Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
99/19.6GCPTM.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PENA ACESSÓRIA
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - O artigo 152.º, n.º 4 do CPP não impõe o dever de o juiz se pronunciar sobre todas as penas acessórias ali previstas, resultando essa interpretação de uma correta análise da expressão “podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias” ali expressamente consignadas.

Na verdade, o Tribunal apenas deverá justificar as penas acessórias aplicadas, pois quando o faz restringe os direitos do arguido, o que não sucede com a sua não aplicação.

2 – É nula, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, a sentença que não arbitrou indemnização à vítima de crime de violência doméstica que não renunciou expressamente a essa indemnização, como decorre da conjugação dos artºs artºs 21º, nº 2, da L. 112/09 de 16/9 e 82º-A do C.P.P..

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo Comum Singular n.º 99/19.6GCPTM, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Portimão, Juiz 3, submetido a julgamento por acusação do MP, foi a arguida (...) condenada:
- Pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) do CP na pena parcelar de dois anos e sete meses de prisão;
- Pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d) do RJAM, na pena parcelar de cinco meses de prisão;
- Em sede de cúmulo jurídico de penas na pena única de dois anos e nove meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de dois anos e nove meses, acompanhada de regime de prova assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio da DGRS, durante o tempo de duração da suspensão, com vista a permitir a reintegração da arguida na sociedade (artigo 53.º, n.ºs 1 e 3 do CP) e que deverá incidir na sua problemática ao alcoolismo.
- Na pena acessória de proibição de estabelecer contactos com a sua filha, (...), pelo período de seis meses.
- No pagamento, ao Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE, da quantia de 815,71 €, acrescida de juros de mora legais, contados desde a data da prestação de cuidados de saúde, até efetivo e integral pagamento.
O Tribunal a quo declarou, ainda, perdida a favor do Estado a arma apreendida.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões do Ministério Público
Inconformado com a decisão o MP interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição parcial):
“1ª – O presente recurso vem interposto da sentença proferida e depositada no dia 26 de Junho de 2020, no âmbito do Processo Comum, Tribunal Singular, n.º 99/19.6GCPTM, que condenou a arguida (...), pela prática um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. d), e 2, al. a), do Código Penal, na pena única de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão, e na pena acessória de proibição de contactos com a vítima por um período de 6 meses, bem como pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, al. d), por referência ao artigo 3.º, n.º 2, al. g), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, numa pena de 5 meses de prisão.
Após realização do cúmulo jurídico, foi a arguida condenada numa pena única de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e condicionada a regime de prova da competência da DGRSP.
2ª - Analisada a sentença proferida nos autos, o Ministério Público não se pode conformar com a mesma, por duas ordens de razões.
3ª - Em primeiro lugar, porque a sentença é nula, por omissão de pronúncia, uma vez que não toma qualquer posição sobre questões de que podia e devia ter conhecido, concretamente quanto às penas acessórias de uso e porte de armas e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, expressamente requeridas pelo Ministério Publico, nos termos do disposto no artigo 152.º, n.º 4, do Código Penal, e quanto à indemnização a arbitrar à vítima, nos termos das disposições conjugadas do artigo 21.º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, e do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal;
4ª - Violou, deste modo, a sentença recorrida o disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, sendo certo que o Tribunal dispunha de todos os elementos para se pronunciar quanto a tais questões;
5ª - Na verdade, foram dados como provados os seguintes factos:
(…)
6ª – Entende o Ministério Público que, ao determinar as penas concretas a aplicar, o Tribunal a quo não atendeu devidamente às circunstâncias relevantes para tal e foi excessivamente brando e benevolente para com a arguida, quer em termos concretos, quer em termos comparativos e de proporcionalidade, revelando-se as penas principais e acessória injustas, por desajustadas e insuficientes para acautelar as exigências de prevenção e as finalidades da punição.
7ª – Assim, na determinação da medida concreta da pena, refere o Tribunal a quo:
«nesta conformidade, as penas concretas a aplicar à arguida serão determinadas, dentro da respectiva moldura penal, fixada no seu tipo incriminador, considerando todas as circunstâncias que, não fazendo parte daquele tipo de crime, deponham a favor ou contra a mesma.
Assim, e ao abrigo do nº 2 do artigo 71º do CPP, cumpre atender: - contra a arguida -
a) O grau de ilicitude: é ainda mediano, quanto a ambos os crimes (sendo de considerar, por um lado, que o crime de violência doméstica se limitou a factos ocorridos num curto período de tempo, embora com um grau de gravidade já mediano, atentos os concretos factos praticados, tendo ainda recorrido, em duas ocasiões, ao uso do bastão, e por outro o facto de, detendo a referida arma, não se limitou a detê-la, antes a tendo usado, ofendendo com a mesma a integridade física da sua filha, por sua vez, pessoa particularmente indefesa);
b) carácter doloso: é de intensidade média, em ambos os crimes;
c) a arguida tem antecedentes criminais, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, sofrendo pena de prisão, suspensa na sua execução, e praticou os factos no decurso do período da suspensão;
d) as consequências dos seus actos: provocou lesões físicas que demandaram, à ofendida, períodos de doença, reveladores da intensidade das ofensas sofridas;
- A favor da arguida -
e) é primária, quanto a qualquer dos crimes pelos quais vai agora condenada;
f) admitiu parte dos factos e pelos mesmos mostrou arrependimento;
g) a arguida é alcoólica crónica, tendo cometido os factos sob a sua influência, sendo que o abuso do álcool transforma a arguida em pessoa mais agressiva;
h) a arguida está, actualmente, afastada da sua filha.
Em face de tudo quanto fica exposto e devidamente ponderado, afigura-se adequado punir a prática do crime de violência doméstica, na pena parcelar de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão, e a prática do crime de detenção de arma proibida, na pena parcelar de 5 (cinco) meses de prisão».
8ª – Ora, analisando a fundamentação da determinação concreta da medida da pena constante da douta sentença, sobressai desde logo a ausência de qualquer referência, quer às exigências de prevenção geral, quer às exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir;
9ª - por outro lado e apesar de mencionar a maioria das circunstâncias relevantes para a determinação concreta da pena – nomeadamente as que constam do artigo 71.º do Código penal -, não lhes dá a devida importância nem extrai as consequências que as mesmas necessariamente impõem;
10ª - Desde logo porque as exigências de prevenção geral do crime de violência doméstica se revelam muito elevadas, atentas as consequências sociais e as proporções que o flagelo do fenómeno da violência doméstica tem vindo a assumir na sociedade actual, e que muitas vezes acaba por terminar na morte das vítimas (…), o mesmo se aplicando ao crime de detenção de arma proibida, sendo neste caso as necessidades de prevenção geral elevadas, considerando a perigosidade das condutas tipificadas pelo mesmo e a gravidade das consequências que pode advir da utilização de armas, bem como o inerente alarme social que tal provoca.
11ª - Por outro lado, no caso dos autos, há que salientar a gravidade da ilicitude da conduta da arguida, que é elevada (e não mediana, como refere a sentença) - que agrediu a sua própria filha que, como refere o próprio Tribunal, «apesar de ter 31 anos de idade, sofre de debilidade mental, padece de epilepsia e ambiopia grave, pelo que depende do auxílio de terceiros na condução da sua vida», e que o fez, não com as mãos ou os pés, mas com um bastão artesanal (semelhante a um bastão policial) de que se muniu – e a culpa da arguida, que também se revela elevada, assumindo a modalidade de dolo directo, que é muito intenso (e não mediano, como refere o Tribunal) - uma vez que a arguida quis praticar aqueles factos, agindo com absoluto desprezo pela saúde e integridade física da sua filha e pela sua condição de pessoa particularmente indefesa -, conhecedora que era, necessariamente, da potencialidade do bastão utilizado para praticar os factos e que a mesma detinha na sua residência, sendo certo que não se tratou de uma conduta isolada, um acto irreflectido e impulsivo, pois ficou provado que a arguida usou o bastão para agredir a sua filha em mais do que uma ocasião.
12ª - Por último, há que salientar evidentemente as exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir, quer pelo percurso de vida da arguida, pela sua postura perante os factos - que apenas reconheceu parcialmente - mas também e sobretudo pela circunstância de ter cometido os factos em pleno decurso da suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenada, por um ilícito criminal da mesma natureza mas de menor gravidade.
13ª - Assim e considerando as molduras penais abstractamente aplicáveis aos crimes em apreço e o teor da própria fundamentação para a determinação da medida concreta da pena, não podemos concordar com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, que fixou uma pena muito próxima do mínimo legal (2 anos), quando os factos foram praticados apenas 7 meses depois da sentença proferida no proc. n.º 105/17.9GCPTM, onde a arguida foi condenada pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, numa pena de prisão suspensa na sua execução, e desatendendo a todas as outras circunstâncias supra mencionadas e às quais a medida concreta da pena deve sempre atender – a culpa com que a arguida actuou, a gravidade das circunstâncias, as necessidades de prevenção geral e especial e as finalidades da punição.
14ª - Ora, sendo a pena a aplicar à arguida pela prática do crime de violência doméstica de 2 a 5 anos, deveria o Tribunal ter condenado a arguida, pelo menos, em 3 anos e 6 meses de prisão, sob pena de não se assegurarem as elevadas necessidades de prevenção geral e elevadíssimas necessidades de prevenção especial que, no caso, se fazem sentir.
15ª - O mesmo se diga relativamente ao crime de detenção de arma proibida, sendo de salientar, para além de todas as outras circunstâncias, que a arguida não se limitou a ter no seu domicílio um bastão (em tudo idêntico a um bastão policial) como o utilizou para agredir a sua filha, particularmente vulnerável e incapaz de defesa, pelo que se nos afigura muitíssimo reduzida a pena de 5 meses de prisão aplicada, devendo, em nosso entender, ser aplicada uma pena de pelo menos 10 meses de prisão.
16ª - Por tudo o exposto, com o devido respeito e salvo melhor opinião, o Tribunal a quo ao aplicar pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão em que condenou a arguida, violou o disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal.
Assim sendo, tudo ponderado, atendendo aos limites abstractos das penas, afigura-se adequada aplicar à arguida (...):
- pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo art. 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), do Código Penal, a pena de 3 anos e 6 meses de prisão;
- pela prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido no artigo 86.º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e munições, a pena de 10 meses de prisão.
17ª – Atento o disposto no artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única.”
18ª - Assim e caso o recurso tenha provimento, a pena única em que a arguida (...) foi condenada também deverá ser reformulada.
19ª - Atendendo ao disposto no artigo 77.º, n.º 2, do C. Penal, a pena única aplicada à arguida (...) situar-se-á entre os 3 anos e 6 meses de prisão (mais alta das penas parcelares) e os 4 anos e 4 meses de prisão (soma da totalidade das penas aplicadas).
20ª - Tendo em atenção as considerações expendidas sobre a determinação das penas parcelares, e analisando a globalidade da factualidade que se deu como provada, revelando a arguida uma acentuada ilicitude e insensibilidade moral perante o sofrimento da vítima, sua filha e pessoa particularmente indefesa, não tendo mostrado arrependimento para a totalidade dos factos que praticou, entende-se adequado fixar a pena única da arguida (...) em 4 anos de prisão (ainda que suspensa na sua execução).
21ª - Acresce que também a pena acessória de 6 meses de proibição de contacto com a vítima fixada à arguida se revela absolutamente desadequada e ineficaz para assegurar quer a protecção da vítima, quer a reeducação da arguida, devendo tal pena fixar-se no período de 3 anos e 6 meses.
22ª – Para além disso, e uma vez que o Tribunal a quo não se pronunciou relativamente às outras penas acessórias requeridas pelo Ministério Público, deverão agora fixar-se as penas acessórias de uso e porte de armas e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, tanto mais que nem sequer foi determinado que o regime de prova da competência da DGRS, a que ficou condicionada a suspensão da execução da pena principal, assentasse nalgum programa de prevenção da violência doméstica ou tratamento ao alcoolismo de que a arguida padece.
23ª - Assim e tendo em conta, mais uma vez, as considerações expendidas sobre a determinação das penas parcelares, e analisando a globalidade da factualidade que se deu como provada, o facto de ter sido utilizado um bastão semelhante a um bastão policial para agredir a sua filha, pessoa particularmente indefesa, e a personalidade da arguida – conflituosa, agressiva e impulsiva -, que se manifesta de forma mais exacerbada quando a mesma consome bebidas alcoólicas em excesso (dado que a mesma é alcoólica crónica), entendemos que também as referidas penas acessórias deverão de igual modo ser fixadas por um período de 3 anos e 6 meses.
Termos em deverá ser dado provimento ao recurso e a sentença recorrida ser revogada em conformidade com o exposto. (…)”.


