Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
422/20.0T9SLV.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: ORDEM DE ENTREGA DA CARTA DE CONDUÇÃO
COMUNICAÇÃO PESSOAL
CARTA REGISTADA COM AVISO DE RECEPÇÃO
Data do Acordão: 11/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A comunicação ao arguido/condenado, do despacho judicial, em que lhe é determinado que proceda à entrega da sua carta de condução, no prazo de 10 dias, a fim de cumprir integralmente a pena acessória que lhe foi aplicada, em anterior despacho, com valor de sentença condenatória, no âmbito de processo sumaríssimo (artigo 397.º, n.ºs 1 e 2, do CPP), sob pena de não o fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência, impõe que a notificação desse despacho deva ser efetuada através de uma via que garanta a certeza de que o condenado teve conhecimento da ordem dada e de que o incumprimento da mesma o fará incorrer em crime de desobediência. O que só será assegurado, se a notificação for feita através de contacto pessoal ou, pelo menos, por via postal registada (artigo 113.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPP).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Neste processo comum n.º 422/20.0T9SLV, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Competência Genérica de Silves, foi submetido a julgamento, com a intervenção do Tribunal Singular, o arguido AA, melhor identificado nos autos, estando acusado da prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal.

1.2. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, em 21/04/2022, depositada em 26/04/2022, na qual se decidiu absolver o arguido da prática do crime de desobediência, por que vinha acusado.

1.3. Inconformado com o decidido, o Ministério Público interpôs recurso para este Tribunal da Relação, apresentando a respetiva motivação e formulando, a final, as conclusões que seguidamente se transcrevem:
«1. O presente recurso reporta-se, quer à Matéria de Direito, quer à Matéria de Facto que foi dada como não provada, nomeadamente as als.) a), b) e c).
2. Tais factos, salvo o devido respeito, foram incorrectamente julgados pelo Tribunal recorrido, consubstanciando, erro de julgamento (412.º, n.º 3, al. a), do Código de Processo Penal.
3. Atenta a prova produzida, salvo o devido respeito, deveria o tribunal a quo ter procedido à alteração não substancial do factos, no que concerne à alínea a) dos factos não provados, passando a ter a seguinte redação: “Atenta a condenação do arguido, no âmbito da referida sentença, foi aquele regularmente notificado do despacho de 19 de Outubro de 2020, que determinava que deveria proceder à entrega do título de condução que se encontrava na sua posse, no prazo de dez dias, para cumprimento integral da pena acessória que lhe foi imposta, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência”.
4. Ao contrário do considerado pelo Tribunal a quo, dúvidas não restam (desde logo pela conduta do arguido ao entregar em 31-10-2019, quer de licença de condução (ADV00300518), quer a guia de substituição de carta de condução FA-86722), que o arguido era conhecedor da obrigação de entrega da 2ª via da carta de condução, pelo que decidiu e quis não proceder à entrega, tal como o tinha feito anteriormente.
5. Neste sentido, entende-se que deverá ser modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto dada como não provada (alíneas b) e c), devendo, consequentemente tais factos ser considerados dados como provados.
6. A exigência de notificação pessoal do arguido é injustificada no presente caso, acarretando desvantagens para o normal desenrolar do processo, sem quaisquer acrescidas garantias para o arguido, não sendo exigível legalmente (Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, ao art. 196º, n.º 3, alínea e), do C.P.P.
7. O tribunal a quo deveria ter tido em linha de conta o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2010, não obstante o mesmo não versar sobre o mesmo thema decidendum, mas uma vez que se aproxima nas suas repercussões práticas, entendendo-se que os argumentos utilizados neste acórdão também serão de sopesar neste tipo de situações, pois ao se permitir que a notificação do despacho de revogação da suspensão da pena de prisão seja efectuada por via postal simples com prova de depósito, não se entende porque no caso em apreço se exigisse que fosse pessoal, razão pela qual, não se anteveem entraves à aplicação daquela jurisprudência ao presente caso.
8. Pelo exposto, o Tribunal a quo violou as disposições conjugadas do n.º 1, al. c) e nº 3 do artigo 113.º, alínea c) do n.º 3 do artigo 196.º, 214.º, n.º 1, al. e) todos do Código de Processo Penal.
