Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1660/23.0T8FAR.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: HABEAS CORPUS
REJEIÇÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
COMPETÊNCIA FUNCIONAL
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A petição de habeas corpus não se destina a sindicar outros fundamentos diversos dos plasmados no artigo 220.º, do CPP, já que a mesma é vocacionada para casos de abuso de poder e/ou de erro grosseiro.
II. Com relevo para o fundamento da presente providência, é de elevada importância atentar que a alínea c), do n.º 1, do artigo 220.º, do CPP, que define os casos em que a detenção é efetuada por entidade competente se destina apenas aos casos somente de incompetência material e já não funcional ou territorial, pois que só assim haverá claro abuso de poder. Esquadrinha-se que tal situação só ocorrerá se a entidade que expendeu a detenção não tiver estatuto legal que lhe atribua essa competência.
Nas palavras de Maia Costa in Código Processo Penal - Comentado, 2022, Almedina, 4.ª Edição Revista, pág.854, «A incompetência a que se refere a al. c) do nº 1 é a incompetência material, não a funcional ou territorial. Ou seja, haverá incompetência se a entidade que procedeu à detenção não tiver um estatuto legal que lhe permita proceder a essa detenção».
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Instrução Criminal ... - Juiz ..., no âmbito dos autos com o NUIPC 1660/23.... foi, em 24 de maio de 2023, proferido o seguinte despacho (transcrição):

“ O arguido AA veio apresentar providência de habeas corpus em virtude de detenção ilegal, nos termos do disposto no art. 220.º, do CPP.

Para o efeito, arroga que o arguido, enquanto militar da GNR, goza de todos os direitos, liberdades e garantias plasmados no Estatuto dos Militares da GNR e que foi preterido o art. 25.º de tal diploma legal, tendo a detenção do arguido por mandados emitidos fora de flagrante delito sido efetuada pela PSP.


*

Cumpre apreciar.

O artigo 220.º, do CPP alinhava que «1 - Os detidos à ordem de qualquer autoridade podem requerer ao juiz de instrução da área onde se encontrarem que ordene a sua imediata apresentação judicial, com algum dos seguintes fundamentos: a) Estar excedido o prazo para entrega ao poder judicial; b) Manter-se a detenção fora doa locais legalmente permitidos; c) Ter sido a detenção efectuada ou ordenada por entidade incompetente; d) Ser a detenção motivada por facto pelo qual a lei a não permite.».

O art. 25.º, do Estatuto dos Militares da GNR delineia que «1 - Fora de flagrante delito, a detenção de militares no ativo ou reserva na efetividade de serviço é requisitada aos seus superiores hierárquicos pelas autoridades judiciárias competentes, nos termos da legislação processual penal aplicável. 2 - O militar da Guarda detido mantém-se à ordem do Comando, até ser presente à autoridade judiciária competente. 3 - O cumprimento da prisão preventiva e das penas e medidas privativas de liberdade por militar da Guarda é assegurado em instalações próprias da Guarda ou das Forças Armadas. 4 - O disposto no número anterior não se aplica ao militar a quem, nos termos do artigo 98.º, tenha cessado definitivamente o vínculo com a Guarda, cujas penas privativas de liberdade podem ser cumpridas em estabelecimento prisional destinado a elementos das forças de segurança.».

Importa, aqui, destrinçar que a petição de habeas corpus não se destina a sindicar outros fundamentos diversos dos plasmados no art. 220.º, do CPP, já que a mesma é vocacionada para casos de abuso de poder e/ou de erro grosseiro.

Ora, e com relevo para o fundamento da presente providência, é de elevada importância atentar que a alínea c), do n.º 1, do 220.º, do CPP, que define os casos em que a detenção é efetuada por entidade competente se destina apenas aos casos somente de incompetência material e já não funcional ou territorial, pois que só assim haverá claro abuso de poder. Esquadrinha-se que tal situação só ocorrerá se a entidade que expendeu a detenção não tiver estatuto legal que lhe atribua essa competência.

Nas palavras de Maia Costa in Código Processo Penal - Comentado, 2022, Almedina, 4ª Edição Revista, pág.854, «A incompetência a que se refere a al. c) do nº 1 é a incompetência material, não a funcional ou territorial. Ou seja, haverá incompetência se a entidade que procedeu à detenção não tiver um estatuto legal que lhe permita proceder a essa detenção».

