Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
36/21.8GCFAR.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: PROVA INDIRETA
IMPRESSÕES DIGITAIS
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Se os vestígios lofoscópicos do arguido foram recolhidos num objecto (gaveta da máquina registadora) retirado do estabelecimento comercial que foi alvo de um furto, desconhecendo-se qualquer outra circunstância que eventualmente justificasse o contacto do arguido com esse objecto, tal prova indirecta é bastante para se concluir ter sido o mesmo autor desse furto.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

RELATÓRIO

O arguido AA, entre outros, foi sujeito a julgamento no âmbito do processo 36/21.8GCFAR, no âmbito do qual foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo (na parte que interessa):

“Pelo exposto, decide-se:

(…)

k) Condenar o arguido AA pela prática, em co-autoria, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos art.ºs 203º, n.º1 e 204º, n.º2, al.e) do Código Penal, na pena de 3 anos e 4 meses de prisão;”

Inconformado com tal condenação, o arguido recorreu, tendo terminado a motivação e recurso com as seguintes conclusões:

“A. O arguido, AA, ora Recorrente, foi condenado pela prática, em co-autoria, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, al. e) do Código Penal, na pena de 3 anos e 4 meses de prisão, pelos factos descritos na matéria de facto dada como provada, relativa ao NUIPC 488/20.3GDPTM.

B. O Recorrente, com o devido respeito, não concorda com a referida decisão.

C. Da prova produzida, não restou provado que após o arguido BB se ter apropriado do veículo ligeiro de passageiros matrícula …, o Recorrente se tenha reunido com este e se dirigido para o estabelecimento comercial denominado “…”, sito na …, ….

D. Acresce ainda que, da decisão ora recorrida não resulta quais os factos que levaram o Tribunal a quo a concluir pela existência da possibilidade do referido encontro.

E. Pelo que tal encontro é apenas uma presunção.

F. Também não restou provado que o Recorrente tenha estado no estabelecimento comercial “…” e que tenha dali retirado os objetos referidos em 7 dos factos provados.

G. Nem que tenha utilizado o veículo ligeiro de passageiros com matrícula … para se colocar em fuga com os bens retirados do interior do estabelecimento comercial.

H. Ou sequer que se tenha feito transportar no referido veículo.

I. O Tribunal a quo, no Acórdão ora recorrido, não indica quais as provas que fundamentam a sua convicção.

J. Dos vestígios lofoscópicos encontrados na gaveta da caixa registadora onde foi localizada a impressão digital correspondente ao dedo médio da mão esquerda do Recorrente, se retira somente que teve contacto com o referido objeto.

K. Contudo, não restou provado em que circunstâncias e momento tal contacto ocorreu.

L. Pelo que o Recorrente pode ter estado em contacto com a caixa registadora em outra circunstância, momento e lugar, pois da prova produzida não restou provado que o Recorrente tenha estado no estabelecimento comercial denominado “…”, sito na …, ….

M. Bem como não restou provado que o contacto tenha ocorrido no interior do estabelecimento e tal facto não se presume apenas pela existência do referido vestígio.

N. Pelo que o Tribunal a quo andou mal ao considerar como provado que o Recorrente praticou o crime em causa.

O. Pelo exposto, impunha-se uma decisão em sentido diverso da proferida pelo Tribunal a quo.

Nestes termos e nos demais de direito que Vossas Exas. mui Doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, e por via dele, revogar a decisão recorrida, substituindo-se por outra que absolva o arguido, fazendo-se, assim, a tão costumada JUSTIÇA!”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com a conclusão de que o recurso dever julgado improcedente.

Neste tribunal da relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso.

Cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., o recorrente apresentou resposta, discordando do parecer e reiterando o anteriormente alegado na motivação de recurso.

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APRECIAÇÃO

Quanto às questões a resolver há que considerar que o que está em causa é a verificação da existência de provas concretas que imponham decisão de facto diversa da que foi tomada pelo tribunal recorrido.

Para além disso, e embora de forma nada clara, o recorrente alega na conclusão I) que a sentença recorrida não indica quais as provas que fundamentam a sua convicção, o que, a ser assim, corresponderia a uma nulidade da sentença resultante da conjugação dos artºs 379º, nº 1, al. a) e 374º, nº 2, do C.P.P..

Mas basta ler a sentença recorrida para se perceber facilmente que estão lá bem explícitas as provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

O que acontece é que o recorrente discorda da suficiência dessas provas, designadamente dos vestígios lofoscópicos que foram objecto de perícia, mas isso é questão completamente diversa que nada tem que ver com falta de indicação das provas.

