Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
717/13.0PBFAR.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
COMUNICAÇÃO
Data do Acordão: 10/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: PROVIDOS
Sumário:
I. Acusado arguido da prática de crime de violência doméstica, se em julgamento se provarem antes factos integrantes de um dolo de injúria e, em função da alteração, se concluir pela realização de crime particular, inexistindo assistente e acusação particular deve o julgador proceder à comunicação prevista no art. 359º do CPP, mas sem auscultar os sujeitos processuais sobre o acordo na continuação do julgamento pelos novos factos.

II. A hipotética aquiescência da defesa na continuação do julgamento pelos novos factos, que integram crime de natureza particular, não legitima o tribunal a conhecer de mérito, mas a comunicação da alteração dos factos ao Ministério Público valerá como denúncia para que ele proceda pelos novos factos dando, oportunamente, cumprimento ao art. 285º, nº 1 do CPP. [1]
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1.No Processo nº 717/13.0PBFAR do 2º juízo criminal do Tribunal Judicial de Faro foi proferida sentença em que se decidiu absolver o arguido A, do crime de violência doméstica do artigo 152.º, n.º1, als. a) e c) do Código Penal, antes o condenando como autor de um crime de injúria do artigo 181º do Código Penal na pena de 1 (um) mês de prisão suspensa na execução por um ano.

Inconformado com o decidido, recorreu o Ministério Público, concluindo:

“A) Face à absolvição do arguido pela prática do crime de violência doméstica, e consequente autonomização do crime de injúria, o Tribunal recorrido não poderia condenar o arguido pela prática do aludido crime de injúria, atenta a não constituição da ofendida como assistente e ausência de acusação particular.

B) Com efeito, nos crimes particulares para que o Ministério Público possa exercer a acção penal é mister que o titular do direito de acusação particular se queixe, se constitua como assistente e deduza a sua acusação – vd. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo I, p. 261.

C) Assumindo a acusação particular a veste de autêntica condição de prosseguibilidade, cuja falta implica sempre a extinção do procedimento criminal – neste sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, p. 120 e Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1997, págs. 242 e seguintes.

D) Estipulando o artigo 50.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, “quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular”.

E) Trata-se, assim, de um pressuposto processual que condiciona a legitimidade do Ministério Público para também nessa parte acusar, e cuja falta dita, nessa parte, a não valia da relação processual.

F) E, como tal cognoscível oficiosamente e a todo o tempo. É uma questão prévia que condiciona o conhecimento de mérito já que a falta dum pressuposto processual dá sempre lugar a uma decisão de cariz meramente processual.

G) Daí que, à luz do direito vigente e não encontrando a situação versada nos autos expressa consagração, o tribunal deve abster-se de se pronunciar de mérito sobre um crime de injúria, por falta de acusação particular, apesar da respetiva factualidade estar integrada na acusação pública por violência doméstica e constar dos factos provados.

H) Ora, carecendo o Ministério Público de legitimidade para acusar quanto a factos autonomamente integrados num crime de injúria, não podia o Tribunal a quo condenar o arguido pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, do Código Penal, por falta de acusação particular. (neste sentido Acórdão da Relação de Évora de 28-01-2014 in www.dgsi.pt).

I) Foram assim violadas as normas contidas nos artigos 181.º e 188.º do Código Penal e 50.º, n.º 1 do Código do Processo Penal.

J) E, em suma, devendo a douta sentença ser revogada e substituída por outra que absolva o arguido da prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, pelo qual foi condenado.”

O arguido recorreu também, concluindo por seu turno:

“A) Vem o presente recurso interposto da douta sentença, na qual o arguido A., foi absolvido da prática do crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152.º, n.º1, alíneas a) e c) do C.P., de que se encontrava acusado, sendo, porém, condenado na prática do crime de injúria, p. p. pelo artigo 181.º do C.P., na pena de 1 (um) mês de prisão, suspensa pelo período de um ano, acrescido do pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça criminal em 2 UCs, e demais encargos legais.

