Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
127/10.0TBRMZ-B.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
OBJECTO
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I – O valor do incidente de habilitação corresponde ao valor da causa a que respeita.
II – A sentença proferida em sede do incidente de habilitação de herdeiros de parte falecida, tendo em vista assegurar a legitimidade dessa mesma parte na ação principal, não determina o âmbito da responsabilidade dos herdeiros habilitados relativamente ao objeto da referida ação.
III – Desde logo por via do efeito devolutivo que cabe ao recurso interposto da sentença de habilitação de herdeiros, a interposição de tal recurso não é apto a acarretar o entorpecimento da ação principal, pelo que não traduz que a recorrente incorreu em litigância de má-fé.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Habilitada: AA

Recorrida / Requerente do Incidente: BB

Trata-se do incidente de habilitação, processado por apenso ao processo de prestação de contas, dado o falecimento da Ré CC.


II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando o incidente procedente, na sequência do que AA foi declarada habilitada a prosseguir os termos da demanda na qualidade de herdeira de CC – v. fls. 111.

A habilitada interpôs recurso desta decisão, sustentando que deve limitar-se o seu posicionamento como herdeira de CC ou, assim não se entendendo, não pode ser habilitada por deficit de responsabilidade, sempre se imputando as custas à parte contrária ou, pelo menos, aplicar-se um juízo de proporcionalidade, como colateral do deferimento da sua posição.

Apresentou as seguintes conclusões:
“I – No caso das habilitações por hereditariedade, tratando-se de litígio sobre direitos pessoais de gozo ( ser ou não ser herdeiro ) , o valor do incidente é de €30.000,01 ( Trinta mil euros e Um Cêntimo ).
II – Ao ter fixado o valor de € 20.000,00 (Vinte Mil Euros) , ao presente incidente de habilitação de herdeiros pela Mm.ªJuíza “ a quo “ , infringiu o dispositivo no Artº 303 nº 1 do CPCivil .
III – Mesmo que , a recorrente deva ser habilitada na posição da Ré , que contestou a ação de prestação de contas , por ser a única herdeira da Exma. Sra. CC, certo é que , segundo a Lei , apenas nos limites e por força da herança recebida .
IV – Ora a Recorrente , apresentou documento , que não foi contraditado e no qual resulta ter obtido uma herança líquida de €783,71 (Setecentos e Oitenta e Três euros e setenta e um cêntimos ) ., Cfr. Doc. Liquidação do Imposto Sucessório .
V – Assim, a Sentença recorrida , só poderia ter habilitado a recorrente , na posição da Ré da prestação de contas , até este e só até este montante.
VI – Acaso não se entenda desta forma , então a recorrente não é elegível para a habilitação , neste caso concreto , em que o quinhão hereditário recebido pela requerida , não cobre de uma forma substancial o pedido da Autora , na dita prestação de contas . VII – Ao ter habilitado sem reserva , a recorrente na Sentença final do incidente de habilitação , a Mm.ª Juíza “ a quo “ infringiu , no limite, o disposto no Artº 2068 e Artº 2071 nº 1 e 2 ( Limite da Responsabilidade do herdeiro ) , ambos do Código Civil .
VIII –Em face do exposto , a Sentença recorrida deve ser Reformada , no sentido da Limitação do posicionamento da Requerida como herdeira da Exma. Sra. CC, Acaso se não entenda , que não pode mesmo ser habilitada , por deficit de responsabilidade.
IX – Como colateral, a condenação nas custas, deve seguir a proporção, ou mesmo, serem imputadas, só à parte contrária.”

A parte contrária apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.

Mais requereu a condenação da recorrente por litigância de má-fé em pagamento de multa e de indemnização a favor da recorrida em montante não inferior a €1.000 invocando, para tanto, que a recorrente usa e abusa do processo para deliberadamente retardar a sua marcha.

Notificada que foi de tal pretensão, a recorrente não respondeu.

Assim, são as seguintes as questões a decidir:
- do valor do presente incidente;
- da falta de limitação, em termos pecuniários, da responsabilidade da habilitada recorrente;
- da litigância de má-fé por parte da recorrente.