9. A comunicação ao destinatário/arguido (notificação do despacho de 19-10-2020) foi regular, correcta e objectivamente efectuada, sendo certo que, o arguido bem sabia que deveria entregar a 2ª via da carta de condução, já que em momento anterior entregou a respectiva guia e a licença de condução ADV00300518, encontrando-se preenchidos os elementos objectivos do tipo.
10. No que concerne aos elementos subjectivos, não nos subsiste qualquer dúvida no sentido de que o arguido devidamente notificado do despacho de 19 de Outubro de 2020, ficou ciente da ordem transmitida para entrega da 2ª via da carta de condução e da cominação em caso de omissão e, em consequência, que representou necessariamente o resultado ilícito decorrente da omissão de entrega dos documentos (desobediência à ordem que lhe havia sido transmitida), não se vislumbrando qualquer outro desiderato que não o intencional.
11. Pelo exposto, pugna-se pela modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto dada como não provada (alíneas b) e c), devendo, consequentemente tais factos ser considerados dados como provados.
12. A ordem contida na notificação realizada ao arguido é legítima e provém da entidade a quem a lei conferiu poderes para a dar, sendo punível como desobediência, pois que, não se procedendo à entrega tempestiva do título de condução, viola-se mandado transmitido por agente de autoridade, investido de poderes para tanto.
13. Neste sentido, subsumindo os factos às normas supra referidas, conclui-se que o arguido preencheu com a sua conduta, não só os elementos objectivos, como, também os subjectivos do tipo de ilícito, do crime de desobediência do artigo 348, n.º 1, al. b), do Código Penal, não podendo, por isso, deixar de ser condenado pela sua prática, razão pela qual, a decisão recorrida deverá ser revogada por violação do disposto nos artigos 14º e 348.º, n.º 1, alínea b),do Código Penal, e substituída por outra que, declarando a responsabilidade criminal decorrente dos factos que integram o objecto do processo, condene o arguido.
Porém, Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão, fazendo a habitual JUSTIÇA!».

1.4. O arguido não apresentou resposta ao recurso.

1.5. O recurso foi regularmente admitido.

1.6. Nesta Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de o recurso dever merecer provimento.

1.7. Foi cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta.

1.8. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Constitui jurisprudência uniforme que os poderes de cognição do tribunal de recurso são delimitados pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso (cf. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo, da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como sejam as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cf. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal).
Assim, no caso em análise, considerando as conclusões da motivação do recurso as questões suscitadas são as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto dada como não provada nas alíneas a), b) e c), por erro de julgamento.
- Violação dos artigos 196º, nº 3 al. c), 113º, nº 1 al. c), nº 3 e 214.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal, 348.º, nº 1 al. b) e 14º ambos do Código Penal.

2.2. É o seguinte o teor da sentença recorrida, nos segmentos que relevam para a apreciação do mérito do recurso:
«(...)
II -FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A) FACTUALIDADE PROVADA:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. Por sentença proferida em 17/10/2019, no âmbito do processo sumaríssimo nº 179/19.7GTABF, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Competência Genérica de Silves – J2, foi aplicada ao arguido a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 4 (quatro) meses
2. A sentença referida em 1. transitou em julgado no dia 16/12/2019.
3. O arguido entregou, em 31/10/2019, no Posto da GNR, a licença de condução nº ADV00300518 e a guia de substituição de carta de condução FA-86722, datada de 02/07/2019, referente a um pedido de 2ª via do seu título de condução efectuado pelo arguido junto do IMT.
4. Sucede que, no dia 06/12/2019, foi entregue ao arguido a carta de condução FA-86722, na sequência do pedido de 2ª via, pelo próprio efectuado, junto do IMT e a que se alude em 3.
5. Contudo, o arguido não procedeu à sua entrega neste Tribunal nem em qualquer Posto policial, pelo que, da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 4 (quatro) meses, a que foi condenado nos presentes autos, apenas cumpriu o período de 36 dias.