B) Face a absolvição do arguido pela prática do crime de violência doméstica, e consequente autonomização do crime de injúria, que é de natureza particular, o tribunal “a quo” não poderia condenar o arguido pela prática do crime de injúria, tendo em conta a ausência de pressupostos processuais essenciais ao crime de natureza particular, designadamente, a constituição de assistente e a acusação particular por parte da ofendida.

C) O crime de injúria está previsto no Código Penal, no artigo 181.º, no Livro II, Título I, no Capítulo VI.

D) Para os crimes previstos no capítulo supra referido, o procedimento criminal depende de acusação particular, nos termos do disposto no artigo 188.º do mesmo ordenamento.

E) Nos termos do n.º 4 do artigo 246.º do CPP., tratando-se de crime cujo procedimento depende de acusação particular é obrigatório a constituição de assistente do denunciante.

F) Nos termos do artigo 50.º, n.º 1, também do CPP, “Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistente e deduzam acusação particular.”

G) Quanto a alteração substancial dos factos, decorre do disposto no n.º 3 do artigo 359.º do CPP, que os factos alegados pela defesa que alterem substancialmente a acusação não são livremente conhecidos pelo tribunal, exigindo para o efeito o acordo do arguido, do Ministério Publico e do assistente.

H) É evidente que o legislador, na redacção do n.º 3 do artigo 359.º, levou em consideração as situações em que a figura do assistente é imprescindível, nomeadamente, nos crimes de natureza particular.

I)Não havendo assistente constituído no processo, embora seja imprescindível a existência deste, pela natureza particular do crime, não foi possível obter a concordância do mesmo para a continuação do julgamento, restando prejudicado a alteração substancial dos factos descritos na acusação e a alteração da qualificação jurídica, de um crime de natureza pública (violência doméstica) para um crime de natureza particular (injúria), consequentemente, impossibilitando a continuação do julgamento.

J) O tribunal “a quo” em carácter preliminar, no seguimento da absolvição do arguido, do crime de que vinha acusado, deveria ter questionado da valia duma acusação pública não precedida de uma acusação particular, no segmento da alteração substancial dos factos, integrando a conduta do arguido no crime, autónomo, de injúria, uma vez que no crimes de natureza particular, para que o Ministério Público possa exercer a acção penal, é necessário que o titular do direito de acusação particular se queixe, se constitua assistente e deduza a sua acusação particular, pois só partir daí, o Ministério Público terá legitimidade para prosseguir na acusação e só assim, o tribunal terá jurisdição para dirimir o conflito.

K) Para além de o tribunal “a quo” ter decidido mal quanto à condenação do arguido, ora recorrente, no crime de injúria, sem que para o efeito, tivesse havido a constituição de assistente e a acusação particular, por parte da ofendida, com a devida vénia, o tribunal “a quo”, também decidiu mal quanto à determinação da natureza e da medida da pena aplicada, pois a mesma é excessiva e extrapola as determinações legais contidas nos artigos 40.º, 43.º, n.º 1, 70.º e 71.º, ambos do Código Penal.

L) Ao crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal, o legislador determinou uma punição com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.

M) Da motivação da decisão quanto à matéria de facto, melhor identificada no articulado 3 do presente recurso, constata-se que o arguido, utilizou-se por duas vezes de uma expressão injuriosa para apelidar a sua ex-companheira, no segmento de desentendimentos, motivados pelo facto de a ex-companheira o ter afastado da sua filha, dificultando e impedindo que o mesmo a visitasse, o que o deixava bastante revoltado, levando a que o mesmo desabafasse por intermédio das trocas de mensagens.

N) Toda a factualidade supra referenciada e constante da douta sentença, da qual se recorre, evidencia que a fixação da pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução é excessiva e extrapola a sua finalidade.

O) Nos termos do n.º 2 do artigo 40.º do Código Penal, “ em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

P) Ora, dos factos provados e da motivação da decisão constantes da douta sentença, constata-se que a aplicação de uma pena de multa ao arguido se mostra suficientemente capaz de atender as necessidades de prevenção geral e especial.”

Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta pronunciou-se no sentido da procedência dos recursos.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. O arguido e B., viveram em condições análogas às dos cônjuges, entre Agosto de 2008 e o início do ano de 2011, tendo dessa relação nascido, em Fevereiro de 2009, uma filha.

