Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
646/12.4TATVR.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
NOTIFICAÇÃO
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I. Embora a condição prevista na al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT se qualifique dogmaticamente como condição de punibilidade e não como pressuposto ou condição de procedibilidade, a notificação ali referida, para além de constituir um pressuposto da verificação da condição de punibilidade, constitui-se igualmente em pressuposto da instauração do procedimento criminal, pois enquanto a notificação não tiver lugar e não decorrer o prazo de 30 dias ali estabelecido, aquele procedimento criminal não deve iniciar-se.

II. Caso o procedimento criminal se inicie sem ter lugar aquela notificação – nomeadamente por não ser encontrado o obrigado - o MP deve providenciar pelo suprimento da omissão, nomeadamente procedendo à notificação em falta como se verificou in casu, mencionando-a na acusação juntamente com a falta de entrega e pagamento das quantias referidas na al. b) do nº4 do art. 105.º do RGIT, em cumprimento do art. 283º nº3 b) do CPP, sem o que o processo não deve prosseguir para julgamento.

III. Prosseguindo o processo para julgamento sem que se mostre realizada a notificação, esta omissão acarreta a falta da condição objetiva de punibilidade, sendo consensualmente entendido na doutrina penal que a falta desta condição implica a absolvição.

IV. Porém, a falta de referência à coima aplicável, bem como a omissão de outros dados, não torna inexistente ou inválida a notificação dos obrigados fiscais enquanto pressuposto da condição de punibilidade prevista na al. b) do nº4 do art. 105.º do RGIT, desde que nela se identifique suficientemente a obrigação fiscal incumprida, bem como o prazo para a regularização e que esta regularização impedirá a instauração ou o prosseguimento do procedimento criminal respetivo.

V. Assim, a notificação prevista na al. b) do nº4 do art. 105.º do RGIT tem-se por realizada, enquanto ato instrumentalizado à verificação da condição de punibilidade ali estabelecida, apesar de incompleta, se o obrigado nada fizer com vista à regularização da obrigação incumprida, como sucedeu in casu.

VI. Não obstante o lapso de tempo decorrido, a conduta omissiva dos arguidos manteve-se sem qualquer interrupção ou alteração entre os meses de setembro de 2008 e abril de 2011, repetindo-se pendularmente em cada um dos meses respetivos sem que os autos reflitam qualquer quebra ou renovação de uma mesma resolução criminosa espelhada na omissão ininterrupta das entregas devidas entre todos e cada um dos meses que medeiam entre setembro de 2008 e abril de 2011, pelo que o tipo de crime de abuso de confiança contra a segurança social foi preenchido uma única vez pela conduta omissiva dos arguidos que, assim, praticaram um único crime à luz do critério legal acolhido no art. 30º nº1 do C. Penal.

Sumariado pelo relator
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. RELATÓRIO

1. Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular com o número em epígrafe que correm termos no Juízo de Competência Genérica de Tavira do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o MP deduziu acusação contra A…, Lda., com sede em Tavira, e AA, de nacionalidade espanhola, nascido em 2.04.1976, casado, empresário

Imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. nos termos do artigo 107º, nºs 1 e 2 do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, com referência ao artigo 105º, nº 1, do mesmo diploma legal, e artigos 30º, nº 2 e 79º, ambos do Código Penal, sendo a sociedade arguida responsável nos termos do artigo 7º do RGIT.

2. Realizada a Audiência de Discussão e Julgamento, o tribunal a quo julgou improcedente a acusação, e, em consequência, absolveu os arguidos A…Lda. e AA da prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. nos termos do artigo 107º, nºs 1 e 2 do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, com referência ao artigo 105º, nº 1, do mesmo diploma legal, e artigos 30º, nº 2 e 79º, ambos do Código Penal.

3. Daquela sentença absolutória veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo da respetiva Motivação as seguintes

«C – Conclusões

1. Por sentença proferida nos presentes autos foi decidido absolver os arguidos “A.. Lda.” e AA da prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. nos termos do artigo 107º, nºs 1 e 2 do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, com referência ao artigo 105º, nº 1, do mesmo diploma legal, e artigos 30º, nº 2 e 79º, ambos do Código Penal).

2. A decisão sob recurso baseou a sua decisão no facto de entender que a notificação realizada ao abrigo do art.º 105.º, n.º4, al. b) do RGIT não foi correctamente efectuada.

3. Não concordamos com o teor de tal decisão, uma vez que em nosso entender a notificação realizada no dia 10 de Abril de 2013 respeitou a finalidade prevista na norma citada.

4. Com efeito, a condição objectiva de punibilidade ínsita no citado art.º 105.º, n.º4, al. b) do RGIT foi plasmada em norma com o objectivo de impelir o agente faltoso e omissivo a agir e a ter uma atitude activa, diligenciando junto dos Serviços da Segurança Social para proceder ao pagamento das quantias em dívida e regularização da sua situação.

