Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5003/19.9T9PTM.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: CRIME DE ESPECULAÇÃO
ARRENDAMENTO URBANO
RECUSA DE ENTREGA DE RECIBO DE RENDA
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Mantem-se em vigor a norma do artigo 14.° do DL 321-B/90, de 15-10 (RAU), que prevê o crime de especulação no âmbito do regime jurídico do arrendamento urbano.
II. Pratica o crime de especulação o senhorio que recusa entregar recibo de rendas recebidas.
Decisão Texto Integral:
I – Relatório
a. No 1.º Juízo (1) Local de …, do Tribunal Judicial da comarca de … foi o presente distribuído como processo comum, da competência do tribunal singular.
A acusação do Ministério Público imputava ao arguido AA, com os demais sinais dos autos, a prática de um crime de especulação, previsto no artigo 35.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, ex vi, artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro.
No controlo liminar do processo, efetuado nos termos previstos no artigo 311.º do Código de Processo Penal (CPP), o tribunal considerou que a acusação era manifestamente infundada, por os factos nela imputados ao arguido não constituírem crime, pelo que a rejeitou (artigo 311.º, § 1.º, 2.º, al. a) e § 3.º, al. d) CPP).
b. Inconformado com essa decisão dela vem o Ministério Público recorrer, finalizando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1.º Vem o presente recurso interposto da, aliás, douta decisão proferida nos autos no dia 21.10.2022, na medida em que foi rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Publico por ser manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no art. 311º, nº1, nº 2, al. a) e nº 3, al. d), do C.P.P., uma vez que, no seu entender, os factos descritos nessa acusação não integram, hoje, a prática de qualquer crime;
2.º Discorda-se dessa douta decisão, porque temos para nós que os factos constantes da acusação continuam ainda hoje a integrar a prática de um crime de especulação;
3.º Seguimos aqui as doutas razões aduzidas pelo Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Dr. Maia Costa, constantes do Acórdão por ele proferido em 18.04.2007, disponível in www.dgsi.pt, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais;
4.º De facto, o art. 60.º, da Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, operou apenas a revogação do regime do próprio contrato de arrendamento urbano, onde não se inclui o referido art. 14.º, quer formal, quer teleologicamente;
5.º Por outro lado, é “de rejeitar o argumento de que a norma penal inserida num diploma preambular que aprova uma lei civil siga necessariamente o destino desse diploma civil”;
6.º Por ultimo, a incriminação resultante do referido art. 14.º, que “visa proteger bens jurídicos de natureza vincadamente social e publica” (são hoje muito correntes, especialmente nesta zona do …, as situações ilegais que se mostram descritas na peça acusatória), não se mostra violadora do princípio da intervenção mínima do direito penal.
7.º Termos em que, decidindo como decidiu, o M.mo Juiz recorrido não fez uma interpretação correta do disposto pelo art. 60º, da Lei nº 2006 de 27 de fevereiro.
Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se, consequentemente, a douta decisão ora recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra douta decisão que receba a acusação deduzida pelo Ministério Publico, e designe data para realização da audiência de discussão e julgamento.
Com o que se fará inteira JUSTIÇA!»
c) O arguido não respondeu ao recurso.
d) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu entendimento no sentido da procedência do recurso.
e) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido nada acrescentou.
Efetuado exame preliminar e nada obstando ao prosseguimento do recurso foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2).
De acordo com as conclusões do recorrente, verificamos que a única questão aportada ao conhecimento desta instância de recurso é a de saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público não é manifestamente infundada.
2. O despacho recorrido
O Mm.o Juiz a quem os autos foram distribuídos para julgamento na 1.º instância proferiu o seguinte despacho liminar (311.º CPP):
«I. Da rejeição da acusação pública de fls. 167 a 169
A fls. 167 a 169 o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, melhor id. nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de especulação, previsto e punido pelo art. 35.º, n.º 1 do D.L. n.º 28/24, de 20 de janeiro ex vi do art. 14.º do D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro.
Na acusação pública são imputados ao arguido os seguintes factos:
“1. O arguido na qualidade de possuidor de um apartamento sito no …n.º…, em …, conhecida como antiga …, o qual não se encontra inscrito na AT, nem descrito na Conservatória do Registo Predial, deu o mesmo de arrendamento a BB.
Arrendamento esse, no valor de 200,00€ mensais e nunca reduzido a escrito e que perdurou de agosto de 2018 a dezembro de 2019, cujo pagamento era efetuado tempestivamente pelo ofendido ao arguido em numerário.