2.3. Do parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser julgada a procedência total do recurso interposto pelo arguido.
“II – Considerando as questões suscitadas na motivação de recurso da Magistrada do Ministério Público do Juízo Local Criminal de Portimão, refere-se que, manifestando concordância genérica com as perspetivas jurídicas e conclusões apresentadas, apontando de forma clara e assertiva os motivos e fundamentos que evidenciam a sua pretensão, acompanhamos tal posição e louvamo-nos na respectiva argumentação, também opinando no sentido da procedência do recurso.
De facto, consta no segmento incriminatório da acusação deduzida pelo Ministério Público em 2-3-2020:
“Tal factualidade é susceptível de integrar em abstracto, em autoria material a prática pela arguida (...) de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º n.º 1 al. d) e n.º 2 al a) do Código Penal e nas penas acessórias previstas no disposto no nº 4 e 5 do mesmo dispositivo legal, em concurso real com um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 86º nº 1 al. d) e artigo 3º nº 2 al. g) da Lei nº 5/2006 de 23/02.”
Não obstante, a sentença, nada refere a propósito da aplicação das penas acessórias de proibição de uso e porte de armas e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
Também não se pronuncia sobre o arbitramento de uma indemnização à vitima, considerando o disposto nos artigos 82.º- A do CPP e 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, o que deveria ter feito dado que a vitima não se opôs expressamente ao seu arbitramento.
Tal omissão constitui também nulidade da sentença como é sobejamente reconhecido pela jurisprudência dos tribunais superiores (acórdãos já citados na motivação de recurso do Ministério Público).
Com efeito, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, c), do CPP, a sentença é nula se o tribunal deixar de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou, conhecer questões de que não podia tomar conhecimento. Isto é, se houver omissão ou excesso de pronúncia.
Interessando apenas para o presente caso a eventual situação de omissão de pronúncia.
Vejamos alguma da nossa jurisprudência sobre o tema:
Segundo Acórdão desta Relação de 2010-11-19, processo n.º 17/12.2TDEVR.E1, in www.dgsi.pt :
“I - Só se verificará omissão de pronúncia do tribunal se, dada a relevância da questão, deixe de emitir opinião, o que se prende com a oficiosidade do conhecimento de todas as questões que são pertinentes à decisão da causa e resultante da natureza dos interesses que se visam proteger.
(…)”
E, Acórdão da Relação de Guimarães, de 2018-07-10, processo n.º 421/14.1IDBRG.G1, in www.dgsi.pt :
“I - O vício da nulidade da sentença por omissão de pronúncia prende-se com o incumprimento do dever de resolver todas as «questões» submetidas à apreciação do tribunal, exceptuando aquelas cuja apreciação esteja prejudicada pela solução dada a outra, verificando-se, pois, quando o tribunal deixa de decidir uma questão que faz parte do objecto do processo, definido, em primeira linha, pela acusação/pronúncia e pela contestação, mas também pelos factos que resultarem da discussão da causa (julgamento), sem prejuízo do preceituado nos artigos 358º e 359º do CPP, desde que sejam relevantes para a decisão a proferir, mais concretamente, para a resolução das questões elencadas no nº 2 do artigo 368º do CPP e, no caso de se concluir pela condenação do arguido, para decidir sobre a determinação da espécie e medida da pena a aplicar.”
(…)
Não há dúvida que o tribunal não se pronunciou sobre questões alegadas na acusação, sendo manifesta a omissão de pronúncia, como bem defende a Magistrada recorrente.
Tal matéria consubstancia a nulidade da sentença conforme determina o disposto no artigo 379.º n.º 1 c) do CPP, a suprir nos termos previstos no n.º 2 do mesmo dispositivo legal.
III – Quanto à medida da pena acompanhamos na íntegra a motivação de recurso da Magistrada do Ministério Público, nada mais havendo a acrescentar.
Nesta conformidade somos de parecer que o recurso interposto pelo Ministério Público deve ser julgado integralmente procedente, alterando-se a douta sentença em conformidade.”.

2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questões a examinar
Analisadas as conclusões de recurso as questões são as seguintes:
2.1. Violação do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP, com a consequente nulidade da sentença por omissão de pronúncia:
- Quanto às penas acessórias de uso e porte de armas e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, expressamente requeridas na acusação pelo Ministério Publico, nos termos do disposto no artigo 152.º, n.º 4 do CP;
- Quanto à indemnização a arbitrar à vítima, nos termos das disposições conjugadas do artigo 21.º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro e do artigo 82.º-A do CPP.
2.2. Erro de julgamento quanto ao direito (artigo 412.º, n.º 2 do CPP) por se revelaram excessivamente brandas as concretas penas principais e acessória aplicadas.

3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida.