Denota-se, assim, que a providência de habeas corpus não engloba o argumento esgrimido pelo arguido.

Compulsado o processo n.º 1590/23...., que foi distribuído à signatária para primeiro interrogatório judicial de arguido detido logo após a entrada da presente providência, no âmbito do qual o arguido se encontra detido, constata-se que o mandado de detenção fora de flagrante delito foi emitido pelo Ministério Público fls. 46 daqueles autos, o qual percorre e respeita o disposto no art. 257.º, n.º 1, als. a), b) e c), do CPP, e que se encontra salvaguardado o prazo máximo delimitado no art. 254.º, do CPP.

De igual feita, a PSP é órgão de polícia criminal com competência material para cumprir mandados de detenção fora de flagrante delito emitidos pelo Ministério Público cf. art. 1.º, al. c), do CPP e art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto.

Acresce que de fls. 67 resulta que a questão em análise já se encontra regularizada, já que o arguido, por determinação do Digno Magistrado do Ministério Público, apesar de detido pela PSP, após 51 minutos foi entregue ao Tenente Coronel BB da GNR .... Tal resulta do facto de que o arguido foi detido no dia 22 de maio de 2023, pelas 23h29 fls. 41v, e entregue ao seu Superior Hierárquico no dia 23 de maio de 2023, pelas 00h20 fls. 67v.

Em face da fundamentação alinhavada, ao abrigo do disposto nos arts. 220.º e 221.º, do CPP, rejeita-se a providência de habeas corpus apresentada por manifestamente infundada, nos termos do disposto no art. 221.º, do CPP.


**

Custas pelo arguido, que se fixam em 6 UCs cf. art. 221.º, n.º 4, do CPP.

Notifique e d.n. “


*

Inconformado com a decisão o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da decisão que rejeitou a providência de habeas corpus do Arguido, por detenção ilegal fora de flagrante delito realizada no âmbito do processo n.º 1590/23...., que corre termos pela ... Secção do DIAP ..., condenando-o no pagamento de 6 UC’s, por “manifestamente infundado”, nos termos do disposto do artigo 221.º, n.º 4, do CPP.

2. O Arguido requereu a providência de habeas corpus no dia 23.05.2023, pelas 15h24m, em virtude de detenção ilegal, fora de flagrante delito, realizada no dia 22.05.2023, alegando, para tanto, a violação do disposto no artigo 25.º, n.º 1, do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (doravante “EMGNR”).

3. Mostra-se inequívoco que, enquanto militar da Guarda Nacional Republicana, o Arguido goza de todos os direitos, liberdades e garantias plasmados no referido Estatuto.

4. Resulta também suficientemente demonstrado nos autos que a detenção do Arguido, fora de flagrante delito, foi efetuada pela Polícia de Segurança Pública (cfr. fls.41 e seguintes do Processo n.º 1590/23....).

5. Inquestionável é ainda que a detenção do Arguido não foi precedida de requisição aos seus superiores hierárquicos, nem o Arguido ficou inicialmente detido à ordem do Comando, conforme legalmente se impunha, nos termos do artigo 25.º, n.º 2, do EMGNR.

6. Com efeito, o Arguido só foi colocado à ordem do Comando após o contacto dos seus superiores hierárquicos com o Ministério Público, que, nessa sequência, determinou a entrega do Arguido à GNR (cfr. fls. 67 do Processo n.º 1590/23....).

7. Acresce ainda que, no momento da detenção, não foi entregue ao Arguido o mandado de detenção, tendo-lhe apenas sido disponibilizada uma cópia do despacho que ordenou a emissão do mandado, em manifesta violação do disposto no artigo 258.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, sendo que aquele despacho excluía qualquer urgência, uma vez que ordenava o cumprimento dos mandados no prazo de 30 dias.

8. Não obstante, no dia 24.05.2023, o Juízo de Instrução Criminal ..., rejeitou a providência de habeas corpus, do que consegue depreender, por considerar que a mesma apenas tem lugar nos casos de incompetência material e que, no caso concreto, estaríamos perante uma incompetência meramente funcional.

