Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
47/20.0T8NIS.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: INVENTÁRIO
PARTILHA DA HERANÇA
SENTENÇA
TÍTULO EXECUTIVO
INDEFERIMENTO LIMINAR DA PETIÇÃO
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – A execução comum é o meio próprio para o exequente obter coercivamente o preenchimento do respetivo quinhão hereditário.
II – A sentença homologatória da partilha é título executivo, nos termos do artigo 703.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
III – Não constando na sentença homologatória da partilha uma condenação expressa dos interessados a qualquer pagamento, ela há de ser necessariamente complementada com o mapa da partilha, porque é este que corporiza a repartição do acervo hereditário pelos interessados, que será submetida à subsequente homologação, por sentença, pelo juiz, que por esta via «transforma os direitos de cada um dos herdeiros sobre o património indiviso em direitos individualizados sobre bens determinados».
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 47/20.0T8NIS.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre[1]


Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:
*****
1. AA, interessado nos autos de inventário supra referenciados em que é cabeça-de-casal BB, tendo sido notificado do despacho proferido em 09.06.2022, que indeferiu liminarmente o requerimento executivo por si apresentado, e não se conformando com o mesmo, veio interpor o presente recurso de Apelação, finalizando com as seguintes conclusões[3]:
«1. Vem o presente recurso de apelação interposto, nos termos do disposto nos artigos 10º, 853º, nº3 e nº4, 638º, n1 e 644º, nº2 al. d), e 1120º do Código de Processo Civil, ao douto despacho de indeferimento liminar do requerimento executivo, que foi apresentado nos autos pelo recorrente.
2. O douto despacho ora recorrido é ilegal, violou por erro de interpretação e aplicação, entre outros os normativos consagrados nos artigos 10º, 703º, nº1 al. a), 724º, al. e), 726º, e 1120º, do Código de Processo Civil, pelo que deverá ser revogado,
3. As doutas sentenças homologatórias juntas com o requerimento executivo, que constituem os títulos executivos base da execução (ou, um só título executivo formado pela conjugação de ambas) são títulos válidos, suficientes e legítimos, nos termos dos artigos 703º, nº1 al. a) e 704º do Código de Processo Civil.
4. Ademais, não existem outros títulos executivos válidos de que o ora recorrente se possa socorrer para ver cumprida a obrigação que lhe é devida pela aqui cabeça-de-casal, porquanto:
5. A presente execução não se destina a obter o pagamento de tornas, ao contrário do que parece ser o entendimento do douto Tribunal a quo.
6. As tornas devidas pela cabeça-de-casal ao ora recorrente foram por este reclamadas em tempo e, encontram-se pagas, como documentado nos autos.
7. O que não foi cumprido pela cabeça-de-casal - embora obrigada a tal, atenta a transação alcançada e o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha - foi a entrega do dinheiro e bens móveis ao ora recorrente, conforme decorre dos títulos juntos.
8. A presente execução para pagamento de quantia certa, é o mecanismo processualmente correto para o recorrente obter a efetivação do direito de crédito que lhe assiste nesta partilha e, que ainda não se encontra efetivado».

2. Não foram apresentadas contra-alegações.

3. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[4], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, evidentemente sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, o presente recurso destina-se a determinar se as sentenças dadas à execução configuram ou não título executivo para obter da executada o pagamento coercivo da quantia exequenda.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
A tramitação processual relevante para apreciação do presente recurso, é a seguinte:
1. O presente processo executivo iniciou-se em 28.04.2022 a requerimento do interessado AA, contra BB, tendo o requerimento executivo o seguinte teor:
«Finalidade: Execução nos próprios autos (…)
Valor da Execução: 8 122,82 € (Oito Mil Cento e Vinte e Dois Euros e Oitenta e Dois Cêntimos)
Finalidade da Execução: Pagamento de Quantia Certa - Dívida civil [Cível (Local)]
Título Executivo: Decisão judicial condenatória
Factos:
Como melhor decorre da conjugação dos títulos executivos que servem de base à presente execução, mormente da ata da conferencia de interessados do dia 2-11-2021, exequente e executada alcançaram a seguinte transação:
TRANSAÇÃO
1.º - Interessado/reclamante e Cabeça de Casal acordam que os bens a partilhar são:
a) a quantia monetária de € 12.000,00 (Doze mil Euros) depositada na conta bancária melhor identificada no requerimento da Cabeça de Casal de 20 de julho de 2021 com a referência 1865033, sem prejuízo das posteriores quantias monetárias transferidas pela arrendatária dos prédios rústicos, melhor identificada sob a verba 1(um) e 2(dois), em cumprimento do contrato até efectiva partilha.