5. Tal norma visa dar a conhecer ao arguido faltoso omissivo de que existe uma norma legal que lhe permite conceder uma oportunidade de cumprir com as suas obrigações e de não incorrer dessa forma na prática de um crime.

6. Acresce que a notificação efectuada em 10-04-2013 contém os elementos essenciais para que se cumpra a finalidade da norma em apreço:

a. Indicação da norma legal aplicável – art.º 105.º, n.º4, al. b) do RGIT;
b. Indicação do tipo de crime em causa;
c. Indicação dos períodos a que diz respeito a quantia em dívida;
d. Quantias em dívidas à Segurança Social;
e. Informação do prazo concedido – 30 dias – para regularizar a situação;
f. Indicação do que o agente deverá fazer para regularizar a situação, ou seja, deslocar-se aos Serviços da Segurança Social.

7. Considerando o texto da notificação, temos de concluir que a finalidade pretendida pelo art.º 105.º, n.º4, al. b) do RGIT foi atingida, fornecendo ao arguido todas as informações indispensáveis para que o mesmo regularizasse a sua situação.

8. Em face do exposto, deverá o Venerando Tribunal da Relação revogar a decisão sob recurso e condenar os arguidos AA e a sociedade comercial “A”, em penas de multa, no caso do primeiro da pena de 120 dias de multa e na segunda a pena de 240 dias de multa.

9. Caso não se concorde com o entendimento supra exposto de que a notificação foi correctamente efectuada, sempre se dirá que deveria a Mm.ª Juiz a quo sanar a irregularidade em causa, tendo em conta que em nenhum momento processual foi invocada tal irregularidade e tendo em conta o disposto no art.º 123.º, n.º2 do CPP que prevê que a irregularidade seja sanada oficiosamente

10. Nesta hipótese, pede-se que o Venerando Tribunal da Relação que ordene a remessa dos autos à 1ª instância a fim de ordenar o suprimento da aludida irregularidade e consequente notificação dos arguidos nos termos que entender correctos.

Termos em que, e nos mais que V. Excelências doutamente suprirão, dever-se-á revogar a sentença proferida nestes autos e condenar-se os arguidos,»

4. Os arguidos não apresentaram resposta ao recurso.

5. – Nesta Relação o MP pronunciou-se pela procedência do recurso.

6. Notificados, os arguidos nada disseram.

7. A sentença recorrida (transcrição parcial):

«1. Factos provados

Da acusação
1. A " A, Lda.", é uma sociedade comercial por quotas, com sede social na Av…,em Tavira, que se dedica à construção e engenharia civil, construção de edifícios, obras públicas, reparação manutenção e serviços de assistência de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, arrendamento, administração e gestão de imóveis, promoção imobiliária.

2. O arguido AA é um dos gerentes de facto e de direito da sociedade arguida desde 13/12/2007, obrigando-se a sociedade com a assinatura de dois gerentes que devem intervir conjuntamente.

3. A sociedade arguida encontra-se inscrita como contribuinte na Segurança Social nos regimes contributivos "000", correspondente ao Regime Geral dos Trabalhadores por conta de outrem e "669" - Regime dos Membros dos Órgãos Estatutários

4. A sociedade arguida, no exercício da sua actividade, entre os meses de Setembro de 2008 a Agosto de 2010, inclusive, procedeu ao desconto das contribuições devidas à Segurança Social nos salários dos seus trabalhadores, num total de vinte e três meses:

Setembro de 2008 1.579,71€
Outubro de 2008 1.100,33€
Novembro de 2008 1.092,48€
Dezembro de 2008 2.011,84€
Janeiro de 2009 1.102,60€
Fevereiro de 2009 1.102,60€
Março de 2009 1.122,08€
Abril de 2009 1.109,64€
Maio de 2009 1.109,64€
Junho de 2009 1.100,21€
Julho de 2009 1.383,56€
Agosto de 2009 1.081,67€
Setembro de 2009 1.158,82€
Outubro de 2009 1.081,67€
Novembro de 2009 1.158,82€
Dezembro de 2009 1.081,67 €
Janeiro de 2010 1.081,67€
Fevereiro de 2010 2.163,33€
Março de 2010 1.089,59€
Abril de 2010 1.089,59€
Maio de 2010 1.084,36€
Junho de 2010 932,89€
Julho de 2010 1.114,39€
Agosto de 2010 787,69€

Tudo no valor global de 28.055,74 € (vinte e oito mil e cinquenta e cinco euros e setenta e quatro cêntimos).