III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª instância

1. CC, Ré no processo especial de prestação de contas de que este incidente constitui apenso, faleceu no dia 24 de novembro de 2014 (cfr. cópia do assento de óbito de fls. 54 dos autos principais).

2. AA é herdeira da falecida (cfr. cópia da certidão de fls 73 destes autos).

Facto apurado em Juízo:

3. O processo especial de prestação de contas de que estes autos constituem apenso correm termos pelo valor de €20.000 (vinte mil euros) – fls. 186.


B – O Direito

Do valor do presente incidente

Nos termos do disposto no art.º 304.º n.º 1 do CPC, “O valor dos incidentes é o da causa a que respeitam, salvo se o incidente tiver realmente valor diverso, porque neste caso o valor é determinado em conformidade com os artigos anteriores”.

O presente processo consiste no incidente de Habilitação cujo regime se encontra previsto nos art.ºs 351.º e ss do CPC, integrando-se no Título III[1] cuja epígrafe consiste em “Dos incidentes da instância”. Sendo, como é, um incidente da instância e dado que não existe fundamento para que tenha valor diverso, o seu valor é o da instância a que respeita, ou seja, o do processo especial de prestação de contas, que ascende a €20.000 (vinte mil euros).

É este o regime aplicável, não assistindo razão à requerente quando traz à colação normas atinentes a direitos pessoais de gozo, pugnando à fixação do valor de €30.000,01 para que seja admissível o recurso. Tal como indicou a recorrida, da conjugação do disposto no art.º 629.º do CPC com o disposto no art.º 44.º da LOSJ[2], a decisão proferida, ainda assim, está sujeita a escrutínio a coberto do recurso ordinário.

Termos em que improcedem as conclusões da recorrente no que respeita ao valor do incidente.

Da falta de limitação, em termos pecuniários, da responsabilidade da habilitada recorrente

O incidente da habilitação, previsto nos art.º 351.º e ss do CPC, tem em vista a substituição de uma parte inicial na causa por uma parte subsequente, implicando a modificação da instância quanto aos sujeitos, designadamente por falecimento da parte inicial ou por perda de legitimidade para estar em juízo. Consiste na “prova da aquisição, por sucessão ou transmissão, da titularidade de um direito ou de um complexo de direitos ou doutra situação jurídica ou complexo de situações jurídicas”[3].

A habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, constituindo habilitação incidental desta causa, tem natureza obrigatória, dado que nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 269.º e da al. a) do n.º 1 do artigo 276.º, ambos do CPC, a causa suspende-se desde o falecimento da parte e só se reinicia com a notificação da decisão de habilitação do sucessor da parte falecida[4].

Nos termos do disposto nos art.ºs 353.º e 354.º do CPC, a referida habilitação depende da verificação da qualidade de herdeiro.

Porém, “não basta que o habilitando seja herdeiro da parte falecida para que proceda o pedido de habilitação, certo ser indispensável a demonstração de que, segundo o direito substantivo, lhe sucedeu na relação jurídica em litígio”[5]. O objetivo da habilitação é certificar que determinada pessoa sucedeu a outra na posição jurídica que esta ocupava[6]. O herdeiro será habilitado se, à luz do direito material, suceder na relação jurídica objeto do processo. Na verdade, “a expressão sucessores da parte falecida deve ser entendida no sentido mais amplo do que o de herdeiro a que alude o art.º 2133.º do CC, abrangendo todos os que, segundo o direito substantivo, sucederam ao falecido na titularidade do direito ou das obrigações objeto da ação ou do procedimento em causa”[7].

Importa, no entanto, levar em linha de conta que não cabe aferir se os sucessores receberam bens por força dos quais deva ser satisfeita a obrigação objeto do litígio, pelo que o facto de o falecido não ter deixado bens, mas tão só dívidas, não constitui obstáculo à respetiva habilitação[8]. A decisão de habilitação, em si mesma considerada, não dispõe sobre quais os bens que respondem pela dívida da parte falecida ou em que circunstâncias se efetuará a responsabilidade dos herdeiros habilitados por essa dívida[9]. A habilitação apenas revela quais os indivíduos que são investidos na qualidade de herdeiros, não definindo a sua posição relativamente à herança[10].