3.1.1. Factos provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“1. A arguida é mãe de (…), nascida a (…), coabitando ambas na residência sita na (…).
2. (...), tem 31 anos de idade e está reformada por invalidez, desde 2014, sofrendo de défice cognitivo e de epilepsia parcial complexa, secundárias a anoxia perinatal com lesões vasculares cerebrais graves irreversíveis, além de estrabismo divergente e uma ambliopia grave.
3. (...) passou a residir com a sua mãe após o falecimento do seu avô, em Maio de 2019, com quem, até então, vivia.
4. A arguida vivia, então, com um companheiro, que terá, entretanto, abusado de (...), tendo sido, nessa sequência instaurado procedimento criminal e terminado aquele relacionamento.
5. A arguida, depois de saber o que se tinha passado, passou a culpar a sua filha pelo fim do referido relacionamento.
6. Assim, no dia 15 de Julho de 2019, no interior da residência, a arguida, munida de um bastão artesanal, semelhante a um bastão policial, com 46,5 cm de comprimento (composto por um cabo de electricidade de alta tensão, contendo, no seu interior, diversos fios metálicos, revestido de plástico, com uma pega de cordel e uma empunhadura com fita isoladora), dirigiu-se à sua filha e desferiu-lhe uma pancada, que a atingiu na coxa, provocando-lhe dores e um hematoma, tendo-a ainda chamado de “puta” e de “porca”.
7. Novamente, no dia 02 de Agosto de 2019, pelas 23h40, no interior da residência, a arguida, utilizando o mesmo bastão, desferiu pancadas no corpo da (...), quando esta se encontrava deitada na sua cama, que a atingiram no braço, enquanto a chamava de “puta” e de “porca”.
8. Nessa ocasião, a (...), puxando pelo bastão, conseguiu tirá-lo das mãos da arguida, e fugiu de casa, descalça e vestindo apenas uma camisola e roupa interior, tendo-se dirigido ao Posto da GNR, onde entregou o dito bastão às autoridades, tendo sido encaminhada para o Hospital, para observação, acabando, depois, por pernoitar em casa de um tio.
9. Em consequência directa e necessária de tal conduta, (...) sofreu traumatismo na face anterior, lateral e posterior do braço e do antebraço direito (uma equimose arroxeada na face anterior, lateral e posterior do braço, com 19 cm x 18 cm, e uma equimose arroxeada no terço proximal da face lateral do antebraço, com 7cm x 5 cm), lesões, essas, que lhe determinaram 15 dias de doença, com igual período de afectação da capacidade de trabalho geral.
10. No dia 22 de Agosto de 2019, pelas 23h00, estando ambas em casa, a arguida abriu a porta da rua e expulsou a filha, a qual se dirigiu, a pé, para a casa do seu tio, que dista a cerca de 2 km da sua casa, vindo a ser encontrada, pela GNR, nesse percurso, que a levou até ao seu tio.
11. No dia seguinte, ao fim da manhã, (...) regressou a casa, tendo pedido à arguida para lhe dar comida e a sua medicação, o que a mesma não lhe quis dar.
12. Estando ambas na rua, à porta de casa, a arguida dirigiu-se à sua filha e desferiu-lhe uma chapada na cara.
13. Tendo sido chamada a GNR ao local, quando (...) relatou aos militares que ali acorreram o que se havia passado, a arguida abeirou-se da mesma e desferiu-lhe um estalo na cara, empurrando-a para cima do sofá que se encontrava à entrada da casa, e jogou-lhe as mãos ao pescoço, altura em que os militares intervieram, afastando-a da filha, que foi depois transportada ao Hospital para observação.
14. Em consequência directa e necessária de tal conduta, (...) sofreu dores nas regiões atingidas e uma equimose arroxeada no terço médio da face posterior do braço, com 4cm x 4 cm, lesões que lhe determinaram um período de 5 dias de doença, com igual período de afetação da capacidade de trabalho geral.
15. A arguida é alcoólica, tendo praticado todos os factos depois de ter abusado de bebidas alcoólicas e sob a sua influência.
16. Em algumas ocasiões, a arguida disse à filha para lhe ir comprar bebidas alcoólicas, ao que a mesma acedeu, com medo que a mãe lhe pudesse bater, caso se recusasse.
17. O bastão usado pela arguida, atentas as suas características, é um instrumento próprio para ser utilizado como meio de agressão, sendo adequado a provocar lesões corporais.
18. A arguida tinha em seu poder aquele bastão, sabendo que o mesmo serve apenas como meio de agressão, como quis fazer, sabendo que, nessas circunstâncias, lhe estava vedada aquela detenção, agindo de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
19. Ao agir do modo apurado, agredindo e insultando a sua filha, que sabia padecer de doença do foro psíquico, agiu a arguida com o propósito de a humilhar, molestar física e psicologicamente e afectá-la na sua dignidade pessoal, na sua liberdade, na sua honra e no seu bem-estar, propósito esse que logrou alcançar porquanto aquela teme e receia pela sua vida, saúde, liberdade, integridade física e psicológica.
20. Agiu ainda a arguida de modo voluntário e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, tendo plena liberdade para se determinar segundo essa avaliação.
21. A Unidade Hospitalar de Portimão do Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE, no exercício da sua actividade, prestou cuidados de saúde a (...), os quais consistiram em dois episódios de urgência, dias incidências ao braço, duas incidências ao punho e internamento, no valor total de 815,71 euros, devido às lesões pela mesma sofridas nas datas dos autos.
22. A arguida manifestou arrependimento quanto aos factos praticados em 02.08.2019.
23. A arguida vive sozinha, na residência dos autos, após a ruptura do relacionamento amoroso que mantinha e o acolhimento da sua filha em instituição.
24. A arguida provém de agregado familiar descrito como multi-problemático, com problemas de saúde mental e com vários dos seus elementos com hábitos de consumos excessivos de bebidas alcoólicas, sendo que a arguida também sofre de alcoolismo crónico.
25. No meio onde se insere, a arguida é considerada como uma pessoa conflituosa, agressiva e com dificuldades em controlar impulsos, sobretudo quando ingere bebidas alcoólicas.
26. A arguida mantém contactos reduzidos com a sua família, à excepção da sua madrinha.
27. A arguida, após a conclusão do ensino secundário, apenas esteve empregada de forma descontinuada, tendo chegado a frequentar algumas acções formativas, sem que, com tais acções, tivesse obtido empregos com carácter estável, estando desempregada desde há mais de 10 anos, não estando inserida em actividades ocupacionais estruturadas.
28. Desde Março de 2019, que a arguida tem vindo a ser seguida, quanto à problemática aditiva, na ETET de Portimão.
29. A arguida reconhece que os consumos de bebidas alcoólicas influem negativamente o seu comportamento e organização pessoal.
30. A arguida já foi condenada, por sentença proferida em 21.11.2018, e transitada em julgado em 21.12.2018, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses, acompanhada de regime de prova (por factos praticados em 02.09.2017). “.

3.1.2. Factos não provados na 1ª instância
O Tribunal a quo considerou que não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a presente causa nomeadamente que:
“1. A arguida não forneceu comida e medicação à sua filha durante todo o dia de 22.08.2019.
2. No dia 23.08.2019, foram várias as chapadas que a arguida desferiu à sua filha, quando se encontravam na via pública, tendo-lhe ainda desferido empurrões, para a mesma entrar em casa, onde a continuou a agredir.
3. A arguida, quando ordenava à filha que lhe fosse comprar bebidas alcoólicas, advertia-a de que lhe bateria se não o fizesse.
4. O bastão é, por si só, susceptível de causar a morte quando usado como instrumento de agressão.”.