3. Pagou o ofendido, igualmente no início do contrato o valor de 400,00€, relativamente a caução.
4. Em dezembro de 2019 em virtude da mudança da fechadura do apartamento e corte de água e luz por parte do arguido, o ofendido deixou de ter acesso ao locado.
5. Apesar das várias insistências por parte do ofendido, o arguido nunca entregou qualquer recibo relativamente às rendas mensais por si pagas.
6. Não existem registos na AT de quaisquer recibos de arrendamento emitidos, nem declarados rendimentos prediais referentes aos anos de 2018 e 2019.
7. O arguido bem sabia que, em consequência da relação contratual arrendatícia que o vinculava ao ofendido, era obrigado a emitir e a entregar-lhe o recibo de renda correspondente aos respetivos montantes pagos por aquele e que, com a sua recusa, apesar das várias solicitações do ofendido, no cumprimento dessa obrigação legal decorrente de relações negociais, o arguido pôs em crise o papel do Estado na regulação da atividade económica, resultado que quis e alcançou.
8. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com total conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”
Cumpre apreciar e decidir.
Estabelecia o art. 14.º do D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro [que aprovou o Regime de Arrendamento Urbano] que
“Os senhorios que recebam rendas superiores às fixadas na lei, recusem recibo de renda ou recebam quantia superior ao mês de caução na celebração do contrato de arrendamento e os inquilinos que recebam qualquer quantia que não lhes seja devida, pela desocupação do local arrendado, quando haja cessado o arrendamento, cometem crime de especulação, punível nos termos da legislação respetiva.”
Quando tal normativo disponha que “(…) cometem crime de especulação, punível nos termos da legislação respetiva”, referia-se ao crime previsto no art. 35.º, n.º 1 do D.L. n.º 28/84, de 20 de janeiro, o qual preconiza que:
“1 - Será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa não inferior a 100 dias quem:
a) Vender bens ou prestar serviços por preços superiores aos permitidos pelos regimes legais a que os mesmos estejam submetidos;
b) Alterar, sob qualquer pretexto ou por qualquer meio e com intenção de obter lucro ilegítimo, os preços que do regular exercício da atividade resultariam para os bens ou serviços ou, independentemente daquela intenção, os que resultariam da regulamentação legal em vigor;
c) Vender bens ou prestar serviços por preço superior ao que conste de etiquetas, rótulos, letreiros ou listas elaborados pela própria entidade vendedora ou prestadora do serviço;
d) Vender bens que, por unidade, devem ter certo peso ou medida, quando os mesmos sejam inferiores a esse peso ou medida, ou contidos em embalagens ou recipientes cujas quantidades forem inferiores às nestes mencionadas.
2 - Com a pena prevista no número anterior será punida a intervenção remunerada de um novo intermediário no circuito legal ou normal da distribuição, salvo quando da intervenção não resultar qualquer aumento de preço na respetiva fase do circuito, bem como a exigência de quaisquer compensações que não sejam consideradas antecipação do pagamento e que condicionem ou favoreçam a cedência, uso ou disponibilidade de bens ou serviços essenciais.
3 - Havendo negligência, a pena será a de prisão até 1 ano e multa não inferior a 40 dias.
4 - O tribunal poderá ordenar a perda de bens ou, não sendo possível, a perda de bens iguais aos do objeto do crime que sejam encontrados em poder do infrator.
5 - A sentença será publicada.”
Sucede, todavia, que considera este Tribunal que o D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro, e especificamente o seu art. 14.º, foi revogado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro [que aprovou o novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU)], não estabelecendo esta nova lei, igual norma à prevista no art. 14.º do D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro.
Posto isto, e perante a referida revogação, os factos imputados pelo Ministério Público na acusação de fls. 167 a 169, ao arguido não configuram a prática de crime, porquanto os mesmos foram descriminalizados, pelo art. 60.º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, a qual estabelece que
“1 - É revogado o RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, com todas as alterações subsequentes, salvo nas matérias a que se referem os artigos 26.º e 28.º da presente lei.”
Diga-se, por outro lado, que o Tribunal não acompanha o entendimento vertido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/04/2007, relator: Maia Costa, disponível em www.dgsi.pt, no sentido de que o art. 60.º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro não revogou as normas preambulares do D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro, onde se encontra previsto, no seu art. 14.º, o crime de especulação, pelo qual o arguido se encontra acusado.