5. No período de Setembro de 2008 a Abril de 2011 a sociedade arguida, no exercício da sua actividade, deduziu dos valores das remunerações pagas aos seus sócios gerentes, relativas às contribuições devidas à Segurança Social no regime dos sócios gerentes e membros dos órgãos estatutários, num total de trinta e dois meses, os seguintes valores:

Setembro de 2008 158 €
Outubro de 2008 158 €
Novembro de 2008 158 €
Dezembro de 2008 158 €
Janeiro de 2009 160,40 €
Fevereiro de 2009 160,40 €
Março de 2009 160,40 €
Abril de 2009 160,40 €
Maio de 2009 160,40 €
Junho de 2009 160,40 €
Julho de 2009 160,40 €
Agosto de 2009 160,40 €
Setembro de 2009 160,40 €
Outubro de 2009 160,40 €
Novembro de 2009 160,40 €
Dezembro de 2009 160,40 €
Janeiro de 2010 162,90 €
Fevereiro de 2010 162,90 €
Março de 2010 162,90 €
Abril de 2010 162,90 €
Maio de 2010 162,90 €
Junho de 2010 162,90 €
Julho de 2010 162,90 €
Agosto de 2010 162,90 €
Setembro de 2010 162,90 €
Outubro de 2010 162,90 €
Novembro de 2010 162,90 €
Dezembro de 2010 162,90 €
Janeiro de 2011 152,43 €
Fevereiro de 2011 152,43 €
Março de 2011 152,43 €
Abril de 2011 152,43 €

No valor total de 5.121,32 € (cinco mil, cento e vinte e um euros e trinta e dois cêntimos).

6. O arguido AA, actuando em nome e representação da sociedade arguida, procedeu à entrega das declarações de remunerações dos trabalhadores ao seu serviço e dos sócios gerentes, dentro do prazo legal.

7. Porém, após ter descontado e retido as referidas contribuições relativas ao regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, a sociedade arguida não procedeu à entrega dos montantes devidos à Segurança Social, no valor total de 28 055,74 € (vinte e oito mil e cinquenta e cinco euros e setenta e quatro cêntimos), nem até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias imediatos após o decurso daquelas datas, nem no prazo de 30 dias após as notificações efectuadas no dia 10 de Abril de 2013, quer ao arguido quer à sociedade.

8. De igual forma, após ter descontado e retido as contribuições relativas ao regime do sócios gerentes e membros de órgãos estatutários das pessoas colectivas ou equiparadas, a sociedade arguida não procedeu à entrega dos montantes devidos à Segurança Social, no valor total de 5.121,32 € (cinco mil, cento e vinte e um euros e trinta e dois cêntimos), nem até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias imediatos após o decurso daquelas datas, nem no prazo de 30 dias após as notificações referidas.

9. A arguida A. Lda. apropriou-se, fazendo-os seus, dos montantes devidos à Segurança Social relativos aos salários efectivamente pagos e recebidos pelos seus trabalhadores e sócios gerentes, bem sabendo que tais valores não lhes pertenciam, e que deviam ser entregues à Segurança Social.

10. O arguido AA, actuou sempre em representação, por conta e no interesse da sociedade arguida, com o intuito de não proceder à entrega dos montantes devidos em sede de contribuições para a Segurança Social, no período temporal supra referenciado.

11. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou que:

12. Em 08-09-2014 foi feito o pagamento de € 21.513,32 por conta dos valores referidos em 7. e 8.

Da contestação da arguida A…, Lda.
13. A arguida atravessou sérias dificuldades financeiras no período compreendido entre Setembro de 2008 e Abril de 2011, tendo sido declarada insolvente por sentença proferida em 27 de Abril de 2011, transitada em julgado.

Da contestação do arguido AA
. Inexistem

Dos antecedentes criminais dos arguidos
14. Do certificado do registo criminal da arguida A não constam averbadas quaisquer condenações.

15. Do certificado do registo criminal do arguido AA não constam averbadas quaisquer condenações.

Das condições pessoais e económicas dos arguidos
16. A sociedade A foi declarada insolvente por sentença proferida em 27 de Abril de 2011, transitada em julgado.

17. O arguido AA é casado e tem dois filhos menores de 7 e 4 anos.

18. É licenciado em economia, encontra-se desempregado, sendo a mulher que mantem actualmente a família.

19. O arguido vive em casa própria da mulher que está hipotecada a instituição bancária.

2. Factos não provados

Da acusação
1. A arguida A. Lda., deve à Segurança Social o montante global de 33.177,06 € (trinta e três mil, cento e setenta e sete eurs e seis cêntimos), referente ao regime geral de trabalhadores por conta de outrem e ao regime dos sócios gerentes e outros órgãos estatutários das pessoas colectivas ou equiparadas, no período total de 56 meses, referentes ao período compreendido entre os meses de Setembro de 2008 a Abril de 2011.