2. Todavia, apesar da separação, entre os dias 1/07/2013 e 24/07/2013, o arguido enviou diversas mensagens escritas para o telemóvel da sua ex-companheira B. e a ela dirigidas.

3. Designadamente:
- No dia 01/07/2013, pelas 13:42h: “cuanto mais guzares comigo mais a tua vida anda paara tras não esquesax disse”

- Nesse mesmo dia, pelas 14:00h: “So um homem que não consegues meter os dedos nus olhos e ise um dia vais arependerte i a tarde tude acaba cuando samos apanhados”;

- Também nesse dia, pelas 14:10h: “E fudide es mais velha do que eu e não me enganas e so mais esperto que to não e querida”;

- Ainda nesse dia, pelas 15:40h: “Faz como Kizeres amanha e para tares comigo”;

- No dia 5/07/2013, pelas 10:36h: “Ades pagar o mal que fazes o teu dia hade xegar triste monstro”;

- No dia 6/07/2013, pelas 18:31h: “ se já fujiste já não vo ai keriate apanhar mas falhei”;

- No dia 8/07/2013, pelas 13:43h: “Tas na casa dele vote apanhar um dia já falto mais”;

- Nesse mesmo dia, pelas 13:50h: “Tanto Brincas que te vais fuder”,

- Ainda nesse dia, pelas 17:49h: “hades pagar o que tas a fazer escreve tome a cagar”;

- No dia 10/07/2013, pelas 10:42h: “Vai já fuder com ele puta tas fudida grande puta”;

- Nesse mesmo dia, pelas 11:01h: “Vote apanhar puta podes ire a polisia agora e diferente puta”;

- No dia 18/07/2013, pelas 9:42h: “Eu já te apanhn”; Ades pagar o mal que fazes o teu dia hade xegar triste monstro”

- No dia 22/07/2013, pelas 13:41h: “Ades pensar que so otario para cuande morer”;

- No dia 23/07/2013, pelas 22:39h: “Agora vais ver que se vai dar mal”;

- Nesse mesmo dia, em hora não concretamente apurada: “Desta ves vai a televisão não esquesas não vo preso porque desta não to sazinho”

- No dia 24/07/2013, pelas 12:26h: “Vai po caralho mete já na polisia”;

- Nesse mesmo dia pelas 15:55h: “Ades ficar sepriendida”.

4 .Com as mensagens enviadas no dia 10 de Julho de 2013, pelas 10h42 e pelas 11h01, o arguido quis ofender a sua ex-companheira, B, na sua honra e consideração.

5. O arguido actuou de forma livre, consciente e deliberada, com o perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei, o que não o impediu de concretizar os seus intentos.

6. O arguido A. é oriundo de um agregado familiar numeroso (fratria de seis elementos), com um estrato sócio-económico bastante desfavorecido e cuja dinâmica foi caracterizada como disfuncional na sequência do alcoolismo da figura paterna que protagonizava, regularmente, situações de maus tratos verbais e/ou físicos contra o cônjuge e filhos.

7. Com uma frequência escolar pautada por dificuldades de aprendizagem, registou vários episódios reprovativos, tendo concluído o 4º ano de escolaridade, com cerca de catorze anos de idade, sem contudo, dominar a competência da escrita.

8. Nesse interim, o arguido dedicava-se à apanha de marisco, por forma a contribuir para a economia doméstica, tendo, desde então, trabalhado como mariscador e/ou pescador.

9. Durante a adolescência, registou um processo de dependência de substâncias estupefacientes, comportamento aditivo que manteve ao longo de cerca de 12 anos – facto que esteve na génese de episódios de expulsão domiciliária por parte do pai - usufruindo do apoio psico-afectivo da mãe, principalmente após a separação marital dos pais, tendo, nesse contexto, recorrido ao apoio da Equipa Técnica Especializada de Tratamento (ETET) de Olhão, efectuando, com sucesso, um tratamento de desintoxicação, em regime de internamento.

10. Posteriormente desenvolveu hábitos de consumo de bebidas alcoólicas que se intensificam quando face a situações de adversidade, sendo, nesse contexto que começou a registar comportamentos de agressividade, aparentemente restritos ao núcleo familiar, de origem ou constituída.