Na verdade, preconiza o Tribunal que não há razão para distinguir entre as normas formalmente incluídas no R.A.U. [D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro] e as preambulares, pelo que se considera que o art. 60.º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro revogou in totum o D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro e, por consequência, o seu art. 14.º, na base do qual o arguido foi acusado nos presentes autos e que tipificava como crime de especulação a conduta dos senhorios que, para além do mais, recusassem entregar o(s) recibo(s) de renda aos inquilinos.
Assim, apesar do art. 60.º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro não ter revogado expressamente o diploma preambular do D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro, tal revogação é implícita, por três ordens de razão [que constam também do referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça]:
a) existiu uma “revogação do sistema», ou seja, o legislador claramente pretendeu estabelecer de novo todo o regime legal atinente ao regime do arrendamento urbano com a Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, e daí que, em contraposição ao anterior R.A.U., tenha apelidado a nova lei de N.R.A.U.;
b) sendo o regime preambular, por natureza acessório, relativamente ao instituto que visa colocar em vigor, seguirá, o destino do regime principal, em caso de revogação, a não ser que seja expressamente previsto o contrário;
c) tendo por referência o princípio da proporcionalidade [na vertente da intervenção mínima e da subsidiariedade do direito penal] mostra-se desproporcionada, nos dias de hoje, a proteção penal da posição do inquilino face ao senhorio, já que a desigualdade de tais posições é suficientemente salvaguardada pelo direito civil, havendo ainda outros instrumentos jurídicos [mormente no direito civil e fiscal] para combater as condutas previstas no art. 14.º do D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro.
Diante do exposto, e por os factos constantes da acusação pública, no entender no Tribunal não configuram a prática de qualquer crime, deve a mesma ser rejeitada.
Preceitua o art. 311.º, n.º 1 do C.P.P. que ”Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.”
Por sua vez, estabelece o n.º 2, al. a) da mesma norma, que “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;”
A acusação considera-se manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.º 3, al. d) do C.P.P., quando os factos em causa não constituírem crime.
Aqui chegados e concluindo-se, nos termos supra expostos, que os factos constantes da acusação pública de fls. 167 a 169 deduzida pelo Ministério Público não integram a prática de qualquer crime, é a referida acusação manifestamente infundada.
Pelo exposto, e com os fundamentos supra referidos, decide-se rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público de fls. 167 a 169 [cf. ref. n.º …] contra o arguido AA, por ser manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 1, 2, al. a) e 3, al. d) do C.P.P. (…)»
4. Apreciando
4.1 Do fundamento da rejeição da acusação
Sustenta o recorrente que contrariamente ao que foi considerado no despacho recorrido, a acusação não é manifestamente infundada, porquanto, a norma criminal indicada na acusação não se mostra revogada, pelo que o comportamento ilícito imputado ao arguido constitui crime.
Vejamos, então.
O tipo de ilícito imputado no libelo ao arguido está previsto no artigo 35.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, ex vi, artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro.
Dispõe o segundo daqueles normativos, sob a epígrafe «Especulação», que:
«Os senhorios que recebam rendas superiores às fixadas na lei, recusem recibo de renda ou recebam quantia superior ao mês de caução na celebração do contrato de arrendamento e os inquilinos que recebam qualquer quantia que não lhes seja devida, pela desocupação do local arrendado, quando haja cessado o arrendamento, cometem crime de especulação, punível nos termos da legislação respetiva.»
E o primeiro deles, para o qual a norma transcrita remete, preceituando sob a mesma epígrafe «Especulação», que:
«1 - Será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa não inferior a 100 dias quem: (…)
3 - Havendo negligência, a pena será a de prisão até 1 ano e multa não inferior a 40 dias. (…)
5 - A sentença será publicada.»
Este tipo de ilícito pune as seguintes condutas:
a) recebimento, pelo senhorio, de rendas superiores às fixadas por lei;
b) recusa, pelo senhorio, de entregar recibo da renda;
c) recebimento, pelos senhorios, de quantia superior ao mês de caução na celebração do contrato de arrendamento;
d) recebimento, pelos inquilinos, de qualquer quantia que lhes não seja devida, pela desocupação do local arrendado, quando haja cessado o arrendamento.
Já regressaremos aos elementos típicos do ilícito.
