foi pois, a assim não ser, careceria de sentido a oposição à continuação do julgamento pelos novos factos, por banda do recorrente), o colectivo reuniu e decidiu colegialmente, como decorre do facto de o acórdão, lido no dia seguinte, estar assinado pelos três juízes que integravam o colectivo. Sublinhe-se: a comunicação da alteração substancial de factos foi ordenada por acórdão desta Relação, regularmente notificado aos intervenientes processuais e devidamente transitado em julgado. A sessão de audiência de 4/6/2013 tinha esse objectivo. Os factos a comunicar eram os elencados no anterior acórdão da Relação e, por isso, não constituíram novidade para quem quer que seja. Perante a oposição do arguido à continuação do julgamento pelos novos factos, a sessão terminou e foi designado dia para a leitura do acórdão. Como não podia ser de outra forma.
Em suma: na sessão de julgamento que teve lugar em 4/6/2013 não foi produzida qualquer prova ou praticado qualquer acto cuja não observação directa por banda dos dois juízes adjuntos constituísse obstáculo ou condicionamento à decisão em matéria de facto (e de direito).
A situação não é substancialmente distinta da que ocorre quando o acórdão proferido por tribunal colectivo é lido pelo respectivo presidente, na ausência dos juízes adjuntos. Nestes casos, a jurisprudência do STJ vem entendendo, de forma que nos parece pacífica, que não se regista qualquer nulidade, maxime a prevista no artº 119º, al. a) do CPP [3]. É que, como se afirma no Ac. STJ de 5/1/1995, CJASTJ ano III, t. I, 168 e segs., “o acto da leitura pública da sentença pode ser praticado pelo presidente ou por outro dos juízes (…), o que se compreende pela desnecessidade de qualquer intervenção essencial dos restantes (pois o julgamento está terminado), a menos que surja incidente que imponha a presença dos restantes juízes, caso em que facilmente se farão comparecer”.
E porque assim é, inexistente se mostra a arguida nulidade.
De outro lado, não nos parece correcto afirmar que não foi feita a comunicação da alteração substancial de factos ao Magistrado do MºPº. Determinada, no anterior acórdão desta Relação, a reabertura da audiência para aí se proceder à comunicação da mencionada alteração, obviamente que o Magistrado do MºPº presente na sessão de 4/6/2013 “sabia ao que ia”. A inexistência de qualquer pronúncia sua sobre tal alteração decorre do óbvio: opondo-se o arguido à continuação do julgamento pelos novos factos, nunca a mesma seria possível.
E daí que, também por esta via, se não registe a falada nulidade.

2. Qual a relevância a atribuir ao requerimento de fls. 1242?
Sobre tal questão (como, aliás, sobre as duas seguintes) já este Tribunal da Relação emitiu pronúncia, no acórdão proferido em 20/3/2012.
Posto, porém, que por despacho de fls. 1521, entendemos ser irrecorrível o acórdão em causa (porquanto não conheceu, a final, do objecto do processo) a questão em apreço (como as duas seguintes) não se podem considerar decididas e a coberto de qualquer caso julgado, sob pena de violação do direito ao recurso.
Porém, compreender-se-á seguramente que, na ausência de factos e argumentos novos, aqui reproduzamos tudo quanto, a esse propósito, explanámos no aresto anterior.
Assim:
Em 30/5/2011 foi junta aos autos uma declaração, subscrita por C, na qual a mesma declara “desistir da queixa e dizer que não disse a verdade e que o meu Avô está inocente pelo que peço que o caso seja arquivado”.
Sobre tal declaração pronunciou-se o presidente do tribunal colectivo, após deliberação, nos seguintes termos:
“C veio entregar em 31/05/2011 documento segundo o qual vinha desistir da queixa. Inquirida em audiência de discussão e julgamento, esclareceu que nunca pretendeu desistir da queixa, tendo sido levada a assinar aquele documento cujo conteúdo não leu, então, por ter sido convencida de que o mesmo constituía declaração de que não pretendia qualquer quantia monetária a título de indemnização do arguido, como de facto não pretende. Termos em que se julga inválida aquela desistência”.
Esta decisão foi proferida em acta, na sessão de julgamento que teve lugar em 13/7/2011, na qual o arguido – presente - esteve representado por defensor. Da mesma não foi interposto recurso, razão pela qual transitou em julgado.
Atento o estatuído no artº 51º do CPP, a desistência da queixa só produz efeito após a respectiva homologação.
Recusada, no caso, tal homologação (e julgada inválida a desistência), naturalmente que a mesma não produziu quaisquer efeitos ao nível da subsistência do procedimento criminal.
Cremos, contudo, que o recorrente coloca esta questão a outro nível. Em sua opinião, se bem entendemos, a declaração constante do documento de fls. 1242 deveria ter sido ponderada para apurar da credibilidade da ofendida (que aí terá declarado não ser verdade aquilo que anteriormente havia dito e que o arguido estava inocente).
Sucede, porém, que como resulta do despacho proferido para a acta em 13/7/2011, o tribunal deu crédito à justificação apresentada pela ofendida para a assinatura desse documento: esta não leu, sequer, aquilo que nele estava escrito e assinou-o por ter sido convencida que o mesmo se destinava, apenas, a prescindir de qualquer quantia monetária.
E assim sendo, como é evidente, nenhum relevo probatório assume tal documento; nem sequer para afectar a credibilidade do depoimento da ofendida.

3) É nulo o acórdão recorrido por omissão dos factos provados e não provados elencados na contestação?
Diz o recorrente que apresentou contestação com 32 artigos e solicitou diligências e que o tribunal recorrido omitiu “os factos provados ou não provados constantes da Contestação do recorrente bem como as diligências”.
Quanto às “diligências” requeridas, na realidade trata-se de apenas uma (que se oficiasse à Vodafone pedindo determinados elementos), que foi objecto de despacho proferido a fls. 845/847, indeferindo-a. Tal decisão, notificada ao recorrente – fls. 862 – transitou em julgado.
Quanto aos factos elencados na contestação:
É certo que a contestação do arguido se estende por 32 artigos. Não é menos certo que parte substancial dos factos contém protestos de inocência por banda do arguido e considerações sobre o ónus da prova em processo penal.
Factos com relevância para a decisão da causa existem nos artºs 9º/13º da matéria provada (sobre a alegada impotência sexual do arguido) e nos artºs 17º e 23º/28º (sobre a alegada motivação retaliatória presente na queixa deduzida pela mãe da menor). E sobre tais factos, o colectivo pronunciou-se, nos pontos 9 e 14 (naquele, referindo a separação conjugal do filho mais velho do arguido – pai da menor – e a sua condenação em pena de prisão, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, neste referindo que o arguido sofre, tal como em 2007, de insuficiência arterial peniana ligeira) e nos pontos 2.2., 3.3. e 5.5. da matéria não provada (concretamente, dando como não provado que o arguido padeça de impotência total desde os seus 49 anos, sequer que a insuficiência de que padece determinasse, ou sequer actualmente determine, incapacidade eréctil, que a queixa apresentada tivesse sido determinada por vingança ou com vista a auferir lucros, que o arguido padeça de outras doenças, ou outras consequências do seu acidente em França).
Não assiste, pois, razão ao recorrente nesta sua pretensão: o tribunal recorrido apreciou toda a factualidade relevante por si alegada na contestação.

4. O artº 311º do CPP viola o princípio do processo equitativo fixado no artº 6º, nº 1 da CEDH e, por tal razão, é nulo o processo?
Temos alguma dificuldade em perceber o alcance da pretensão do recorrente, nesta matéria.
O artº 6º, nº 1 da CEDH estatui que “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela” [4].
Se bem entendemos a questão colocada, o recorrente sustenta que a presença, no processo, de todas e quaisquer peças, para além da acusação (ou pronúncia, quando a houver) e contestações, ofende o seu direito a um processo equitativo. E porquê? Porque a inclusão de tais elementos “inculca uma pré-consideração de culpa”, impondo-se, em sua óptica, voltar ao regime do Cod. Processo Penal de 1929, no que aos processos correccionais dizia respeito…
Não nos cabe aqui, como é evidente, discutir preferências legislativas nem emitir opinião sobre o que, de iure condendo, deveria ser o processo penal.