9. A decisão recorrida, no entanto, limita-se a enquadrar juridicamente a questão da incompetência por apelo ao exercício das competências e atribuições dos órgãos de polícia criminal, olvidando que, apesar de tanto a PSP como a GNR terem competência para cumprir mandados de detenção, é também verdade que têm um quadro de competências perfeitamente delimitado, em função da natureza das atribuições que prosseguem.

10. É a própria lei que estabelece as competências de cada órgão administrativo, destinando-se o exercício dessas competências a prosseguir as atribuições das pessoas coletivas públicas em que se integram.

11. Conforme ensina Freitas do Amaral “existe incompetência em razão da matéria quando um órgão administrativo invade os poderes conferidos a outro órgão administrativo”.

12. Estabelecendo o artigo 25.º do EMGNR a competência material da própria GNR, no que respeita à detenção fora de flagrante delito de militares das suas forças, tornando a validade daquela dependente da requisição aos superiores hierárquicos, não pode a PSP imiscuir-se nesta competência própria da GNR, procedendo à detenção do Arguido sem cumprir com o previsto no dispositivo legal mencionado.

13. A opção tomada pelo legislador foi tomada a título definitivo, desde logo, porque a GNR vem definida como um “corpo especial de tropas”, cuja função primordial é a “defesa militar da República”, sendo as suas atribuições levadas a cabo mediante um esquema organizativo que é decalcado totalmente do que se verifica em relação aos militares das Forças Armadas.

14.Deste modo, tratando-se a sujeição dos militares da GNR a um regime disciplinar e penal especial que resulta de uma opção de uma delimitação da competência material, não se veem razões para se defender o “alargamento” dessas competências à PSP.

15 .Encontrando-se, por um lado, sujeitos a uma organização segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos, sendo os militares da GNR distribuídos por “Armas” e “Serviços”, bem como, organizados por unidades de comando, de instrução, de brigadas (unidades territoriais), brigada especial de trânsito, brigada especial fiscal, unidades de reserva e, por outro lado, abrangidos normas previstas no Regulamento de Disciplina Militar e também no Código de Justiça Militar, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, do EMGNR - ao contrário da PSP – é evidente que foi clara a intenção do legislador ao fixar um regime especial para militares da GNR no que à sua detenção fora de flagrante delito respeita.

16 .Atendendo ao elemento racional ou teleológico, isto é, ao fim ou objetivo que a norma visa realizar, qual foi a sua razão de ser, é inequívoco que se pretendeu delimitar a competência material da GNR, sendo esta definitiva na aplicação do regime especial a que os militares da GNR se encontram sujeitos.

17. Razão pela qual a atuação da PSP foi violadora dessa competência material, inexistindo qualquer fundamento jurídico, no caso concreto, que afaste a aplicação do artigo 25.º do EMGNR, verificando-se uma situação de abuso de poder.

18. In casu, o abuso de poder traduz-se no desrespeito pela competência material (e procedimental) estipulada no artigo 25.º do EMGNR – um, verdadeiro poder vinculado –, consubstanciada no exercício ilegítimo (e ilegal) dessa competência pela PSP, que agiu extrapolando os limites legais previstos.

19. Nem se poderá concluir noutro sentido, uma vez que seria ilógico a lei exigir uma determinada atuação por parte da GNR e de seguida admitir que essa competência fosse alargada à PSP.

20. A decisão recorrida que, aliás, peca pela escassez de fundamentação, confere legalidade à atuação da PSP, pese embora seja manifesto o extravasamento de autoridade e, como tal, a sua cominação pelo vício do abuso de poder, que consubstancia uma violação do princípio da legalidade da competência.

21. A decisão recorrida não logrou compreender que o elemento sistemático indicia que é de interesse público que a detenção de militares da GNR fora de flagrante delito requisitada aos seus superiores hierárquicos pelas autoridades judiciárias competentes.

22. Se devemos sempre presumir que o legislador consagrou na letra da Lei as soluções mais acertadas e que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, resta senão concluir que o legislador tendo pleno conhecimento de que, a par da GNR, existiriam outros órgãos de polícia criminal, mormente a PSP, com competência para cumprir mandados de detenção, vedou-lhes expressamente o exercício dessa competência na presença de militares da GNR.