Analisemos agora o modo como ocorreu a sucessão de leis reguladoras do arrendamento urbano, para depois avaliarmos se o crime de especulação que a acusação imputa ao arguido se encontra revogado, conforme se considerou no despacho recorrido.
O regime do arrendamento urbano (RAU) introduzido na ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, constituiu ao tempo da sua entrada em vigor (no dia 15 de novembro de 1990) uma profunda reforma no direito do arrendamento civil e comercial, até então regulados no Código Civil e em diversas leis avulsas.
No artigo 1.º do citado Decreto-Lei declarou-se aprovado o RAU (o qual se remeteu para articulado autónomo publicado em anexo). No artigo 2.º fixou-se a data da entrada em vigor do RAU. No artigo 3.º revogou-se a legislação pretérita sobre a mesma matéria. Estabelecendo-se regras de articulação e transição normativa da regulação pretérita para a nova em certos aspetos especiais (nos artigos 4.º a 13.º e 16.º). Criando-se um novo tipos de ilícito (artigos 14.º), para conferir tutela criminal às novas regras introduzidas pelo RAU.
Daqui resulta que os preceitos preambulares do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro contêm normas revogatórias do direito pregresso e outras com óbvia, direta e harmónica conexão com o RAU que se quis implementar. Reportando estas ao modo como se quis se passasse a enquadrar normativamente este relevante segmento da vida social e económica do país, incluindo a tutela penal da especulação.
Adiante do tempo, a Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, aprovou um Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), substituindo regime pregresso (todo o regime) por um novo. Procedendo o legislador do mesmo modo, estabelecendo as normas preambulares que entendeu adequadas à respetiva implementação, no âmbito das quais, através do seu artigo 60.º, revogou:
«o RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, com todas as alterações subsequentes, salvo nas matérias a que se referem os artigos 26.º e 28.º da presente lei.»
Como já vimos o Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de outubro, aprovou o RAU (no seu artigo 1.º). Mas esse diploma não se confunde com o próprio «RAU». Sendo que o artigo 60.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro revogou apenas o RAU.
Breve: não há revogação expressa.
Poderia conjeturar-se haver revogação sistemática, o que sucederia se a nova lei tivesse deixado de prever como ilícitos os comportamentos (ou alguns deles) que aquele crime giza tutelar. Mas isso não sucede, porquanto a lei continua a fixar limites máximos para os aumentos de renda (v.g. Lei 19/2022, de 21 de outubro) e o senhorio continua a ter o dever de entregar recibo ao arrendatário (artigos 787.º e 813.º do Código Civil).
Isto é pelo menos as duas primeiras condutas previstas no tipo de ilícito previsto no artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro continuam a ser ilícitas e carecidas de tutela penal, nos mesmos termos em que ela existia na legislação pregressa.
Na verdade, a incriminação destas condutas não surgiu pela primeira vez no Decreto-Lei n.º 321-B/90. Conforme refere e elenca o Tribunal Constitucional (3):
«A tradição de disposições deste tipo no nosso ordenamento, adentro do campo em que no contrato de arrendamento há uma acentuada redução da liberdade contratual por o Estado ter necessidade de intervir devido a particulares circunstancialismos económico-sociais, vem desde o Decreto n° 5411, de 17/4/19, em cujo art. 110° se punia como crime, nos arrendamentos urbanos para habitação, o recebimento, pelo senhorio ou pelo arrendatário sublocador, de alguma remuneração ou recompensa para além da renda, a título de cedência de chave ou qualquer outro.
Seguiu-se-lhe a Lei n° 2030, de 22/6/48, cuja Parte V versou o contrato de arrendamento de prédios urbanos, designadamente quanto ao regime da atualização de rendas em arrendamentos para habitação fora de Lisboa e Porto - art. 47° - e nestas cidades - art. 48° -, bem como nos arrendamentos não destinados a habitação em todo o país - art. 49°. E no seu art. 85° tipificaram-se as condutas tidas como criminosas por infringirem certas normas imperativas do regime legal instituído, mas passando-se, inovadoramente, a qualificá-las como crime de especulação punível nos termos da legislação respetiva.
Tais condutas passaram a ser, além da prevista no aludido art. 110°, a recusa de recibo de renda paga e o recebimento, pelo arrendatário, de qualquer quantia, que não constituísse indemnização devida por lei, pela extinção do arrendamento ou pela cessão do local em caso que não fosse de trespasse.