11. Há cerca de dez anos, vivenciou uma relação marital, mantendo-se integrado no agregado da mãe.

12. Decorrido um ano, a então companheira abandonou o domicílio, acompanhada da filha de ambos, presentemente com 9 anos de idade.

13. Aquando da referida separação, o arguido entrou em depressão, e manifestou ideias suicidas, que determinou o recurso a intervenção médica por iniciativa da família, sem que se tenha verificado um acompanhamento da situação por recusa do próprio.

14. Há cerca de seis anos A. encetou a relação marital com B., da qual resultou o nascimento de uma descendente, presentemente com 5 anos.

15. A união pautou-se desde o seu início por situações de conflito e tensão.

16. Na sequência do diagnóstico de problemas renais graves na filha, registou-se uma reaproximação entre o arguido e B., situação que se inflectiu negativamente com o recorrente consumo de bebidas alcoólicas.

17. Há cerca de três anos A. encetou a relação marital com a actual companheira, na altura com 17 anos de idade, tendo-se verificado durante alguns períodos de tempo uma dupla relação conjugal, aparentemente assumida por ambas.

18. Da actual relação regista-se o nascimento de uma descendente presentemente com seis meses de idade.

19. No âmbito da pena suspensa com regime de prova a que foi condenado no processo n.º ----/11.3TAFAR, o arguido retomou o acompanhamento na ETET de Olhão, tendo-lhe em Janeiro de 2013 sido atestado medicamente a ausência de problemas relacionados com o consumo de álcool.

20. À data dos factos subjacentes ao processo em causa, o arguido residia com C, que se encontrava no período de gestação, em casa arrendada perspectivada como detentora de normativas condições de habitabilidade.

21. Ao nível económico-laboral verificava-se alguma instabilidade dado o não desenvolvimento de uma actividade regular por parte do arguido, enquanto mariscador, subsistindo o agregado das receitas auferidas pela companheira como empregada de balcão.

22. Na actualidade o arguido mantém a residência com C. e a filha de ambos, com quem denota manter uma relação de extrema proximidade afectiva.

23. Em termos económicos conquanto seja referenciada a necessidade de recurso à contenção e priorização de despesas, face à situação de desemprego da companheira, A. tem mantido uma ocupação laboral contínua, como pescador, auferindo cerca de 500€/mês o que lhe tem vindo a permitir, além de suportar as despesas do quotidiano do agregado, a compra de um barco que utiliza para o exercício da sua actividade profissional.

24. O arguido revela na actualidade maior acalmia comportamental e organização pessoal e não se encontra conotado com o exteriorizar de condutas agressivas e de desafio para com pares e/ou figuras de autoridade.

25. Não obstante, o arguido revela ainda alguma impulsividade/reactividade e um temperamento caracterizado por uma hipersensibilidade à critica e/ou às contrariedades, alturas em que emergem as suas lacunas ao nível da capacidade de auto-controlo.

26. O arguido revela dificuldades em elaborar uma análise crítica dos factos subjacentes ao presente processo, centrando as causas dos mesmos em factores externos, motivo pelo qual o envolvimento no presente processo encontra-se a ser vivenciado pelo arguido com alguns sentimentos de revolta.

27. O arguido está inscrito no curso de Marinheiro no Sport ..., entidade formadora de navegadores de recreio.

28. Por sentença de 16 de Fevereiro de 2009, transitada em julgado a 18 de Março de 2009, proferida no âmbito do Processo Comum Singular n.º ----/06.7 PBFAR, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro, foi o arguido condenado pela prática em 11 de Novembro de 2006, de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 4,00, a qual já foi declarada extinta pelo respectivo pagamento.

29. Por sentença de 9 de Fevereiro de 2012, transitada em julgado a 7 de Agosto de 2013, proferida no âmbito do Processo Comum Singular n.º ----/11.8 TAFAR, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro, foi o arguido condenado pela prática em 2011, de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 4 meses de prisão, em que foi vítima B.