Subsequentemente, conforme decorre da ata da conferência de interessados do dia 7-12-2021, devidamente homologada por sentença, ao interessado AA, aqui exequente, para preenchimento do seu quinhão foi-lhe adjudicada, para além do mais, metade da verba um (cfr relação de bens junta aos autos em 20-07--2021), ou seja, a quantia de 6.000,00 euros correspondente a metade do valor das rendas depositadas na conta bancária unicamente titulada pela cabeça de casal com o IBAN ...05.
Sendo que ao mesmo acresceriam ainda metade das rendas transferidas pela arrendatária dos prédios da herança até efetiva partilha, como resulta da transação consignada na ata de 2-11-2021.
A citada arrendatária transferiu a quantia de 4000,00 euros após a celebração da transação supra, o que fez antes da efetiva partilha do acervo hereditário.
Nessa medida, para preenchimento do respetivo quinhão, ao exequente assiste o direito de receber da executada as quantias de 6000,00 euros e 2000,00 euros, a título de metade das rendas pagas pela arrendatária dos prédios da herança, conforme transacionado e judicialmente homologado.
Até ao momento a executada não cumpriu o acordado.
Assim tem o exequente a haver da executada a quantia de 8000,00 euros e respetivos juros de mora vencidos e os que se vencerem até integral e efetivo pagamento».
Em anexo, o exequente juntou as atas a que aludiu: da inquirição de 02.11.2021, e da conferência de interessados de 07.12.2021.
Juntou ainda anexo com identificação dos “BENS INDICADOS À PENHORA
BEM: Depósito
Descrição do Bem:
PENHORA DO SALDO EXISTENTE NA CONTA BANCÁRIA COM O IBAN ...05 – BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS S.A.
Executado associado ao Bem: BB».
2. Na ata da diligência de 02.11.2021, tendo em vista a inquirição das testemunhas arroladas para decisão da reclamação apresentada contra a relação de bens, consta o seguinte:
«TRANSAÇÃO
1.º - Interessado/reclamante e Cabeça de Casal acordam que os bens a partilhar são:
a) a quantia monetária de € 12.000,00 (Doze mil Euros) depositada na conta bancária melhor identificada no requerimento da Cabeça de Casal de 20 de julho de 2021 com a referência 1865033, sem prejuízo das posteriores quantias monetárias transferidas pela arrendatária dos prédios rústicos, melhor identificada sob a verba 1(um) e 2(dois), em cumprimento do contrato até efectiva partilha.
b) todos os objetos em ouro, prata e mobiliário e demais recheio identificado na reclamação à relação de bens apresentada pelo Interessado/Reclamante;
c) os bens imóveis descritos no requerimento da Cabeça de Casal de 20 de julho de 2021;
d) o passivo melhor identificado no requerimento da Cabeça de Casal, de 20 de Julho de 2021, sem prejuízo dos valores monetários vincendos e pagos a título do Imposto Municipal de Imóveis até à efetivação da partilha. –
2.º - Custas em partes iguais.-
*
De imediato pela Mm. ª Juiz de Direito foi proferida a seguinte: -
SENTENÇA
Atendendo ao objecto da transacção, uma vez que estão em causa direitos disponíveis, e à qualidade das pessoas que nela intervêm, ao abrigo do disposto nos artigos 283.º, n.º 2, 289.º, n.º 1 a contrario e 290.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, julgo válida a transacção alcançada pelas partes, pelo que a homologo por sentença e, em consequência, jugo extinto o incidente de reclamação contra a relação de bens enxertado nestes autos.-
Custas do Incidente em partes iguais, atento o acordado, fixando-se a taxa de justiça pelo mínimo legal (artigo 537.º, n.º 2 do Código de Processo Civil). –
Registe e notifique -
DESPACHO
Notifique a Cabeça de Casal para que, no prazo de 10 dias, junte aos autos nova relação de bens devidamente actualizada e em concordância com a transacção que antecede. – (…)
Para a realização da Conferência de Interessados, designo o próximo dia 07 de dezembro de 2021, às 14h00m, data obtida com a concordância dos Ilustres Mandatários dos interessados».