Dado o âmbito da regulamentação locatícia em que se inseriu, estas incriminações e as proibições por elas pressupostas respeitavam a todo o arrendamento urbano vinculístico, quer se destinasse a habitação, quer tivesse outro fim. Depois a Lei n° 46/85, de 20/9, retomou esta matéria mas regendo apenas, como era seu objetivo declarado, no âmbito do arrendamento para habitação. E no art. 47° reformulou-se o regime anterior, na medida em que, mantendo-se a incriminação da recusa de recibo de renda pelo senhorio e a do recebimento, pelo inquilino, de quantia que não seja indemnização devida por lei pela extinção do arrendamento, se acrescentou ainda a incriminação do recebimento, pelo senhorio, de renda superior à fixada nesta lei ou de quantia superior ao mês de caução na celebração do arrendamento.»
Ora o Estado não deixou de intervir na regulação do mercado de arrendamento, como se comprova pela legislação que continuou a ser publicada depois da entrada em vigor do NRAU (4), não deixando, pois, de ser comunitariamente insuportável a impunidade (penal) dos comportamentos previstos no crime de especulação a que nos vimos referindo.
No sentido que propugnamos pronunciou-se, aliás proficientemente, o Supremo Tribunal de Justiça (5), conforme justamente lembra o recorrente, evidenciando o sumário de tal aresto a atualidade e justeza dos seus argumentos:
«I. O artigo 60.º da Lei 6/2006, norma que revogou o RAU de 1990 e aprovou o novo RAU (NRAU), suscita a dúvida sobre se a revogação ali prevista apenas abrange o RAU de 1990 ou também as disposições previstas no próprio diploma que o aprovou, o DL 321-B/90, de 15 de outubro, concretamente o artigo 14.º, que tipifica como crime de especulação a conduta dos senhorios que, para além do mais, recusem recibo de renda.
II - Em favor desta última tese apresentam-se três argumentos: primeiro, que existiu uma “revogação do sistema”, que determinaria a revogação de todas as normas do sistema anterior; segundo, que em qualquer caso as normas preambulares seguem necessariamente o destino do regime principal; e, por fim, que se verifica uma “desnecessidade” de tutela penal do inquilino nas situações anteriormente incriminadas no artigo 14.º do DL 321-B/90, proteção essa que ofenderia o princípio constitucional da proporcionalidade, na vertente da intervenção mínima do direito penal.
III - Em defesa de posição contrária, e rebatendo aquela argumentação, pode dizer-se - a “revogação do sistema” ocorreu, mas apenas em relação ao próprio contrato de arrendamento urbano, ou seja, à disciplina civilística do arrendamento urbano. O artigo 14.º do DL 321-B/90 não integra, nem formalmente nem teleologicamente, o RAU, pois uma coisa é o contrato de arrendamento urbano e outra é a proteção penal dos bens jurídicos, conceito que extravasa os interesses privados que à disciplina jurídica do contrato cumpre reger. A revogação da lei civil nunca terá repercussão na lei penal, a não ser que intervenha na definição de algum dos elementos do tipo de crime (v.g., se o NRAU deixasse de estipular a passagem de recibo é óbvio que a infração penal seria automaticamente revogada); - a arrumação sistemática das normas é muitas vezes circunstancial ou contingente, por isso a inclusão de uma norma no preâmbulo de um diploma não lhe retira qualquer dignidade que ela não revista intrinsecamente, como é o caso das normas penais: as normas penais dispersas ou extravagantes são muitas, mas essa dispersão formal e sistemática não significa que elas não tenham dignidade penal igual à das codificadas, ou que estejam submetidas a um destino mais precário. É, por isso, de rejeitar o argumento de que a norma penal inserida num diploma preambular que aprova uma lei civil siga necessariamente o destino desse diploma civil; - o princípio da intervenção mínima é de facto um princípio estrutural do direito penal e tem assento constitucional (artigo 18.°, n.º 2, da CRP). Contudo, para que se possa dizer violado pela vigência/permanência do artigo 14.° do DL 321-B/90, no segmento que aqui importa (criminalização da recusa pelo senhorio da passagem de recibo da renda), seria necessário concluir que ele estabelece uma proteção desmesurada do inquilino, em prejuízo do senhorio, o que não é verdade. A carência de habitação continua a ser uma mazela profunda e evidente que afeta sectores muito largos da sociedade portuguesa. Os carenciados são muitas vezes tentados a aceitar práticas ilegais por parte dos proprietários para terem acesso à habitação. A recusa de passagem de recibo é uma das mais correntes práticas ilegais neste âmbito, que prejudica os inquilinos e também o Estado (fisco). A passagem do recibo é, por um lado, uma garantia da prova do contrato, para o inquilino (e consequentemente da garantia da habitação) e, por outro, da salvaguarda dos interesses públicos, na vertente das receitas fiscais. Como tal, não vê que se mostre desproporcionada, ou violadora do princípio da intervenção mínima do direito penal, uma incriminação que visa proteger bens jurídicos de natureza vincadamente social e pública.