23. A posterior entrega do Arguido à GNR, o seu interrogatório judicial e a sua libertação, após a aplicação das medidas de coação, não legalizam o período em que este se encontrou ilegalmente detido.

24. O Arguido estava, pois, ilegalmente detido quando foi apresentado para o primeiro interrogatório judicial, pelo que não se poderá considerar a providência de habeas corpus manifestamente infundada, a qual almejava precisamente a sua apresentação judicial.

25. Bem pelo contrário, resulta patente a violação dos diretos do Arguido legal e constitucionalmente garantidos, o qual se viu sujeito, enquanto militar da GNR, a uma detenção ilegal pelos agentes da PSP, os quais não podiam desconhecer que lhes compete, nos termos do seu Estatuto, “observar estritamente, e com a diligência devida, a tramitação, os prazos e os requisitos exigidos pela lei, sempre que procedam à detenção de alguém” (cfr. artigo 13.º, al. d), do EPPFPPSP).

26. Pelo exposto, deverá ser revogada a decisão proferida e substituída por outra que reconheça a ilegalidade da detenção, por incompetência material da PSP, por abuso de poder, em conformidade com o disposto nos artigos 220.º, n.º 1, al. c), do CPP e 31.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Sem prejuízo,

27. Conforme acima se evidenciou, o próprio Tribunal a quo reconheceu que não foi devidamente requisitada aos superiores hierárquicos do Arguido a sua detenção, tendo esta sido efetuada pela PSP, facto que foi rápida e imediatamente verificável pela Mma. Juiz de Instrução Criminal.

28. Como vimos, entendeu o Tribunal recorrido que estaria em causa uma mera incompetência funcional e, sem mais, rejeitou a petição de habeas corpus apresentada pelo Arguido, condenando-o no pagamento de 6 UC’s, por manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no artigo 221.º, n.º 4, do CPP.

29. Ora, resulta diretamente da letra da norma constante do artigo 221.º, n.º 4, do CPP, que a condenação do Arguido “ao pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC só poderá ter lugar “se o juiz recusar o requerimento por manifestamente infundado”.

30. A condenação em taxa de justiça pelo decaimento do habeas corpus e a condenação na soma prevista no artigo 221.º, n.º 4, no caso de pedido manifestamente infundado, visam propósitos diferentes: a primeira tributa o decaimento no ato processual a que o Arguido deu causa e a segunda castiga a má-fé ou negligência grosseira do pedido.

31. A Tabela III do Regulamento das Custas Processuais tributa com a taxa de justiça de 1 a 5 UC’s os casos de decaimento da providência de habeas corpus, à qual, sendo esse o caso, acrescerá o “castigo” previsto no artigo 221.º, n.º 4, do CPP, restrito obviamente aos casos de providências manifestamente infundadas.

32. Assim, a condenação prevista no n.º 4, do artigo 221.º, do CPP, tem exclusivamente como finalidade castigar quem, sabendo não ter fundamento para tal, requer a providência habeas corpus – o que não sucedia no caso vertente.

33. A decisão recorrida não fundamenta sequer em que medida se deveria considerar a presente providência como manifestamente infundada, limitandose a citar o artigo 221.º, 4, do CPP, sendo que a respetiva aplicação sempre dependeria da demonstração da má-fé ou negligência grosseira na apresentação do habeas corpus.

34. No momento da apresentação do requerimento da providência cautelar de habeas corpus, temos por verificado que: i) a detenção não foi requisitada aos superiores hierárquicos do Arguido, em violação do artigo 25.º, n.º 1, do EMGNR; ii) o Arguido ficou detido no posto da PSP, em violação do artigo 25.º, n.º 2, do ENGNR; iii) não foi entregue ao Arguido ou ao seu mandatário o mandado de detenção, em violação do disposto no artigo 258.º, n.º 3, do CPP; iv) a posterior entrega do Arguido à GNR deveu-se à iniciativa do Arguido e da própria GNR. Factos que fundamentam suficientemente a providência requerida.

35. A má fé ou a negligência grosseira exigem a verificação de uma atuação inaceitável ou inadmissível traduzida numa utilização indevida e sem critério de meios e expedientes para a prossecução e obtenção de fins processuais.