No plano do direito constituído não nos parece, contudo, que um processo penal que chegue à fase prevista no artº 311º do CPP contendo, para além da acusação, outras peças processuais, faça perigar, de alguma forma, o direito de qualquer cidadão a um processo equitativo. Em boa verdade, nem sequer o recorrente se dá ao trabalho de justificar a afirmação que faz, limitando-se a dizer que a presença de outras peças processuais “inculca uma pré-consideração de culpa”. Mas porquê? Certamente que o recorrente não pretende que sejam retirados dos autos os elementos relativos à prova pericial e documental entretanto recolhida. Se bem o entendemos, apenas as declarações de testemunhas que, no velho regime processual penal (artº 2º, nº 1, al. d) do DL 605/75, de 3/11, na redacção dada pela Lei 25/81, de 21/8), constavam de auto à parte, “o qual será arquivado logo que transite em julgado o despacho que marque dia para julgamento, não podendo neste ser utilizado”.
Mas assim vistas as coisas, qual a diferença para o actual regime, quando é certo que também as declarações de arguido, assistente, partes civis ou testemunhas prestadas em sede de inquérito não podem ser usadas, actualmente, em sede de audiência (artºs 355 e 356º, nº 1, al. b) do CPP), excepto em casos contados, perfeitamente delimitados? É que, posto que relativamente às declarações para memória futura (prestadas perante juiz, com formalidades equivalentes às da audiência, com rigorosa observância do princípio do contraditório) e às obtidas mediante rogatórias ou precatórias legalmente permitidas nenhuma violação do processo equitativo se poderá, sequer, sugerir, a questão só se poderia colocar perante a situação prevista na al. b) do nº 2 do artº 356º do CPP que, contudo e como o Tribunal Constitucional já decidiu, no seu Ac. 1052/96, proferido no Proc. 321/96, não enferma de qualquer inconstitucionalidade, dado que a norma em causa “só consente a leitura do depoimento da testemunha - presente na audiência de julgamento - prestado no inquérito perante um órgão de polícia criminal, desde que se verifique acordo por parte do Ministério Público, do arguido e do assistente. Este condicionamento acha-se fundado, desde logo, na circunstância de as declarações cuja leitura se pretende não terem sido prestadas com observância das formalidades estabelecidas para a audiência ou perante juiz, não existindo quanto a elas as garantias dialéticas de contraditoriedade constitucionalmente asseguradas. Por outro lado, achando-se presente na audiência a testemunha em causa, há-de dizer-se que quanto ao seu depoimento e à sua razão de ciência o arguido tem a possibilidade legal de exercer um pleno direito de defesa (the accused has the right [...] to meet witnesses face to face, como se escreve no artigo 1º, secção 9, da Constituição dos Estados Unidos da América). A exigência de um consentimento alargado ao Ministério Público, ao arguido e à defesa, para que a leitura das declarações seja possível não se apresenta como encurtamento ou restrição inadequada ou inadmissível das garantias de defesa, traduzindo-se, ao contrário, numa linha de concretização do princípio geral sobre a produção de prova em audiência constante do artigo 355º, nº 1, o qual visa essencialmente a garantia da posição processual do arguido”.
Não vemos, pois, onde a norma contida no artº 311º do CPP, na parte onde se refere o recebimento dos autos (que não, apenas, da acusação e contestação) no tribunal, seja susceptível de ofender o direito do arguido a um processo equitativo.
Improcede, pois, esta questão suscitada pelo recorrente.

5. Enferma o acórdão recorrido de erro notório na apreciação da prova? E mostra-se violado o princípio in dubio pro reo?
O erro notório na apreciação da prova é o “que se verifica quando da leitura, por qualquer pessoa medianamente instruída, do texto da decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, for detectável qualquer situação contrária à lógica ou regras da experiência da vida” – Ac. STJ 2/2/2011 (rel. Cons. Pires da Graça), www.dgsi.pt.
Para que o mesmo releve como fundamento do recurso, impõe o nº 2 do artº 410º do CPP que tal vício “resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”.
Desta limitação resulta que fica “desde logo vedada a consulta a outros elementos do processo nem é possível a consideração de quaisquer elementos que lhe sejam externos. É que o recurso tem por objecto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida” - Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 339 (no mesmo sentido, isto é, entendendo-se que o erro tem que resultar do texto da decisão recorrida, sem recurso a outros quaisquer elementos, ainda que constantes do processo, vai a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores - cfr., por todos, os Acs. STJ de 2/2/2011 e de 23/9/2010 [5] (rel. Maia Costa e Souto Moura respectivamente, www.dgsi.pt).
De forma particularmente clara se expressou o STJ, no seu Ac. de 14/04/93, rel: Ferreira Vidigal, www.dgsi.pt: “para poder falar-se em erro notório na apreciação da prova refere-se que o colectivo, ao julgar a prova por si exibida, haja cometido um erro evidente, acessível ao observador comum e que o mesmo conste da própria decisão - e não já da motivação desta - por si só ou de acordo com as regras da experiência, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos, ainda que constantes do próprio processo”.
Assim delimitado este vício, não vemos como encontrá-lo na sentença recorrida.
Aparentemente, descortina-o o recorrente no facto de o tribunal recorrido o ter condenado “sem sopesar a possibilidade de DÚVIDA o que evidencia ERRO NOTÓRIO – art. 410-2-c) e violou o Princípio in dubio pró reo – art. 32 da Lei Fundamental” (sic).
Como é evidente e dispensa grandes considerações, o recorrente não invoca aqui, verdadeiramente, qualquer vício da sentença (ou se o faz, fá-lo indevidamente). Aquilo que o recorrente afirma é um erro de julgamento, não um vício da sentença, detectável pela sua simples leitura, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
De outro lado, carece de sentido útil a invocação, neste contexto, do princípio in dubio pro reo. Da fundamentação da matéria de facto não resulta minimamente que os julgadores se tenham deparado com uma qualquer dúvida (insanável, ou não) sobre a verificação dos factos constantes da acusação. E não havendo dúvida, nada há para resolver, pro ou contra quem quer que seja. É que, como bem se salienta no Ac. STJ de 14/4/2011 (rel. Cons. Souto de Moura), www.dgsi.pt., “a situação de dúvida tem que se revelar de algum modo, e designadamente através da sentença. A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido”.
Improcede, pois, esta pretensão do recorrente.

6. Enferma o acórdão recorrido do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada?
Em primeiro lugar, importa deixar claro que a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para a matéria de facto dada como provada: ali, o que se critica é o facto de o tribunal não ter investigado e apreciado todos os factos que podia e devia, carecendo a decisão de direito de suporte fáctico bastante; aqui, censura-se o facto de o tribunal ter dado como provados factos sem prova suficiente.
Sobre a questão da “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, escrevem Simas Santos e Leal-Henriques (em anotação ao artº 410º do CPP):
“A al. a) do nº 2 refere-se à insuficiência que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados pela acusação ou defesa ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão”.
Por seu turno Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 340, adianta:
“Para se verificar esse fundamento é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito”.
E tem sido este, aliás, o entendimento jurisprudencial dominante.
Com efeito, o STJ, no seu Ac. de 16/04/98, relatado pelo Cons. Hugo Lopes (www.dgsi.pt) decidiu que “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é um vício que se nos depara quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal recorrido deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar, dentro do objecto do processo, tal como este está enformado pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique”.
Do mesmo modo, escreve-se no Ac. STJ de 29/2/96, relatado pelo Cons. Sousa Guedes (www.dgsi.pt) que “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o artº 410º, nº 2, al. a) do CPP de 1987, só existe quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo deixa de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que a matéria de facto apurada não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à sua apreciação”.