3. Na ata da conferência de interessados realizada em 07.12.2021, consta o seguinte:
«pelos Ilustres Mandatários foi dito que as partes acordaram que:
- o saldo bancário relacionado sob a verba n.º 1 e bem assim a verba n.º 1 do passivo da relação de bens de 12-11-2021, com a referência 1936786 serão partilhados, por ambos, em partes iguais;
- o valor dos bens imóveis relacionados na relação de bens de 12-11-2021, com a referência 1936786 deverá ser o valor indicado pelo Sr. Perito no relatório com a referência 1895404 e 1895391 ambos de 20-09-2021;
- formar dois lotes com os bens móveis e imóveis relacionado na relação de bens de 12-11-2021, com a referência 1936786, nos seguintes termos:
Lote 1 – verba 3. -
Lote 2 – Verba 2, verba 4, verba 5, e verba 6. -
*
De imediato, foi efetuado um sorteio, para saber quem iniciava o sorteio, e o sorteio ditou que seria a Cabeça de Casal a iniciar o sorteio.
Após, foi efetuado o sorteio dos lotes, no âmbito do qual coube o Lote 1 à cabeça de casal, e o Lote 2 ao requerente.
*
Seguidamente pela Mª. Juiz, e considerando que as partes lograram alcançar acordo, unânime, quanto aos lotes que vão compor, no todo, o quinhão de cada um dos interessados e quanto aos valores por que são adjudicados, nos termos do disposto no artigo 1111º, n.º 1 e 2, alínea a) e n.º 3, todos do Código de Processo Civil, proferiu o seguinte:
DESPACHO
Nos presentes autos procede-se a inventário em consequência do óbito de CC, e no qual constam como interessados AA e BB.
Deve proceder-se à partilha do seguinte modo:
Soma-se o valor dos bens relacionados e, ao valor do activo é deduzido o valor do passivo aprovado e da responsabilidade de cada um dos interessados, sendo o valor a partilhar constituído pelo valor apurado e que será dividido em duas partes iguais, constituindo cada uma delas a meação dos interessados, cabendo uma à cabeça de casal, BB e outra ao requerente, AA, devendo, ainda, atentar-se, para efeitos de compensação, que a cabeça de casal procedeu ao pagamento da totalidade do passivo relacionado.
Quanto à composição dos quinhões proceda-se conforme acordado pelos Interessados.
