Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
96/17.6JAPTM.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MEDIDA DA PENA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Data do Acordão: 09/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Para a atenuação especial da pena não é suficiente um quadro em que as atenuantes sejam importantes, mas sim que estas sejam de molde a concluir-se que, só através da “correcção” à medida da pena, se obtém uma solução justa, sempre, contudo, sujeita à acentuada diminuição da ilicitude do facto ou da culpa ou das necessidades punitivas.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos presentes autos, de processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, que correu termos no Juízo Central Criminal de Portimão do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, imputando-lhe factos susceptíveis de integrarem a prática, como autor material, em concurso efectivo, de:

- dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1, do Código Penal (CP), relativamente à menor LB;
- um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 3, alínea a), do CP, relativamente à menor LB;
- dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1, do CP, relativamente à menor CM; e
- um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.ºs 1 e 3, alínea a), do CP, relativamente à menor RA.

O arguido apresentou contestação, oferecendo o merecimento dos autos e requerendo inspecção ao local e realização de perícia à sua personalidade.

Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido indeferidas essas requeridas diligências.

Proferido acórdão, decidiu-se:

- condenar o arguido pela prática de:
- dois crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1, do CP (de que foi vítima LB), na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão por cada um deles;

- um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 3, alínea a), com referência ao art. 170.º, ambos do CP (de que foi vítima LB), na pena de 1 (um) ano de prisão;

- dois crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1, do CP (de que foi vítima CM), na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão por cada um deles: e

- um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 3, alínea a), com referência ao art. 170.º, ambos do CP (de que foi vítima RA), na pena de 1 (um) ano de prisão;

- em cúmulo jurídico das penas aplicadas, condená-lo na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Inconformado com o acórdão, o arguido interpôs recurso, formulando as conclusões:

i. Impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

ii. Consideramos incorretamente julgados os pontos 4. a 6., 8. a 10. e 12. De facto, tais pontos devem considerar-se incorretamente julgados, devendo antes tal matéria dar-se como não provada, impondo decisão diferente da recorrida as declarações para memória futura das menores, as declarações do ofendido e das testemunhas ora prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, em especial aqueles depoimentos concretamente referidos e melhor identificados na motivação do presente recurso, aquando da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

iii. A forma como o Tribunal a quo apreciou as provas disponíveis revela uma clara violação do artigo 127.º do Código de Processo Penal. Extraiu conclusões que plasmou na matéria de facto provada que não tem assento razoável, nem lógico, na prova efetivamente produzida, mormente pelas declarações das menores e das suas progenitoras em jeito de testemunha.

iv. Fundamentalmente alicerçaram então esta decisão pelo facto de perigo de o Arguido voltar a praticar novos factos similares, pelo facto de a sua companheira poder voltar a receber crianças e desenvolver a atividade de ama.

v. No entanto, o facto de o arguido ter fracas condições económicas, numa conjuntura económica em que os idosos aposentados sobrevivem com fracos recursos económicos, não pode, mais do que aquilo que já por si representa de estigmatizador, ser um fator por si só considerado agravante nestas situações. Se tal como o douto Tribunal a quo refere, o arguido é um elemento participativo em várias associações, clubes e organizações, só o conhecimento do presente processo irá até ao fim dos seus dias acarretar um peso para o arguido e uma “desconfiança” implícita à generalidade da comunidade dado o carácter inquisitório tão típico da nossa sociedade e pela “condenação social” a que foi sujeito e que dificilmente se irá descartar. E nem se aceita, tal como prescrito pelo douto acórdão, que o perigo de continuação da prática pelo facto de a esposa poder continuar a receber crianças derive da dificuldade e das necessidades dos pais de recorrer a serviços de cuidados de crianças “ilegais”.

vi. Por outro lado, importa verificar que o arguido com 79 anos não apresenta qualquer condenação anterior, desconhecendo-se quaisquer transgressões ou problemas legais que imputem a prática de crimes.

vii. Por outro lado ainda, e derivando do exposto, não podemos esquecer que o arguido e a esposa com toda a certeza absoluta não irão nunca mais receber e auxiliar pais “necessitados”, não havendo assim perigo de eventual continuação da conduta, pelo que as exigências de prevenção geral e especial são diminutas pelo que devia a pena ter sido especialmente atenuada nos termos do artigo 72.º e 73.º ambos do Código Penal;

viii. Não recebendo a ama apenas aquelas três crianças, não se conhece qualquer outra queixa ou denúncia de prática de iguais factos pelas demais nos últimos 10 anos, além de as denúncias terem partido da menor que menos tempo esteve ao cuidado da esposa do arguido.