36. No fundo, a consideração de uma atuação processual manifestamente infundada exigiria uma intenção maliciosa ou uma negligência, de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da atuação dolosa, justifique um elevado grau de reprovação e idêntica reação punitiva por parte do Tribunal, assente num juízo de censura sobre um comportamento que se revela desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de Direito.

37. Em face da factualidade supra descrita, estava o Arguido e as suas mandatárias convictos de que a detenção era ilegal e que urgia requerer o habeas corpus para que fosse, o mais rapidamente possível, ordenada a sua apresentação judicial para fazer cessar a ilegalidade, a qual, ainda assim, só ocorreu 20 horas depois.

38. Decorre de tudo o exposto, que jamais se poderia considerar a providência habeas corpus como imbuída de má-fé ou negligência grosseira.

39. Em suma, carecendo a PSP da competência material necessária para proceder à detenção fora de flagrante delito do Arguido, requer-se, muito respeitosamente, a V. Exas. Senhores Desembargadores, se dignem a revogar a decisão ora recorrida, que deverá ser substituída por outra que declare ilegal a detenção e que, consequentemente, não o condene em qualquer pagamento nos termos do n.º 4 do artigo 221.º do CPP.

DA INSTRUÇÃO DO RECURSO

Para a boa decisão do presente recurso, requer-se a V. Exas. seja ordenada extração de certidão das pertinentes folhas do Processo n.º 1590/23...., designadamente, fls. 30 a fls. 67, auto de interrogatório de Arguido de fls.__, e despacho que determina a aplicação das medidas de coação ao Arguido de fls.__.

Nestes termos e nos melhores de Direto que V. Exas., Venerando Desembargadores, certamente suprirão, deverá o presente recurso proceder e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida,

Assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA!


*

O Ministério Público respondeu ao recurso interposto nos seguintes termos:

Quanto ao objecto do recurso:

Em rigor, o recorrente pretende que o Tribunal Superior revogue a decisão em crise e a substitua por outra que declare ilegal a detenção do arguido AA.

B. Exposição dos fundamentos que contrariam a posição do recorrente:

Antes de mais, cumpre referir que a petição de habeas corpus não se destina a sindicar outros fundamentos diversos dos plasmados no art. 220.º, do CPP, já que a mesma é vocacionada para casos de abuso de poder e/ou de erro grosseiro.

Depois, e tendo isso em mente, prevê o artigo 220.º do Código de Processo Penal que «1 - Os detidos à ordem de qualquer autoridade podem requerer ao juiz de instrução da área onde se encontrarem que ordene a sua imediata apresentação judicial, com algum dos seguintes fundamentos: a) Estar excedido o prazo para entrega ao poder judicial; b) Manter-se a detenção fora dos locais legalmente permitidos; c) Ter sido a detenção efectuada ou ordenada por entidade incompetente; d) Ser a detenção motivada por facto pelo qual a lei a não permite.».

Ora, não estando aqui em crise o prazo para entrega ao poder judicial do detido, a detenção se manter fora dos locais legalmente permitidos e/ou ser a mesma motivada por facto pelo qual a lei a não permite, resta a análise do pressuposto alinhavado na alínea c), ou seja, a detenção ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente.

Vejamos.

«O habeas corpus não é um processo de reparação dos direitos individuais ofendidos, nem de repressão das infracções cometidas por quem exerce o poder público, pois que uma e outra são realizadas pelos meios civis e penais ordinários. É antes um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade. Com a cessação da ilegalidade de ofensa fica realizado o fim próprio do habeas corpus. De outro modo, tratar-se-ia de simples duplicação dos meios legais de recurso» – neste sentido, vide Conselheiro M. Maia Gonçalves, 12.ª edição, p. 476.

Por isso, anota ainda aquele comentador que «a providência de habeas corpus se destina a dar remédio imediato a situações de detenção ilegal ou de prisão ilegal, e não a quaisquer outras irregularidades processuais.»

Já o Professor Paulo Pinto de Albuquerque refere, no Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convença Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª edição, p. 609, «nem a insuficiência de indícios da prática de crime nem os vícios do mandado de detenção da autoridade judiciária constituem fundamento do habeas corpus em virtude de detenção ilegal (por identidade de razão, acórdão do TC n.° 423/2003).»