*
Seguidamente procedeu-se à partilha da seguinte forma:
Operações de partilha:
Bens a partilhar Valor Ativo
Verba nº 1……………………….. ………..€ 12.000,00
Verba nº 2……………………….. ………..€ 15.235,00
Verba nº 3……………………….. ……....€ 190.000,00
Verba nº 4……………………….. ………..€ 39.000,00
Verba nº 5……………………….. ………..€ 35.000,00
Verba nº 6……………………….. ………..€ 90.000,00
Total do ativo………… ……..€ 381.235,00
Passivo
Verba 1…………………………... ……..…..€ 4.215,67
Valor apurado ………… € 188.509,67
Preenchimento dos quinhões:
O interessado AA, recebe:
- ½ da Verba 1 (um) …………………………………………………… …...……..…€ 6.000,00
- Verbas 2, 4, 5 e 6 (dois, quatro a seis)…………………………….. ….………€179.235,00
Soma………………………… ……....….€185.235,00
Pertence-lhe……………………………………………………...….... € 188.509,67
Recebe tornas da cabeça de casal BB.… …………….€ 3.274,67
A cabeça de casal BB, recebe:
- Verba 1 – ½ (um)…………………………………………………… ………..…€ 6.000,00
- verba 3 (três)………………………………………………………... …………€190.000,00
Soma…………………… …..….. € 196.000,00
Pertence-lhe………………………………………………….….... € 188.509,67
Excede..……………………… ……....…. € 7.490,33
Passivo por si pago………………………………………… …………...€ 4.215,66
Dá tornas ao interessado AA no montante de …………..€ 3,274,67 (…)
*
Seguidamente pela Mm. ª Juiz foi proferida a seguinte:
SENTENÇA
Nos presentes autos de inventário por óbito de CC, em que são interessados BB AA, atento o objeto disponível do litígio e a qualidade dos intervenientes, julgo válida a transação efetuada entre as partes, em conformidade com o disposto nos artigos 283.º, n.º 2, 284.º, 289º, nº, 1 e 290º, nºs 1 e 3 do Código de Processo Civil, que homologa por sentença, homologando também a partilha efetuada nos presentes autos de inventário e adjudicando aos interessados os quinhões nos termos acordados.
Custas pelos Interessados, na proporção do que receberam, nos termos do disposto no artigo 1130.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam. (…).
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III.2. – O mérito do recurso
Conforme resulta da tramitação supra relativa ao iter processual relevante do processo de inventário, para a compreensão do objeto do presente recurso, ultrapassadas as questões que foram sendo colocadas pelos dois interessados, designadamente quanto à relação de bens, o acervo dos bens a partilhar ficou estabilizado com o acordo do interessado reclamante e da cabeça-de-casal, obtido na diligência de 02.11.2021 e homologado por sentença, nos termos acima descritos, tendo também havido acordo, na conferência de interessados, quanto ao valor e partilha do saldo bancário, ao valor dos bens móveis e imóveis, à constituição dos lotes e à composição do quinhão de cada um deles. Nessa sequência, foi proferido despacho determinativo da partilha, elaborou-se o mapa da partilha, com o preenchimento dos quinhões de cada um dos interessados com as verbas indicadas, após o que se concluiu que o interessado AA, tinha tornas a haver da interessada BB, no valor de 3.274,67€. Seguidamente, as operações de partilha efetuadas, bem como a adjudicação aos interessados dos bens que integram a composição dos quinhões, e aquele valor devido a título de tornas, foram objeto da sentença homologatória da partilha, proferida na ata da conferência de interessados acima transcrita no ponto 3.
Invocando que a interessada cabeça-de-casal não cumpriu o acordado no transcrito ponto 1.º da transação que a tal respeito foi homologada por via da sentença constante da ata de 02.11.2021, verba que lhe foi adjudicada na proporção de ½, conforme decorre da ata da conferência de interessados de 07.12.2021, devidamente homologada por sentença, o exequente, com base nas indicadas sentenças, pretende que tem a haver da executada a quantia de 8.000,00€ (sendo 6.000,00€ da quantia depositada na conta, e 2.000,00€ a título de metade das rendas pagas pela arrendatária), acrescida dos respetivos juros de mora vencidos e vincendos, até integral pagamento, valor que pretende obter coercivamente por via da presente execução.
Conclusos os autos, o tribunal a quo, louvando-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.05.2020, (Proc. 3519/18.3T8LOU-A.P1), indeferiu liminarmente o requerimento executivo, nos termos do artigo 726.º, n.º 2, alínea a), por manifesta falta de título executivo, alinhando os seguintes fundamentos:
«Compulsado o título executivo que foi apresentado à presente execução, constata-se que o exequente ofereceu à execução duas sentenças homologatórias prolatadas nos autos principais, a saber no incidente de reclamação à relação de bens, e na partilha do inventário, para obter o pagamento do que refere ser o seu quinhão hereditário por parte da cabeça de casal.