Não ocorre, assim, qualquer nulidade, restando apreciar a questão da impugnação da matéria de facto, tal como se prevê no artº 412º, nº 3, do C.P.P..

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A decisão de facto contida na decisão recorrida é do seguinte teor (na parte que para aqui interessa):

“1. Factos Provados

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

NUIPC 1257/20.6GBABF

1. No período temporal compreendido entre as 22:43 horas do dia 31 de Julho de 2020 e as 00:05 horas do dia 1 de Agosto de 2020, o arguido BB, dirigiu- se ao veículo ligeiro de passageiros com matrícula …, pertencente a M, que estava estacionado na …, sita em …, com um valor aproximado de 500€.

2. Seguidamente, o arguido BB logrou entrar no interior da viatura e efectuando uma ligação dos fios da ignição logrou ligar o seu motor, saindo do local com o mesmo.

3. Esse veículo foi recuperado no dia 2 de Agosto de 2020, cerca das 10:00 horas, no Sítio do …, …, ….

4. O veículo apresentava o vidro traseiro partido e outros danos, tendo a sua proprietária gasto €400 na sua reparação.

NUIPC 488/20.3GDPTM

5. Já após o arguido BB se ter apropriado do veículo referido em 1., reuniu-se com os arguidos CC e AA e dirigiram-se para o estabelecimento comercial denominado “…”, sito na …, ….

6. Nessa sequência, os arguidos BB, CC e AA, em conjugação de esforços e concertadamente, estroncaram a fechadura de uma janela lateral desse estabelecimento.

7. Depois, todos eles ou somente o CC e o AA, acederam ao seu interior e daí retiraram os seguintes objectos:

a. diversas garrafas de bebidas brancas;

b. um televisor …

c. entre 5 a 10 óculos, cada um no valor de €2,00;

d. cabos de carregamento de telemóvel;

e. vários produtos alimentares, nomeadamente uma caixa com 50 rissóis, chocolates, pastilhas, bolachas, embalagens de queijo;

f. selos de correio;

g. um suporte com dois isqueiros;

h. uma caixa registadora;

i. a quantia monetária de €50,00 que estava acondicionada nessa caixa registadora.

8. Após, os arguidos BB, CC e AA, em conjugação de esforços e concertadamente, fazendo-se transportar no veículo já referido em 4., colocaram-se em fuga com os bens retirados do interior do estabelecimento comercial e cujo valor ultrapassava os €102,00.

9. No dia 2 de Agosto de 2020, cerca das 10:00 horas, no …, …, …, foram recuperados os seguintes objectos provenientes desse estabelecimento comercial, no interior do veículo com matrícula …:

a. a caixa registadora;

b. um pacote de pastilhas elásticas;

c. um chocolate;

d. nove selos de correio;

(…)

20. Os arguidos BB, CC e AA agiram livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, querendo, ilegitimamente, se apropriar dos bens existentes no mencionado estabelecimento comercial.

(…)

Das condições pessoais dos arguidos e outras condenações penais

(…)

Do arguido AA

52. O seu processo de desenvolvimento foi marcado por atitudes de abandono e rejeição familiares.

53. Começou a evidenciar comportamentos desajustados desde criança, levando a que fosse institucionalizado com 8 anos de idade no … (…) e aí se manteve até aos 13/14 anos de idade.

54. O seu percurso escolar é caracterizado por várias retenções resultantes de elevada falta de motivação e diversas dificuldades de aprendizagem, não tendo concluído o segundo ciclo de escolaridade.

55. No âmbito de medida tutelar de internamento, durante a qual evidenciou alterações comportamentais positivas, frequentou a Formação Modular Certificada, num curso EFA B2 (educação e formação para adultos) de dupla certificação, com equivalência ao 2.º ciclo de escolaridade, com formação tecnológica em “…”.

56. No entanto, após o cumprimento da medida tutelar, não consolidou as mudanças positivas evidenciadas, vindo a ser condenado pela prática de crimes.

57. Desenvolveu no período em causa, entre a sua libertação e a sua detenção, alguns trabalhos precários como ajudante de pedreiro.

58. Integrou inicialmente o agregado da avó materna, de onde se afastou passados 3 ou 4 meses.

59. Refere um consumo habitual de haxixe e cocaína, bem como um consumo excessivo de álcool.

60. Tem mantido em meio institucional um comportamento adequado.

61. Por sentença de 5/5/2014, transitada em julgado a 3/7/2014, proferida no âmbito do processo abreviado n.º 1005/13.7PBFAR, do extinto 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro, foi condenado pela prática, em 28/9/2013, de um crime de furto qualificado, na pena de 8 meses de prisão substituída por 240 horas de trabalho.