ix. Ao contrário do que faz crer o douto Acórdão, não se deteta tal espontaneidade e ingenuidade por parte das crianças que nos possa levar a crer que tais afirmações são efetivamente verdades.

x. Não obstante, o facto de o arguido ter aguardado julgamento em liberdade não provocou no meio social quer onde o mesmo reside, quer onde os factos foram praticados, qualquer alarme social, nem sentimento de medo e/ou inquietação; o arguido não denota qualquer tendência para a prática de atos ilícitos de idêntica natureza pelo facto de ter negado os factos do presente processo.

xi. Deverá a pena aplicada ao arguido ora recorrente ser especialmente atenuada, nos termos do artigo 72.º e 73.º do CP e, portanto, ser reduzida a uma pena de prisão nunca superior a 5 anos, e bem assim, uma vez, que se encontram preenchidos os pressupostos do artigo 50.º do Código Penal, pela mesma ordem de razões já expostas, suspensa na sua execução, sendo a ameaça de prisão suficiente para acautelar, por todo o já exposto, as exigências de prevenção verificadas no caso sub judice, permitindo à sociedade manter um controlo sobre a conduta do arguido ora recorrente, sendo que tal não pode ser visto como um ato de clemência, mas antes como de verdadeira realização da justiça.

xii. Com efeito, tal permite concluir que a ameaça de prisão e censura do facto realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

xiii. Assim, sujeitando o arguido à suspensão da pena, sob regime de prova, poderia o Tribunal de facto aferir se a aplicação daquele regime o favorecia e caso se verificasse que não, sempre revogaria a suspensão, ordenando a efetiva prisão, pelo que nenhum prejuízo ocorreria da aplicação dessa medida.

xiv. Ao invés deste poder-dever, o tribunal entendeu assim que ressocialização e reintegração do Arguido ocorre no encarceramento e não considerou qualquer atenuante, em especial o referido no relatório social junto aos autos.

xv. Merece o arguido um verdadeiro juízo de prognose favorável.

Termos em que,
Deve o presente recurso ser considerado provido nos termos enunciados nas conclusões, como é de Direito e Justiça!!!

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:
Não padece a decisão recorrida de qualquer falta ou vício.

Concluindo, dir-se-á, pois, que ao recurso do arguido não deve ser dado provimento, mantendo-se inteiramente a decisão recorrida se fará JUSTIIÇA.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, entendendo que o acórdão deve ser alterado e absolvido o arguido por exigência da aplicação do princípio in dubio pro reo.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), o arguido nada veio acrescentar.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as cominadas com nulidade do acórdão (art. 379.º, n.º 1, do CPP) e os vícios da decisão e as nulidades que não se considerem sanadas (art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP), designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário Secção Criminal STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995 e, ainda, entre outros, os acórdãos do STJ: de 25.06.1998, em BMJ n.º 478, pág. 242; de 03.02.1999, em BMJ n.º 484, pág. 271; e de 12.09.2007, no proc. n.º 07P2583, in www.dgsi.pt ; Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3.ª edição, pág. 48; e Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, págs. 320/321.

Delimitando-o, reside, pois, em apreciar:
A) - da impugnação da matéria de facto;
B) - da atenuação especial da medida da pena;
C) - da redução da medida da pena;
D) - da suspensão da execução da prisão.

Ao nível da matéria de facto, consta do acórdão recorrido:

Factos Provados:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:

1. O Arguido AA e BB vivem um com o outro como se marido e mulher se tratassem desde data não apurada, há mais de cinquenta anos.

2. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos a partir do ano de 2007, BB passou a cuidar de crianças em sua casa, sita na Rua…, em Portimão, como se de uma ama se tratasse, auferindo em troca a quantia de € 10,00 por dia, por criança.

3. A menor LB, nascida em 26 de Março de 2012, frequentou a casa de BB, sita na morada acima indicada, entre meados do mês de Abril de 2017 e o dia 8 de Julho de 2017, todos os sábados e num domingo, em data não apurada.

4. No período acima indicado, por diversas vezes, em número não concretamente apurado, mas pelo menos duas vezes, quando estavam no quarto do Arguido, na morada acima indicada, AA despiu a menor LB e mexeu-lhe na vagina, com a mão.

5. No mesmo período, em data não determinada, o Arguido retirou o pénis do interior das calças e exibiu-o à menor LB, que o viu.

6. Após praticar os factos descritos, o Arguido ofereceu um chupa-chupa à menor LB.

7. A menor CM, nascida em 4 de Dezembro de 2008, frequentou a casa de BB, na morada acima indicada, aos sábados e aos feriados, no período compreendido entre Fevereiro ou Março de 2016 e o dia 20 ou 21 de Junho de 2017.