3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido
O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma:
“Sendo certo que, salvo quando a lei disponha diferentemente, a prova, nos termos do art.º 127.º do CPP, deve ser apreciada, no seu conjunto, segundo as regras da experiência e segundo a livre convicção do julgador, foram os seguintes os meios de prova nos quais o Tribunal fundou a sua convicção quanto à factualidade apurada:
1) Declarações da arguida: a qual, admitindo ter batido à sua filha, com o bastão dos autos, na noite de 02.08.2019, e ter-lhe chamado os nomes narrados na acusação, porquanto, segundo a própria, ter-se-ia “passado” da cabeça, negou, quanto ao demais, toda a restante factualidade descrita nos autos. Quanto ao episódio de 02.08.2019, explicou que a atingiu no braço, com o bastão, no seguimento de uma discussão, motivada pelo facto de a sua filha não lhe ter contado logo dos abusos que teria sofrido, pelo seu companheiro, o que, conjugado com o stress que vinha sentindo desde a morte do seu pai e com o álcool que tinha ingerido, a tivesse levado a perder as estribeiras. A respeito do bastão, explicou que o mesmo pertencia a um antigo companheiro, que ali o havia deixado e que para ali ficou, esquecido, desconhecendo que se tratasse de um bastão ou que fosse proibida a sua detenção. Mais esclareceu que, após o afastamento da sua filha, iniciou tratamento, junto da ETET. Ora, a sua versão, na parte em que admitiu os factos, foi valorada, até porque se mostra confirmada pelo restante acervo probatório. Quanto ao bastão utilizado, pese embora a mesma alegasse desconhecer aquela nomenclatura, reconheceu tratar-se de um instrumento semelhante aos cacetetes usados pela Polícia (termo, este, que a mesma já compreendeu), sendo que admitiu que tal objecto se encontrava em seu poder havia largo tempo (sabia que o tinha e onde estava guardado, tanto assim que, mesmo sob efeito do álcool, foi buscá-lo, tendo-o usado para agredir a sua filha, ou seja, sabendo qual era a aptidão do instrumento e fazendo uso dele para esse fim). Ora, se a arguida reconheceu a similitude do dito instrumento (artesanal) com um cacetete policial, ou seja, com instrumento usado pelas forças policiais, para uso destas, caso seja necessário repor a segurança e ordem públicas (isto é, como meio de “agressão”), não podia desconhecer a finalidade “agressora” do dito bastão (ou seja, que se trataria de uma arma), nem que só as autoridades policiais estariam autorizadas a deter tal tipo de instrumento, sendo o que a mesma detinha construído de forma a replicar o bastão policial. Ou seja, não podia a mesma, sem censura, desconhecer, que se tratava de uma arma e que a sua detenção era, por isso, proibida. Quanto aos restantes factos, apesar de a mesma os ter negado, foi a sua versão directamente contrariada pelos restantes meios de prova, pelo que não se mostrou adequada a gerar dúvidas sobre a realidade dos mesmos, tal como narrados nos autos. Valoraram-se as suas declarações a respeito da sua situação pessoal, por coerentes.
2) Depoimento da testemunha (...): filha da arguida, a qual, de modo coerente, expressivo e vívido, relatou os episódios descritos nos autos, confirmando, no essencial, a factualidade descrita na acusação. Mais foi a mesma consistente com o que resultou da prova documental junta aos autos, sendo as suas declarações corroboradas pelo depoimento das testemunhas inquiridas, pelo que mereceu credibilidade para o apuramento dos factos.
3) Depoimento da testemunha (…): que trabalha numa loja sita próxima da residência da arguida, e que esclareceu, quanto aos factos do dia 23.08.2020, que, nessa manhã, apercebeu-se de um barulho vindo da casa daquela, tendo visto a mesma, à porta de casa, a amassar revistas e jornais e a jogá-los para a rua, enquanto falava em tom alto, indiciando encontrar-se embriagada. Viu ainda, instantes depois, chegar a (...), tendo a arguida ralhado com a mesma, o que a levou a atravessar a estrada, altura em que a arguida se aproximou daquela e lhe deu uma palmada, pelo que decidiu chamar a GNR. Nada mais soube esclarecer por não ter presenciado. Acrescentou que a arguida sofre de problemas com o abuso de bebidas alcoólicas, tendo chegado a fazer um tratamento, altura em que melhorou, mas após o falecimento dos pais voltou a abusar do álcool. A testemunha depôs de modo coerente, tendo sido valorado o seu depoimento para o apuramento dos factos.
4) Depoimento da testemunha (…): que esclareceu, a respeito dos factos de 23.08.2019, quando se encontrava na loja da sua mãe, sita na rua onde mora a arguida, que se apercebeu de vozearias, tratando-se da arguida, que aparentava estar embriagada, e que jogava papéis fora. Em seguida, vendo a (...) aproximar-se, viu a arguida lançar a mão em direcção à filha, não tendo chegado a perceber se a atingiu, a qual veio a cair ao chão, embora não tivesse visto se a arguida a teria empurrado. Acrescentou que a arguida, quando se excede no consumo de bebidas alcoólicas fica muito alterada, transformando-se, apesar de ser sociável quando está sóbria. A testemunha depôs de modo contido e cauteloso, o que suscitou reservas a respeito da sua isenção, pelo que apenas se valoraram as suas declarações na parte em que foram corroboradas pelos restantes meios de prova.
5) Depoimento da testemunha (…): Guarda da GNR, o qual, encontrando-se de serviço, no atendimento ao público, no Posto da GNR, por volta da meia-noite, de 2 para 3 de Agosto de 2019, ali compareceu a ofendida, aflita, queixando-se de ter sido agredida pela sua mãe, quando a mesma já estava deitada, usando um bastão, que a mesma levou consigo e que foi apreendido. Mais esclareceu que a mesma apresentava marcas de agressão no braço, queixando-se de dores, pelo que foi logo accionado o 112, tendo sido transportada ao Hospital. A testemunha depôs de modo coerente e sem suscitar reservas a respeito da sua isenção, tendo sido valorado o seu depoimento para o apuramento dos factos.
6) Depoimento da testemunha (…): Guarda da GNR, o qual, tendo acorrido, no dia 23.08.2019, à casa da arguida, por haver notícia de agressões, esclareceu que ao se aproximar da casa, estando a porta aberta, ouviu uma discussão vinda do interior da residência, pelo que quis saber o que se tinha passado. Tendo a arguida respondido que estava tudo bem, aproximou-se a ofendida, que começou a contar o que se havia passado, altura em que a arguida lhe desferiu uma chapada na cara, atirando-a para cima dum sofá e, em seguida, jogou-lhe as mãos ao pescoço, tendo logo intervindo, para a afastar da ofendida, dando-lhe voz de detenção. Acrescentou que a ofendida foi, nessa sequência, levada ao Hospital, tendo-lhe visto marcas da chapada na cara e que a arguida aparentava estar sob efeito do álcool, estando, na altura, a beber vinho. A testemunha depôs de modo coerente e sem suscitar reservas a respeito da sua isenção, tendo sido valorado o seu depoimento para o apuramento dos factos
7) Depoimento da testemunha (…): Guarda da GNR, o qual, no dia 22.08.2019, estando de serviço no atendimento ao público, recebeu uma chamada, dando conta de que a ofendida andaria a deambular, pela berma da estrada, pelo que foi à sua procura. Ao encontrá-la, explicou-lhe a mesma que a sua mãe a tinha expulsado de casa e que, por isso, se dirigia para a casa do seu tio, que ficava a cerca de 2 km dali, pelo que acabou por ali a levar, onde a mesma pernoitou. No dia seguinte, ao receber notícia de agressões, deslocou-se, com o seu colega Pedro Albino, à casa da arguida, apercebendo-se de uma discussão, no interior da residência. Assim que a ofendida os viu, contou-lhes que tinha levado uma estalada, apresentando a face vermelha, altura em que a arguida se dirigiu à filha e lhe deu uma bofetada na cara, atirou-a para cima do sofá e jogou aos mãos ao seu pescoço, tendo intervindo nessa ocasião. Mais esclareceu que a arguida aparentava estar sob efeito do álcool, tendo ingerido vinho na sua presença. A testemunha depôs de modo coerente e sem suscitar reservas a respeito da sua isenção, tendo sido valorado o seu depoimento para o apuramento dos factos.
8) Relatório social: relatório elaborado pela DGRS, de fls 434 a 437.
9) Prova pericial: relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls 88 a 90 e relatório da perícia de avaliação do dano corporal, de fls 328 e 329 frente e verso e de fls 366 a 367 frente e verso.
10) Documentos: comunicação de episódio de urgência, de fls 9; auto de apreensão, de fls 22/23; relatório fotográfico, de fls 24; assento de nascimento, de fls 77/78; comunicação de episódio de urgência, de fls 105; relatório de episódio de urgência no CHUA, de fls 167 a 170; informação social prestada pelo núcleo de intervenção social da Segurança Social, de fls 180 a 184; auto de exame e avaliação, de fls 194; auto de exame pericial de fls 324 frente e verso; relatório de episódio de urgência no CHUA, de fls 338 a 341; relatório de episódio de urgência no CHUA, de fls 342 a 345; factura hospitalar, de fls 389; e CRC da arguida.
Os factos dados como provados resultam do sentido da prova produzida, avaliada no seu conjunto, e ponderada à luz das regras de experiência comum e da normalidade do suceder, que os confirmam.
Os factos dados como não provados resultam da ausência ou da insuficiência da prova produzida.”.