6. Foi enviada notificação para o Arguido, por prova de depósito, do despacho, de 19 de Outubro de 2020, que determinava que deveria proceder à entrega do título de condução que se encontrava na sua posse, no prazo de 10 dias, para cumprimento integral da pena acessória que lhe foi imposta, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
7. O arguido não entregou a sua carta de condução no prazo referido em 7., tendo-se determinado a sua apreensão em despacho datado de 03/12/2020.
8. O arguido manteve em seu poder a sua carta de condução desde o dia 06/12/2019, data em que a mesma lhe foi entregue pelo IMT, na sequência de pedido de 2ª via por este efectuado.
9. Por decisão transitada em julgado em 9 de Janeiro de 2014, transitada em julgado 14 de Fevereiro de 2014, proferida no Processo n.º 97/13.3GTBJA, que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Silves foi condenado pela prática, em 28 de Agosto de 2013, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de €5.00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses e quinze dias.
10. Por decisão de 17 de Outubro de 2019, transitada em julgado em 16 de Dezembro de 2019, proferida no Processo n.º 174/19.7GTABF, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Silves – Juiz 2 pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 85 dias de multa à taxa diária de €6.00 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de quatro meses.
* B) FACTOS NÃO PROVADOS.
Da discussão da causa e com relevância para a decisão da mesma não resultaram provados quaisquer outros factos, nomeadamente não se provou:
a) No âmbito da referida sentença o arguido foi advertido para entregar a sua carta de condução no Tribunal Judicial de Silves ou em qualquer posto policial, no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
b) O Arguido sabia que, ao não proceder à entrega da sua carta de condução no referido prazo, agia com o propósito concretizado de desrespeitar e faltar ao cumprimento da decisão judicial emanada, que sabia ser legítima, proveniente de autoridade competente e regularmente notificada.
c) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
* C) MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal face aos factos descritos fundou-se no conjunto da prova produzida e examinada em sede de audiência de discussão e julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio e da livre convicção do julgador (artigo 127.º do Código de Processo Penal).
O Arguido remeteu-se ao silêncio e não prestou declarações.
Com efeito, para dar como provados os factos 1 a 7 acima mencionados o Tribunal considerou a certidão junta aos autos donde constam as peças processuais que reflectem aqueles.
Relativamente às condenações averbadas o Tribunal atendeu ao certificado de registo criminal.
Porém, para sedimentar os enunciados de facto não provados o Tribunal estribou-se na mesma certidão junta ao Processo. Com efeito, do teor dos documentos resulta claramente que na sentença proferida não consta a cominação com a prática de crime de desobediência, daí que se tenha dado como não provado o enunciado de facto constante da alínea a).
Os demais factos dados como não provados resultam do facto de o despacho de 19 de Outubro de 2020 - que determinava que o Arguido deveria proceder à entrega do título de condução que se encontrava na sua posse, no prazo de 10 dias, para cumprimento integral da pena acessória que lhe foi imposta, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência – ter sido notificado ao Arguido por prova de depósito e não pessoalmente, não podendo dessa forma afirmar-se que o Arguido teve cabal conhecimento da ordem que lhe estava a ser transmitida.
Na verdade, não podemos afirmar, com a certeza que se impõe, que o Arguido teve conhecimento da implicação da não entrega da segunda via da sua carta de condução, podendo ainda afirmar-se uma alternativa e ainda válida explicação para os factos objectivamente demonstrados, no sentido de não ter tido conhecimento de tal ordem, o que, impedindo a refutação da inocência que ilidivelmente se presume, frusta a possibilidade de integral confirmação da hipótese acusatória.
* III - DO DIREITO.
Nos termos do artigo 348.º do Código Penal «Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.»
A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada”.
O bem jurídico tutelado por esta norma afigura-se como a autonomia intencional do Estado, enquanto reveladora dos actos necessários para o cabal desempenho da vida comunitária - vd. MONTEIRO, Cristina Líbano, in Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial -, Coimbra Editora, 2001, Coimbra, pág. 350 e segs..
O crime de desobediência, do ponto de vista objectivo, passa pela falta de obediência devida.