62. Por sentença de 10/7/2015, transitada em julgado a 30/9/2015, proferida no âmbito do processo n.º 378/13.6PBFAR, do Juízo Local Criminal de Faro, foi condenado pela prática, em 1/10/2013, de um crime de furto qualificado, na pena de 8 meses de prisão suspensa na sua execução por um ano.

63. Tendo sido realizado cúmulo jurídico das penas referidas em 61 e 62, foi condenado na pena única de 12 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, tendo essa suspensão sido revogada.

64. Por acórdão de 19/10/2016, transitado em julgado a 12/4/2017, proferido no âmbito do processo comum colectivo n.º 109/16.9GCFAR, do Juízo Central Criminal de Faro, foi condenado pela prática, em 4/1/2016, de dois crimes de furto qualificado, sendo um na forma tentada, na pena de 2 anos e 11 meses de prisão.

65. Por sentença de 13/6/2017, transitada em julgado a 13/7/2017, proferida no âmbito do processo n.º 890/15.2PAOLH, do Juízo de Competência Genérica de Olhão, foi condenado pela prática, em 14/10/2015, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 11 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e com regime de prova.

66. Efectuado o cúmulo jurídico das penas a que foi condenado em 64 e 66, foi condenado na pena única de 3 anos e 9 meses de prisão.

67. No dia 11 de Abril de 2020, foi-lhe concedido o perdão do remanescente da pena a cumprir, e a que nos referimos em 63 e 66, nos termos da Lei n.º 9/2020, de 10/4, remanescente que era de 7 meses e 6 dias de prisão.

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2. Factos Não Provados

Não se logrou provar:

a) Os arguidos CC e AA tivessem praticado os factos descritos em 1 e 2 dos factos provados.

b) As garrafas referidas em 5.a, dos factos provados tivesse um valor de €500;

c) O televisor referido em 5.b. dos factos provados tivesse o valor de €300;

d) Os óculos referidos no ponto 5.c. dos factos provados tivessem o valor de €100

e) Os cabos de carregamento referidos em 5.d. fossem em número de 20 ou no valor global de €100,00;

f) Os bens alimentares referidos em 5.e. tivessem o valor de €100,00

g) A garrafa de água encontrada nas circunstâncias referidas em 9 dos factos provados tivesse sido subtraída do interior do estabelecimento comercial.

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3. Fundamentação da Matéria de Facto

A convicção do Tribunal acerca da matéria de facto dada como provada e como não provada fundou-se no conjunto da prova produzida, recorrendo às regras de experiência e fazendo-se uma apreciação crítica da mesma.

Atendendo-se à prova testemunhal resultou, nomeadamente, do depoimento do militar da GNR, R, que quando realizados os reconhecimentos pessoais a testemunha P que foi reconhecer os arguidos não mostrou quaisquer dúvidas no acto de reconhecimento e de que as moto-serras vieram a ser apreendidas porquanto foram entregues à GNR.

Já o militar R declarou ter-se deslocado até …, a fim de efectuar inspecção judiciária a um veículo que ali foi encontrado abandonado. Estando o veículo aberto, no seu interior encontravam-se diversos objectos, como uma caixa registadora e tickets de um supermercado, havendo sinais de que havia sido efectuada uma “ligação directa” no veículo. Perante a situação solicitou ao NAT da GNR a comparência no local afim de se proceder à recolha de vestígios lofoscópicos no local. A testemunha confirmou que o que visualizou no local é o que se encontra retratado a fls. 49 e ss. do NUIPC 1257/20.6GDABF.

O militar G também declarou ter estado presente no local onde o veículo de matrícula … foi encontrado, sendo que foram os proprietários do veículo que chamaram a GNR ao local. Referindo que existiam danos no veículo, a testemunha confirmou o teor de fls. 63 a 68 do NUIPC1257/20.6GDABF, nomeadamente o aditamento ao auto de notícia, o auto de apreensão do veículo e auto de entrega, auto de avaliação e auto de apreensão dos bens encontrados no interior da viatura. Tais bens encontram-se retratados no relatório fotográfico de fls. 69 a 71 desse apenso.

Já o militar N, declarou ter realizado inspecção judiciária no Supermercado …, após ter sido denunciada a prática de um furto no seu interior, tendo apurado que a entrada no interior se deu por uma janela situada na lateral do estabelecimento. Para o efeito, o trinco da janela foi partido e depois forçada de forma a forçar a saída de um pau colocado para evitar a abertura, tendo sido arrastada uma arca frigorífica que se encontrava encostada à janela, local onde foram recolhidos vestígios lofoscópicos, localizados na traseira da arca. A testemunha confirmou que o local em causa é o retratado a fls. 13 e ss., e que tendo estado no interior do estabelecimento se apercebeu da falta de artigos nas prateleiras.