Por seu turno, decidiu-se no Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 14/4/99, relatado pelo Des. João Trindade (www.dgsi.pt) que “a insuficiência no apuramento da matéria de facto prevista no artº 410º, nº 2, al. a) do CPP, verifica-se quando há lacuna ao não se apurar o que é evidente que se podia apurar”. E, mais recentemente, que se verifica tal vício quando o tribunal, “podendo (e devendo) fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que a matéria de facto dada como provada não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal” – Ac. RC de 18/5/2010 (rel. Jorge Dias), www.dgsi.pt.
Bem assim, decidiu o Tribunal da Relação do Porto, (Ac. de 15/5/91, relatado pelo Des. Hernâni Esteves, www.dgsi.pt) nos seguintes termos:
“1. Encontrando-se o facto descrito na acusação, compete ao juiz do julgamento ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova necessários à descoberta da verdade material (...).
2. Não o tendo feito, foi violado o disposto no artº 340º, nº 1 do CPP, pelo que o julgamento deve ser anulado, sendo o processo reenviado para novo julgamento, a efectuar pelo Tribunal Colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artºs 410º, nº 2, al. a), 426º e 431º daquele Código”.
E idêntica solução, tratando-se de facto alegado na contestação:
“Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando factos alegados na contestação e relevantes para a decisão da causa não constam dos factos dados como provados nem dos considerados não provados” – Ac. RP de 21/1/2009 (rel. Francisco Marcolino), www.dgsi.pt.
Posto isto:
Temos por claro que o Tribunal deve - respeitado o princípio da acusação - investigar e apreciar todos os factos com interesse para a decisão e, por outro lado, a fundamentação deve evidenciar que assim procedeu.
Dito de outro modo: na enumeração dos factos provados e não provados e na respectiva fundamentação deve ser claro, designadamente para os destinatários, que o tribunal investigou e apreciou todos os factos que podia e devia.
Ora, como já o afirmámos em apreciação da 3ª questão suscitada pelo recorrente, o tribunal recorrido pronunciou-se sobre todos os factos (relevantes) da contestação. E procedeu de igual forma, no que aos factos constantes da pronúncia diz respeito.
De outro lado, a matéria de facto apurada é, manifestamente, suficiente em ordem a permitir a decisão de direito.
Inexiste, pois, o apontado vício da sentença.

7. É nulo o acórdão por falta de exame crítico das provas?
Diz o recorrente (conclusão 20) que “na motivação da decisão é deficiente a justificação, o que constitui falta/insuficiência de exame crítico das provas, em violação do artº 374º nº 2 do CPP, que constitui falta de análise crítica da prova e gera nulidade da sentença: art. 379 nº 1 al. a) do CPP”.
Estatui-se no artº 374º, nº 2 do CPP:
“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 294:
«A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina. (…) No actual sistema processual português, os tribunais de recurso não podem substituir-se ao tribunal de julgamento em 1ª instância na apreciação directa da prova, mas pode e deve apreciar, nos termos do artº 410º, nº 2, se o tribunal de 1ª instância fez correcta aplicação dos princípios jurídicos em matéria de prova; deve poder julgar em recurso se houve ou não erro notório na apreciação da prova ou contradição insanável na fundamentação. Para tanto, necessário se torna que a sentença indique a motivação dos juízos em matéria de facto, para que o tribunal de recurso possa apreciar da legalidade da decisão”.
E, citando Marques Ferreira, “Meios de Prova” (in Jornadas de Direito Processual Penal, 228 e segs): “exige-se (…) a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão. Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.
A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso (…). E extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade”.
Como nos parece claro e jurisprudencialmente pacífico, a “indicação e exame crítico das provas” não se basta com o mero elencar das testemunhas ouvidas e dos documentos examinados. Mas não exige, igualmente, a descrição pormenorizada dos testemunhos prestados, algo assim como que uma “assentada” dos depoimentos.
O que se exige é que a sentença descreva, com clareza, o raciocínio efectuado pelo juiz, que o conduziu a dar determinados factos como provados ou não provados.
E tal clareza impõe-se, posto que a fundamentação da convicção pode e deve funcionar como instrumento de controlo do correcto uso da livre (mas não arbitrária) apreciação da prova.
Ora, não sendo necessária (antes desaconselhável) uma qualquer “assentada” dos depoimentos prestados em audiência, o exame crítico das provas não é suficiente se não permite aos destinatários directos da decisão e à comunidade em geral perceber o raciocínio do julgador, a razão pela qual atribuiu credibilidade a um testemunho, mas não a outro.
Como se afirma no Ac. STJ de 3/10/2007 (rel. Henriques Gaspar), www.dgsi.pt, “o exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01). O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00). (…) A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência”.
Ora, assim enquadrada a questão, manifesta é a falta de razão do recorrente: no acórdão recorrido mostra-se claramente exposto o raciocínio dos julgadores, a razão pela qual atribuíram credibilidade acrescida ao depoimento da vítima (a forma sincera e espontânea como depôs, o conjunto de pormenores que forneceu), depoimento aliás colhido de surpresa e, por isso, insusceptível de ter sido previamente burilado, sendo sustentado pelos depoimentos prestados por sua mãe e pela testemunha D. Como, de igual modo, se mostra suficientemente explicada a desvalorização da documentação médica junta pelo arguido, no que concerne à alegada – mas não demonstrada – impotência sexual, à data em que os factos ocorreram.
Dito de outro modo: as provas produzidas foram não só enunciadas, como discutidas, confrontadas, isto é, criticamente analisadas.
E assim sendo, improcede mais esta pretensão do recorrente.

8. Violou o tribunal recorrido o princípio da investigação?
Afirma o recorrente (concl. 17) que o julgador não pode remeter-se a um papel passivo: “deve exercitar o poder-dever de investigação oficiosa – artºs 340º CPP e 32º - 5 CRP”.
É verdade.
Não vemos, contudo, que mais poderia ter feito o tribunal recorrido para “exercitar” esse poder-dever, sendo certo que o recorrente também o não explica.
A quantificação das condutas criminosas (encaradas numa vertente naturalística) nem sempre é possível, como é sabido. Condutas que se repetem por anos e anos, de forma mais ou menos coerente e consequente, mas nem sempre regular, são insusceptíveis de quantificar de forma exacta e rigorosa, por mais que se exercite o poder-dever de investigar.
E foi aquilo que sucedeu, in casu. Nenhuma diligência, requerida ou sugerida, ficou por fazer, nem se descortina que mais podia ter feito o tribunal recorrido que pudesse contribuir para a pretendida quantificação das condutas criminosas.
E daí que inexista., no caso em apreço, qualquer violação do princípio da investigação.

9. Deve ser modificada a matéria de facto fixada na 1ª instância?
Este Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (artº 428º do CPP).
Nos termos do disposto no artº 431º do mesmo diploma, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada se a prova tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do artigo 412º (al. b)).
E conforme disposto neste último dispositivo legal, “quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas”.
Nas conclusões 14, 15 e 16 pretende o recorrente impugnar “a decisão sobre a matéria de facto – artº 412º, nºs 3 e 4, CPP, quanto aos pontos tidos como provados em 2 e 3. Não existe fundamento fáctico algum que justifique o juízo condenatório, pois da prova produzida em julgamento o Tribunal deu relevância para condenar o arguido A a uma «espécie de adivinha» (…)” sendo que “não foi produzida prova alguma que permita concluir que o recorrente praticasse 77 crimes, uma vez que não foram relatados factos pelas testemunhas que permitissem concluir ao douto Tribunal a quo, com a certeza que é exigível, que o recorrente tenha 77 erecções ou sequer 1 só, face à operação cirúrgica de que foi alvo anos antes dos factos”.
A argumentação do recorrente, convenhamos, não prima pela clareza. De um lado, nos pontos 2 e 3 (ou em qualquer outro da matéria de facto, aliás) não consta que o arguido teve 77 erecções ou manteve, por 77 vezes, relações sexuais de cópula com a vítima.