2. O arguido AA apropriou-se, fazendo-os seus, dos montantes devidos à Segurança Social relativos aos salários efectivamente pagos e recebidos pelos seus trabalhadores e sócios gerentes, bem sabendo que tais valores não lhes pertenciam, e que deviam ser entregues à Segurança Social.

Da contestação do arguido AA
. Inexistem

Da contestação da arguida A, Lda.
. Inexistem

3. Motivação da decisão de facto
(…)
4. Enquadramento jurídico-penal
Passando agora ao enquadramento jurídico-penal do circunstancialismo fáctico apurado, vejamos se a conduta dos arguidos é subsumível à prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social de que vêm acusados.

Nos termos do disposto no artigo 107º n.º 1 do RGIT “ as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos nºs 1 e 5 do artigo 105º.

O tipo objectivo do ilícito radica, nas palavras da lei, em o agente, entidade empregadora, não entregar, total ou parcialmente, às instituições da segurança social os montantes das contribuições sociais devidas pelos trabalhadores e membros dos órgãos sociais deduzidas nos seus salários.

São, assim, elementos objectivos constitutivos do tipo do ilícito:

. a dedução por parte da entidade patronal nos salários devidos aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais do montante das contribuições sociais por estes legalmente devidas, e

. a não entrega desses valores às instituições da segurança social por parte da entidade patronal.

No entanto, no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, a apropriação consiste no dar-se outro destino aos valores retidos nos salários dos trabalhadores ou dos membros dos órgãos sociais, que não o destino legal.

A apropriação verifica-se com a não entrega das contribuições e respectiva afectação a finalidades diferentes, podendo, até, tratar-se, como muitas vezes de trata, de uma operação meramente contabilística (neste sentido, entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa de 15/2/2007, in www. dgsi.pt.)

O crime de abuso de confiança contra a Segurança Social basta-se assim com a não entrega da contribuição retida.

A motivação ou finalidade do agente e a consequente afectação que fez das quantias de que se apropriou são irrelevantes, pode até prosseguir o mais elevado dos fins, o que não releva para a questão de saber se houve ou não abuso de confiança. Quanto ao elemento subjectivo, não estando expressamente prevista a punição por negligência, os factos integradores do crime só podem ser punidos se praticados com dolo (artigo 13º do Código Penal) sendo suficiente o dolo eventual.

Para a punição deste crime, para além dos pressupostos atrás referidos, devem também mostrar-se verificadas as condições objectivas de punibilidade previstas no artigo 105º n.º 4 do RGIT ex vi artigo 107º n.º 2 do RGIT: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

Há, ainda, que ter em conta o disposto no artigo 7º nºs 1, 2 e 3 do RGIT donde resulta que as pessoas colectivas são criminalmente responsáveis pelas infracções cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo, só sendo excluída a sua responsabilidade quando o agente tiver actuado contra ordens e instruções expressas de quem de direito e, ainda, que a sua responsabilidade criminal não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes; e, também, o preceituado no artigo 6º n.º 2 do RGIT donde decorre que quem agir voluntariamente como representante de uma pessoa colectiva é responsável criminalmente mesmo que seja ineficaz o acto jurídico fonte dos respectivos poderes.

Conforme se provou, o arguido AA, actuando em representação da sociedade arguida A, Lda., da qual é sócio e gerente, reteve e não entregou à Segurança Social a importância global de € 33.177,06 que havia sido previamente descontada para tal efeito às remunerações dos respectivos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, no período compreendido entre Setembro de 2008 e Abril de 2011, bem sabendo que tais valores não pertenciam a sociedade arguida e que deveriam ser entregues à Segurança Social, agindo livre, voluntaria e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Conclui-se, assim, mostrarem-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivo do tipo do crime de abuso de confiança contra a segurança social de que os arguidos vêm acusados.

Nos termos do artigo 30° n° 2 do Código Penal, estamos perante um só crime quando se verifique: a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico; haja homogeneidade da forma de execução; a lesão do mesmo bem jurídico; a unidade do dolo e, por fim, uma situação exterior, exógena, que propicie a execução e seja susceptível de diminuir consideravelmente a culpa do agente.

In casu verifica-se a realização plúrima do mesmo tipo de crime, a homogeneidade da forma de execução, a lesão do mesmo bem jurídico e a unidade do dolo. Constata-se também que os arguidos actuaram no quadro da mesma solicitação exterior (a inércia dos serviços da Segurança Social que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração no período compreendido entre Setembro de 2008 e Abril de 2011) que, naturalmente, lhes diminui, de forma considerável, a culpa.