A testemunha M, proprietária da viatura automóvel de matrícula …, declarou que no sábado, dia 1 de Agosto de 2020, o seu marido recebeu um telefonema dando conta que a viatura tinha sido encontrada abandonada, e que foi então que se aperceberam que a mesma tinha sido levada do local onde tinha sido estacionada no dia anterior, na …. Tendo a viatura sido recuperada a mesma apresentava diversos danos, nomeadamente vidro traseiro partido, os amortecedores da mala partidos, uma dobra na porta do condutor, falta da bateria e a zona da ignição sem a peça e com os fios soltos, sendo que o que já reparou custou-lhe cerca de €400.

O proprietário do supermercado … também confirmou que entraram no seu estabelecimento, através da janela lateral, e que levaram dois recipientes onde coloca o pão destinado à venda, diversas garrafas de bebidas brancas, 50 rissóis de leitão congelados (que tinha recebido no dia anterior), bolachas, mentos, pastilhas elásticas, chocolates, embalagens de queijo, um expositor com óculos, carregadores de telemóvel, selos dos CTT, bem como uma televisão. A testemunha, confrontada com o teor de fls. 35, foto 5, também referiu que esses isqueiros foram levados do estabelecimento, e que os talões fotografados na foto 10 de fls. 36 eram talões de venda do estabelecimento, relativos a clientes que tinham dívidas. Notando-se alguma confusão no seu depoimento quanto ao valor das garrafas subtraídas, a testemunha foi confrontada com o teor das fotos de fls. 22 e ss. do NUIPC 488/20.3GDPTM, tendo confirmado a localização dos bens que foram dali levados, resultando que não conseguiu concretizar o número das garrafas ou o seu valor global, porque já em Julho havia havido outro furto e várias outras garrafas foram levadas, no entanto, a testemunha não teve dúvidas que, face à qualidade das bebidas e número, as mesmas teriam um valor superior a €102. Já relativamente ao montante pecuniário existente na caixa registadora, cuja gaveta foi também levada, a testemunha referiu que existia, pelo menos, €50. Do seu depoimento resultou ainda que os recipientes onde guardava o pão foram levados de forma a acondicionar os bens que foram levados, face à sua quantidade.

Sendo de referir que todas as testemunhas se mostraram isentas, objectivas e sem demonstrarem qualquer animosidade para com os arguidos, o Tribunal atendeu também ao teor da prova documental, já vindo a ser referida, bem como pericial, mormente a constante de fls. 100 e ss. do NUIPC 1257/20.6GDABF e de fls. 149 e ss. do NUIPC 488/20. 3GDPTM, bem como às informações de localização celular do telefone do arguido BB, constantes de fls. 567 e ss.

Tendo por certo que o veículo de matrícula … foi levado da …, em …, entre o final da tarde de dia 31 de Julho e a manhã de dia 1 de Agosto, face à hora em que a sua proprietária referiu ter sido estacionado e o momento em que foi encontrado em …, há que atentar que, na peça retirada da zona onde se localiza a ignição do veículo, de forma a extrair o fios e permitir o motor a funcionar, foram encontrados vestígios lofoscópicos, como resulta de fls. 48, sendo que essa peça foi deixada no chão do lugar do condutor (vide fls. 50, fotografias 7 e 8 do NUIPC 1257/20).

E sujeitos a exame pericial resultou que um vestígio encontrado nessa peça é coincidente com o dedo indicador direito da mão direita do arguido BB, como o demonstra o relatório pericial constante de fls. 100 e ss., estando a demonstração gráfica dos 13 pontos coincidentes a fls. 105.

Ora, a circunstância de se demonstrar que o arguido BB esteve em contacto com a peça da viatura automóvel que resguarda os fios que permitem efectuar a vulgarmente chamada de “ligação directa”, que permite colocar o motor a funcionar sem a sua chave, impõe que se considere que foi ele quem a retirou do seu local, até porque é encontrada no chão da viatura mesmo junto ao local do condutor. A única explicação possível para que o arguido tenha entrado em contacto com essa peça é ter sido ele próprio a retirá-la do seu local e tal de forma a colocar o veículo em funcionamento, de forma a retirá-lo do local onde os seus proprietários o deixaram estacionado e levá-lo consigo.