Ora vejamos.

A decisão recorrida declarou a recorrente habilitada a prosseguir os termos do processo especial de prestação de contas na qualidade de herdeira de CC.

É certo que, nos termos do disposto no art.º 2071.º do CC, a responsabilidade dos herdeiros não excede o valor dos bens herdados. Em consonância, o art.º 2068.º do CC estatui que a herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido e pelo cumprimento dos legados; o art.º 2097.º do CC consagra que os bens da herança indivisa respondem coletivamente pela satisfação dos respetivos encargos; o art.º 2098.º n.º 1 do CC determina que, efetuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança.

Porém, e como resulta do que supra se deixou exposto, tais considerações não são relevantes em sede do incidente de habilitação de herdeiros. Apenas serão de atender caso o saldo apurado no âmbito do processo especial de prestação de contas onere a parte passiva da lide em montante superior áquilo que a habilitada recebeu da falecida. Note-se que a decisão recorrida não atribuiu à habilitada a qualidade de ré na ação principal, sem mais; antes enunciou que a habilitada passa a intervir no processo “na qualidade de herdeira de CC”[11]. “Ainda que um herdeiro de um devedor entretanto falecido, venha a ser condenado, em ação declarativa contra este instaurada e onde aquele foi julgado habilitado a nela prosseguir em representação do falecido, como seu sucessor, esse herdeiro só responde pelas dívidas do de cujus na medida do valor dos bens herdados (art.ºs 2068.º e 2071.º C.Civ)”[12].

Assim se conclui que a sentença recorrida não merece censura por não ter satisfeito a pretensão da recorrente no sentido de restringir o âmbito da sua responsabilidade ao valor dos bens que recebeu da herança.

Mantendo-se a decisão recorrida, não cabe alterar a decisão tomada quanto a custas (a recorrente pugna pela condenação em custas apenas a requerente do incidente da habilitação como colateral do deferimento da sua pretensão recursória[13]).

Da litigância de má-fé por parte da recorrente

Nos termos do n.º 1 do art.º 542.º do CPC, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta pedir.

Em face do disposto no n.º 2 do citado preceito, a litigância de má-fé, desde que revestida de dolo ou negligência grave, pode ser considerada sob dois aspetos:
- a má fé material, que abrange os casos de dedução de pretensão ou de oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, a alteração da verdade dos factos ou a omissão de factos relevantes para a decisão da causa;
- a má fé instrumental, relativa à omissão grave do dever de cooperação, ao uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais para conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, para entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Como ensina António Santos Abrantes Geraldes, e seguindo de perto o que deixa exposto in Temas Judiciários, I vol., p. 303 e ss, as partes devem estar cientes de que, no âmbito da resolução de conflitos de direito privado, devem pautar-se pelas regras da cooperação intersubjetiva, pela lealdade e pela boa-fé processual. A lei, porém, não pede a nenhuma das partes que se entregue, sem luta. Por isso, a todas é garantida a possibilidade de fazerem vingar as respetivas posições, desde que estejam convencidas da sua legitimidade, mesmo que assentem em normas jurídicas objetivamente injustas, ou desde que não sejam excedidos certos limites para além dos quais se considera ilegítimo o exercício dos direitos processuais.

Comportamentos dolosos ou gravemente culposos, materializados na dedução de pretensões ou de oposições manifestamente infundadas, assentes na alteração censurável da verdade dos factos, corporizados na grave violação do dever de cooperação ou, por fim, exteriorizados através do uso ilegítimo de instrumentos do direito adjetivo, com vista à obtenção de objetivos ilegais, à ocultação da verdade ou ao entorpecimento ou retardamento da atividade dos tribunais, são considerados ilícitos e, por isso, merecedores de sanções de natureza cível, independentemente do resultado final da ação ou da execução.

Ora, o citado art.º 542.º do CPC, ao referir, na redação advinda da Reforma de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12 de dezembro), o dolo ou negligência grave como tipificadores da litigância de má-fé, “passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária: quer o dolo, quer a negligência grave, caracterizam hoje a litigância de má-fé, com o intuito, como se lê no preâmbulo do diploma, de atingir uma maior responsabilização das partes”[14].