Cometeram, assim, os arguidos, em autoria material, um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 30º, nº 2, do Código Penal e 6.º, 7.º, n.ºs 1 e 3, 107.º e 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Consumado o crime, vejamos agora se se verificam as condições objectivas de punibilidade prevista no artigo 105º n.º 4, do RGIT.
Conforme resulta do circunstancialismo fáctico apurado provou-se também terem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega das prestações, verificando-se a condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105º n.º 4, alínea a) do RGIT.

Não se provou, no entanto, que os arguidos tenham sido notificados para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento das prestações comunicadas, “acrescidas dos juros respectivos e do valor da coima aplicável”, nos termos do artigo 105º, 4º, b) do RGIT.

Com efeito, como resulta da análise da notificação de fls. 167, os arguidos foram notificados únicamente para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento da divida à Segurança Social referente aos períodos de Setembro de 2008 a Abril de 2011, acrescida dos respectivos juros legais, sob pena de ser instaurado procedimento criminal, omitindo a notificação o pagamento do valor da coima aplicável.

Referindo-se a notificação feita aos arguidos unicamente às prestações oportunamente comunicadas (divida à Segurança Social referente aos períodos de Setembro de 2008 a Abril de 2011) e aos respectivos juros legais, a referida notificação não cumpre os requisitos legalmente exigidos.

E visando tal notificação dar ao devedor uma nova ou ultima oportunidade para pagar (agora com os juros de mora respectivos e o valor da coima aplicável), permitindo-lhe escapar à punição criminal, não tendo os arguidos sido devidamente notificados, nos termos e para os efeitos da al. b), do nº 4, do artigo 105º, do RGIT, entendo que não lhes foi dada a possibilidade de poderem vir a optar, de forma esclarecida, livre e consciente, pelo cumprimento, ou não, daquela notificação (neste sentido, veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 01-06-2011, processo nº 1534/08.4 TDPRT.P1).

Assim sendo, não se mostra preenchida aquela condição de punibilidade relativamente a ambos os arguidos, o que se traduz na não punibilidade das condutas apuradas.»

Há que decidir agora do presente recurso

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Questão a decidir

A questão suscitada no presente recurso pelo MP e que se impõe decidir, é a de saber se, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, deve considerar-se verificada a condição de punibilidade prevista no nº4 b) do art. 105º do RGIT, aplicável ao crime de Abuso de Confiança Contra a Segurança Social ex vi do art. 107º nº2 do mesmo RGIT, revogando-se a sentença recorrida na parte em que absolveu os arguidos, decidindo-se, em substituição, condenar ambos os arguidos por aquele mesmo crime.

2. Vejamos.

2.1. O artigo 105º nº 4 b) do RGIT, na redação que lhe foi dada pelo art. 95º da Lei 53-A/2006 de 29.12 (Lei do Orçamento), veio estabelecer que a falta de entrega da prestação deduzida nos termos da lei por quem estava obrigado a entregá-la à administração tributária ou à segurança social (conforme esteja em causa o crime de abuso de confiança fiscal ou de abuso de confiança contra a segurança social), apenas é punível se a prestação comunicada através da competente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. Ou seja, a punição do obrigado à entrega do imposto ou da prestação social tempestivamente declarados, passou a depender ainda do não pagamento daquela prestação, acrescida do valor da coima devida e juros de mora, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

Assente que o crime de abuso de confiança contra a segurança social (à imagem do seu homónimo fiscal) se consuma com a falta de pagamento da prestação em dívida na data do respetivo vencimento (cf art. 5º nº2 do RGIT), caraterizando-se, assim, como crime omissivo puro, a falta de pagamento da prestação e demais acréscimos referidos na al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT no prazo de 30 dias aí estabelecido, é circunstância que, situando-se fora do tipo de ilícito e de culpa, respeita à categoria da punibilidade, na medida em que constitui um pressuposto para que o atuar antijurídico importe consequências penais, que o AFJ do STJ nº 6/2008 veio qualificar como condição de punibilidade.

Embora a condição prevista na al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT se qualifique dogmaticamente como condição de punibilidade e não como pressuposto ou condição de procedibilidade, a notificação ali referida, para além de constituir um pressuposto da verificação da condição de punibilidade, constitui-se igualmente em pressuposto da instauração do procedimento criminal, pois enquanto a notificação não tiver lugar e não decorrer o prazo de 30 dias ali estabelecido, aquele procedimento criminal não deve iniciar-se.