Corroborador dessa situação é a circunstância de também os dados de localização do seu telefone indicarem que nessa noite o arguido se deslocou para a zona de …, tendo já de manhã, cerca das 6:00/6:30 horas ido para a zona de … e …, local onde a viatura foi abandonada – vide fls. 567 e ss., e mais especificamente fls. 569 e 570 dos autos principais.

Ora, perante estas meios de prova, o Tribunal não teve quaisquer dúvidas ao considerar como provado que foi o arguido BB quem retirou o veículo automóvel do local onde se encontrava e o levou consigo, apropriando-se do mesmo.

No entanto, a prova produzida não permite afirmar que na prática desses factos os arguidos CC e AA tenham tido qualquer participação, ou sequer estivessem junto do arguido BB quando ele se apropriou do veículo, sendo que nada afasta a possibilidade de apenas se terem encontrado posteriormente.

Ao Tribunal não restam dúvidas de que os três arguidos, depois de BB ter o veículo de matrícula … na sua posse, se reuniram, deslocando-se então até ao Supermercado …, embora não se apure a hora concreta em que tal sucedeu.

Desconhecendo-se se BB entrou dentro do estabelecimento comercial, o relatório de fls. 20 e ss. e o exame pericial de fls. 129 ess. do Apenso 488/20, demonstram que CC foi quem empurrou a arca frigorífica que se encontrava junto à janela por onde se deu a entrada. Efectivamente resulta do exame pericial que o vestígio lofoscópico recolhido na parte de trás da arca é correspondente à região hipotenar da palma direita da mão do arguido CC, pelo que a sua localização apenas pode levar a concluir que ali foi deixada quando a arca foi empurrada para permitir a entrada, uma vez que tapava a janela.

E, como resultou do depoimento de FF, proprietário do estabelecimento, foram levados dois recipientes destinados ao pão, que teriam sido necessários para acondicionar os múltiplos bens que foram retirados do estabelecimento, o que desde logo deixa indiciado que, pelo menos duas pessoas, teriam entrado do interior, de forma a poderem transportar mais fácil e rapidamente essas duas caixas. E, perante a prova disponível, nomeadamente a resultante do relatório de inspecção judiciária e relatório pericial constante do apenso 1257/20, verifica-se que na gaveta da caixa registadora que foi levada do supermercado …, foi localizada a impressão digital correspondente ao dedo médio da mão esquerda do arguido AA, pelo que, necessariamente este esteve em contacto com o objecto que foi retirado do interior do supermercado.

As regras da normalidade e experiência comum, devidamente conjugadas com a prova testemunhal e pericial, levam a concluir que após BB ter subtraído o veículo automóvel, se reuniu com CC e AA, e se dirigiram ao estabelecimento comercial, onde entraram depois de forçarem a fechadura e o pau que servia de tranca e arredarem a arca que ali estava encostada, tendo daí retirado e levado com eles todos os bens que se consideraram como provados. Embora não se apurando o valor concreto dos bens, e por recurso a regras de experiência e normalidade, entendeu o Tribunal dar como provado que a multiplicidade de bens subtraídos teria um valor superior a €102,00.

Sendo que a prova indica para terem sido os arguidos CC e AA a terem entrado no interior do estabelecimento, desconhece-se se o arguido BB também ali entrou ou permaneceu na viatura aguardando por aqueles, no entanto, e porque era ele quem tinha o domínio do automóvel onde se faziam deslocar, é forçoso concluir que o mesmo tinha conhecimento do que ocorria e aderiu a esse plano, sendo, pelo menos, a sua efectiva participação ao nível da condução do veículo que permitia a deslocação.

Já fundado nos factos objectivos dados como provados e em regras de experiência, o Tribunal deu como provado que ao agirem da forma como agiram, os arguidos o fizeram de acordo com a sua vontade, querendo fazer seus bens que sabiam alheios e sabendo ser as suas condutas proibidas e punidas por lei, pois que é de conhecimento geral que tais condutas são ilícitas.

(…)

Para apuramento das condições pessoais e antecedentes criminais dos arguidos, o Tribunal valorou os relatórios sociais elaborados pela DGRSP, e constante de fls. 1149 a fls. 1164, bem como os certificados de registo criminal.

Já os factos não provados resultaram da valoração probatória que se tem vindo a explicitar, sendo que, os valores dos bens subtraídos do interior do estabelecimento comercial, foram considerados como não provados face ao teor das declarações do seu proprietário que não os soube concretizar, ou concretizou de forma distinta da acusação.