3.1.4. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma:
“Veio a arguida acusada pela prática de um crime de violência doméstica e de um crime de detenção de arma proibida.
Vejamo-los separadamente.
a) Do crime de violência doméstica:
À arguida foi imputada a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, al. a) do CPenal, porquanto, no período compreendido entre Julho e Agosto de 2019, teria maltratado a sua filha, que sofre de debilidade mental, física e psicologicamente.
Como dispõe o art.º 152.º do CPenal, que tipifica o crime de violência doméstica:
«1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
(…)
d) a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 – No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;
b) (…)
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.(…).»
O bem jurídico aqui tutelado é a dignidade pessoal, a integridade física (corporal), psíquica e a saúde das pessoas que, atenta a especial relação de proximidade existencial com o agente, e que sejam de considerar particularmente indefesos (pela sua idade, por sofrerem de doença, por se encontrarem economicamente dependentes, etc), se encontram numa posição de maior vulnerabilidade que os restantes cidadãos.
Quanto ao que sejam maus-tratos, sendo evidente que se reportam a comportamentos ofensivos da integridade física e psíquica de alguém, importa acrescentar que tanto assim se qualificam os factos que decorrem de forma reiterada, como aqueles que, mesmo não o sendo (podendo tratar-se de um único acto), comportam um grau de gravidade que é especialmente censurável, atenta ainda a aludida relação de proximidade vivencial e afectiva.
Essencial é que as condutas que revelem um comportamento maltratante evidenciem uma carga axiológica especialmente censurável.
Ora, integram o conceito de maus-tratos, sejam físicos ou psíquicos, todas as condutas que revelem desprezo, vontade de humilhar, uma especial desconsideração pela vítima, um achincalhamento gratuito, o rebaixamento do outro, uma actuação dominante, de subjugação da pessoa da vítima (sobre a sua vida, o seu corpo, a sua liberdade ou a sua honra), que se reconduza a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação.
Para além das óbvias ofensas à integridade física, integram igualmente o elemento objectivo do tipo as injúrias, a difamação e as ameaças (enquanto ofensas à honra e à liberdade de decisão, que constituem ofensas psíquicas), bem como qualquer comportamento grave, desde que revele uma supremacia e domínio do agente sobre a vítima que atente significativamente contra a sua dignidade enquanto pessoa.
Mas a punição do facto previsto na lei penal como crime (elemento objectivo do tipo legal) exige ainda a verificação do elemento subjectivo traduzido na prática do mesmo de forma dolosa. Com efeito, o tipo legal em causa pressupõe que o agente tenha conhecimento dos elementos objectivos do tipo (maxime dos referidos bens jurídicos) e que a sua vontade se dirija no sentido da sua realização.
Ora, no caso dos presentes autos, apurou-se que a arguida é mãe da ofendida, a qual, apesar de ter 31 anos de idade, sofre de debilidade mental, padece de epilepsia e ambliopia grave, pelo que depende do auxílio de terceiros na condução da sua vida. Apesar de a ofendida ter vivido, desde há vários anos, entregue aos cuidados dos seus avós, após a morte destes, passou a viver com a sua mãe e com o companheiro desta. Sucede que, no decurso da convivência, o companheiro da arguida terá abusado sexualmente da ofendida, que, como se referiu, sofre de défice cognitivo, o que levou ao termo do seu relacionamento com a arguida, passando, esta, a responsabilizar a filha pela sua separação.
Assim, ressentida com tais factos, indiferente à condição mental da sua filha, e após se ter excedido no consumo de bebidas alcoólicas, sem que a mesma pudesse desconhecer que o seu comportamento se alterava após tais consumos (o que não a inibiu de manter os referidos consumos), no dia 15.07.2019, a mesma dirigiu-se à sua filha, munida de um bastão, e com o mesmo deferiu-lhe uma pancada, que a atingiu na parte superior da perna, enquanto a chamava de “puta” e de “porca”, referindo-se ao seu comportamento com o seu ex-companheiro, para a castigar pelo que teria feito.
No dia 02.08.2019, pelas 23h40m, novamente, estando a ofendida no seu quarto e já deitada, dela se abeirou a arguida, munida do mesmo bastão, voltando a vergastá-la, desferindo-lhe pancadas, que a atingiram no braço, enquanto a chamava pelos mesmos nomes, e movida das mesmas razões.
Dias depois, em 22.08.2019, a arguida expulsou a sua filha de casa, sendo já de noite (pelas 23h00), a qual se viu forçada a caminhar, a pé, até à casa do seu tio, que ficava a cerca de 2 km dali, para ali poder pernoitar, vindo ali a ser transportada pela GNR, que a encontrou no caminho.
No dia seguinte, ao regressar a casa, a mãe voltou a bater-lhe, primeiro, na rua, dando-lhe uma chapada na cara, e depois já em casa, quando a GNR ali compareceu, numa altura em que a ofendida relatava às autoridades o que se havia passado, tendo a arguida desferido uma estalada na cara, empurrado a mesma para um sofá e jogado as mãos ao seu pescoço, altura em que os militares conseguiram afastá-la da sua filha.
De cada vez que a arguida atingiu o corpo da sua filha, a mesma provocou-lhe dores e lesões físicas.
Daqui resulta que, naquele período temporal, entre Julho e Agosto de 2019, a arguida maltratou, física e psicologicamente, a sua filha, que sofre de debilidade, e na sua dependência (o que a tornam particularmente indefesa).
Fê-lo, através de uma multiplicidade de comportamentos, todos adequados a afectar a dignidade pessoal da ofendida, como sucedeu no caso.
Mais se provou que a arguida não podia desconhecer que ao assim agir, maltratava a sua filha, não se coibindo de o fazer, como foi de sua vontade, livre e esclarecidamente formada, o que fez, ainda, no interior da residência comum, abrigada do olhar de terceiros e salvaguardada da sua intervenção, em auxílio da ofendida.
Em face do exposto, verifica-se o preenchimento de todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica agravado, impondo-se, em consequência, a condenação da arguida pela sua prática, como se decide fazer.
b) Do crime de detenção de arma proibida:
Veio ainda a arguida acusada pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. d) da Lei n.º 5/2006, de 23-02, porquanto, teria em seu poder um bastão artesanal, semelhante a um bastão policial.
Tal como se consagra na redacção actualmente em vigor (dada pela Lei n.º 50/2019, de 24-07):
«Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desactivar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência, usar ou trouxer consigo:
(…)
d) (…) bastão (…), é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias. (…)»
Todo o crime corresponde a uma conduta humana, voluntária e culposa, que se enquadra num dos modelos ou tipos onde a lei inscreveu bens jurídicos considerados dignos de protecção. Ou seja, o crime é constituído pela acção ou conduta material que preencha um tipo descrito na lei, que tenha sido praticado culposamente e que seja lesivo de algum interesse juridicamente protegido.
O preenchimento do tipo legal importa a verificação cumulativa do elemento objectivo do tipo (a conduta descrita no preceito incriminador) e do elemento subjectivo do tipo (o sentido da vontade subjacente à prática da referida conduta).
Ora, no caso dos autos, apurou-se que a arguida detinha, no interior da sua residência, um bastão, com 46,5 cm de comprimento, construído de modo artesanal, com um cabo de electricidade (composto por fios metálicos, revestido de plástico). O referido instrumento é, pela sua forma, similar aos bastões usados pelas forças policiais, não tendo outra finalidade que não seja a de servir como arma de agressão.
Pese embora a referida arma, segundo a arguida, tivesse sido deixada em sua casa, por um companheiro, ali se encontrando há vários anos, o certo é que a tinha em seu poder, exercendo sobre a mesma o seu domínio de facto (a mesma tinha-o guardado e sabia da sua existência, tanto assim que o soube ir buscar), ou seja, era a sua detentora, sabendo ainda para que é que servia, tanto assim que o usou com finalidade de agredir.
Acresce que a arguida bem sabia que aquele objecto se tratava de um instrumento para agressão, em tudo semelhante a um cacetete (construído, de modo artesanal, para o replicar), instrumento, este, reservado ao uso das forças policiais, não podendo, sem censura, desconhecer que não é legítima a sua detenção ou uso nas circunstâncias em que o deteve e usou.
A arguida sabia que detinha aquela arma, não podendo desconhecer, sem censura, as características lesivas da mesma, nem que não lhe era permitido detê-la. Assim, se apesar do exposto, a tinha na sua posse foi porque o quis fazer, agindo tal como foi de sua vontade, a qual foi livre e esclarecidamente formada. A arguida agiu, pois, dolosamente.
Ante o exposto, por se mostrarem preenchidos todos os elementos constitutivos do tipo criminal imputado à arguida, impõe-se a sua condenação, como se decide fazer.
DAS PENAS
Subsumidos os factos ao direito importa seguidamente determinar a espécie e a medida da pena aplicável ao caso concreto.
Os parâmetros fixados pelo legislador no que refere à operação de determinação da pena encontram-se consignados nos art.sº 71.º e 40.º do CPenal: por um lado, as exigências de prevenção geral e especial (atendíveis como limiar a partir do qual já se justifica e impõe uma punição) e, por outro, a culpa do agente (atendível como limite máximo da pena aplicar).
Quando ao crime sejam aplicáveis, alternativamente, uma medida privativa e uma medida não privativa da liberdade (tal como sucede com a multa), o Tribunal dará preferência à segunda sempre que esta proteja adequadamente os bens jurídicos e permita a reintegração do agente na sociedade (cfr. art.º 70.º do Código Penal).
No caso, sendo o crime de violência doméstica punível apenas com pena de prisão, no que ao crime de detenção de arma proibida concerne, importa ponderar que a mesma regista uma condenação anterior, em que foi já condenada em pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução, tendo-se ainda apurado a utilização da arma em questão para o cometimento do crime de violência doméstica em que vai a arguida também condenada, pelo que, tudo ponderado, é de afastar a aplicação da pena de multa, por não se mostrar suficiente ou adequada, optando-se pela aplicação de uma pena de prisão.
Ora, nesta conformidade, as penas concretas a aplicar à arguida serão determinadas, dentro da respectiva moldura penal, fixada no seu tipo incriminador, considerando todas as circunstâncias que, não fazendo parte daquele tipo, deponham a favor ou contra a mesma.
Assim, e ao abrigo do n.º 2 do art.º 71.º do CPP cumpre atender:
- Contra a arguida -
a) grau de ilicitude: é ainda mediano, quanto a ambos os crimes (sendo de considerar, por um lado, que o crime de violência doméstica se limitou a factos ocorridos num curto período de tempo, embora com um grau de gravidade já mediano, atentos os concretos factos praticados, tendo ainda recorrido, em duas ocasiões, ao uso do bastão, e por outro, o facto de, detendo a referida arma, não se limitou a mesma a detê-la, antes a tendo usado, ofendendo com a mesma a integridade física da sua filha, por sua vez, pessoa particularmente indefesa);
b) carácter doloso: é de intensidade média, em ambos os crimes;
c) a arguida tem antecedentes criminais, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, sofrendo pena de prisão, suspensa na sua execução, e praticou os factos no decurso do período da suspensão;
d) as consequências dos seus actos: provou lesões físicas que demandaram, à ofendida, períodos de doença, reveladores da intensidade das ofensas sofridas.
- A favor da arguida -
e) É primária, quanto a qualquer dos crimes pelos quais vai agora condenada;
f) Admitiu parte dos factos e pelos mesmos mostrou arrependimento;
g) A arguida é alcoólica crónica, tendo cometido os factos sob a sua influência, sendo que o abuso do álcool transforma a arguida em pessoa mais agressiva;
h) A arguida está, actualmente, afastada da sua filha;
Em face de tudo quanto fica exposto e devidamente ponderado, afigura-se adequado punir a prática do crime de violência doméstica, na pena parcelar de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão, e a prática do crime de detenção de arma proibida, na pena parcelar de 5 (cinco) meses de prisão.
DO CÚMULO JURÍDICO:
Dispõe o art.º 77.º, n.º 1 do C.Penal que, quando alguém tenha praticado vários crimes sem que tenha ainda transitado em julgado a condenação por qualquer deles, será condenado numa única pena.
Na determinação da pena única serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, sendo que o respectivo limite máximo corresponderá à soma das penas concretamente aplicadas (2 anos e 7 meses + 5 meses = 3 anos) e o limite mínimo à mais elevada das penas concretamente aplicadas (2 anos e 7 meses de prisão). Ou seja, a pena resultante do cúmulo das penas parcelares será fixada entre os 2 anos e 7 meses e os 3 anos de prisão.
Ora, considerando os factos na sua globalidade e a personalidade da arguida, revelada nesses mesmos factos, atendendo ainda aos seus antecedentes criminais, mas também ao arrependimento demonstrado, decido fixar a pena única em 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão.
DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO:
Atendendo, porém, a que a arguida mostrou arrependimento, confessando parte dos factos, iniciou tratamento à dependência alcoólica, sem que tivesse ainda tido contacto com o sistema prisional, é de concluir que a censura que vai contida nesta condenação e a ameaça de cumprimento efectivo da pena realizam, ainda, de forma adequada e suficiente as finalidades punitivas que o caso reclama.
É, pois, de prever que, em face desta condenação, a arguida passará a pautar a sua conduta futura em conformidade com as regras mais elementares e essenciais da vivência em comunidade.
Como assim, decido suspender a execução da pena de prisão que lhe foi aplicada, pelo período que se fixa em 2 anos e 9 meses, cfr. art.º 50.º do CPenal.
Decido ainda fazer acompanhar a presente suspensão de regime de prova, que assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio da Direcção Geral de Reinserção Social, durante o tempo de duração da suspensão, com vista a permitir a reintegração do mesmo na sociedade, cfr. art.º 53.º, n.ºs 1 e 3 do CPenal e que deverá incidir na sua problemática ao alcoolismo.
Da pena acessória:
Requereu o Ministério Público a aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a vítima, prevista no art.º 152.º, n.º 4 do CPenal.
Com efeito, ali se prevê que, no que ao caso importa, além da pena principal, o crime de violência doméstica possa ser ainda punido com a pena acessória de proibição de contacto com a vítima, por um período a fixar entre os 6 meses e os 5 anos. No caso, atentas as circunstâncias apuradas, sendo que a vítima teme novas agressões, e enquanto não se estabilizarem os efeitos do tratamento a que a arguida vem sendo sujeita, mostra-se adequado e proporcional aplicar aquela pena acessória, fixando o período da proibição de contactos em 6 (seis) meses.
DO PEDIDO CÍVEL:
Veio o Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE, peticionar a condenação da arguida no pagamento das despesas hospitalares resultantes do tratamento da ofendida, na sequência das lesões, por aquela, provocadas, que ascendem a 815,71 euros, acrescido de juros de mora legais.
Dispõe o n.º 2 do art.º 495.º do Código Civil que, no caso de lesão corporal, todos aqueles que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima, incluindo estabelecimentos hospitalares, têm direito a indemnização.
Tal lesão configurará, necessariamente, uma violação ilícita do direito à integridade física, cometida com dolo ou mera culpa, tal como estatuído pelo citado art.º 483.º do CCivil, onde se prevê, como princípio geral da responsabilidade por factos ilícitos, que «aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.»
Em face dos factos dados como provados, é indubitável que foram prestados cuidados de saúde à ofendida, e que os mesmos ascenderam à quantia peticionada, sendo certo que se apurou ter sido a arguida a autora dos factos que provocaram as lesões tratadas pelo estabelecimento hospitalar.
Ante o exposto, por se verificarem os pressupostos legais, importa condenar a arguida, no pagamento da quantia peticionada, acrescida dos respectivos juros de mora, calculados às taxas legais aplicáveis, desde a data da prestação dos cuidados de saúde até ao efectivo e integral pagamento.
(…)”.