Assim, pode dizer-se que “a má-fé psicológica, o propósito de fraude, exige, no mínimo, uma atuação com conhecimento ou consciência do possível prejuízo do ato; tal conhecimento ou consciência pode corresponder quer a dolo eventual quer a negligência consciente e, neste último quadro, aquela consciência pode reportar-se a uma simples previsão do prejuízo resultante do ato, nada se fazendo para o evitar, isto é, mesmo assim pratica-se o ato que se tem como potencialmente lesante”[15].

Afirmada que seja a litigância de má-fé, sujeita-se a parte à condenação em multa bem como ao pagamento de indemnização à parte contrária, se tiver sido pedida. “A indemnização, se tiver sido pedida, será arbitrada por aplicação de um prudente arbítrio, assente num critério de razoabilidade que deve ter em consideração, sobretudo, a natureza e a complexidade da causa, bem como a dimensão do comportamento processual indevido”[16].

Ora, a recorrida sustenta que a recorrente incorreu em litigância de má-fé por ter interposto recurso com o objetivo de retardar o prosseguimento da causa principal, para “emperrar a sua marcha”[17].

Tal efeito, no entanto, não se verifica.

Nos termos do disposto no art.º 276.º n.º 1 al. a) do CPC, a suspensão da instância na decorrência do falecimento de uma parte cessa quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida.

Conforme nos ensina Alberto dos Reis[18], a interpretação de que a suspensão só termina com o trânsito em julgado da sentença da habilitação é contrária à letra da lei. Ainda que assim não se entenda, cabe notar que tendo a apelação daquela decisão efeito meramente devolutivo (v. art.º 647.º do CPC)[19], os efeitos da habilitação na causa principal produzem-se independentemente da interposição de recurso sobre a sentença de habilitação[20].

Na medida em que a interposição do presente recurso não pode constituir forma de entorpecer o andamento da causa principal, não há lugar a sancionamento da conduta processual da recorrente.

Improcedendo integralmente o presente recurso, as custas atinentes ao mesmo recaem sobre a recorrente – art.º 527.º n.º 1 do CPC.

Improcedendo o incidente da litigância de má-fé, as custas atinentes ao mesmo recaem sobre a recorrida, que o suscitou[21] – art.º 527.º n.º 1 do CPC.


IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela improcedência do recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Decide-se pela improcedência do incidente da litigância de má-fé.

Custas do incidente pela recorrente.

Évora, 6 de outubro de 2016
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira (dispensei os vistos)
Mário António Mendes Serrano (dispensei os vistos)

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[1] Do Livro II do CPC vigente.
[2] Lei n.º 61/2013, de 26 de agosto.
[3] Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. 2.º, 1970, p. 179.
[4] Cfr. Lopes Cardoso, Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, p. 303.
[5] Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2.ª edição, p. 209.
[6] Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1980, p. 573.
[7] Salvador da Costa, ob. cit., p. 212.
[8] Cfr. Lopes Cardoso, ob. cit., p. 298.
[9] Ac. TRC de 24/05/2011 e TRP de 17/12/2012, in www.dgsi.pt.
[10] Ac. TRP de 17/12/2012, in www.dgsi.pt.
[11] V. segmento decisório da sentença recorrida.
[12] Ac. TRP de 10/10/2000, CJ 2000, T IV, p. 203.
[13] V. Conclusão IX das alegações de recurso.
[14] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, Coimbra, 2001, pág. 195.
[15] Ac. STJ de 06/01/2000, www.dgsi.pt.
[16] Ac. STJ de 30/09/2004, www.dgsi.pt.
[17] V. fls. 158.
[18] Comentário da CPC Vol. 3.º, 1946, p. 305 e 306.
[19] Como, aliás, foi fixado na 1.ª instância – v. fls. 169.
[20] Motivo pelo qual se ordenou a imediata remessa à 1.ª instância do processo de inventário e do processo especial de prestação de contas que, sem fundamento, acompanharam o presente processo à 2.ª instância – v. fls. 186.
[21] V. Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, I Vol. 1998, p. 337 e 338.