30. Por acórdão de 17 de Maio de 2010, transitado em julgado a 16 de Agosto de 2010, proferido no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º ---/09.0 PBFAR, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro, foi o arguido condenado pela prática em 3 de Maio de 2009 e 4 de Dezembro de 2009, de um crime de violência doméstica, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de furto qualificado, respectivamente, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a condição de o arguido se sujeitar a tratamento ao alcoolismo e 220 dias de multa à taxa diária de € 6,00.

31. Por acórdão de 27 de Junho de 2012, transitado em julgado a 12 de Julho de 2012, proferido no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º ---/11.3 TAFAR, foi o arguido condenado pela prática em 2011, de um crime de violência doméstica, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova, em que foi vítima B.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), a questão a apreciar é de saber se, inexistindo acusação particular e assistente constituído no processo, na sequência da absolvição do arguido de um crime de violência doméstica, poderia este ter sido condenado como autor de um crime de injúria.

Parte dos factos imputados na acusação vieram a ser considerados como não provados e, no reverso, foram aditados outros factos (provados) relativos a um “dolo de injúria”.

Esta alteração de factos encontra-se devidamente tratada na sentença como “substancial” (já que foram aditados factos novos e simultaneamente alterada a qualificação jurídica).Foi dado cumprimento ao art. 359º do Código de Processo Penal e obtido o acordo do Ministério Público e do arguido na continuação do processo pelos novos factos.

Assim, o tipo de crime de violência doméstica (do art.º 152.º, n.ºs 1, al. a) e c)) imputado na acusação deu lugar ao crime injúria (do art. 188.º, n.º 1, todos do Código Penal).Relativamente a este último, considerou-se, a dado passo, na sentença:

“É conhecida deste tribunal a discussão que se vêm travando na jurisprudência sobre os crimes de violência doméstica e sobre as consequências decorrentes das alterações da matéria de facto ou da qualificação jurídica decorrente da prova que é produzida em audiência de julgamento.

É conhecida igualmente a existência de jurisprudência no sentido de que a falta de acusação particular e a impossibilidade de suprir tal falta em audiência de julgamento impede o prosseguimento do procedimento criminal pelo crime de injúria (neste sentido, veja-se o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28 de Janeiro de 2014, publicado em texto integral no site www.dgsi.pt).

Todavia, tem vindo a ser entendimento deste tribunal sobre esta matéria caso exista alteração da matéria de facto constante da acusação, designadamente, como sucede com frequência, quanto ao conhecimento e vontade do arguido, visto que se dão provados factos distintos dos que constavam da acusação e que esses factos, porque consubstanciam o elemento subjectivo de um crime, sem o qual o crime não se verifica, e permitem imputar ao arguido um crime diverso, ainda que menos grave, se deve proceder à comunicação prevista no artigo 359.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, exigindo-se assim, que o arguido autorize o julgamento pelo conjunto dos novos factos apurados.

Deste modo, caso o arguido autorize, nada obsta ao tribunal que conheça da totalidade dos novos factos, constituam eles crimes de natureza pública, semi-pública ou particular, excepto quando dos autos resulte que a/o ofendido manifestou de forma inequívoca que não pretendia procedimento criminal. Isto porque, actualmente a generalidade das situações são tipificadas como crimes de violência doméstica e os inquéritos tramitados como crimes de natureza pública, não se exigindo a formalização da queixa, não se exigindo a constituição de assistente e não sendo dada a oportunidade de deduzir acusação particular, ou seja, chegados a este ponto, dizer na sentença que não se conhece do crime por falta de tais pressupostos é demasiado penalizador para a vitima que o não fez, não porque não quis mas porque não lhe foi dada a oportunidade.

Assim, como decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29 de Maio de 2012, publicado em texto integral no site www.dgsi.pt a propósito de um processo deste juízo, nestes casos, a solução intermédia é a de cumprir o disposto no artigo 359.º do Código de Processo Penal e se o arguido o consentir, o tribunal fica legitimado para conhecer da nova matéria de facto, independentemente da natureza do crime que a mesma permita integrar.

Neste sentido, também, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de Abril de 2012, disponível em texto integral no site www.dgsi.pt.