Destarte, a incompetência a que se reporta a aludida alínea c) do artigo 220.º do Código de Processo Penal é a incompetência material, não a funcional ou territorial, ou seja, só haverá este tipo de incompetência se a entidade que procedeu à detenção não tiver estatuto legal que lhe permita ordená-la – neste sentido, vide Conselheiro Maia Costa, em Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição revista, p. 848.

No caso em apreço, a entidade ordenante da detenção foi o Ministério Público, o que fez através da emissão de mandados fora de flagrante delito, nos termos e para os efeitos dos artigos 257.º, n.º 1 als a) a c) e artigo 254.º ambos do Código de Processo Penal.

Qualquer órgão de polícia criminal tem competência funcional para cumprir mandados de detenção emanados pelo Ministério Público nos termos e para os efeitos dos artigos 1.º, alínea c) do Código de Processo Penal.

A Polícia de Segurança Pública tem competência material para cumprir tais mandados nos termos e para os efeitos do artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 49/2008 de 27.08.

Assim, foi o arguido/detido tempestivamente apresentado a primeiro Interrogatório Judicial para aplicação de medida de coacção diversa do TIR por se julgar indiciado da prática de crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º do Código Penal.

Não obstante, e apesar de detido pela Polícia de Segurança Pública, foi o arguido/detido entregue a Tenente Coronel da Guarda Nacional Republicana (de ...) cerca de 51 minutos depois da detenção e mesmo antes de apresentado (em tempo) a Juiz de Instrução, o que sucedeu (ainda) por determinação do Ministério Público.

Em abono da tese do despacho recorrido cita-se o Acórdão do STJ de 14.07.2011, Processo n.º 201/10.3GEBNV, relator Santos Carvalho, que, em suma, defende que:

I - Nos termos do artigo 24.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFA), actualmente previsto no Dec.-Lei n.º 236/99, de 25 de Junho, «Fora de flagrante delito, a detenção de militares no activo ou na efectividade de serviço deve ser requisitada aos seus superiores hierárquicos pelas autoridades judiciárias ou de polícia criminal competentes, nos termos da legislação processual penal aplicável» (n.º 1). «Os militares detidos ou presos preventivamente mantêm-se em prisão militar à ordem do tribunal ou autoridade competente, nos termos da legislação processual penal aplicável» (n.º 2).

II - No caso dos autos, embora já não esteja em consideração a detenção do requerente, ocorrida no dia 7 de Junho do corrente ano e sobre a qual, aliás, já se pronunciou o Juiz de Instrução Criminal competente, mas a actual situação de prisão preventiva, sempre se dirá que, em obediência à aludida norma legal, a detenção foi antecedida de requisição ao superior hierárquico do requerente.

III - Mas, ainda que a detenção padecesse de alguma irregularidade por má interpretação do disposto na referida norma do EMFA, não seriam inválidos os actos posteriores, nomeadamente, o despacho que ordenou a prisão preventiva do requerente, já que o mesmo proveio do juiz competente. Na verdade, tratava-se de uma detenção por forte suspeitas de participação num crime da alçada do tribunal penal comum (roubo em residência de particulares).

IV - Por fim, consta agora dos autos que, no dia 11 de Julho do corrente ano, o requerente foi transferido para um estabelecimento prisional militar, pelo que já foi sanada a irregularidade existente. Irregularidade essa que, contudo, nunca seria fundamento de habeas corpus.»

Destarte, a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal não violou qualquer norma legal, processual penal e/ou constitucional, quando rejeitou o Habeas Corpus, também manifestamente infundado para os efeitos pretendidos pelo requerente.

Pelo que ficou dito, não sofre o despacho recorrido qualquer gravame, devendo o recurso ser julgado totalmente improcedente, assim se fazendo JUSTIÇA.


*

No Tribunal da Relação a. Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido do não provimento do recurso.

*

Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, o arguido respondeu ao Parecer, reiterando, em síntese, o já alegado na motivação de recurso.

*

Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.

*

Cumpre decidir

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

No caso sub judice as questões suscitadas pelo recorrente e que, ora, cumpre apreciar, são:

- ilegalidade da detenção;

- não condenação em qualquer pagamento nos termos do n.º 4 do artigo 221.º do CPP.