Diz-se em tais pontos, apenas, que quando a C (neta do arguido) tinha 10 anos, este desflorou-a e, desde então, passou a manter relações sexuais de cópula completa com ela, “numa pluralidade de ocasiões que seguramente ultrapassam largas dezenas de vezes” e se manteve nos cerca de 6 meses em que a vivência em comum durou e, numa dessas ocasiões, pretendeu que a neta lhe fizesse sexo oral, o que acabou por não acontecer.
A referência aos 77 crimes constava do acórdão inicial, declarado nulo, no segmento destinado à subsunção jurídica dos factos apurados. No acórdão actual, sob recurso, inexiste essa referência (mas existe uma outra, a 50 crimes de abuso sexual de criança agravados, mais uma vez na parte destinada à subsunção jurídica dos factos).
E daí a assinalada falta de clareza: o recorrente mistura impugnação da decisão da matéria de facto com impugnação da matéria de direito, confundindo uma e outra.
Seja como for, em matéria de impugnação da matéria de facto, o raciocínio elaborado pelo recorrente, se bem o entendemos, passa pelo facto de ninguém ter referido, em julgamento, essa pluralidade de actos sexuais com a sua neta, ao que acresce a circunstância de, perante uma operação cirúrgica de que foi alvo anos antes, tal não ser fisicamente possível.
Mas não tem razão.
A pluralidade de ocasiões em que o arguido manteve relações sexuais de cópula completa com a sua neta resulta, naturalmente, do depoimento prestado por esta, tido pelo tribunal recorrido como sincero e pormenorizado. E no que concerne à operação cirúrgica de que diz ter sido alvo anos antes dos factos, ela não se encontra demonstrada nos autos, antes e apenas que “durante a sua estada em França, o arguido sofreu acidente de viação” – ponto 16 da matéria de facto.
E provado se mostra, também, que o arguido sofre, tal como em 2007, de insuficiência arterial peniana ligeira – ponto 14 da factualidade apurada. Porém, não se provou que padeça de impotência total desde os seus 49 anos, sequer que a insuficiência de que padece determinasse, ou sequer actualmente determine, incapacidade eréctil (ponto 2.2. dos factos não provados).
O tribunal explicou de forma consistente a razão pela qual proferiu tal decisão em matéria de facto: “como esclareceu a perita em audiência, toda a documentação junta pelo arguido é passada por médicos privados, pelo que ao nível das respectivas conclusões, por razões óbvias, se deverá ter a maior das cautelas.
Depois, porque a patologia do arguido não é por si impeditiva de erecção, não explicando a disfunção de que o mesmo diz sofrer, como do mesmo relatório consta.
Para tanto, ou melhor, para fazer uma aproximação científica à realidade, necessário seria proceder a realização de fármaco-cavernosometria, exame que para além de agressivo, apenas garantiria a etiologia da disfunção e em qualquer caso, seria impossível afirmar há quanto tempo teria começado.
Ou seja, pela documentação clínica junta e pela perícia médico-legal realizada, não podemos concluir que o arguido alguma vez sofreu, ou sequer se sofre de impotência.
Mas temos, por outro lado, poderosos indicadores de que tal não se verifica.
Já se referiu o testemunho da vítima, apoiado na totalmente absurda compra do teste de gravidez, caso o arguido sofresse do mal que alega.
Temos ainda o testemunho prestado por B (por carta rogatória) que relata circunstanciadamente ter sido igualmente vítima de avanços sexuais do arguido já no Verão de 2003.
E finalmente é o próprio arguido quem, sem querer, desvenda não padecer de semelhante mal, designadamente quando em 3.4.2006 e na sequência da sua fuga para França depois dos factos terem sido denunciados, dali escreve à sua esposa explicando a razão da sua ausência sem aviso prévio. Repare-se que ali (a fls. 304 e seguintes) no seu primeiro contacto com a esposa depois da fuga, do mesmo passo que jura a sua inocência, nunca afirma à sua mulher o óbvio, caso sofresse de impotência. Ora, essa, no âmbito da relação do casal, seria a primeira das razões invocadas e não deixaria de o ser certamente, já que se ainda é possível afirmar que o arguido não queria que a sua incapacidade fosse conhecida por terceiros (daí que não a tivesse convocado senão depois da acusação) nenhum motivo haveria para não invocar tal facto em correspondência dirigida à sua mulher. Bem pelo contrário.
Uma só explicação racional é possível, segundo elementares de regras de experiência comum e à luz da normalidade dos comportamentos humanos: o arguido, ao menos até então, não sofria de qualquer incapacidade eréctil.
O que, por outro lado, tem o condão de por a nu a efabulação e destapa a intenção óbvia desta: a de esconder a verdade, que assim só pode ser a contada pela vítima.
Não há pois qualquer dúvida sobre a veracidade dos factos tal como relatados por C“.
O tribunal recorrido não “ostracizou”, portanto (e contrariamente ao que afirma o recorrente), qualquer relatório pericial. Mais: o relatório a que se refere nas conclusões 10 e 11 da sua motivação não passa de um relatório preliminar. E mesmo assim, os segmentos que transcreve não são da autoria de quem o elabora, antes de médicos urologistas consultados pelo recorrente, sendo certo que o último segmento, atribuído ao Dr. (…), nem é verdadeiramente da sua autoria, antes consiste no relato que ele próprio, recorrente, fez ao médico urologista.
Como se refere nesse relatório preliminar, do exame do Dr. (…), não datado, resulta que para se obter um diagnóstico definitivo “deverá efectuar uma cavernosometria dinâmica”. E do mesmo modo, o Dr. (…), em relatórios datados de Junho e Julho de 2007 (note-se que os factos dos autos terão ocorrido entre Julho de 2002, altura em que a vítima tinha já 10 anos de idade, e os finais de 2005) afirma que o estudo doppler “revelou insuficiência arterial ligeira, que não explica a disfunção”; bem assim, que o diagnóstico só poderia ser afirmado “após realização de fármaco-cavernosometria, exame agressivo e que apenas terá interesse realizar para garantir a etiologia da disfunção, não para a confirmar… Em relação à disfunção, é impossível afirmar há quanto tempo começou”.
Certo é que, como bem se acentua no relatório pericial final de fls. 1103 e segs., “estes resultados reportam-se a 2007, não podendo datar desde quando este fenómeno acontece ao examinando”.
E daí, portanto, que jamais impusessem decisão diversa em matéria de facto, daquela que foi assumida pelo tribunal recorrido.
A desmentir a tese da impotência, aponta o tribunal a quo com o depoimento da C (que relatou, de forma que o tribunal teve por particularmente credível, os abusos de que foi alvo), com o depoimento (prestado em carta rogatória) pela testemunha B (que relatou avanços de natureza sexual feitos pelo arguido, seu tio-avô, no Verão de 2003) e, também, com um argumento já sustentado em sede de despacho de pronúncia, pelo Mº JIC. Referimo-nos, como é óbvio, à carta de fls. 304, datada de 3/4/2006, escrita pelo arguido à sua mulher, após a fuga que empreendeu para França, na sequência da denúncia dos factos dos autos. Nela, o arguido não refere, à sua esposa, aquilo que seria óbvio referir, caso fosse verdadeiro: a sua impossibilidade física de praticar os factos denunciados. Para quê tantos protestos de inocência perante quem, sendo real a situação de impotência sexual, saberia naturalmente da impossibilidade (física) de tais factos lhe serem assacados?
Em suma:
O raciocínio elaborado pelo tribunal a quo, conducente à decisão de dar como provada a matéria constante dos pontos 2 e 3 da factualidade assente, é lógico e coerente, assente nas regras da experiência, sendo certo que as concretas provas exibidas pelo recorrente não impõem decisão diversa.
O recorrente pode, obviamente, discordar do processo de formação de convicção assim delineado. Porém, a modificação da matéria de facto pretendida neste recurso só é materialmente possível se as concretas provas exibidas pelo recorrente impuserem (e não apenas permitirem) decisão diversa.