2.2. Ora, embora a condição prevista na al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT se qualifique dogmaticamente como condição de punibilidade e não como pressuposto ou condição de procedibilidade, a notificação ali referida, para além de constituir um pressuposto da verificação condição de punibilidade, constitui-se igualmente em pressuposto da instauração do procedimento criminal, pois enquanto a notificação não tiver lugar e não decorrer o prazo de 30 dias ali estabelecido, aquele procedimento criminal não deve iniciar-se. Como diz Susana Aires de Sousa, Os crimes Fiscais, Coimbra Editora, 2009 pp. 136 (n.266) relativamente à condição hoje prevista na al. a) do nº4 do art. 105º do RGIT (“90 dias”), embora esta condição se qualifique dogmaticamente como pressuposto adicional de punibilidade e não como pressuposto ou condição de procedibilidade, “…na prática, para efeitos do início do procedimento criminal, a solução será idêntica: uma vez que os factos só são puníveis decorridos que estejam 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação tributária, por maioria de razão, o processo criminal só poderá iniciar-se decorridos aqueles 90 dias”.

Daí que aquela notificação caiba à administração fiscal ou à segurança social antes de instaurado inquérito, cumprindo-se assim o propósito legislativo de evitar a proliferação de procedimentos criminais contra os sujeitos passivos que, tendo cumprido a obrigação de declarar as prestações em falta, regularizavam a situação na pendência dos inquéritos criminais respetivos, que acabavam por ser arquivados (vd o citado AFJ 6/2008).

Caso o procedimento criminal se inicie sem ter lugar aquela notificação – nomeadamente por não ser encontrado o obrigado - o MP deve providenciar pelo suprimento da omissão, nomeadamente procedendo à notificação em falta como se verificou in casu (fls 167), mencionando-a na acusação juntamente com a falta de entrega e pagamento das quantias referidas na al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT, em cumprimento do art. 283º nº3 b) do CPP, sem o que o processo não deve prosseguir para julgamento.

Prosseguindo o processo para julgamento sem que se mostre realizada a notificação, esta omissão acarreta a falta da condição objetiva de punibilidade, sendo consensualmente entendido na doutrina penal que a falta desta condição implica a absolvição, conforme pode ver-se, por todos, em Cruz Bucho, O crime de abuso de confiança fiscal (e de abuso de confiança à Segurança Social): a Lei do OE 2007 e os processos pendentes, p. 10, para quem aquela consequência “… é inteiramente correcta quando não se colocam questões de sucessão de leis penais”.[1]

Sufragamos este entendimento, de que resulta apenas ser admissível ao tribunal ordenar a realização da notificação em falta na fase de julgamento quando tal omissão ocorra no âmbito de sucessão de leis penais no tempo, tendo em vista o disposto no art. 2º nº4 do C. Penal, pelo que se viéssemos a entender com o tribunal recorrido que foi omitida aquela notificação no caso presente, impor-se-ia acompanhá-lo igualmente na decisão de absolver com aquele fundamento.

Vejamos se assim é.
2.3.No caso concreto, o tribunal a quo considerou que faltando à notificação de fls 167 a menção do valor de coima aplicável, não lhes foi dada [aos arguidos] a possibilidade de poderem vir a optar, de forma esclarecida, livre e consciente, pelo cumprimento, ou não, daquela notificação, não se mostra[ndo]preenchida aquela condição de punibilidade relativamente a ambos os arguidos, o que se traduz na não punibilidade das condutas apuradas.

Daquela notificação consta o valor total dos montantes declarados e não entregues, bem como a referência genérica aos juros legais, pelo que apenas se omite totalmente a referência à coima aplicável.

Pode, então, afirmar-se com o tribunal recorrido, que aquela omissão corresponde à omissão da notificação dos obrigados a que se refere a al. b) do nº4 do art. 105º ex vi do art. 107º, do RGIT?

4. Porém, a falta de referência à coima aplicável, bem como a omissão de outros dados, não torna inválida a notificação dos obrigados fiscais enquanto pressuposto da condição de punibilidade prevista na al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT, desde que nela se identifique suficientemente a obrigação fiscal incumprida, bem como o prazo para a regularização e que esta regularização impedirá a instauração ou o prosseguimento do procedimento criminal respetivo.

Antecipando razões, entendemos que não, pois a falta de referência à coima aplicável, bem como a omissão de outros dados, não torna inexistente ou inválida a notificação dos obrigados fiscais, enquanto pressuposto da condição de punibilidade prevista na al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT, desde que nela se identifique suficientemente a obrigação fiscal incumprida, bem como o prazo para a regularização e que esta regularização impedirá a instauração ou o prosseguimento do procedimento criminal respetivo.

É este o sentido e alcance da notificação enquanto ato instrumentalizado à verificação da condição de punibilidade prevista naquele mesmo preceito, pelo que a mesma tem-se por verificada se o obrigado nada fizer com vista à regularização da obrigação incumprida, como sucedeu in casu. A incompletude da notificação pode implicar a necessidade de completar ou complementar a notificação com outros atos da administração ou do titular da ação penal, para que o obrigado possa regularizar a situação nos termos fixados na al. b) do nº4 do art. 105º do C. Penal, com eventuais reflexos na contagem do prazo, mas não equivale de modo algum ao comportamento cumpridor incompatível com a condição de punibilidade legalmente prevista.