De atentar que o Tribunal entendeu não considerar as expressões conclusivas ou conceitos de direito constantes da acusação, nomeadamente a expressão “actuando como grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património e como meio de sustento”.

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Antes de analisarmos mais em concreto a situação dos autos, importa tecer as seguintes considerações:

Uma vez que as relações conhecem de facto e de direito (artº 428º do C.P.P.), o recurso pode ter como fundamento a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, devendo, nesse caso, o recorrente dar cumprimento ao disposto no artº 412º, nº 3, do C.P.P..

Sendo utilizada tal forma de pôr em crise a matéria de facto, o tribunal poderá modificar a decisão sobre a matéria de facto nos termos do artº 431º, al. b), do C.P.P..

Significa isto que o tribunal, reapreciando a prova produzida, na parte concretamente indicada pelo recorrente (als. a) e b) do nº 3 do artº 412º do C.P.P.), e sem prejuízo de poder ouvir outras passagens que não as concretamente indicadas, caso se trate de depoimentos gravados (nº 6 do artº 412º do C.P.P.), vai averiguar se perante a prova produzida, o tribunal procedeu adequadamente ao fixar a matéria de facto provada e não provada.

E na análise dessa adequação o que importa é verificar se existem provas concretas que imponham diversa decisão da que foi tomada, como claramente consta na al. b) do nº 3 do artº 412º do C.P.P.. Não basta, pois, que o recorrente indique prova que torne possível outra decisão, é necessário que essa outra decisão seja imposta pelas provas indicadas, isto é, a decisão de facto tomada pelo tribunal recorrido não pode de forma alguma persistir.

Está por demais referido doutrinária e jurisprudencialmente que face ao sistema de recursos previstos no nosso código de processo penal, o recurso da matéria de facto não se pode destinar a um novo julgamento no tribunal de recurso, nem a substituir uma convicção por outra, tratando-se apenas de uma “válvula de escape” para corrigir situações de flagrante erro, nos vários prismas em que o mesmo pode ocorrer.

Como se referiu na fundamentação do ac. de Fixação de Jurisprudência de 8/3/2012, publicado no D.R., I Série, nº 77, de 18/4/2012: “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.

A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.

O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.

Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”.

o mesmo sentido, Leal Henriques e Simas Santos, Recurso em Processo Penal, 7ª edição, pág. 105, quando referem:

“ (…) todos os recursos vêm concebidos na lei como remédios jurídicos e não como instrumentos de refinamento jurisprudencial (…)”

O que é jurisprudência pacífica, como se constata no sumariado no acórdão do STJ de 15-03-2007 (proc. 07P514, relator Cons. Simas Santos, d.g.s.i. – no sumário publicado na d.g.si existe manifesto lapso, passando do nº 7 para o nº 9):

“7 – Os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados (quanto à questão de facto), ou com referência à regra de direito respeitante à prova, ou à questão controvertida (quanto à questão de direito) que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada.

9 – Assim, o julgamento em recurso não o é da causa, mas sim do recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade.”

Como refere a agora Exmº Consª Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390: "( .. .) o recurso em matéria de facto não deve ser visto como uma sistemática sindicância à actividade processual de aproximação ao facto efectuada pela primeira instância.

Trata-se, antes, e sempre, de um remédio para a excepcionalidade do falhanço no acerto do facto definido nesse julgamento, a concretizar de acordo com a mais recente jurisprudência do S.T.J. ".

É por isso que a al. b) do nº 3 do artº 412º do C.P.P. refere que as provas concretas indicadas pelo recorrente têm que impor uma decisão diversa. Não basta que tornem possível uma outra decisão. As provas indicadas (neste caso, os segmentos concretos dos depoimentos) têm que servir de fundamento para que se conclua que a decisão só pode ser a indicada pelos recorrentes e não qualquer outra, designadamente a que foi tomada pelo tribunal recorrido.

Por outro lado, “a decisão do juiz há-de ser sempre uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo, não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (vg. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais.” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 204.

Como se referiu no ac. do S.T.J. de 25/5/10 – procº 11/04.7GLABT.C1.S1 – “sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”

Não apontou o recorrente a violação de qualquer norma sobre prova vinculada, isto é, prova que em princípio, está subtraída a essa livre apreciação da prova (“Salvo quando a lei dispuser diferentemente …”, conforme prevê o artº 127º do C.P.P.).

Sabe-se que a convicção não se pode confundir com “impressão”, mas não foi isso que aconteceu.

O tribunal recorrido através de raciocínios lógicos e coerentes explicitou o seu processo de formação da convicção, não resultando que esta tenha sido adquirida por “mera impressão”.