Ora, e desde logo, constata-se que o exequente incorre em erro manifesto quando considera que a sentença homologatória da transacção ocorrido no incidente de reclamação à relação de bens constitui título executivo para obter da executada qualquer espécie de pagamento.
Efectivamente o incidente de reclamação à relação de bens constitui uma fase introdutória do processo de inventário, por via do qual, se define qual o acervo hereditário, que será subsequentemente alvo de partilha, não tendo qualquer valor extraprocessual.
Por outro lado, o pagamento das tornas tem que ser reclamado no próprio processo de inventário – o que o exequente não fez –, e os bens que possam ser vendidos para possibilitar tal pagamento não são os bens próprios do devedor, à escolha do credor, mas os que lhe foram adjudicados na partilha (cfr. artigo 1122.º, n.º 2 do NCPC).
Desse modo, a sentença homologatória de partilha só constitui título executivo para pagamento das tornas, caso a venda, no processo de inventário, de todos os bens que preenchem o quinhão hereditário do devedor, não tiverem sido suficientes para as satisfazer integralmente. (…)».
Dissente o Apelante, pela motivação acima transcrita nas conclusões das suas alegações, aduzindo ainda que «conforme mapa e operações de partilha, para preenchimento do seu quinhão, o interessado AA, recebe: ½ da verba 1: ….6.000,00 euros (e ainda metade das rendas pagas pela rendeira dos prédios rústicos da herança, que se apurou no valor de dois mil euros (2.000,00 euros), conforme ata da conferência de interessados realizada em Novembro de 2021, quantias que resultaram fixadas por transação das partes) e, as verbas 2, 4, 5 e 6. Desta operação de partilha o recorrente apenas recebeu os imóveis relacionados nas verbas 4, 5 e 6.
Das quantias que correspondem a metade da verba 1 (6000,00 euros + 2000,00 euros), até à data, o recorrente nada recebeu da cabeça-de-casal, sendo que tais quantias se encontram depositadas em conta bancária exclusivamente titulada por esta e, a que somente esta tem acesso (vem identificada no anexo respetivo do requerimento executivo e foi requerida a respetiva penhora).
O recorrente também ainda não recebeu os bens móveis que lhe foram adjudicados em partilha, que se encontram em parte incerta, na posse da cabeça-de-casal. (…)».
Cremos que o Apelante tem razão, e que a mesma se evidencia pela enunciação da tramitação processual relevante, acima transcrita.
Vejamos.
Em primeiro lugar, a decisão recorrida parte do pressuposto errado que a pretensão do exequente respeita ao pagamento de tornas quando, como aquele refere, «a descrição dos factos no requerimento executivo é inequívoca: (…) para preenchimento do respetivo quinhão, ao exequente assiste o direito de receber da executada as quantias de 6000,00 euros e 2000,00 euros, a título de metade das rendas pagas pela arrendatária dos prédios da herança, conforme transacionado e judicialmente homologado». Portanto, o exequente pretende ver coercivamente satisfeito o valor do seu quinhão hereditário, e não o valor das tornas a que tem direito (e que, aliás, afirma no recurso já ter recebido, como documentado nos autos de inventário).
Não obstante, mesmo que esta fosse a pretensão executiva, ao invés do que se entendeu na decisão recorrida, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a afirmar que o facto de, no processo de inventário ser previsto um procedimento executivo, incidental e simplificado, que atualmente se encontra previsto no n.º 2 do artigo 1122.º do CPC, na redação da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro (e anteriormente se encontrava no n.º 3 do artigo 1378.º do antigo CPC), em nada altera a natureza substantiva do crédito de tornas e da correspondente dívida, e «não preclude a possibilidade de lançar mão da execução comum nem dos meios de conservação da garantia patrimonial»[5].
No mais recente aresto do nosso mais Alto Tribunal concluiu-se que «não sendo o crédito de tornas dos exequentes (como não é) uma dívida da herança, mas, sim e apenas, uma dívida dos executados/embargantes, o recurso à execução comum é perfeitamente admissível para lograrem obter a satisfação do remanescente do seu crédito de tornas, sendo que o facto de já terem feito uso, no processo de inventário, do procedimento especial ínsito no nº 3 do art. 1378º do CPC (então vigente) não consubstancia qualquer alteração da natureza do crédito de tornas e da correspondente dívida».