No caso, tendo havido alteração da matéria de facto constante da acusação, foi dado cumprimento ao disposto no artigo 359.º do Código de Processo Penal, tendo o arguido autorizado o julgamento pelos novos factos, pelo que, no seguimento do entendimento perfilhado, não obstante a natureza particular deste crime o tribunal poderá conhecer do crime de injúria.”

Para fundamentar a sua posição, elege-se na sentença o acórdão do TRP de 11-04-2012 (Relator: Melo Lima).

Acontece que este acórdão, com todo o respeito, vem desenvolver a posição contrária. Na verdade, pronuncia-se antes pela ilegitimidade do Ministério Público para prosseguir na acção penal relativamente ao crime particular. De acordo com o próprio sumário, “a aquiescência do arguido à alteração da qualificação jurídica (do crime de Difamação para o crime de Ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva), comunicada em audiência de julgamento, legitima o prosseguimento do processo para conhecimento da factualidade descrita sem prejuízo de o tribunal poder vir a declarar a insubsistência da pronúncia, por ilegitimidade do MºPº, caso resulte provada a prática do crime Difamação e não tenha havido, como não houve, acusação particular.”

Simplificando (já que o caso ali se revestiu de alguma complexidade processual que não importa para aqui), do que se tratava era de sentença que conhecia de factos abstractamente enquadráveis em dois tipos de crime: um deles revestia natureza pública e o outro natureza particular.

Quanto ao primeiro tipo de crime, de natureza pública, considerou-se que “a aquiescência do arguido à alteração da qualificação jurídica comunicada em audiência de julgamento, legitima o prosseguimento do processo para conhecimento da factualidade descrita”.

Mas já quanto ao segundo tipo de crime, o de natureza particular, se decidiu que o tribunal pode declarar “a insubsistência da pronúncia, por ilegitimidade do Ministério Público, caso resulte provada a prática do crime difamação e não tenha havido, como não houve, acusação particular”.

A situação ali em apreciação configurou, em julgamento, uma alteração substancial de factos, tendo o tribunal conhecido de factos novos que importaram a subsunção em tipo de crime diverso, na verificação da previsão do art. 359º do Código de Processo Penal e condenado por esse crime diverso, que revestia ali natureza pública.

Assim, o accionamento do art. 359º viabilizou o conhecimento e condenação por crime de natureza pública (e, não, por crime particular, como sucede no caso sub judice), o que veio efectivamente a suceder.

Assim, o acórdão citado não serve a posição seguida na sentença. Opõe-se-lhe até.

O acórdão do TRP ressalva expressamente a possibilidade/necessidade de declarar a ilegitimidade do Ministério Público, caso se houvesse apenas provado factos integrantes de crime de natureza particular.

Mas para que dúvidas não restem sobre o sentido daquela decisão, passa a transcrever-se as partes que mais relevam aqui:

“2.2.2 Exceptio da ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal (…)

xii Entretanto, no decurso da audiência, na sessão de 2 de Maio de 2011, a Exma. Juiz proferiu o seguinte despacho: «Inquiridas todas as testemunhas arroladas e convolada a factualidade constante do despacho de pronúncia, assemelhasse-me que os factos imputados ao arguido são susceptíveis de, em abstrato, integrar, ou poder integrar, a prática de um crime previsto no 187 do CP - ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, tal, integrar, uma alteração na qualificação jurídica dos factos descritos na pronúncia pelo que ao abrigo do disposto no art.º 358, nº 1 e nº 3, do CPP, se comunica tal alteração do MP e ao arguido» Reza em Ata, a propósito do mesmo, que “Concedida a palavra ao MP e ao Ilustre Mandatário do arguido, os mesmos declararam nada ter a requerer”

xiii Chegado o dia designado para a leitura da sentença, a Exma Juiz proferiu nova comunicação: «Na sequência da alteração comunicada na última sessão da audiência de julgamento, constata-se que foram apurados ainda factos que não constam da acusação e são eles: E ao actuar conforme descrito em supra, agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que com a sua conduta, atingia a credibilidade, prestigio, e a confiança devidos à Câmara Município/ de …, enquanto organismo que exerce a autoridade pública, o que representou e logrou conseguir, bem sabendo que tais factos não correspondiam à verdade. Ora, na verdade este facto constitui uma alteração substancial dos factos descritos na pronúncia, o que se comunica ao arguido e ao Mº Pº para os fins do disposto no arº 359º/2, do CPP.»