Neste particular, só é devida obediência a ordem ou mandado legítimo, sendo que a entidade de onde promanam tais actos terá de estar investida de competência para o fazer, sendo que os mesmos terão de estar regularmente comunicados aos destinatários (o destinatário, de facto, terá de ficar plenamente inteirado do conteúdo).
Por outra via, a desobediência terá de se reportar, ou a uma disposição legal que comine tal punição; ou, na falta de disposição legal, que a mesma seja efectuada por autoridade ou funcionário.
O crime de desobediência tanto pode ser praticado por acção; como por omissão. No primeiro caso, considerando que não é necessário qualquer resultado típico, pune-se, tão-só, a actividade que desrespeite ordem ou mandado legítimo.
Já no segundo caso, pune-se o deixar de fazer o que foi ordenado, independentemente do resultado ou das consequências.
Por último, as ordens, ou mandados, terão de ser possíveis de cumprir, sendo tal possibilidade aferida em concreto, pelas capacidades e situação do agente infractor.
Passando, agora, à análise do tipo subjectivo, diga-se que o mesmo é doloso (não é punível a título de negligência), sendo inexigível qualquer elemento subjectivo especial.
Nesta esteira, exige-se a verificação dos elementos gerais daquele, como seja o intelectual e o volitivo.
É, pois, fulcral que o agente conheça os elementos do crime; que represente a sua conduta como tipificada e punida pela lei penal. Sendo certo que tal conhecimento terá de ser actual ou contemporâneo do crime. E não obstante tal conhecimento, é necessário, ainda, que persista na vontade de agir de molde a preencher esse tipo de delito.
Por outra via, as modalidades do dolo estão contempladas no artigo 14.º do Código Penal, onde, no n.º 1, se prevê o dolo directo - forma mais intensa -; no n.º 2 o dolo necessário; e, finalmente, no n.º 3 o dolo eventual - a forma mais ténue.
Em suma, para o preenchimento do tipo de crime de desobediência, exige-se que alguém incumpra, consciente e voluntariamente, uma ordem ou mandado legítimo, regularmente comunicado e emanado de autoridade ou funcionário competente.
Ora, no caso em apreço, e salvo melhor entendimento, a ordem não foi regularmente notificada ao Arguido, razão pela qual não podemos afirmar que o Arguido teve dela cabal conhecimento.
É certo que o arguido que preste TIR pode ser notificado para os ulteriores ternos do processo mediante via postal simples para a morada indicada no TIR ou posteriormente alterada, considerando-se realizada a notificação sempre que haja prova do respetivo depósito (art. 196º CPP).
Todavia, e salvo melhor entendimento, tal não se aplica à situação sub judice, sendo necessário para que o Arguido incorra na prática do crime de desobediência que o mesmo tenha tomado dele cabal conhecimento, o que não podemos afirmar através de uma notificação com a prova de depósito, sendo necessária a sua notificação pessoal, de forma a garantir que o Arguido tem conhecimento da advertência que lhe está ser feita.
Face aos factos provados temos que é manifesto que não se encontram reunidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo devendo, por conseguinte, AA, ser absolvido do ilícito que lhe é imputado na acusação.
* IV - DECISÃO:
Pelo exposto, julga-se improcedente, por não provada, a acusação do Ministério Público, e, em consequência, decide-se absolver AA como autor material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º n.º1 al. b) do Código Penal.
(...).»

2.3. Conhecimento do mérito do recurso
2.3.1. Da impugnação da matéria de facto dada como não provada
O Ministério Público/recorrente impugna a matéria de facto dada como não provada na sentença recorrida, nas alíneas a), b) e c), invocando o erro de julgamento.
Sustenta o recorrente que se impunha que tais factos fossem dados como provados, sendo que em relação aos vertidos na al. a), com modificação da respetiva redação, para o que o Tribunal a quo deveria ter uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação.