*

Apreciando

Sendo o direito à liberdade um direito fundamental - art. 27.º, n.º 1, da CRP - e podendo a sua privação ocorrer apenas «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», nos casos elencados no n.º 3 do mesmo preceito, a providência de habeas corpus constitui um instrumento reativo dirigido ao abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal.

A providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excecional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente, com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: as primeiras previstas nas quatro alíneas do n.º 1 do art. 220.º do CPP e as segundas, nos casos extremos de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do n.º 2 do referido preceito.

O artigo 31º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, integrante do título II (Direitos, Liberdades e garantias) e capítulo I (Direitos, liberdades e garantias pessoais), determina que haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

A previsão e, precisão, da providência, como garantia constitucional, não exclui, porém, o seu carácter excecional, vocacionado para casos graves, anómalos, de privação de liberdade, de fundamento constitucionalmente delimitado.

O habeas corpus não conflitua com o direito ao recurso, pois que se trata de uma providência excecional que visa reagir, de modo imediato e urgente - com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação - contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, decorrente de abuso de poder concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual «grave, grosseiro e rapidamente verificável» integrando uma das hipóteses previstas no artigo 222º nº 2, do Código de Processo Penal.( cfr. Acs do STJ de 13-02-2008 e 12-12-2007, in www.dgsi.pt).

O n.º 2 do art. 222.º do CPP faz depender a procedência da petição de habeas corpus do facto da prisão,

- «a) ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

- b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

- c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial».

Invoca o recorrente que a detenção foi ilegal.

Vejamos

Como bem refere o Ministério Público na resposta ao recurso interposto “ (…) Destarte, a incompetência a que se reporta a aludida alínea c) do artigo 220.º do Código de Processo Penal é a incompetência material, não a funcional ou territorial, ou seja, só haverá este tipo de incompetência se a entidade que procedeu à detenção não tiver estatuto legal que lhe permita ordená-la – neste sentido, vide Conselheiro Maia Costa, em Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição revista, p. 848.

No caso em apreço, a entidade ordenante da detenção foi o Ministério Público, o que fez através da emissão de mandados fora de flagrante delito, nos termos e para os efeitos dos artigos 257.º, n.º 1 als a) a c) e artigo 254.º ambos do Código de Processo Penal.

Qualquer órgão de polícia criminal tem competência funcional para cumprir mandados de detenção emanados pelo Ministério Público nos termos e para os efeitos dos artigos 1.º, alínea c) do Código de Processo Penal.

A Polícia de Segurança Pública tem competência material para cumprir tais mandados nos termos e para os efeitos do artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 49/2008 de 27.08.

Assim, foi o arguido/detido tempestivamente apresentado a primeiro Interrogatório Judicial para aplicação de medida de coacção diversa do TIR por se julgar indiciado da prática de crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º do Código Penal.

Não obstante, e apesar de detido pela Polícia de Segurança Pública, foi o arguido/detido entregue a Tenente Coronel da Guarda Nacional Republicana (de ...) cerca de 51 minutos depois da detenção e mesmo antes de apresentado (em tempo) a Juiz de Instrução, o que sucedeu (ainda) por determinação do Ministério Público.

Em abono da tese do despacho recorrido cita-se o Acórdão do STJ de 14.07.2011, Processo n.º 201/10.3GEBNV, relator Santos Carvalho, que, em suma, defende que:

I - Nos termos do artigo 24.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFA), actualmente previsto no Dec.-Lei n.º 236/99, de 25 de Junho, «Fora de flagrante delito, a detenção de militares no activo ou na efectividade de serviço deve ser requisitada aos seus superiores hierárquicos pelas autoridades judiciárias ou de polícia criminal competentes, nos termos da legislação processual penal aplicável» (n.º 1). «Os militares detidos ou presos preventivamente mantêm-se em prisão militar à ordem do tribunal ou autoridade competente, nos termos da legislação processual penal aplicável» (n.º 2).

II - No caso dos autos, embora já não esteja em consideração a detenção do requerente, ocorrida no dia 7 de Junho do corrente ano e sobre a qual, aliás, já se pronunciou o Juiz de Instrução Criminal competente, mas a actual situação de prisão preventiva, sempre se dirá que, em obediência à aludida norma legal, a detenção foi antecedida de requisição ao superior hierárquico do requerente.