3.2. Da apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público
O MP interpôs recurso da sentença proferida que condenou a arguida pela prática de um crime de violência doméstica e de um crime de detenção de arma proibida numa pena única de dois anos e nove meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e condicionada a regime de prova da competência da DGRSP.
Discordou o MP da decisão imputando-lhe a nulidade do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP, por omissão de pronuncia relativamente às penas acessórias de uso e porte de armas e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, cuja aplicação havia requerido, e também à indemnização a arbitrar à vítima, nos termos do disposto no artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.
Salientou, ainda, o MP que as penas de prisão e a pena acessória de proibição de contactos fixadas não eram proporcionais e adequadas à gravidade dos factos praticados pela arguida, nem tinham em devida consideração os antecedentes criminais desta, não satisfazendo as necessidades de prevenção e a defesa do ordenamento jurídico, propondo, respetivamente, a aplicação da:
- Pena parcelar de três anos e seis meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica;
- Pena parcelar de dez meses pela prática do crime de detenção de arma proibida;
- Pena única de quatro anos de prisão;
- Pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de três anos e seis meses;
- Pena acessória de proibição de uso e porte de armas pelo período de três anos e seis meses;
- Pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica pelo período de três anos e seis meses.
Passemos, então a conhecer as questões suscitadas.

3.2.1. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto às penas acessórias cuja aplicação foi requerida pelo MP (artigo 152.º, n.º 4, do CP)
Na acusação o Ministério Público referiu que a factualidade dela constante era suscetível de integrar em abstrato a prática pela arguida de “um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1 al. d) e n.º 2, al a) do Código Penal e nas penas acessórias previstas no disposto no n.º 4 e 5 do mesmo dispositivo legal”.[1]
Entendeu, por isso, o MP que não se pronunciando o Tribunal a quo sobre duas das penas acessórias contempladas no n.º 4 do artigo 152.º a sentença era nula por omissão de pronúncia.
A este propósito o artigo 152.º do CP estabelece, na parte relevante para a apreciação deste recurso, o seguinte:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
(…) 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.[2]
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”.

Analisando o excerto da acusação já transcrito é de concluir ter sido cumprido o princípio do acusatório quanto à aplicação de penas acessórias quando ali se indicou o artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do CP[3].
Analisando, contudo, a sentença recorrida nela é apenas mencionado ter o MP requerido a aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a vítima, prevista no artigo 152.º, n.º 4 do CP, o que mereceu provimento com a aplicação desta pena pelo período mínimo previsto na lei, ou seja, por seis meses.
No respeitante à proibição de uso e porte de armas e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica (artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do CP) o Tribunal a quo não aplicou tais penas acessórias nem se pronunciou sobre elas, mas será que teria de o fazer, sob pena de nulidade da sentença?
O artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP sob a epígrafe “Nulidade da sentença” estabelece que:
1 - É nula a sentença: (…)
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar[4] ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º.”.
Coloca-se, então, a questão de saber se o Tribunal devia ter apreciado todas as penas acessórias constantes do artigo 152.º, n.º 4 do CP.
O artigo 152.º, n.º 4 do CPP não impõe o dever de o juiz se pronunciar sobre todas as penas acessórias ali previstas, resultando essa interpretação de uma correta análise da expressão “podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias[5] ali expressamente consignadas.
Na verdade, o Tribunal apenas deverá justificar as penas acessórias aplicadas, pois quando o faz restringe os direitos do arguido, o que não sucede com a sua não aplicação.
Não parece, assim, ocorrer no caso qualquer omissão de pronúncia.
Independentemente do entendimento acolhido, tal não impede esta Relação de se debruçar sobre, se no caso concreto, se justifica a aplicação das penas acessórias de proibição de uso e porte de armas e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica[6], por tal questão ter sido suscitada pelo MP no recurso interposto.
Em sede de 1.º interrogatório judicial de arguida detida foram aplicadas as medidas de coação de proibição de a arguida se aproximar ou contactar com a vítima, que, na altura, ainda não havia sido acolhida em instituição.
A arguida foi, ainda, sujeita à aplicação de medida coativa de realização de tratamento adequado à sua dependência de bebidas alcoólicas em instituição a indicar pela DGRSP.
Essas opções foram depois contempladas na sentença quando o Tribunal a quo determinou a aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a vítima e suspendeu a execução da pena de prisão mediante regime de prova assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio da DGRS, durante o tempo de duração da suspensão, com vista a permitir a reintegração da arguida na sociedade incidindo na sua problemática do alcoolismo.
Justifica-se, então, que ainda sejam aplicadas a pena acessória de proibição de uso e porte de armas? E a de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica?
Em relação à proibição de uso e porte de armas provou-se que a arguida agrediu a filha, reformada por invalidez, com um bastão artesanal, semelhante a um bastão policial, composto por um cabo de eletricidade de alta tensão, que detinha na sua residência.
Na motivação da matéria de facto o Tribunal, a respeito do bastão, assinalou que a arguida “explicou que o mesmo pertencia a um antigo companheiro, que ali o havia deixado e que para ali ficou, esquecido”.
Esse bastão foi entregue pela vítima e apreendido pelo OPC em 3.8.2019 (cf. fls. 22) e declarado perdido a favor do Estado na sentença.
Não sendo conhecido que a arguida seja detentora de licença de uso e porte de arma, se dedique à caça ou tenha tido na sua posse armas licenciáveis nem que as use, que lógica terá a decretação da pena acessória pensada para armas licenciáveis, quando no caso estava em causa um objeto que nunca poderia ser licenciado como uma arma? Julgamos, assim, não ser aplicável no caso tal pena acessória.
Já a necessidade de ser aplicada a pena acessória de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica parece justificar-se atento o consumo de bebidas alcoólicas em excesso, realizado diariamente pela arguida, provocando descontrolo emocional e potenciador do elevar da agressividade para com coabitantes, a filha ou terceiros.
Essa necessidade é ainda mais premente derivada da circunstância de a arguida se encontrar desempregada, há mais de dez anos, aparentemente sem quaisquer recursos internos para alterar a sua situação e modo de vida face ao problema crónico com a bebida, embora quanto a esta problemática já se encontre a ser acompanhada.
Em relação a este ponto, ainda, outros argumentos se devem apontar:
- A arguida, embora tivesse admitindo ter, numa das ocasiões, batido na filha, com o bastão e ter-lhe chamado os nomes narrados na acusação, negou, quanto ao demais, toda a restante factualidade descrita nos autos;
- A arguida não revelou conseguir gerir o facto de ter terminado o relacionamento com um companheiro, que terá abusado sexualmente da filha, passando a culpá-la pelo fim do referido relacionamento e inclusive apelidando-a de “puta” e de “porca”.
- A arguida apenas teve a filha a viver consigo desde maio de 2019 (aquando da morte do avô materno) até agosto do mesmo ano (cerca de quatro meses); em meados de maio/junho a descendente terá sido abusada pelo companheiro da arguida; em 15.7.2019 a arguida agrediu a filha à bastonada enquanto a acusava do fim do relacionamento com o companheiro apelidando a vítima de “porca” e “puta”; em 2.8.2019 a arguida voltou a agredir a filha à bastonada e a dirigir-lhe os mesmos nomes; em 23.8.2019 deu-lhe chapadas e apertou-lhe o pescoço, sem se coibir de o fazer mesmo à frente da autoridade policial e da vizinhança.
Assim, a frequência de programa na área da violência doméstica aliada ao plano de reinserção social, com vista a permitir a reintegração da arguida na sociedade incidindo na sua problemática de alcoolismo[7], serão em conjunto uma mais valia para a arguida e que lhe permitirão manter-se ocupada e a refletir sobre a violência exercida sobre a filha deficiente e sobre o alcoolismo crónico de que padece.
À arguida é, assim, de aplicar a pena acessória de obrigação de frequência de programas de prevenção de violência doméstica tudo por um período a fixar, como requerido pelo MP, como melhor se fundamentará, mais à frente neste Acórdão.
*
3.2.2. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à indemnização a arbitrar à vítima (artigo 21.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro)
A arguida foi acusada e condenada pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a) do CP e condenada na pena de dois anos e sete meses de prisão.
Apesar de não ter sido formulado pedido de indemnização cível pela ofendida o artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16/9 estabelece o seguinte:
«1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.
2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar[8] à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser».
O artigo 82.º-A, n.º 1 do CPP, por seu turno, prescreve que não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, de acordo com os artigos 72.º e 77.º, do mesmo diploma legal, pode o julgador, arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.
Da conjugação dos dois normativos resulta que, independentemente de ter sido deduzido pedido cível pela vítima, estando o Tribunal perante um crime de violência doméstica, pelo qual a arguida foi condenada, terá sempre de arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, pela vítima desde que esta a tal não se oponha, situação verificada no caso em apreço.
A falta da apontada ponderação implica nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, porquanto a vítima não renunciou expressamente à atribuição da indemnização.
A obrigação de o tribunal fixar uma indemnização ainda que a vítima não o requeira, foi salientada, por exemplo no Acórdão do TRE de 04.04.2017[9], onde se concluiu que “tendo ocorrido condenação do arguido pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. b), do Cód. Pen., encontra-se o tribunal obrigado a fixar indemnização à vítima, nos termos do disposto nos art.ºs 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e 82.º A, do Cód. Proc. Pen., excepto se, expressamente, a ela renunciar”, sendo “nula a sentença que, não tendo sido deduzido pedido de indemnização nem tendo aquela fixado esta, não procedeu à audição da ofendida/vítima, no sentido de, expressamente, vir opor-se à fixação de uma indemnização pelos danos sofridos pela prática do crime de violência doméstica”.
A indemnização só não é arbitrada se a vítima se opuser à sua atribuição, o que não aconteceu no caso.
Na situação em apreço, os requisitos formais mostram-se preenchidos – não foi deduzido pedido de indemnização civil pela ofendida, verifica-se a condenação da arguida e a ofendida não se opôs expressamente à indemnização (do processo não consta declaração, escrita ou oral, da ofendida opondo-se ao arbitramento de indemnização decorrente da prática do crime).
Quanto aos demais requisitos, mostram-se também verificados, pois a ofendida sofreu agressões físicas que lhe provocaram lesões físicas e emocionais (dano), presumindo a lei a existência de particulares exigências da sua proteção. Por outro lado, resultou também provado ter a ofendida sofrido dores (dano), em consequência das lesões infligidas pela arguida.
É assim a sentença nula, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, nulidade que se supre neste Acórdão em momento próprio, mais adiante, por virtude de o Tribunal dispor de todos os elementos para conhecer da questão da fixação da indemnização a favor da vítima.