Apreciando:
O erro de julgamento, na apreciação/valoração da prova, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
São os seguintes os factos dados como não provados que o recorrente considera terem sido incorretamente julgados:
a) No âmbito da referida sentença o arguido foi advertido para entregar a sua carta de condução no Tribunal Judicial de Silves ou em qualquer posto policial, no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
b) O Arguido sabia que, ao não proceder à entrega da sua carta de condução no referido prazo, agia com o propósito concretizado de desrespeitar e faltar ao cumprimento da decisão judicial emanada, que sabia ser legítima, proveniente de autoridade competente e regularmente notificada.
c) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
No que concerne à alínea a) dos factos dados como não provados, considera o recorrente que o Tribunal a quo deveria ter alterado a sua redação, através da alteração não substancial dos factos, em termos de aquela passar a ser a seguinte: “Atenta a condenação do arguido, no âmbito da referida sentença, foi aquele regularmente notificado do despacho de 19 de Outubro de 2020, que determinava que deveria proceder à entrega do título de condução que se encontrava na sua posse, no prazo de dez dias, para cumprimento integral da pena acessória que lhe foi imposta, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência”.
Em sustentação de tal entendimento alega o recorrente que «Se se apurou que não foi o arguido, “no âmbito da referida sentença” advertido para entregar a sua carta de condução, sempre se apurou que em momento posterior, acabou por sê-lo, através da notificação do despacho de 19 de Outubro de 2020, não sendo necessário que se proceda à notificação pessoal, conforme considerado pelo Tribunal a quo (...).» [nosso sublinhado].
Defende o recorrente que arguido/condenado tem de considerar-se devidamente notificado do aludido despacho de 19/10/2020, dado que a notificação foi enviada para a morada pelo mesmo indicada no Termo de Identidade e Residência que prestou no processo n.º 179/19.7GTABF, do qual consta a expressa advertência de que «as posteriores notificações – o que abrange notificações feitas após trânsito em julgado da sentença condenatória – serão feitas por via postal simples, na morada por si indicada, excepto se comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento e de que o TIR só se extingue com a extinção da pena (cf. artigo 196º, n.º 3, alíneas c) e e), do CPP).
Perante a fundamentação aduzida pelo recorrente para “atacar” a factualidade dada como não provada na alínea a), crê-se ser isento de dúvida, que não se reconduz a uma impugnação, posto que, o recorrente não põe em causa que tal factualidade não ficou provada.
O que o recorrente pretende, como se alcança da sugerida alteração da redação da indicada alínea a), é que passe a constar dos factos provados que o arguido/condenado foi devidamente notificado do despacho proferido em 19/10/2020, despacho esse que é mencionado no ponto 6 da matéria factual provada.
Por se tratar de factualidade que não foi alegada na acusação pública deduzida, o recorrente considera que o Tribunal a quo deveria ter procedido a uma alteração não substancial dos factos descritos naquela, nos termos do disposto no artigo 358º, n.º 1, do CPP.
Que dizer?
Desde logo, importa fazer notar que a impugnação da decisão de facto, em sede de recurso, apenas pode ter objeto a matéria factual dada como provada ou como não provada, na sentença recorrida. Em relação aos factos que não constem de uma ou de outra, mas que integrem o objeto do processo, tal como vem definido no n.º 4 do artigo 339º do CPP, a sua omissão no elenco dos factos provados, se forem relevantes para decisão a proferir, de harmonia com o disposto no artigo 368º do CPP, será suscetível, em nosso entender, de configurar o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º, n.º 2, al. a), do CPP.
No caso vertente, no respeitante à impugnação da matéria factual constante da alínea a), dos factos dados como não provados, o recorrente não põe em causa que essa concreta factualidade não resultou provada.
E assim sendo, a pretensão do recorrente, no sentido da alteração da redação da referenciada alínea a), com o aditamento de nova factualidade – concretamente, que o arguido foi «regularmente notificado do despacho de 19 de Outubro de 2020 ....» –, que passaria a integrar o elenco dos factos provados, nunca poderia ser atendida, por via da impugnação da matéria de facto, com base em erro de julgamento.
Por conseguinte, sem necessidade de maiores considerações, terá de manter-se inalterada a al. a), dos factos não provados.