Com efeito, não está em causa liberdade de opção, livre e consciente pelo cumprimento ou o incumprimento das obrigações já vencidas ou da sanção administrativa daí decorrente, bem como dos juros de mora respetivos, como se diz na sentença recorrida, mas antes uma “última” oportunidade de o obrigado regularizar a sua situação perante a segurança social (ou o fisco) sem incorrer na aplicação da pena correspondente ao ilícito penal já consumado, pelo que, na essência, é o conhecimento dos termos nucleares dessa faculdade legal que a notificação deve dar-lhe a conhecer.

Tão pouco pode dizer-se que a incompletude da notificação influi negativamente na sua motivação para cumprir, pois se o obrigado não procurou regularizar a sua situação sem contar, à partida, com a coima omitida, nada permite inferir que o teria feito se da notificação resultasse o “pagamento” de uma quantia mais elevada. Antes pelo contrário.

Em todo o caso, seria insustentável do ponto de vista da política criminal que a mera omissão ou incompletude de algum dos elementos da notificação, equivalesse, para efeitos penais, à entrega das prestações descontadas e não entregues à segurança social, acrescida da coima aplicável e dos juros de mora correspondentes, máxime quando os arguidos nada fazem junto da segurança social ou no processo criminal já instaurado para efetuar as prestações a que se reporta a al. b) do nº do art. 105º do RGIT como se verifica in casu.

2.4. Concluímos, assim, que ao absolver os arguidos, o tribunal a quo violou o disposto na al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT pelo que se impõe revogar aquela decisão e, em substituição, proceder à determinação das penas a aplicar, por força da jurisprudência fixada no AFJ 4/2016, uma vez que apesar de ser absolutória, a sentença recorrida menciona os factos indispensáveis a estas operações.

Apesar de o MP não recorrer da qualificação jurídico-penal dos factos levada a cabo pelo tribunal recorrido, impõem-se algumas precisões a este respeito, pelo que passamos a fazê-lo.

2.5. A qualificação jurídico-penal dos factos.

Diversamente do que, certamente por lapso, se refere na sentença recorrida, o artigo 30º nº 2 do C. Penal não se reporta à unidade criminosa, antes se reporta à figura do crime continuado, que pressupõe pluralidade de infrações, de acordo com o critério do número de tipos legais efetivamente preenchidos ou o número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente, estabelecido no art. 30º nº1.

Assim, sendo várias as prestações não entregues e reportando-se estas a meses sucessivos, impõe-se começar por decidir se em face da factualidade provada nos encontramos perante unidade ou pluralidade de crimes e apenas no caso de concluirmos por uma pluralidade de infrações será de ponderar, então, se estamos perante um só crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 107º nºs 1 e 2, 105 nº1 e 7º (sociedade) do RGIT, e 30º nº2 e 79º, do C. Penal, tal como constava da acusação.

Para tanto há que considerar o critério de natureza jurídica e não naturalístico desenvolvido pelo Prof. Eduardo Correia, que tem sido seguido entre nós, de acordo com o qual - em síntese e no que aqui nos importa diretamente - , o preenchimento unitário ou plural do mesmo tipo de crime (art. 30º nº1 do C. Penal), depende de se tratar de unidade ou pluralidade de juízos de censura, determinada pela unidade ou pluralidade de resoluções criminosas, “… no sentido de determinação de vontade, de realizações do projecto criminoso..”, que não se confunde com a unidade de intenção em sentido psicológico, ou seja com o evento representado como fim da conduta do agente (isto é aquele resultado em vista do qual outra coisa se quer).

Por último, a unidade ou pluralidade de resoluções ou processos resolutivos há-de depender “… da forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. (…), pois para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação”. (E. Correia II/202).

Ora, no caso concreto, a conduta omissiva dos arguidos reporta-se a contribuições descontadas nos salários dos seus trabalhadores entre setembro de 2008 e agosto de 2010, (cf ponto 4 da factualidade provada) e a contribuições devidas no regime dos sócios gerentes e membros dos órgãos estatutários, descontadas entre setembro de 2008 e abril de 2011 (cf. ponto 5 da factualidade provada), as quais foram tempestivamente declaradas (ponto da factualidade provada) mas sem que qualquer delas tenha sido entregue à segurança social até ao dia 15 do mês a que respeitavam e o mais referido no ponto 7 da factualidade provada.