xiv Consta da Acta que «Dada a palavra ao Ilustre Mandatário do arguido pelo mesmo foi dito que não se opõe mas requer o prazo de 10 dias para apresentar defesa. Dada a palavra ao Digno Magistrado do Mº Pº pelo mesmo foi dito nada ter a opor. (…) Nesta conformidade, em face do assentimento do arguido, o Tribunal ficou legitimado a conhecer de meritis quanto ao crime enunciado na nova qualificação jurídico-penal emprestada em audiência, como, de todo o modo, não lhe ficou vedado decidir quanto à insubsistência da pronúncia por ilegitimidade do MºPº, vindo a resultar da prova a prática de um crime de natureza particular. Segue-se no que a este último particular diz respeito o ensinamento de FIGUEIREDO DIAS, quando perante a questão de saber “se na denúncia e na acusação particular deparamos com exigências do direito penal substantivo ou antes com verdadeiros pressupostos processuais”, considerou que “A circunstância de tais requisitos, pela estritíssima e necessária relação que possuem com os diversos tipos de crime, encontrarem assento no Código Penal - ….. – não deve obstar a que se veja neles autênticos pressupostos processuais (….).” “Nesta medida estamos perante limitações (nos crimes semi-públicos, em que a denúncia não substitui a acusação pública, mas tem necessariamente de a preceder) e mesmo perante autênticas excepções (nos crimes particulares em sentido estrito) ao princípio da promoção oficiosa do processo penal.” Destarte, a dedução da acusação particular – tal como a queixa – consubstancia um verdadeiro pressuposto processual. Pressuposto processual que é dizer também, condição de procedimento. [Artigo 50º/1 CPP “…é necessário que essas pessoas …deduzam acusação particular”]

Pressuposto, todavia, cujo “conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções politico-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efectivação de punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser”. “O conteúdo de tal pressuposto é politico-criminalmente cunhado a partir da teoria da consequência jurídica do crime”. Não se olvide que é em atenção ao significado criminal relativamente pequeno do crime – em particular quando ligado a uma alta medida de disponibilidade do bem jurídico respectivo – que o legislador exige que o procedimento criminal só tenha lugar se tal corresponder ao interesse e à vontade do ofendido, ora apresentando queixa, no caso de crime semi-público, ora deduzindo acusação, no caso de crime particular.

Neste sentido, somos tentados a dizer com Taipa de Carvalho: “Há que não esquecer que o próprio legislador se serve, por vezes, destas figuras como técnica (….) de descriminalização de facto”. “Fazendo depender o processo penal por certo crime de apresentação da queixa ou da acusação particular, o legislador sabe – e é isso que, muitas vezes, pretende – que, em muitos casos, tal vai equivaler a uma não penalização do agente, pois as estatísticas lhe indicam que muitos crimes, cujo procedimento depende de queixa, não chegam a ser julgados precisamente pela não apresentação da queixa”.

Nesta conformidade, o conteúdo do pressuposto-criminal-queixa quanto do pressuposto-criminal-acusação-particular contendem com o próprio direito substantivo na medida em que a sua teleologia e as intenções politico-criminais que lhes presidem têm ainda a ver com condições de efectivação da punição: sendo condição (positiva) do procedimento criminal, condicionam a responsabilidade penal. O exposto leva-nos a concluir - repetindo, embora - no sentido da correcção da decisão judicial de relegação para final, (pós-produção de prova), quer quanto à (falta de) legitimidade do Mº Pº para procedimento (o que é dizer, com referência à eventual prática do crime de natureza particular por que pronunciado o arguido), quer quanto á decisão de mérito relativamente à eventual prática do crime segundo a qualificação jurídico-penal introduzida em audiência de julgamento. Entretanto, uma vez que o Tribunal recorrido veio a decidir neste segundo sentido, aquela questão da ilegitimidade ficou prejudicada.”

Também agora se considera, e pelos mesmos fundamentos na parte transponível, que é de reconhecer, no caso presente, a ilegitimidade do Ministério Público para prosseguir na acção penal quanto ao crime de injúrias.