Este entendimento é também expresso por ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE SOUSA[6], ao referirem em anotação ao artigo 1122.º do CPC que a partir do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha «os interessados com direito a tornas podem promover a venda de bens que tenham sido adjudicados ao devedor em situação de incumprimento (nº 2), procedimento que, por razões pragmáticas, pode ser enxertado no próprio processo de inventário se o credor assim o requerer, aplicando-se as normas atinentes à venda executiva (art. 549º, nº 2 do CPC), mas que não obstará a que se sigam as regras gerais».
E se assim é quanto ao crédito de tornas ou seu remanescente, obviamente também será quanto ao preenchimento do respetivo quinhão hereditário, sendo o título executivo a sentença homologatória da partilha, nos termos do artigo 703.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
Trata-se, aliás, de entendimento há muito expresso pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, como ilustra o Apelante com a citação do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.11.1992, no qual se afirmou que se o cabeça-de-casal se recusar a entregar aos interessados os bens que a estes foram adjudicados pela sentença homologatória do mapa da partilha, esta servirá de título executivo para obter essa entrega. Por este meio se forçará o cabeça-de-casal a cumprir as suas obrigações, a realizar o direito (que) aquela sentença definiu por forma definitiva, cessada que está a administração da herança que até aí lhe competia – artigos 2079 do Código Civil e 1382, do CPC – e uma vez que é ele que está na posse dos bens.
Mais recentemente, afirmou-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.05.2017, que a sentença homologatória da partilha proferida em processo de inventário sempre deveria, no que respeita à sua exequibilidade, ser equiparada a uma decisão condenatória proferida em processo comum.
Este é igualmente o entendimento da mais atual doutrina.
Afirmam os citados autores que «o mapa da partilha (art. 1120º), ou da partilha parcial (art. 1112º), associado à sentença homologatória, servirá para (…), se necessário, sustentar o cumprimento coercivo da obrigação de entrega de bens (art. 1096º) ou de pagamento das tornas (art. 1122º, nº 2)»[7]. E mais adiante precisam: «a sentença homologatória (ainda que apenas contenha uma condenação implícita) vale como título executivo para pedir a entrega dos bens contra o herdeiro que esteja na posse dos mesmos (…) e também para que o credor exija o cumprimento coercivo da obrigação pecuniária (artigo 1106º, nº 1)»[8].
Neste mesmo sentido, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, CARLOS LOPES DO REGO, ANTÓNIO ABRANTES GERALDES e PEDRO PINHEIRO TORRES[9], defendem que “a sentença homologatória da partilha constitui título executivo para a imposição coerciva dos direitos que nela são reconhecidos (art. 703º, nº 1, al. a)). É certo que, em relação a muito do que nela é decidido, não se verifica a condenação expressa de um interessado, mas isso não impede que se possa considerar que a sentença homologatória, ao reconhecer certos direitos contém uma condenação implícita na sua satisfação» (…).
Revertendo estes ensinamentos ao caso em presença, vemos que o exequente juntou a sentença homologatória da partilha e respetivo mapa, e ainda a sentença que homologou o acordo entre os interessados a respeito do âmbito da relação de bens. Ou seja, não foi esta sentença singela que o exequente deu à execução. Apresentou-a juntamente com a sentença homologatória da partilha, sendo o conjunto de ambas, o título executivo em que o exequente funda a sua pretensão.
Com efeito, não constando na sentença homologatória da partilha uma condenação expressa dos interessados a qualquer pagamento, ela há de ser necessariamente complementada com o mapa da partilha, porque é este que corporiza a repartição do acervo hereditário pelos interessados, que será submetida à subsequente homologação, por sentença, pelo juiz.