Não obstante o lapso de tempo decorrido, a conduta omissiva dos arguidos manteve-se sem qualquer interrupção ou alteração entre os meses de setembro de 2008 e abril de 2011, repetindo-se pendularmente em cada um dos meses respetivos sem que os autos reflitam qualquer quebra ou renovação de uma mesma resolução criminosa espelhada na omissão ininterrupta das entregas devidas entre todos e cada um dos meses que medeiam entre setembro de 2008 e abril de 2011.

Assim e de acordo com o aludido critério jurídico seguido entre nós na esteira do Prof. Eduardo Correia, não há que falar em pluralidade, mas antes em unidade de resolução que corresponde a unidade de juízo de censura, o que significa que o tipo de crime de abuso de confiança contra a segurança social foi preenchido uma única vez pela conduta omissiva dos arguidos que, assim, praticaram um único crime à luz do critério legal acolhido no art. 30º nº1 (e não 30º nº2) do C. Penal. Não há, assim, que alterar o decidido na sentença recorrida a este respeito, ainda que a fundamentação não se mostre conforme ao critério legal, conforme vimos.

2.6. Posto isto, há que proceder agora à determinação das penas concretas a aplicar aos arguidos.

No que concerne à medida concreta da pena de multa a aplicar, é sabido que o Código Penal de 1982 adotou o chamado modelo ou sistema de dias-de-multa, segundo o qual a determinação concreta desta pena faz-se, no essencial, em dois momentos distintos, obedecendo as respetivas operações a diferentes critérios e teleologia.

Em primeiro lugar deve fixar-se o número de dias de multa, de acordo com os critérios estabelecidos no nº1 do art. 71º do C. Penal e, in casu, o art. 15º do RGIT (cfr art. 47º nº1 do C. Penal), ou seja, em função da culpa e das exigências de prevenção, dentro dos limites definidos na lei.

No segundo momento, deve o tribunal fixar o quantitativo diário, genericamente estabelecido no art. 15º nº1 do RGIT 1 e 500 euros para as pessoas singulares e entre 5 e 500 euros tratando-se de pessoas coletiva, em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

O montante final obtém-se multiplicando ambos os fatores.

2.6.1. Quanto ao arguido, impõe-se começar por proceder à escolha da pena principal a aplicar, uma vez que o art. 105º nº1 ex vi do art. 107º do RGIT, prevê em alternativa pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.

Na falta de preceito especial vale nesta matéria o princípio geral da preferência pela pena não privativa da liberdade acolhido no art. 70º do C.Penal ex vi do art. 3º do RGIT.

Assim e tendo especialmente em conta que o arguido não tem antecedentes criminais, que do total em dívida de €33 177,06 foi paga a importância de €21 513,32 em 2014 e que o arguido se encontra familiarmente integrado, a opção pela pena de multa satisfaz adequadamente as finalidades preventivas da punição, tal como entendido pelo tribunal recorrido.

Considerando as circunstâncias supra referidas bem como as necessidades de prevenção geral positivas particularmente relevantes em crimes desta natureza - dada a frequência com que são praticados e a relevância social dos bens jurídicos protegidos - e ainda que a pena de multa aplicável tem o seu mínimo em 10 dias e o seu máximo em 360 dias, entendemos ser adequada a pena de 180 dias de multa à razão diária de €2 (cf art. 15º nº1 do RGIT) dado que o arguido se encontra desempregado.

2.6.2. Quanto à sociedade arguida é aplicável pena de multa entre 20 e 720 dias (cf art. 105º nº1 e 12º nº3 do RGIT).

Considerando, por um lado, que a sociedade arguida não tem antecedentes criminais, que foi pago quase dois terços da dívida à segurança social e que é precária a sua situação económica, dado ter sido declarada insolvente, julgamos ser adequada a pena de 240 dias de multa à razão de €5, tal como entendimento expresso pelo MP na sua resposta.

III. DISPOSITIVO

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso interposto pelo MP, revogando a sentença absolutória recorrida e, em consequência, decidem, em substituição:

- Condenar o arguido, AA, pela prática de um crime de abuso contra a segurança social p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 107º e 105º nº1 do RGIT, na pena de 180 dias de multa à razão diária de €2;

- Condenar a sociedade arguida, A…, Lda., pela prática de um crime de abuso contra a segurança social p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 107º e 105º nºs 1 e 4 do RGIT, na pena de 240 dias de multa à razão diária de €5.

Sem custas

Évora, 12.07.2018

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

(António João Latas)

(Carlos Jorge Berguete)

__________________________________________________
[1] Questão diversa que aqui não se coloca, é a que respeita à aplicabilidade do regime estabelecido no art. 358º do CPP quando se trate de mera falta de menção dos factos respetivos na acusação, nomeadamente em face do AFJ 1/2015.