Em matéria de apreciação da prova [6], manda o artº 127º do CPP que, salvas as excepções previstas na lei, aquela seja apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
Este sistema de livre apreciação da prova aí consagrado (por contraposição ao sistema de prova legal) manifesta-se sob dois prismas:
- de um lado, o juiz há-de decidir de acordo com a sua íntima convicção, formada do dinâmico confronto das provas arroladas pela acusação e pela defesa e daquelas que, ele próprio e oficiosamente, entender por bem produzir e conhecer;
- de outro, tal convicção há-de ser formada com base em regras técnicas e de experiência (e bom senso) comum sem, contudo, qualquer sujeição a critérios de valoração de cada um dos meios probatórios, legalmente pré-determinados.
Como esclarecidamente se afirma no Ac. Trib. Const. nº 464/97, de 1/7/97, www.tribunalconstitucional.pt., “este princípio da prova livre ou da livre convicção do julgador não é contrário às garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Em oposição a um sistema segundo o qual o valor da prova é dado por critérios legais-abstractos que o predeterminam, dotados de um carácter de generalidade [que é o sistema da prova legal], o princípio da prova livre evidencia a dimensão concreta da justiça e reconhece que a procura da verdade material não pode prescindir da consideração das circunstâncias concretas do caso em que essa verdade se recorta”.
E porque assim é, não custa aceitar que os mesmos elementos de prova, exibidos em audiência, mereçam apreciações diversas por banda do julgador, por um lado, e do arguido (ou do Ministério Público ou do assistente) por outro.
Isso, porém, não acarreta qualquer vício para a sentença assim proferida nem, necessariamente, se traduz em erro de julgamento (na apreciação da prova).
A livre convicção do juiz, posto que justificada, ponderada e, por isso, não arbitrária, aliada às regras da experiência, é o modo como, no nosso sistema processual penal, deve ser apreciada a prova.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, ed. 1974, 204, a decisão do juiz há-de ser sempre e necessariamente uma “convicção pessoal - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais”.
Sobre esta matéria, assim se decidiu no Ac. STJ de 9/7/2003, www.dgsi.pt:
“Outra questão (...) reside em saber se as Relações, por sua própria iniciativa, e apoiando-se na extensibilidade do princípio da livre apreciação da prova aos tribunais de recurso, podem com base no mesmo princípio, alterar a matéria de facto dada como provada pelos tribunais de 1ª instância.
(...) Tem-se por certo que sem outros instrumentos que não sejam as transcrições das gravações da prova produzida em audiência, não se configura como seja possível formar uma convicção diferente e mais alicerçada do que aquela que é fornecida pela imediação de um julgamento oral, onde, para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam. Sobrepor um juízo distanciado desta proximidade a um juízo colhido directamente e ao vivo seria um risco sério que poderia comprometer a pureza do princípio e abalar as regras de um julgamento sereno e fundamentado”.
Quer dizer: se perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável. O recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova.
Só assim não será quando as provas produzidas imponham decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido. E isto sucederá quando o tribunal decide ao arrepio e contra a prova produzida (v.g., se dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e, ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição se constata que a dita testemunha se não pronunciou sobre tal facto ou, pronunciando-se, disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida) ou quando o tribunal valora a prova produzida contra as regras da experiência, as tais que, no dizer de Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, II, 30, se traduzem em “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade”.
In casu, não só o tribunal recorrido não decidiu ao arrepio e contra a prova produzida, como não a valorou contra as regras da experiência comum. A conclusão a que chegou em matéria de facto é perfeitamente consentida pela prova produzida, sendo certo que as concretas provas exibidas pelo recorrente não impõem decisão diversa.
Improcede, assim, mais esta pretensão do recorrente.

10. Procedeu o tribunal recorrido a uma errada subsunção dos factos ao direito? O crime de violação pressupõe a violência e no acórdão recorrido não existe qualquer referência à mesma?
O arguido foi condenado pela prática de 1 crime de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelos artºs 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) do CP e de 50 crimes de abuso sexual de crianças, p.p. pelos artºs 177º, nºs 1 e 2 e 177º, nº 1, al. a) do CP, na versão anterior à que foi introduzida pela Lei 59/2007, de 4/9 (vigente à data dos factos).
Estatuía-se no primeiro daqueles preceitos:
“1. Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2. Se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.
…”
Por seu turno, estatui-se no nº 1, al. a) do artº 177º do mesmo diploma que tais penas serão agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for descendente do agente.
Como é evidente e dispensa grandes considerações, a violência não é elemento típico do crime de abuso sexual de crianças. No tipo legal de crime em apreço protege-se a autodeterminação sexual “não face a condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coactiva ou análoga, mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade” – Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal, I., 541 (subl. nosso).
A prática de cópula com outrem, por meio de violência, integra o crime de violação, p.p. pelo artº 164º, nº 1, al. a) do CP (artº 164º, nº 1, na versão anterior à introduzida pela Lei 59/2007, de 4/9). Se esse outrem for menor de 14 anos, a pena é agravada de metade, nos seus limites mínimo e máximo, por força do artº 177º, nº 6 do CP (de um terço, na versão do CP anterior à que lhe foi introduzida pela referida Lei 59/2007, de 4/9).
Posto que o arguido foi condenado pela prática de crimes de abuso sexual de crianças (e não de violação, agravada pelo facto de a vítima ser menor de 14 anos de idade), carece de sentido útil a questão suscitada pelo recorrente, acerca da inexistência de violência.
E no que concerne à qualificação jurídica dos factos, efectuada pelo tribunal recorrido:
O arguido vinha acusado e pronunciado pela prática “em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada e na sua modalidade agravada”. São estas as “contas certas” a fazer e não outras. Era esta a qualificação constante da acusação – cfr. fls. 332 – como era esta a qualificação contida no despacho de pronúncia (“… um crime de abuso sexual de criança agravado nos precisos termos de facto e de direito que constam da acusação…”).
Acabou condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelos artºs 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) do CP e de 50 crimes de abuso sexual de crianças agravados, p.p. pelos artºs 172º, nºs 1 e 2 e 177º, nº 1, al. a) do CP (sempre na redacção anterior à que foi introduzida pela Lei 59/2007, de 4/9.
Na sessão de julgamento que teve lugar em 13/7/2011, o Mº juiz presidente comunicou publicamente que “os factos que constam da acusação, no que diz respeito à sua integração jurídica, correspondem à comissão de tantos crimes de abuso sexual de criança agravado (com o enquadramento legal dado na acusação) quantas as actuações de cariz sexual do arguido sobre a vítima e não a um só na forma continuada, pois para esta última não há nenhum facto alegado na acusação”. Portanto, no pressuposto da imodificabilidade fáctica, assegurada estava a comunicação da alteração da qualificação jurídica.
No que concerne à conduta descrita no ponto 1 da matéria de facto, dúvidas não restam sobre o acerto da qualificação jurídica feita pelo tribunal a quo. Numa altura em que a vítima teria 5 ou 6 anos de idade, o arguido acariciou-a na zona genital. Trata-se, como é bom de ver, de acto sexual de relevo, quer se entenda como tal “todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas” [7], quer assim se considere o comportamento “que, de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica” [8], ou, mesmo, aquele que “tendo relação com o sexo (relação objectiva) se reveste de certa gravidade e em que, além disso, há da parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais” [9].
No que concerne à factualidade constante do ponto 2, entendeu o douto colectivo que a mesma integrava a prática de 50 crimes de abuso sexual de crianças agravados, p.p. pelos artºs 172º, nºs 1 e 2 e 177º, nº 1, al. a) do CP.
E porquê?
Desde logo, porque apesar de o arguido se encontrar acusado da prática de um crime de abuso sexual de crianças na forma continuada, o certo é que se não alegou, nem provou, qualquer circunstancialismo externo que diminua consideravelmente a culpa do agente.
E neste ponto, com razão.
Nos termos do disposto no artº 30º, nº 2 do Cod. Penal, “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
Como explicam Leal-Henriques e Simas Santos, “Código Penal anotado”, 3ª ed., 387, “quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. O pressuposto da continuação criminosa será, assim, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa”.