Mesmo conjeturando a hipótese de se poder estar perante uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (cf. artigo 410º, n.º 2, al. a), do CPP), a factualidade em questão - ou seja, que o arguido foi regularmente notificado, do despacho proferido em 19/10/2020, para a morada que indicou no TIR que prestou no âmbito do processo sumaríssimo n.º 179/19.7GTABF -, resultando indiciada da discussão da causa, integraria – como, aliás, é referido pelo recorrente –, uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, que, acrescentamos nós, teria de ser comunicada ao arguido, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 358º, n.º 1, do CPP.
Sucede que o Tribunal a quo, acolheu o entendimento de que a notificação, por via postal simples, com prova de depósito, do despacho que vem sendo referenciado, não é a forma adequada para transmitir ao arguido/condenado a ordem dada, exigindo-se a notificação pessoal.
Nessa conformidade, tendo dado como provado, no ponto 6, que «Foi enviada notificação para o Arguido, por prova de depósito, do despacho, de 19 de Outubro de 2020, que determinava que deveria proceder à entrega do título de condução que se encontrava na sua posse, no prazo de 10 dias, para cumprimento integral da pena acessória que lhe foi imposta, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.», em sede de fundamentação de direito, entendeu não ter aplicação, ao caso, o regime da notificação decorrente da prestação de TIR (nos termos previstos no artigo 196º, nº 3 al. c) e 113º, nº 1 al. c) e nº 3, ambos do CPP), sendo necessário, para que o arguido incorra na prática de um crime de desobediência, p. e p. no artigo 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal, a sua notificação pessoal, de forma a garantir que o arguido tem conhecimento da advertência que lhe está a ser feita.
Salvo o devido respeito pela posição contrária, defendida pelo recorrente/Ministério Público, aderimos ao entendimento sufragado pelo Tribunal a quo, embora não em termos tão restritos, quanto à forma que deve revestir a notificação ao arguido/condenado do despacho em apreço, já que consideramos que também pode ser efetuada, por via postal registada (cf. artigo 113º, n.º 1, alínea b), do CPP).
Explicitando:
Está em causa nos autos, a não entrega pelo arguido, a quem foi aplicada, no âmbito de processo sumaríssimo, n.º 179/19.7GTABF, por despacho, com valor de sentença - proferido em 17/10/2019, transitado em julgado em 16/12/2019 -, a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 4 (quatro) meses, da 2ª via da carta de condução, a qual lhe foi entregue, pelo IMT, em 06/12/2019, tendo o arguido, em momento anterior, na data de 31/10/2019, procedido à entrega, no Posto da GNR, da licença e da guia de condução, referente ao pedido de 2ª via da carta de condução, que efetuou.
Tendo havido conhecimento, no referenciado processo sumaríssimo, de que, nas circunstâncias descritas, o arguido/condenado ficou em poder da 2ª via da carta de condução, foi proferido despacho, em 19/10/2020, determinando que o mesmo deveria proceder à entrega do titulo de condução que se encontrava na sua posse, no prazo de 10 dias, para cumprimento integral da pena acessória que lhe foi imposta, sob pena de não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
Foi enviada notificação ao arguido/condenado, por via postal simples, com prova de depósito e, nessa sequência, não tendo aquele entregue a sua carta de condução, foi determinada a apreensão desta, por despacho de 03/12/2020.
Dão-se aqui por reproduzidas as considerações jurídicas expendidas na sentença recorrida, no referente aos elementos típicos objetivos e subjetivos do crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal, por cuja prática o arguido foi acusado.
No referente ao tipo objetivo do aludido crime, como vem sendo reiteradamente referido, na jurisprudência[1], para que se mostre preenchido, é necessário que:
a) exista um comando emanado de uma entidade/autoridade, sob a forma de ordem ou mandado, impondo uma determinada conduta, ou seja, impondo uma ação ou uma abstenção;
b) que essa ordem seja formal e materialmente legítima, ou seja, tem de existir uma disposição legal que autorize a sua emissão;
c) que tenha sido emitida por uma entidade/autoridade competente, o que significa que a ordem tem de ser abrangida pelas atribuições funcionais do emitente;
d) que tenha sido regularmente comunicada ao seu destinatário, exigindo-se que aquilo que lhe é imposto chegue efetivamente ao seu conhecimento (por forma a fundar-se o respetivo dolo) e que a comunicação se efetue pelas vias normalmente utilizadas; e
e) que tenha existido a violação, por ação ou omissão, do dever concretamente emergente dessa ordem ou mandado, dever esse que pode emergir de norma legal ou de cominação expressa nesse sentido por parte da autoridade competente.