É certo que no acórdão do TRE de 29-05-2012 (Rel. Sénio Alves), se considerou que “I. Acusado o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, se em julgamento o juiz alterar os factos descritos na acusação (nomeadamente quanto ao elemento subjectivo da infracção) e, em função dessa alteração, concluir que os factos apurados integram a prática de um crime de injúrias, inexistindo constituição de assistente e dedução de acusação particular, deve o julgador proceder à comunicação prevista no art. 359º do CPP; II. Cumprido aquele dispositivo, uma de duas: ou o MºPº e o arguido estão de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, ou não. No primeiro caso, tal atitude do arguido legitima o tribunal a conhecer de mérito. No segundo, a comunicação da alteração ao MºPº vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos e, na altura própria, dê cumprimento ao estatuído no art. 285º, nº 1 do CPP”.

A solução encontrada no acórdão do TRE foi sensível à protecção dos direitos da vítima. Disse-se ali:

É-lhe, porventura, imputável o facto de não se ter constituído assistente nem deduzido acusação particular quando é certo que, face ao crime por cuja autoria o arguido foi acusado, não era necessário que o fizesse? E que falta lhe pode ser a esse propósito imputada se nunca foi notificada para o fazer?”.

Não se discute o bem fundado das interrogações. O processo deve assegurar a tutela efectiva do direito da vítima, a defesa dos seus interesses legalmente protegidos, à luz do art. 20º da Constituição da República Portuguesa.

Discorda-se apenas da solução encontrada.

Na verdade, o art. 50º do Código de Processo Penal preceitua que, quando o procedimento criminal depender de acusação particular, é necessária a apresentação de queixa, a constituição de assistente e a dedução de acusação particular.

O Ministério Público carece de legitimidade para acusar sozinho, para alterar substancialmente a acusação do assistente, ou para prosseguir no processo por crime particular sem assistente e sem acusação particular.

E à verificação do pressuposto processual ou à ausência dele é indiferente uma pretensa aceitação do acusado. O arguido não pode aceitar ser condenado por crime particular sem acusação particular porque isso não está na sua disponibilidade.

Cremos, assim, não ser possível considerar como ultrapassada (e sanada) a falta de legitimidade do Ministério Público para, nesta situação, prosseguir na acção penal por via do mero cumprimento do art. 359º do Código de Processo Penal e da aceitação do arguido para que o processo prossiga pelos novos factos (que integram crime particular e em que não houve nem constituição de assistente, nem acusação particular).

No entanto, a protecção dos direitos da vítima poderá sempre ser assegurada mediante a comunicação da alteração dos factos ao Ministério Público, que valerá então como denúncia para que ele proceda pelos novos factos e, na altura própria, dê cumprimento ao art. 285º, nº 1 do Código de Processo Penal. E, aí sim, o ofendido, querendo, poderá constituir-se assistente e acusar.

O que não pode é proferir-se condenação por crime de injúria num processo em que inexiste assistente e acusação particular.

Assim, se é certo que, como se considerou no acórdão TRE citado, “acusado o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, se em julgamento o juiz alterar os factos descritos na acusação (nomeadamente quanto ao elemento subjectivo da infracção) e, em função dessa alteração, concluir que os factos apurados integram a prática de um crime de injúrias, inexistindo constituição de assistente e dedução de acusação particular, deve o julgador proceder à comunicação prevista no art. 359º do Código de Processo Penal”, não há no entanto, nestes casos, que auscultar o arguido sobre o seu eventual acordo pois este é concretamente inoperante.

A hipotética aquiescência do arguido não legitima o tribunal a conhecer de mérito, mas a comunicação da alteração dos factos ao Ministério Público valerá como denúncia para que ele proceda pelos novos factos e dê, então, cumprimento ao estatuído no art. 285º, nº 1 do Código de Processo Penal.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

Julgar procedentes os recursos, revogando-se a sentença na parte em que condenou o arguido como autor de um crime de injúrias do artigo 181º do Código Penal.

Sem custas.

Évora, 14.10.2014

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)

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[1] - Sumariado pela relatora