Ora, do factualismo apurado não resulta qualquer circunstancialismo exterior ao agente, que o solicite à prática do crime e que, por essa via, diminua de forma considerável a sua culpa. Existiu, efectivamente, um circunstancialismo facilitador da acção e da repetição: o facto de a vítima ser neta do agente e com ele viver, sob o mesmo tecto e, de alguma forma, à sua guarda. Tal circunstância, porém, não só não é exterior ao agente como, seguramente – e nisso todos estaremos de acordo – não só não diminui, antes acentua a culpa do arguido.
Afastada a punição a título de crime continuado, afadiga-se o douto colectivo a afastar a punição das condutas descritas no ponto 2 como crime de trato sucessivo, solução que apoda de iníqua, “claramente contra legem e por isso de rejeitar liminarmente”, porquanto “a figura do trato sucessivo não tem, em boas contas e salvo o devido respeito por diversa opinião, qualquer utilidade”.
E as boas contas fazem-se, no entender do douto colectivo, desta forma: estando provado que o arguido praticou relações sexuais de cópula completa com a menor C “numa pluralidade de ocasiões que seguramente ultrapassam largas dezenas de vezes”, então, “o termo mais do que largas dezenas de vezes é equivalente a, pelo menos mais de uma centena. Com toda a certeza e segurança, abrange as 50 vezes”. E encontrados estão os 50 crimes de abuso sexual de criança por cuja autoria o arguido foi condenado.
Por que razão “largas dezenas de vezes” abrange, “com toda a certeza e segurança”, 50 vezes, é algo que nos escapa. Como igualmente nos escapa – seguramente por defeito nosso – a equivalência daquele termo a “pelo menos mais de uma centena”. Mas se for exacta tal correspondência (ou equivalência) qual a razão para, então, não se ter condenado pela prática de 100 crimes? Porquê 50? Onde assenta a certeza e segurança deste número? Porventura, 49 vezes não preenchem o conceito? Ou 48? Ou 51?
Salvo o devido respeito, que é muito, permitimo-nos discordar do caminho seguido pelo tribunal de 1ª instância.
E preferimos, sem dúvida, trilhar aquele que vem sendo seguido pelo nosso mais Alto Tribunal, maugrado a iniquidade que o douto tribunal a quo lhe aponta (e que nós, modestamente, não vislumbramos).
Como se afirma no Ac. STJ de 29/11/2012, Pr. 862/11.6TAPFR.S1, www.dgsi.pt., “quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem”. Daí que “a doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido. Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem. O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque). Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma”.
Insurge-se o tribunal a quo contra este entendimento, dizendo que “onde se verificam vários crimes (quiçá, largas dezenas…), ficciona-se que apenas houve um”.
Em matéria de ficção, permita-se-nos que aqui lembremos um caso com algumas semelhanças com o tratado nestes autos e que foi objecto de estudo, num interessante trabalho da autoria da Drª Ana Brito, Desembargadora neste Tribunal da Relação de Évora, publicado na Revista do CEJ nº 15, 293/316:
- Na 1ª instância, o arguido havia sido condenado pela prática de dois crimes continuados, um de coacção sexual, outro de violação.
- Na Relação do Porto, decidiu-se deste modo (Ac. de 8/9/2010, rel. Leonor Esteves): “Não foi possível determinar o número exacto de vezes que o recorrente praticou as condutas delituosas. Ao certo, apenas se apurou que elas tiveram lugar a partir de data incerta de 2001/2002 e duraram até inícios de Outubro de 2008, ocorrendo com uma frequência semanal e, muitas vezes, mais do que uma vez por semana. Considerando, por a tal a certeza e a segurança nos obrigar, apenas o período que decorreu entre princípios de 2003 e finais de Setembro de 2008, que se traduz em 299 semanas, chega-se à conclusão de que, pelo menos, foram praticados outros tantos actos da natureza dos que vêm descritos nos factos provados. No entanto, ainda assim fica por determinar em quantos deles o recorrente se limitou a praticar actos sexuais de relevo ou praticou relações sexuais de cópula com a assistente, sendo apenas possível dar como certo que, tanto uns como outros, ocorreram mais do que uma vez. Decorrentemente, não é possível considerar que as condutas praticadas pelo recorrente preencheram mais do que duas vezes os tipos legais dos crimes de coacção sexual e de violação. Razão pela qual o enquadramento jurídico dos factos que consideramos correcto – e possível – consiste na sua subsunção a dois crimes de coacção sexual (…) e a dois crimes de violação (…)”.
- No Supremo Tribunal de Justiça (Ac. STJ de 12/5/2011, Pr. 14125/08.0TDPRT.P1.S1, www.dgsi.pt) considerou-se que a conduta do arguido integrava a prática de um único crime de coacção sexual e de um único crime de violação. E aí se escreveu: “a Relação, na base do entendimento de que não se verificava a diminuição da culpa em razão de uma exigibilidade diminuída, requerida para tal unificação normativa, rejeitou essa solução mas, na falta de factos que permitissem determinar o número exacto de actos singulares, na falta de factos que permitissem determinar o conteúdo objectivo de cada um dos actos singulares, na falta de factos que permitissem determinar se a cada um dos concretos actos singulares presidiu uma nova e autónoma resolução criminosa, na falta de factos que permitissem determinar se cada um dos actos singulares foi precedido de uma concreta acção de constrangimento, criou uma ficção. Na falta de averiguação e valoração jurídico-penal de todos e cada um dos crimes e na impossibilidade reconhecida de a alcançar, a Relação decidiu, arbitrariamente, que o recorrente cometeu dois crimes de cada um dos tipos” (subl. nossos).
Com efeito, a ficção não está no tratamento de várias condutas ilícitas, ligadas por uma unidade resolutiva (patente numa conexão temporal e numa uniformidade de actuações que leva a concluir que o agente as praticou sem necessidade de renovação do processo de motivação), como se de um único crime se tratasse. A ficção está em preencher conceitos propositadamente vagos (e são-no, face à impossibilidade de quantificar, de modo exacto, as condutas ilícitas) de forma arbitrária, porque assente em coisa nenhuma.
Estatui-se no nº 1 do artº 30º do Cod. Penal que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
A este propósito, anota o Cons. Maia Gonçalves, “Código Penal Português anotado e comentado”, 8ª ed., 268: “perfilha-se o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime. (...) É claro que embora o artigo o não diga expressamente, não se abstrai do juízo de censura (dolo ou negligência). Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores, ou diversas vezes ao mesmo preceito, tal juízo de censura dirá a última palavra sobre se, concretamente, se verificam um ou mais crimes, e se sob a forma dolosa ou culposa. Isto se deduz do uso do advérbio efectivamente e dos princípios basilares sobre a culpa.”
Segue-se de perto, em tal anotação, a lição do Prof. Eduardo Correia (“Direito Criminal”, II, 1971, p. 197 e segs) que rejeita, como é sabido, a teoria naturalística da infracção, segundo a qual determinar o número de crimes praticados pelo agente seria o mesmo que saber em quantas acções se pode dividir a conduta. E aponta, de forma inequívoca, para uma teoria jurídica, de que resulta que o número de infracções se determina pelo número de valorações que, no mundo criminal, correspondem a uma certa actividade. Daí que “se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal e estamos, portanto, perante uma única infracção” - op. cit., 201.
Posto que para que uma conduta seja considerada delituosa se torna necessário que para além de antijurídica seja, igualmente, culposa, a culpa apresenta-se - assim - como elemento limite da unidade da infracção, pois que sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes o mesmo tipo legal de crime se torna aplicável, de onde se nos depare uma pluralidade de infracções.
Assente, então, que sempre que se verifique uma pluralidade de resoluções criminosas, se verifica uma pluralidade de juízos de censura, a dificuldade residirá, apenas, em verificar se numa determinada situação concreta existe pluralidade de resoluções criminosas ou se o agente age no desenvolvimento de uma única e mesma motivação criminosa.
Essencial para tal determinação será, sempre, a conexão temporal que liga as várias condutas do agente. Daí que “para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação” - autor e op. cit., 202.
No caso em apreço, que temos nós?