III - Mas, ainda que a detenção padecesse de alguma irregularidade por má interpretação do disposto na referida norma do EMFA, não seriam inválidos os actos posteriores, nomeadamente, o despacho que ordenou a prisão preventiva do requerente, já que o mesmo proveio do juiz competente. Na verdade, tratava-se de uma detenção por forte suspeitas de participação num crime da alçada do tribunal penal comum (roubo em residência de particulares).

IV - Por fim, consta agora dos autos que, no dia 11 de Julho do corrente ano, o requerente foi transferido para um estabelecimento prisional militar, pelo que já foi sanada a irregularidade existente. Irregularidade essa que, contudo, nunca seria fundamento de habeas corpus.»

Destarte, a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal não violou qualquer norma legal, processual penal e/ou constitucional, quando rejeitou o Habeas Corpus, também manifestamente infundado para os efeitos pretendidos pelo requerente.”

Não descortinamos quaisquer razões para divergirmos deste entendimento, pelo que sem outros considerandos por desnecessários, se julga o recurso não provido neste particular.

_

Pugna o arguido pela sua não condenação em qualquer pagamento nos termos do n.º 4 do artigo 221.º do CPP.

Vejamos

Dispõe o art.513º, nº1, do Código de Processo Penal que só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1º instância e decaimento total em qualquer recurso.

E dispõe o art.514º, nº1, do mesmo Código que salvo quando haja apoio judiciário, o arguido condenado é responsável pelo pagamento, a final, dos encargos a que a sua atividade houver dado lugar.

Ora, resulta diretamente da letra da norma constante do artigo 221.º, n.º 4, do CPP, que a condenação do Arguido ao pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC terá lugar se o juiz recusar o requerimento de habeas corpus por manifestamente infundado.

“A realização da justiça está sujeita, infelizmente, às mesmas contingências da produção de qualquer outro bem, material ou imaterial. Há um custo – que, não esqueçamos, é um custo social ¬– na produção da justiça concretizada em decisões judiciais.

Detendo o Estado o monopólio da aplicação da justiça, compete-lhe a distribuição desse custo, dentro de tabelas previamente fixadas, do modo, em cada caso, socialmente mais justo. Nisso não poderá deixar de se ter em conta o trabalho desenvolvido em concreto, o tempo e o número das pessoas ocupadas, a sua qualificação profissional, a qualidade e importância objetiva e subjetiva da proclamação ou reclamação de direitos ou seja a forma como tal afirmação sensibiliza o nosso próprio “sentimento de justiça”, consistente na necessidade subjetiva de ver reafirmado ou reposto o que é direito – ou de direito. De modo expresso ou insensível, tudo isto se reflete na fixação da taxa de justiça.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20/10/2008, in www.dgsi.jtrg.pt.

As custas, enquanto contrapartida da prestação de um serviço concreto pelo Estado deve ser proporcionada ao serviço prestado, nomeadamente à sua complexidade, onerosidade, especificidade e aos custos que acarreta.

E nesta relação de proporcionalidade deve perspetivar-se não só o valor do serviço efetivamente prestado, como também o dos meios que o Estado põe à disposição para a prestação desse mesmo serviço.

Ora, entendeu o Tribunal recorrido rejeitar a providência de habeas corpus apresentada pelo arguido, por manifestamente infundada, nos termos do disposto no art. 221.º, do CPP, condenando-o em custas que fixou em 6 UCs, invocando o disposto no art. 221.º, n.º 4, do CPP.

Assim, considerando o supra exposto quanto à proporcionalidade das custas ao serviço prestado e sendo certo que as decisões desfavoráveis ao arguido dão lugar ao pagamento das mesmas, que será definido, para além da situação económica do infrator, segundo uma ponderação perante a complexidade do processo, o montante aplicado no caso concreto, no mínimo legal, não é desadequado, antes está correta e ponderadamente fixado.


*

Decisão

Por todo o exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar não provido o recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.

- Condenar o recorrente no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.


*

Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 12 de setembro de 2023


Laura Goulart Maurício

J. F. Moreira das Neves

António Condesso