No que agora releva, importa-nos atentar no elemento do tipo objetivo, que respeita à regularidade da transmissão da ordem ou mandado.
A este propósito referem Simas Santos e Leal-Henriques[2] «Os destinatários têm que ter (...) conhecimento da ordem ou mandado a que ficam sujeitos, pelo que se exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que aqueles tenham conhecimento do que lhes é imposto ou exigido.»
Também Paulo Pinto de Albuquerque se pronuncia no mesmo sentido, escrevendo[3]: «A ordem e o mandado devem ser regularmente comunicados, isto é, devem ser transmitidos aos respetivos destinatários pelos meios previstos na lei. Portanto, o destinatário da ordem ou mandado deve tomar conhecimento do conteúdo dos mesmos, o que exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que o destinatário tenha conhecimento do que lhe é imposto ou exigido.»
Sufragando-se estas considerações, entendemos que a regularidade da comunicação ao arguido/condenado, do despacho judicial, em que lhe é determinado que proceda à entrega da sua carta de condução, no prazo de 10 dias, a fim de cumprir integralmente a pena acessória que lhe foi aplicada, em anterior despacho, com valor de sentença condenatória, no âmbito de processo sumaríssimo (cf. artigo 397º, n.ºs 1 e 2, do CPP), sob pena de não o fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência, impõe que a notificação desse despacho deva ser efetuada através de uma via que garanta a certeza de que o condenado teve conhecimento da ordem dada e de que o incumprimento da mesma o fará incorrer em crime de desobediência. Ora, isso só poderá ser assegurado, se a notificação for feita através de contato pessoal ou, pelo menos, por via postal registada (cf. artigo 113º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPP).
Assim, ainda que se tenha presente a jurisprudência uniformizada pelo STJ, no Acórdão n.º 6/2010, convocada pelo MP/recorrente, no que diz respeito à forma que deve revestir a notificação ao condenado, que prestou termo de identidade e residência, do despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão – no sentido de que “pode assumir tanto a via de «contacto pessoal» como a «via postal registada, por meio de carta ou aviso registados» ou, mesmo, a «via postal simples», por meio de carta ou aviso» [artigo 113.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) e d), do CPP).” –, consideramos, uma vez mais ressalvado o devido respeito, que não pode ser “transposta”, para a notificação do despacho ao arguido/condenado do supra mencionado despacho, pelas razões atrás referidas.
Por conseguinte, não tendo a notificação ao arguido/condenado do despacho em questão – no qual lhe foi determinando que procedesse à entrega da sua carta de condução, no prazo de 10 dias sob pena de não o fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência –, sido efetuada por qualquer das vias adequadas, contato pessoal ou via postal de registada, para que se pudesse considerar regularmente comunicada a ordem judicial ínsita no mesmo despacho, forçoso é concluir que, não estar preenchido, desde logo, o tipo objetivo do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal.
Nessa conformidade, ficando prejudicada a apreciação da impugnação da matéria de facto respeitante aos elementos subjetivos, tem de manter-se a decisão absolutória do arguido, proferida na 1ª instância.
Improcede, pois, o recurso.

3. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida
Sem tributação.
Notifique.
Évora, 22 de novembro de 2022

Fátima Bernardes (relatora)
Fernando Pina
Beatriz Marques Borges

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[1] Cf., por todos, Ac. da RE de 29/11/2016, proc. 1627/09.0TAFAR.E2 e Ac. da RP de 25/01/2017, proc. 167/16.6GAVGS.P1, acessíveis in www.dgsi.pt.
[2] In Código Penal Anotado, 2.º volume, 3.ª edição, Rei dos Livros, 2000, pág. 1504.
[3] In Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República ..., 3ª edição, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 1105.