IV - Conclui-se, assim, que o artigo 14.º do DL 321-B/90, de 15 de outubro, não foi revogado pelo artigo 60.º da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro. (…)»
Em suma:
Descrevendo a acusação deduzida nestes autos que, com referência a um imóvel bem identificado, vigorou entre agosto de 2018 e dezembro de 2019, entre o arguido e BB, um contrato de arrendamento urbano, que nunca foi reduzido a escrito, mas por conta do qual este pagou àquele, a quantia mensal de 200€, a mais de uma caução de 400€ entregue no início da vigência do contrato. E que apesar das insistências de BB, o arguido nunca lhe entregou recibo de quitação relativo às quantias recebidas.
Mais indicando aquele libelo que a Administração Tributária não possui qualquer registo de recibos de arrendamento emitidos, nem rendimentos prediais declarados pelo arguido referentes ao identificado imóvel e aos anos de 2018 e 2019. E que o arguido bem sabia que em razão do aludido arrendamento estava obrigado a emitir e entregar recibos, correspondentes às quantias que recebeu, e que com a sua recusa, violava as regras fixadas pelo Estado relativamente a esse setor da atividade económica.
Porque tais factos, a demonstrarem-se em julgamento, são suscetíveis de integrar o crime de especulação, previsto no artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, conjugado com o que se dispõe no artigo 35.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, o recurso é integralmente merecedor de provimento.
III - Dispositivo
Destarte e por todo o exposto, acordam em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
a) conceder integral provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, determinando que seja proferido o despacho previsto no artigo 311.º-A do CPP.
b) Sem custas.
Évora, 18 de abril de 2023
J. F. Moreira das Neves
Maria Clara Figueiredo
Fernanda Palma

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

3 Cf. Acórdão n.º 450/02, de 29/10/2002, da pena do Cons. Guilherme da Fonseca.

4 Cf. Portaria n.º 257/2021, que regulamenta o regime do procedimento de injunção em matéria de arrendamento; Lei n.º 12/2019, de 12 de fevereiro, que proíbe e pune o assédio no arrendamento; Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, contendo medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade; Lei n.º 30/2018, de 16 de julho, relativa ao regime extraordinário e transitório para proteção de pessoas idosas ou com deficiência que sejam arrendatárias e residam no mesmo locado há mais de 15 anos; Lei n.º 42/2017, de 14 de junho, contendo o regime de reconhecimento e proteção de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local; Decreto-Lei n.º 156/2015, de 10 de agosto, que estabelece o regime do subsídio de renda a atribuir aos arrendatários com contratos de arrendamento para habitação, celebrados antes de 18 de novembro de 1990, em processo de atualização de renda, e o regime de determinação do rendimento anual bruto corrigido (alterado pela Lei n.º 13/2019, de 12 de dezembro); Decreto-Lei n.º 266-B/2012, de 31 de dezembro, que estabelece o regime de determinação do nível de conservação dos prédios urbanos ou frações autónomas, arrendados ou não, para os efeitos previstos em matéria de arrendamento urbano, de reabilitação urbana e de conservação do edificado, e que revoga os Decretos-Leis n.ºs 156/2006, de 8 de agosto, e 161/2006, de 8 de agosto; Portaria n.º 226/2013, de 12 de julho, que aprova os modelos de pedido de emissão da declaração e de declaração relativos ao rendimento anual bruto corrigido do agregado familiar do arrendatário, estabelecendo ainda os procedimentos de entrega do pedido e de emissão da declaração (alterada pelas Portaria n.º 69/2015, de 10 de março; Portaria n.º 115/2014 , de 29 de maio); e Portaria n.º 1192-A/2006, de 3 de novembro, que aprova o modelo único simplificado através do qual senhorios e arrendatários dirigem pedidos e comunicações a diversas entidades, no âmbito do NRAU.

5 Acórdão de 18abr2007, proferido no proc. 07P793, Cons. Maia Costa, disponível em www.dgsi.pt