Na verdade, «o mapa da partilha constitui um documento-síntese que se desdobra em três elementos: enunciação do ativo e do passivo da herança; indicação da quota de cada interessado, tendo por base a forma à partilha anteriormente fixada nos termos do art. 1110º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a); preenchimento dos quinhões de cada interessado com bens ou lotes de bens. Concretiza o que tiver sido decidido ou acordado relativamente aos direitos de cada interessado, com integração não apenas dos ativos patrimoniais, mas também do passivo; corporiza, através de verbas ou de lotes, os bens que a cada um serão atribuídos, de acordo com as avaliações e licitações efetuadas, das dívidas, legados e encargos a considerar e da proporção das quotas de cada interessado»[10]. Assim, subsequentemente, «a sentença homologatória da partilha transforma os direitos de cada um dos herdeiros sobre o património indiviso em direitos individualizados sobre bens determinados»[11], daí a complementaridade entre ambos.
In casu, para que se possa aquilatar do âmbito da verba n.º 1, o exequente juntou ainda com o requerimento executivo o acordo lavrado em 02.11.2021, onde consta: a) a quantia monetária de € 12.000,00 (Doze mil Euros) depositada na conta bancária melhor identificada no requerimento da Cabeça de Casal de 20 de julho de 2021 com a referência 1865033, sem prejuízo das posteriores quantias monetárias transferidas pela arrendatária dos prédios rústicos, melhor identificada sob a verba 1(um) e 2(dois), em cumprimento do contrato até efectiva partilha.
Tendo este acordo sido homologado por sentença, é com base neste que o exequente deduz a pretensão exequenda na parte respeitante à quantia de 2.000,00€, que corresponde à liquidação que efetua das rendas entregues entretanto pela arrendatária, afirmando que as quantias que correspondem a metade da verba 1 (6000,00 euros + 2000,00 euros), até à data, o recorrente nada recebeu da cabeça-de-casal, sendo que tais quantias se encontram depositadas em conta bancária exclusivamente titulada por esta e, a que somente esta tem acesso (vem identificada no anexo respetivo do requerimento executivo e foi requerida a respetiva penhora).
Conclui-se, portanto, que o despacho de indeferimento liminar da execução não pode subsistir, uma vez que a presente execução constitui meio processual próprio para o interessado obter coercivamente a satisfação do seu crédito decorrente da composição dos quinhões, nos termos acordados, e a sentença homologatória da partilha constitui título executivo que in casu, para além do mapa da partilha, que concretiza o que foi acordado relativamente aos direitos de cada interessado, é ainda complementado com a sentença homologatória da transação ocorrida no incidente de reclamação contra a relação de bens, a respeito da composição da verba n.º 1, a cuja liquidação procedeu.
Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, procede o presente recurso.
Vencida, a Apelada suporta as custas de parte do recurso, atento o princípio da causalidade e o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do CPC.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação, revogando a decisão recorrida, e determinando o prosseguimento dos autos.
Custas pela Recorrida.
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Évora, 11 de maio de 2023
Albertina Pedroso [12]
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

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[1] Juízo Local Cível de Portalegre – Juiz 2.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Francisco Xavier; 2.ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro.
[3] Que se limitam às necessárias para a compreensão do objeto do recurso, uma vez que as restantes configuram motivação, cujo lugar próprio é o corpo das alegações.
[4] Doravante abreviadamente designado CPC, sendo aplicável aos termos do presente recurso o texto decorrente do Código de Processo Civil na redação dada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, que nos termos do respetivo artigo 15.º, entrou em vigor em 1 de janeiro de 2020.
[5] Cfr. neste sentido e para maior desenvolvimento, Acórdãos STJ de 23.01.2020 (proc.798.18.0T8PNF.P1.S1), e de 14.10.2021 (proc. 23723/19.6T8PRT-A.P1.S1).
[6] In CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Vol. II, 2.ª edição, ALMEDINA 2022, pág. 648.
[7] In Obra citada, pág. 647.
[8] In Obra citada, pág. 649.
[9] In “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, ALMEDINA, pág. 133.
[10] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE SOUSA, obra citada, pág. 642.
[11] Idem, pág. 647.
[12] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos 3 juízes desembargadores que compõem esta conferência.