3.2.3. Do erro de julgamento quanto à aplicação do direito por errada dosimetria das penas principais e acessória
O Tribunal recorrido condenou a arguida pela prática de um:
- Crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) do CP, na pena única de dois anos e sete meses de prisão e na pena acessória de proibição de contactos com a vítima por um período de seis meses;
- Crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. d), por referência ao artigo 3.º, n.º 2, al. g), da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, numa pena de cinco meses de prisão.
Após a realização do cúmulo jurídico, foi a arguida condenada numa pena única de dois anos e nove meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e condicionada a regime de prova da competência da DGRSP.
O MP discorda da determinação concreta da medida das penas por entender terem estas ficado aquém das necessidades punitivas.
Vejamos: o artigo 71.º do CP determina que a medida da pena terá em consideração a culpa do agente e das exigências de prevenção, dentro dos limites definidos na lei. Na determinação concreta da pena, o Tribunal terá de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
O Tribunal, é verdade, teve em consideração a maioria das circunstâncias previstas no artigo 71.º do CP, mas não as valorou nem as fez refletir nas penas concretas aplicadas como era exigido.
O Tribunal considerou que em ambos os crimes o dolo foi de intensidade média, o que não se coaduna com a circunstância de os crimes terem sido praticados com dolo direto.
O tribunal julgou também, quanto a ambos os crimes, que o grau de ilicitude era mediano. Para o efeito justificou, quanto ao crime de violência doméstica: terem os factos ocorrido num curto período de tempo; em duas ocasiões a arguida ter usado de um bastão para agredir a vítima.
No concernente ao crime de detenção de arma proibida referiu o Tribunal a quo que a arguida não se limitou a detê-la usando-a para ofender a integridade física da sua filha, pessoa particularmente indefesa.
Da análise da factualidade apurada, contudo, resulta que a ilicitude e o dolo da arguida foram mais que medianos, pois:
- A arguida relativamente ao crime de violência doméstica: Agrediu a filha de trinta e um anos de idade, portadora de debilidade mental, afetada de epilepsia e ambiopia grave e dependente do auxílio de terceiros na condução da sua vida; As agressões consistiram em chapadas, apertão do pescoço, e por duas vezes bastonadas acompanhadas de palavras ofensivas à filha (“porca” e “puta”) e já após a filha ter sido abusada sexualmente pelo próprio companheiro da agressora, imputando à descendente a culpa do fim do relacionamento.
Como assinala o MP nas alegações de recurso a gravidade da ilicitude da conduta da arguida é de tal modo elevada que a mesma poderia até ter agravado em um terço a moldura penal abstratamente aplicável ao crime de violência doméstica, por força do disposto no artigo 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e Munições aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro[10].
Em relação às exigências de prevenção geral do crime de violência doméstica, o Tribunal a quo não lhes faz menção, mas as mesmas revelam-se elevadas, atentas as consequências sociais e as proporções que o flagelo do fenómeno tem vindo a assumir na sociedade atual.
As exigências de prevenção especial, também não foram devidamente consideradas na sentença, pois apresentam-se elevadas, atento o percurso de vida da arguida (alcoólica crónica; desempregada há mais de dez anos), a sua postura perante os factos (apenas os reconheceu parcialmente, embora tenha demonstrado arrependimento para os factos que admitiu ter praticado) e a circunstância de ter cometido os factos em pleno decurso da suspensão da pena de prisão em que foi condenada por um ilícito criminal da mesma natureza, embora de menor gravidade. A arguida cometeu os factos assinalados no processo apenas sete meses depois do trânsito em julgado da sentença proferida no proc. n.º 105/17.9GCPTM do Juízo local criminal de Portimão – J1, que a condenou pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de três meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de dezoito meses, acompanhada de regime de prova. Praticou, além do mais um crime da mesma natureza, mas de maior gravidade.

Considerando, assim, a moldura penal abstratamente aplicável ao crime de violência doméstica (dois a cinco anos de prisão) e atenta a circunstância de o Tribunal a quo ter fixado a pena em dois anos e sete meses, dúvidas não restam que a determinação da medida concreta da pena foi fixada abaixo do limite médio. Tal opção apenas se justificaria se o dolo com que a arguida atuou fosse mediano tal como, o bem jurídico violado, a gravidade das circunstâncias, as necessidades de prevenção geral e especial e as finalidades da punição.
Tendo os factos sido praticados com dolo direto, com ilicitude elevada e atentas as consideráveis necessidades de prevenção geral e especial a medida concreta da pena deve pelo menos situar-se a meio da pena abstrata, ou seja, em três anos e seis meses de prisão como pedido pelo MP e nunca abaixo do seu limite médio.

Quanto à pena de prisão de cinco meses, aplicada ao crime de detenção de arma proibida, os argumentos expendidos a propósito do crime de violência doméstica são de acolher, ou seja, o dolo e a ilicitude elevados reclamam a fixação da pena mais distanciada do limite mínimo, considerando que a arguida não se limitou a ter na sua posse um bastão (em tudo idêntico a um bastão policial) como ainda o utilizou para agredir a filha, particularmente vulnerável e incapaz de defesa, não por uma, mas por duas vezes.
Neste ilícito criminal as necessidades de prevenção geral são elevadas, considerando a perigosidade das condutas tipificadas pelo mesmo e a gravidade das consequências que pode advir da utilização de armas, bem como o inerente alarme social que tal provoca.
A pena abstrata aplicável para a prática deste crime é de multa de 10 a 480 dias e de prisão de um mês a quatro anos. Tendo o Tribunal a quo optado pela aplicação da pena de prisão fixa-se a mesma em dez meses como peticionado pelo MP, por se considerar mais consentânea com a gravidade dos factos cometidos.
Assim, atendendo aos limites abstratos das penas e ainda à necessidade de aplicação ao caso do artigo 34.º-B da Lei 112/2009, afigura-se adequado aplicar à arguida:
1) Pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea a) do CP, a pena de três anos e seis meses de prisão;
2) Pela prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido no artigo 86.º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e munições, a pena de dez meses de prisão.

O artigo 77.º, n.º 1 do CP estabelece que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única.
Sendo que a pena aí aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicável aos vários crimes (cf. artigo 77.º, n.º 2 do CP).
Atendendo ao disposto no artigo 77.º, n.º 2 do CP a pena única aplicada à arguida situar-se-á entre os três anos e seis meses de prisão (mais alta das penas parcelares) e os quatro anos e quatro meses de prisão (soma da totalidade das penas aplicadas).
De acordo com o disposto no artigo 77.º, n.º 1, do Código penal, na determinação da pena única a aplicar ao agente dos crimes são considerados, em conjunto, os factos e a sua personalidade.
Tendo em atenção as considerações expendidas sobre a determinação das penas parcelares, e analisando a globalidade da factualidade que se deu como provada, revelando a arguida uma acentuada ilicitude e insensibilidade moral perante o sofrimento da vítima, sua filha e pessoa particularmente indefesa, e sendo considerada como uma pessoa conflituosa, agressiva e com dificuldades em controlar impulsos, sobretudo quando ingere bebidas alcoólicas (vd. factos provados), não tendo mostrado arrependimento para a totalidade dos factos que praticou, entende-se adequado fixar a pena única da arguida, no limite médio, ou seja, em quatro anos de prisão.
A pena única de prisão fica suspensa na sua execução pelo período de três anos e seis meses de prisão (cf. artigo 50.º do CP).
A presente suspensão é acompanhada de:
- Regime de prova, que assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio da Direção Geral de Reinserção Social, durante o tempo de duração da suspensão, com vista a permitir a reintegração do mesmo na sociedade, cf. artigo 34.º-B da Lei 112/2009 e artigo 53.º, n.ºs 1 e 3 do CP e que deverá incidir na sua problemática ao alcoolismo, pelo período de três anos e seis meses;