Como se refere no Ac. do S.T.J. de 4/11/98, C.J., III, 209, o princípio da livre apreciação da prova “não é, portanto, livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos e, dessa forma, determinar uma convicção racional, logo, também ela objectivável e motivável”.

O que aconteceu é que o tribunal formou a sua convicção com base na prova que foi produzida ou examinada em audiência, de determinada forma, conforme lhe permitia o artº 127º do C.P.P., entendendo o recorrente que a deveria ter formado de outra forma.

Analisando mais em concreto o caso dos autos, temos que o que está em causa é se existem provas concretas que imponha decisão diversa, isto é, se existem provas (ou falta delas) que necessariamente tenham que conduzir a conclusão diferente.

Ora, o tribunal recorrido formou a sua convicção essencialmente partindo das impressões digitais do recorrente que foram detectadas na caixa registadora retirada do estabelecimento comercial “…”.

A partir daí indicou uma série de raciocínios lógicos e de acordo com a experiência comum e o “normal acontecer” para chegar à conclusão que chegou.

E fê-lo utilizando o que habitualmente se denomina de prova indirecta ou indiciária.

Não está em causa a possibilidade de se utilizar tal tipo de prova, face ao que dispõe o artº 125º do C.P.P.. Do que se trata é saber se a mesma preenche os requisitos necessários para que possa ser considerada, como se entendeu no acórdão recorrido, ou não, como entende a recorrente.

A doutrina e a jurisprudência admitem a chamada prova indirecta ou indiciária, sendo este tipo de prova aquele “cujo objecto é um facto diferente daquele que deve ser provado por ser o juridicamente relevante para a decisão. Ou seja, quando o seu objecto imediato não é um facto principal” (Patrícia Silva Pereira, Prova Indiciária no âmbito do Processo Penal. Admissibilidade e Valoração, 2016, págs. 41 e 42).

Por outras palavras: “A prova directa incide, pois, directamente sobre o facto probando, enquanto que a prova indirecta ou indiciária incide sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.” (Francisco Marcolino dos Santos, Os Meios de Obtenção da Prova em Processo Penal, 2ª edição, pág. 89).

O referido tipo de prova deve, porém, ser encarado dentro de determinados limites.

Por sintetizar esses limites de forma que nos parece exemplar, tenha-se em atenção o que refere o Sr. Cons. Santos Cabral, na revista Julgar, nº 17, págs. 27 e segs.:

“ 1) Os indícios devem estar comprovados e é relevante que esta comprovação resulte de prova directa, o que não obsta a que a prova possa ser composta, utilizando-se, para o efeito, provas directas imperfeitas, ou seja, insuficientes para produzir cada uma em separado prova plena.

(…) os factos indiciantes não têm que coincidir necessariamente com os que conformam o facto sujeito a julgamento, ou algum dos seus elementos ou bem a autoria material dos factos ilícitos, mas podem tratar-se de factos que estão em conexão ou relação directa com aqueles, situa-se na sua periferia sendo indicativos da realidade do facto que s pretende provar. Isto significa que devem ser concomitantes (…)

2) Os factos indiciadores devem ser objecto de análise crítica direito à sua verificação, precisão e avaliação o que permitirá a sua interpretação como graves, médios ou ligeiros. (…)

3) Os indícios devem também ser independentes e, consequentemente, não devem considerar-se como diferentes os que constituam momentos, ou partes sucessivas, de um mesmo factos. (…)

4) Quando não se fundamentam em leis naturais que não admitem exceção, os indícios devem ser vários.

(…)

Porém, quando o indício, mesmo isolado, é veemente, embora único, e eventualmente assente apenas na máxima da experiência o mesmo será suficiente para formar a convicção sobre o facto.

5) Os indícios devem ser concordantes, ou seja, conjugar-se entre si, de maneira a produzir um todo coerente e natural (…)

6) As inferências devem ser convergentes ou seja não podem conduzir a conclusões diversas e a ligação entre o facto base e a consequência que dele se extrai deve ajustar-se às regras da lógica e às máximas da experiência.

7) (…) deve ser afastada a existência de contra-indícios (…).

(…)

Verificados os respectivos requisitos, pode-se afirmar que o desenrolar da prova indiciária pressupõe três momentos distintos: a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento, faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência, ou da ciência, que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento”.

Julga-se também ter especial interesse o ac. do S.T.J. de 12/9/2007, relatado pelo Sr. Cons. Armindo Monteiro e assim sumariado:

“I - A prova do facto criminoso nem sempre é directa, de percepção imediata; muitas vezes é necessário fazer uso dos indícios.