Quando a C tinha cerca de 10 anos (portanto, no segundo semestre de 2002) o arguido manteve com ela relações sexuais de cópula completa, desflorando-a; e porque esta passara a viver com o arguido e a sua mulher, a tempo inteiro, o arguido “passou a manter relações sexuais de cópula completa com a criança”, situação que se manteve nos cerca de 6 meses que tal vivência em comum durou, passando então a ocorrer nos fins de semana e férias em que a menor ficava em casa dos avós paternos, o que durou até ao final de 2005.
Dos autos não resulta assente a renovação da motivação criminosa, entre cada conduta ilícita. Em boa verdade, aquilo que a factualidade provada evidencia é que, tomada a resolução de manter relações sexuais de cópula completa com a menor, todas as condutas foram executadas a coberto da mesma motivação e, por isso, que todas elas se mostram ligadas por uma mesma unidade resolutiva: o arguido “passou a manter relações sexuais”, no âmbito e em execução da decisão anteriormente tomada, aproveitando-se do mesmo tipo de condições existentes (co-habitação, ascendente resultante da relação de parentesco) e, portanto, sem necessidade de (re)criar as condições propícias à prática dos actos.
E aqui chegados, resta-nos dizer que, nesta concreta pretensão, o recorrente alcança algum sucesso: a sua conduta integra a prática de um crime de abuso sexual de crianças, p.p. pelos artºs 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) do CP (na versão anterior à que foi introduzida pela Lei 59/2007, de 4/9) e de um crime (de trato sucessivo) de abuso sexual de crianças, p.p. pelos artºs 172º, nºs 1 e 2 e 177º, nº 1, al. a) do CP (e não, como condenado foi, de 50 crimes p.p. por tais disposições legais).

11. Deve ser reduzida e suspensa na sua execução a pena aplicada ao recorrente?
No que concerne ao crime de abuso sexual de crianças p.p. pelos artºs 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a), do CP (e a que se reporta a factualidade assente em 1. da matéria provada), o mesmo é punido com prisão de 16 meses a 10 anos e 8 meses (agravação em 1/3 dos limites mínimo – 1 ano – e máximo – 8 anos).
No que diz respeito ao crime de abuso sexual de crianças p.p. pelos artºs 172º, nºs 1 e 2 e 177º, nº 1, al. a), do CP (e a que se reporta a factualidade assente em 2. da matéria provada), o mesmo é punido com prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses (agravação em 1/3 dos limites mínimo – 3 anos – e máximo –10 anos).
O tribunal recorrido teve presente “à luz do artº 71º do Código Penal , a culpa do arguido, bem como a sua personalidade e todas as circunstâncias que rodearam os factos, para, pesando as necessidades de prevenção geral e especial, encontrar as concretas medidas das penas, dentro daquelas molduras abstractas e na medida da culpa do arguido”.
E acrescentou:
“A tenra idade da vítima quando começaram os abusos, ainda muito longe do estritamente necessário para o preenchimento do tipo, denuncia a elevada ilicitude dos factos.
Os actos sexuais praticados são de carácter vincado e intenso.
Muito forte é ainda e também por isso o dolo do arguido, para além de directo e tenaz, revelador da persistente determinação do arguido no que respeita às vezes em que logrou “consumar” o seu desejo.
As consequências da sua conduta também são dificilmente quantificáveis, mas seguramente que devastadoras para o crescimento da vítima, deixando os actos do arguido marcas naquela que, como é sabido, são indeléveis, obrigando-a assim a suportar tal fardo para sempre.
Não obstante o tempo passado, não apresenta qualquer indício de arrependimento, agravante com algum peso.
Ao negar o cometido, ou seja, a verdade dos factos, o que por si e já que não é obrigado a prestar qualquer declaração, denota o arguido deformação grave de personalidade (distorcida, tenazmente avessa ao direito e claramente impreparada para se conduzir de acordo com as regras mais essenciais ao convívio em sociedade ou, por outras palavras, falta de preparação para manter uma conduta lícita - alínea f do nº 2 daquele artº 71º e salvo o devido respeito por opinião adversa).
Visto o facto por outro prisma, não apresentou em audiência qualquer atitude crítica em relação aos seus actos. Tal atitude por si mesma não augura qualquer vontade de reinserção social relativamente ao seu crime, antes revela vontade de persistir na prática de idênticos delitos.
O não arrependimento do arguido consubstanciado na negação dos factos perante toda a comunidade, legalmente, tem pendor agravante.
Não desconhecemos corrente que afirma ser irrelevante tal circunstância, aconselhando até que se ignorem os factos em que a mesma se materializa (desconsideração que depois, à primeira vista, contraditoriamente, não estende aos casos de confissão, a funcionarem como atenuante).
Diz-se então que o acusado não é obrigado a contribuir para a sua incriminação.
Sem dúvida, daí que tenha o direito a manter-se em silêncio, sem que tal opção o possa desfavorecer.
Mas diferente, muito diferente, de manter o silêncio é mentir perante a comunidade e a tanto equivale a negação dos factos em audiência, obviamente, desde que os mesmos tenham efectivamente ocorrido.
Ali, mantendo o silêncio, exerce-se de forma livre um direito civilizacional inegável.
Aqui, mentindo, demonstra-se publicamente desprezo pela norma violada, vítima atingida e comunidade em que se integra.
Daí que se a confissão normalmente significa arrependimento, devendo ser tomada como atenuante e o silêncio deva ser inócuo nesta sede, a negação, harmonicamente, tem de contar como agravante.
O direito penal e por isso o processual penal, não visam a protecção do criminoso, menos ainda com a dissimulação da verdade e aquela corrente só faz sentido nesta perspectiva, que por isso é de rejeitar, em absoluto e por maior brilhantismo de quem a advoga.
A favor do arguido joga com muita importância a sua capacidade de inserção social e profissional.
Impõe-se séria advertência ao arguido para que possa corrigir a sua clara tendência criminosa, pelo que se mostram justas por adequadas e proporcionais à sua culpa a pena de dois anos de prisão pelo primeiro abuso e a de cinco anos de prisão por cada um dos restantes, excepto para a mais marcante, grave e traumatizante vez, naturalmente a primeira, para a qual se mostra justa a pena de 6 anos e 6 meses de prisão”.
E operando o cúmulo jurídico das penas parcelares, condenou o arguido na pena única de 15 anos de prisão. A mesma pena, aliás, que aplicara no acórdão anterior, anulado, face a 3 crimes de abuso sexual de criança agravados, p.p. pelos artºs 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) do Cod. Penal e 74 crimes de abuso sexual de criança agravados, p.p. pelos artºs 172º, nºs 1 e 2 e 177º, nº 1, al. a) do Cod. Penal. Quer dizer: não obstante a eliminação de dois crimes p.p. pelos artºs 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) do CP e de 24 crimes p.p. pelos artºs 72º, nºs 1 e 2 e 77º, nº 1, al. a) do CP, o douto colectivo manteve a mesma pena única.
Seja como for:
Diz-nos o artº 40º do Cod. Penal que a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (nº 1) e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº 2).
Como bem referem Leal-Henriques e Simas Santos, “Código Penal anotado”, 3ª ed., 564, o nosso direito penal acolheu as seguintes proposições conclusivas, formuladas por Figueiredo Dias:
“- a finalidade primária da pena é o «restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime» (prevenção geral positiva de integração – artºs 18º, nº 2 da CRP e 40º, nº 1 do CP;
- esta finalidade primária não posterga o efeito, meramente lateral, causado pela pena em termos de prevenção geral negativa ou de intimidação geral;
- dentro dos «limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração» a medida concreta da pena será encontrada em função da necessidade de socialização do agente (prevenção especial positiva ou de integração) e de advertência individual ou inocuização (prevenção especial negativa);
- a culpa não é fundamento da pena, mas tão-somente o seu limite inultrapassável (vd. artº 40º, nº 2 do CP)”.
Aqui chegados:
No que concerne ao quantum da pena a aplicar, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente – artº 71º, nº 2, do Cod. Penal.