Requereu, ainda, o Ministério Público que a aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a vítima, prevista no artigo 152.º, n.º 4 do CP fosse fixada pelo período de três anos e seis meses ao invés dos seis meses aplicados, por se revelar absolutamente desadequada e ineficaz para assegurar a proteção da vítima e por assim o exigir a reeducação da arguida.
Em situações “normais” privar uma filha, embora vítima, de estar com a mãe poderia justificar a aplicação da pena acessória por um período curto, como o Tribunal a quo decidiu. No caso, porém, as relações de filiação não reclamam essa opção, pois a vítima vivia com os avós (entretanto falecidos) e apenas por escassos quatro meses esteve “aos cuidados da arguida”. Nesse diminuto período houve tempo para ser abusada pelo companheiro da mãe, agredida à bastonada, à chapada e com um apertão no pescoço pela mãe, além de por esta ser apelidada de “puta” e “porca”, sendo, ainda, acusada de ser a culpada pela rotura do relacionamento com o companheiro abusador.
Sem prejuízo de, mais à frente, nos debruçarmos sobre a fixação do quantum da pena acessória, outra questão, contudo, merecia ter sido suscitada, pelo MP, pois não foi aplicado o disposto no artigo 34.º-B da Lei 112/2009, de 16 de setembro, cuja obrigatoriedade emana da lei[11].
Da leitura conjugada do artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do CP (as penas acessórias aqui previstas foram acrescentadas pela Lei 59/2007)[12] com o artigo 34-B da Lei 112/2009 de 16.9 (aditado em 3.9.2015), parece decorrer a possibilidade de em uma única decisão ser aplicada simultaneamente a pena acessória de proibição de contactos (artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do CP) e da suspensão da execução da pena ficar subordinada à proibição de contactos (artigo 34.º-B da Lei 112/2009).
A vigência em simultâneo das duas proibições revela, contudo, incompatibilidade na sua aplicação: o incumprimento da pena acessória de proibição de contactos (artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do CP) pode constituir a prática de um crime de violação de proibições e interdições (artigo 353.º, do CP); enquanto o incumprimento da obrigação a que fica subordinada a suspensão (artigo 34.º-B da Lei 112/2009) pode determinar a sua revogação, por aplicação do artigo 56.º, n.º 1, alínea a) do CP.
Por outras palavras a coexistência das duas proibições não é passível de harmonização, pois em caso de incumprimento fica-se sem saber qual o regime a aplicar.
Julgamos, contudo, que sendo a norma do artigo 34.º-B da Lei 112/2009 de aplicação obrigatória e a do artigo 152.º, n.º 4 do CP de utilização facultativa, sempre o julgador teria de aplicar o primeiro dos mencionados normativos.[13]
Esta Relação, contudo, não poderá conhecer, agora, em sede do recurso, da aplicação do artigo 34.º-B da Lei 112/2009 de 16.9, porquanto tal exorbitaria os seus poderes de cognição, para além de constituir uma decisão surpresa para a arguida.
Tendo em consideração, assim, que o crime de violência doméstica admite, ainda, a punição com a pena acessória de proibição de contacto com a vítima (artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do CP), por um período a fixar entre os seis meses e os cinco anos[14], atento o já anteriormente referido, a propósito da pena principal e do período fixado para a suspensão da pena com regime de prova, julga-se dever ser de fixar a mesma em três anos e seis meses.
A aplicação de tal pena acessória, contudo, em cumprimento do artigo 152.º, n.º 5 do CP, tem de ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância independentemente de a vítima ter sido acolhida numa instituição.
Relativamente ao quantum da pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, tendo em conta, as considerações expendidas sobre a determinação das penas parcelares, e analisando a globalidade da factualidade que se deu como provada, o facto de ter sido utilizado um bastão semelhante a um bastão policial para agredir a filha, pessoa particularmente indefesa, e a personalidade da arguida – conflituosa, agressiva e impulsiva -, que se manifesta de forma mais exacerbada quando a mesma consome bebidas alcoólicas em excesso (a arguida é alcoólica crónica), a referida pena acessória deverá ser fixada por um período de três anos e seis meses.

3.2.4. Da atribuição à vítima de uma quantia a título de reparação pelos danos sofridos, nos termos do disposto no artigo 82.º-A do CPP
Tendo a vítima direito à fixação de uma indemnização a título de reparação pelos prejuízos sofridos, como já atrás foi referido, caberá fixar agora o respetivo quantum indemnizatório.
Neste particular resultou provado que a vítima:
- Sofreu traumatismo na face anterior, lateral e posterior do braço e do antebraço direito (uma equimose arroxeada na face anterior, lateral e posterior do braço, com 19 cm x 18 cm, e uma equimose arroxeada no terço proximal da face lateral do antebraço, com 7cm x 5 cm), lesões, essas, que lhe determinaram 15 dias de doença, com igual período de afetação da capacidade de trabalho geral;
- Sofreu dores nas regiões atingidas e uma equimose arroxeada no terço médio da face posterior do braço, com 4cm x 4 cm, lesões que lhe determinaram um período de 5 dias de doença, com igual período de afetação da capacidade de trabalho geral;
- Foi apelidada em duas ocasiões de “puta” e de “porca”;
- Batida por duas vezes à bastonada e em outra ocasião com duas estaladas e com um apertão no pescoço;
- Por virtude dos atos perpetrados pela arguida receou pela sua vida, saúde, liberdade e integridade física e psicológica tendo ficado afetada na sua dignidade pessoal, liberdade, honra e bem-estar.
Em relação às possibilidades da arguida estas são quase inexistentes, pois atento o seu alcoolismo crónico, apenas esteve empregada de forma descontinuada, frequentado algumas ações formativas sem que com tais ações tivesse obtido emprego com caráter de regularidade, estando desempregada há mais de dez anos e não estando inserida em atividades ocupacionais estruturadas.
Não sendo conhecidos rendimentos à arguida a fixação da indemnização encontra-se limitada, fixando-se o seu valor em quantia correspondente a um salário mínimo nacional, que no momento se cifra em 635 €, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde o trânsito em julgado da presente decisão até integral pagamento.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos concede-se parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência condena-se a arguida (...) condenada:
1- Pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) do CP na pena parcelar de três anos e seis meses de prisão;
2- Pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d) do RJAM, na pena parcelar de dez meses de prisão;
3- Em sede de cúmulo jurídico de penas na pena única de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de três anos e seis meses.
4- A suspensão da execução da pena única é subordinada a regime de prova assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio da DGRS, durante três anos e seis meses com vista a permitir a reintegração da arguida na sociedade (artigo 53.º, n.ºs 1 e 3 do CP) e que deverá incidir na sua problemática ao alcoolismo.
5- Na pena acessória de proibição de estabelecer contactos com a sua filha, (...), pelo período de três anos e seis meses (artigo 152.º, n.º 4 do CP) a ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância (artigo 152.º, n.º 5 do CP) pelo mesmo período;
6 – Na pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica (artigo 152.º, n.º 4 do CP) durante três anos e seis meses;
7- No pagamento à filha, (...) da quantia de 630 €, acrescida de juros de mora legais, contados desde a data do trânsito em julgado do Acórdão, até efetivo e integral pagamento.
8- No mais mantém-se a sentença recorrida.
9- Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 10 de novembro de 2020.
__________________
(Beatriz Marques Borges - Relatora)
________________________
(Martinho Cardoso)

_________________________________________________
[1] Sublinhado nosso.
[2] Sublinhado nosso.
[3] Cf. Acórdão RP de 24.2.2016, proferido no processo 358/14.4PAGDM.P1, relatado por António Gama onde é referido que: “A proibição de contactos prevista no artº 152º4 e 5 CPP (antes da vigência do artº 34º B da Lei 129/2015 de 3/9), é uma pena acessória, cuja aplicação pressupõe e exige que na acusação se faça referencia à norma legal que a consagra, sob pena de nulidade”.
[4] Sublinhado nosso.
[5] Sublinhado nosso.
[6] Sobre as penas acessórias no âmbito do crime de violência doméstica cf. CARDOSO, Cristina Augusto Teixeira – “A Violência Doméstica e As Penas Acessórias”. Maio, 2012. Universidade Católica Polo do Porto. Dissertação do 2.º Ciclo de Estudos conducente ao grau de Mestre em Direito Criminal disponível para consulta em https://repositorio.ucp.pt.
[7] O MP nas suas conclusões de recurso afirma deverem fixar-se as penas acessórias de uso e porte de armas e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica “tanto mais que nem sequer foi determinado que o regime de prova da competência da DGRS, a que ficou condicionada a suspensão da execução da pena principal, assentasse nalgum programa de prevenção da violência doméstica ou tratamento ao alcoolismo de que a arguida padece.”. Tal afirmação, contudo não é correta, pois na sentença a pena principal suspensa foi condicionada ao tratamento ao alcoolismo por parte da arguida.
[8] Sublinhado nosso.
[9] Proferido no Processo 66/15.9GBABF.E1, relatado por José Proença da Costa e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[10] Este artigo 86.º, n.º 3 estabelece que “1. Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo: d) (…) armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, (…) quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão(…) é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias; 3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.”
[11] O referido artigo 34.º-B estabelece que a “suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.”
[12] Cf. neste sentido ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – “Comentário do Código Penal: À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. 3.ª edição atualizada. Universidade Católica Editora. P. 595. ISBN 978-972-54-0489-8.
[13] Já antes da entrada em vigor do artigo 34.º-B da Lei 112/2009 de 16.9, se discutia a questão da aplicabilidade do artigo 152.º, n.ºs 3 e 4 em confronto com a aplicação de regra de conduta como condição da suspensão da execução da pena de prisão (artigos 50.º e 52.º do CP), embora nunca em simultâneo, concluindo-se que a opção por esta última via tinha maiores garantias de cumprimento. A este propósito cf. CARDOSO, Cristina Augusto Teixeira – “A Violência Doméstica e As Penas Acessórias”. Maio, 2012. Universidade Católica Polo do Porto. Dissertação do 2.º Ciclo de Estudos conducente ao grau de Mestre em Direito Criminal disponível para consulta em https://repositorio.ucp.pt.
[14] Após a entrada em vigor do artigo 34.º-B da Lei 112/2009 de 16 de setembro, sem a consequente alteração do artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do CP, não é afastada a possibilidade de aplicação simultânea das penas acessórias previstas no Código Penal e das penas substitutivas referidas naquele artigo 34.º-B..