II - “Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura” (J. M. Asencio Melado, Presunción de Inocência y Prueba Indiciária, 1992, citado por Euclides Dâmaso Simões, in Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 205).

III - Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra.

IV - A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.

V - O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência.”

E também com especial interesse, aludindo ao facto único e à relação com a presunção de inocência, o ac. do S.T.J. de 9/11/2017, relatado pelo Sr. Cons. Gomes da Silva, assim sumariado (na parte que interessa):

“II - A prova indiciária opera a partir de um facto-base - que no caso de ser único terá de possuir uma especial força de acreditação - ou de uma pluralidade de factos-base mediante um raciocínio indutivo com um determinado grau de razoabilidade, suportado por regras de lógica e de experiência comum para chegar a uma conclusão que com consistência e coerência leve ao afastamento da presunção de inocência.”

A questão da prova dos factos com fundamento nas impressões digitais não pode ser vista de forma linear, designadamente generalizando de tal modo que se conclua que as mesmas em todos os casos apenas podem provar o contacto com o objecto onde foram recolhidas e não mais do que isso.

Pode ser assim, mas também pode não ser, tudo dependendo em que circunstâncias foram detectados os vestígios e as demais circunstâncias do caso.

Para o que aqui nos interessa, temos que as impressões digitais foram recolhidas não em qualquer local do estabelecimento em causa, mas sim num dos objectos que foram retirados desse estabelecimento.

No uso de um direito que lhe assiste, o recorrente optou por não prestar declarações em julgamento, não podendo com isso ser prejudicado. Mas também não pode ser beneficiado, designadamente de modo a concluir-se do seu silêncio que o seu contacto com a máquina registadora pode ter ocorrido em circunstâncias anteriores que nada tenham que ver com o furto em causa.

O que é certo é que não se apurou qualquer circunstância que justificasse eventual outro contacto. Não se apurou sequer que o arguido fosse frequentador do estabelecimento comercial em causa e, muito menos, que os frequentadores do mesmo tivessem facilmente acesso a contactos com a máquina registadora.

Temos, portanto, que não se trata de vestígios recolhidos em qualquer objecto do estabelecimento, ou em qualquer parte da casa (porta, janela, por exemplo, e mesmo assim teríamos que ver em que parte da janela ou da porta), mas sim no próprio objecto retirado do estabelecimento.

Não ocorre, pois, qualquer prova concreta que imponha decisão diversa ou, sequer, que torne possível essa decisão diversa.

O recorrente insurge-se quanto à ligação feita no acórdão recorrido entre ele próprio e os arguidos BB e CC, designadamente ao encontro entre todos a que alude o ponto 1 da matéria considerada provada.

O acórdão recorrido explícita de forma clara e coerente o percurso lógico que levou à referida conclusão, designadamente à circunstância de no veículo automóvel onde foi encontrada a caixa registadora com as impressões digitais do recorrente, terem sido detectadas também impressões digitais do arguido BB, na peça que foi deixada no chão do condutor, retirada da zona onde se localiza a ignição do veículo.

É tudo isto que serviu para formar a convicção do tribunal recorrido e que este tribunal de recurso, mesmo na tentativa de formar convicção diferente, não vislumbra que ocorra qualquer prova (ou ausência dela) que imponha decisão diversa, como exige, repete-se, a al. b) do o nº 3 do artº 412º do C.P.P..

Não se trata de prova directa, é certo, mas, como já se referiu, a prova indirecta ou indiciária pode servir para formar a convicção do tribunal, desde que, como acontece no caso, estejam preenchidos os acima referidos requisitos, designadamente porque inexistem razões, por mais ténues que sejam, para não concluir que o contacto do recorrente com a caixa registadora ocorreu na data e local dos factos. É que o contacto (facto-base) ocorreu de forma indubitável e nem sequer o recorrente põe isso em causa. Daí retira-se o restante.

A este propósito, entre outros, e relacionados com situações idênticas à dos autos, vejam-se o ac. desta relação de Évora de 15/11/2016, relatado pelo Exmº Desembargador Berguete Coelho, da relação do Porto de 16/1/2013, relatado pela Exmª Desembargadora Élia São Pedro e da relação de Guimarães de 11/11/2019, relatado pela Exmª Desembargadora Teresa Coimbra.

Deve, assim, ser mantida a decisão de facto contida no acórdão recorrido.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar improcedente o recurso.

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Atento o decaimento no recurso, deverá o recorrente suportas as custas, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs.

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Évora, 7 de Junho de 2022

Nuno Garcia

Edgar Valente

Gilberto da Cunha