Que o arguido agiu com dolo directo, daí que intenso, é algo que não oferece quaisquer dúvidas. E que a sua culpa se mostra agravada, face à repetição de condutas, é algo que já deixámos claro, aquando da abordagem da figura do trato sucessivo.
Intenso é o grau de ilicitude dos factos, face à natureza do bem jurídico tutelado nos crimes em apreço e graves são as consequências da sua infracção.
Pesam a seu favor a sua inserção social e a ausência de antecedentes criminais.
O arguido tinha, porém e seguramente, um especial dever de não praticar os actos apurados. Um avô é duas vezes pai e, por isso, duplamente responsável por cuidar do desenvolvimento harmonioso e saudável do seu neto. Na relação de um avô com o seu neto (ou neta) espera-se que o estrague com mimos, não que lhe roube a infância e lhe arruíne o futuro.
A pena aplicada pelo tribunal recorrido no que concerne ao crime p.p. pelos artºs 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) do Cod. Penal, se por algo peca é, naturalmente, pela excessiva brandura, porquanto situada demasiado próxima do limite mínimo legalmente admissível. Face à proibição de reformatio in pejus (artº 409º, nº 1 do CPP), válida também para as penas parcelares [10], a este tribunal de recurso resta manter tal pena.
Mas tal proibição não abrange, como é bom de ver, a pena a aplicar ao crime (de trato sucessivo) de abuso sexual de crianças p.p. pelos artºs 172º, nºs 1 e 2 e 177º, nº 1, al. a) do CPP e a que se refere o ponto 2 da factualidade assente.
É que a conduta unificada nesta Relação é abarcada, no tribunal recorrido, por 50 crimes distintos. Não existe, pois, correspondência de realidade fáctica entre o crime por cuja autoria o recorrente vai agora condenado e cada um desses 50 crimes, antes e apenas com o conjunto fáctico abrangido por esses 50 crimes. E daí que se limitação alguma existe (por força da proibição da reformatio in pejus) ela não se situa na pena parcelar mais elevada (6 anos e meio de prisão), antes no conjunto dessas penas. Ora, o arguido foi condenado numa pena única de 15 anos de prisão. Se descontarmos os dois anos de prisão correspondentes ao crime descrito no ponto 1 da matéria de facto (e seria sempre o máximo a descontar, num pressuposto de cúmulo material que é sempre o limite superior do cúmulo jurídico), a pena (única) correspondente aos 50 crimes que abarcam a realidade fáctica contida em 2. da matéria assente, nunca poderia ser inferior a 13 anos de prisão. É esse, então, o limite a respeitar, face ao disposto no artº 409º, nº 1 do CPP [11].
Ora, ponderado o circunstancialismo atrás enunciado, temos para nós que a pena a aplicar ao crime em causa se há-de situar perto do ponto médio da pena abstractamente aplicável; o que equivale a dizer que temos por adequada, no caso, a pena de 8 anos de prisão.
E procedendo ao cúmulo jurídico das penas parcelares, entre um mínimo de 8 anos e um máximo de 10 anos de prisão (artº 77º, nº 2 do CP), entendemos por equitativa a pena única de 9 anos de prisão [12].
Desta forma procederá, ainda que parcialmente, a pretensão de redução da pena, formulada pelo recorrente.
A pena aplicada, como é evidente e dispensa grandes considerações, não pode ser suspensa na sua execução, face ao estatuído no artº 50º, nº 1 do Cod. Penal.

IV. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso, considerando que a apurada conduta do arguido integra a prática, por ele, de dois crimes de abuso sexual de criança agravados, um p.p. pelos artºs 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) do CP e outro p.p. pelos artºs 172º, nºs 1 e 2 e 177º, nº 1, al. a) do CP (sempre na redacção anterior à introduzida pela Lei 59/2007, de 4/9), condenando o recorrente, pela prática do segundo, na pena de 8 (oito) anos de prisão e, em cúmulo jurídico com a pena de 2 anos de prisão relativa ao primeiro (e ora mantida), na pena única de 9 (nove) anos de prisão, no mais negando provimento ao mesmo recurso.
Sem custas.

Évora, 25 de Março de 2014 (processado e revisto pelo relator)

Sénio Manuel dos Reis Alves
Gilberto da Cunha

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[1] Obviamente, sem prejuízo das questões que oficiosamente importa conhecer, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, DR 1ª Série, de 28/12/1995).
[2] Escreveu-se no Ac. RL de 13/3/2013 (rel. Carlos Almeida), http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/441166df5a32aedb80257b2e003a89d0?OpenDocument que “mesmo quando o Código de Processo Penal se refere à prática de actos da competência do juiz presidente, pressupõe e exige que o tribunal colectivo esteja constituído e presente na audiência. É o que acontece, nomeadamente, quando a lei confere ao presidente do tribunal a competência para comunicar ao arguido eventuais alterações de factos ou da qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados e quando a lei permite que o acórdão seja lido publicamente pelo presidente ou por outro dos juízes que integram o tribunal colectivo. Essa leitura e aquelas comunicações são feitas por um dos indicados juízes durante a audiência em que se encontra necessariamente presente todo o tribunal, sob pena de prática de uma nulidade insanável – alínea a) do artigo 119.º do Código de Processo Penal”.
[3] Cfr., neste sentido e entre outros, o Ac. STJ de 10/5/1995, CJASTJ, ano III, t. II, p. 190.
[4] O 2º período desse artigo estabelece a obrigatoriedade da publicidade da audiência, questão que para aqui não releva.
[5] Do sumário deste último: “O erro notório na apreciação da prova, da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, como tem sido repetido à saciedade na jurisprudência deste Supremo Tribunal, tem que decorrer da decisão recorrida ela mesma. Por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida”.
[6] Seguiremos de perto o Ac. RE de 10/5/2011, proferido no proc. 649/10.3GCPTM.E1, com o mesmo relator.
[7] Sénio Alves, “Notas e comentários aos artºs 163º a 179º do Cod. Penal”, 11 (no mesmo sentido se pronunciou o STJ, por exemplo no Ac. de 24/10/96, BMJ 460º, 605). Com tal entendimento não se olvida (ao contrário do que parece pensar o Prof. Figueiredo Dias, op. cit., 449) que o bem jurídico aqui tutelado é a liberdade de determinação sexual (quando, como no caso, a vítima tem – ou tinha então – menos de 14 anos de idade, melhor será dizer que o bem jurídico aqui tutelado é o direito das crianças a crescerem e se desenvolverem sexualmente de maneira sadia). O que se afirma em tal entendimento é a existência de um valor envolvente, que condiciona e determina o próprio bem jurídico tutelado e ao qual é lícito fazer apelo para entender o tipo legal de crime em apreço. É o que, ao cabo e ao resto, também faz, por exemplo, Muñoz Conde, “Derecho Penal, Parte Especial”, 180/181, quando escreve: “a liberdade sexual deve (...) para ser entendida como bem jurídico autónomo, situar-se num contexto valorativo de regras que disciplinam o comportamento sexual das pessoas nas suas relações com outras pessoas. A esse contexto poder-se-ia também chamar «moral sexual», entendendo-a como aquela parte da ordem moral social que encaixa dentro de certos limites as manifestações do instinto sexual das pessoas, sem que isto signifique tão pouco que seja a moral sexual o bem jurídico protegido nesta matéria”.
[8] Figueiredo Dias, op. cit., 447.
[9] Ac. STJ de 24/10/96, Proc. 606/96, da 3ª secção, relatado pelo Cons. Silva Paixão; no mesmo sentido vai o Ac. STJ de 12/3/98, Proc. 1429/97, relatado pelo Cons. Costa Pereira.
[10] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do CPP”, 4ª ed., 1075.
[11] Neste sentido, cfr. Ac. STJ de 2/10/2003, CJASTJ ano XI, t. III, 194 e segs. e, particularmente, p. 200.
[12] As molduras penais dos crimes em referência não sofreram qualquer alteração com a entrada em vigor da Lei 59/2007, de 4/9, razão pela qual se torna inútil proceder à determinação do regime concretamente mais favorável: num e noutro, as penas seriam rigorosamente as mesmas.