8. No mencionado período, por diversas vezes, em número não concretamente apurado, mas pelo menos duas vezes, quando estavam sozinhos no quarto, na morada indicada, o Arguido retirou o pénis do interior das calças, exibiu-o à menor CM, que o viu.

9. Em seguida, solicitou à menor que lhe tocasse no pénis com a mão, o que CM fez, verificando que o pénis estava mole.

10. Após praticar os factos descritos, o Arguido deslocou-se a um estabelecimento/café na companhia da menor, onde adquiriu chupa-chupas e rebuçados, que em seguida ofereceu à menor.

11. A menor RA, nascida em 4 de Maio de 2013, frequentou a casa de BB, na morada acima indicada, a partir dos quatro meses de idade, até ao dia 10 de Julho de 2017.

12. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o dia 5 de Maio de 2017 e o dia 10 de Julho de 2017, quando estavam no quarto do Arguido, na morada acima indicada, AA retirou o pénis do interior das calças e exibiu-o à menor RA, que o viu.

13. O Arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente.

14. Tinha perfeito conhecimento da idade das menores LB, CM e RA, que frequentavam a casa do Arguido, e o tratavam por avô, ficando entregues aos cuidados da companheira, BB, a quem tratavam por ama.

15. O Arguido agiu sempre com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais, utilizando para tanto as menores acima identificadas, aproveitando-se da relação de proximidade existente.

16. Sabia que ao actuar da forma descrita causava sofrimento às menores, prejudicava o desenvolvimento harmonioso das suas personalidades, ofendendo a sua liberdade sexual e o inerente sentimento de pudor, o que conseguiu.

17. O Arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se apurou que
18. À data dos factos como no presente, AA mantém uma vida familiar organizada, junto da companheira, com quem vive em união de facto há 55 anos e teve dois filhos, já adultos, com vida independente. Actualmente com 79 anos, encontra-se aposentado, tendo encerrado a actividade da própria empresa de construção civil há 10 anos. Vai aceitando contudo algumas empreitadas de obras a título particular e eventual, sendo que a condição física revela algumas limitações significativas, designadamente ao nível da visão.

19. AA revela-se um indivíduo com uma baixa instrução, proveniente de um meio rural pobre do concelho de Portimão. Por necessidade, ingressou precocemente no mundo do trabalho, aprendendo em exercício a profissão de pedreiro, em que se afirmou de forma positiva. Dos 18 aos 21 anos exerceu serviço militar nas ex-colónias de Angola e Moçambique. No período imediato ao regresso ao meio de origem e ao longo dos anos são mencionados sinais potencialmente indicadores de stress pós traumático, mas que nunca foram alvo de atenção especializada, designadamente por não serem considerados comprometedores da prossecução da vida quotidiana do Arguido.

20. Cerca dos 24 anos encetou a vida em comum com a actual companheira, com quem constituiu uma família estável. Economicamente terão vindo a progredir para uma situação relativamente equilibrada, baseada numa gestão parcimoniosa dos gastos, contando com os proventos do trabalho do Arguido e da companheira, inicialmente na indústria hoteleira e mais recentemente como ama particular, a receber crianças em casa.

21. Em termos da dinâmica relacional do casal não sobressaíram conflitos de maior. Embora se notasse um registo de comunicação pouco elaborado na partilha de sentimentos mais íntimos, evidenciou um bom entendimento nos aspectos mais funcionais da confiança e da interajuda.

22. Afigura-se uma integração positiva no meio comunitário, sendo AA um elemento participativo em várias associações relacionadas com os seus interesses e ocupações, entre o clube recreativo local e outras organizações ligadas à caça e à pesca, expressando o sentido de preocupação pelo bem comum destes contextos.

23. É descrito como um indivíduo de fácil trato e prestável, orientado primordialmente para a vida prática, do trabalho, família e dos hobbies que implicam a convivencialidade em especial com outros homens do seu meio. Nunca terá sido referenciado por problemas de ofensa ou transgressões, sendo o actual envolvimento judicial inesperado.

24. É baixo o sentido do impacto ou do dano de toda esta situação/processo judicial nas vítimas identificadas.

25. Do Certificado de Registo Criminal do Arguido nada consta.

Motivação da decisão de facto:
A convicção do Tribunal quanto à matéria dada como provada assenta no conjunto de prova produzida, apreciada criticamente e com recurso às regras da experiência comum.

Assim, o Arguido limita-se a negar a prática dos factos de que vem acusado, afirmando ser pessoa séria e honesta.

No entanto, as menores LB, CM e RA (ouvidas em declarações para memória futura, transcritas a fls. 196 e ss., 185 e ss. e 205 e ss., respectivamente), descrevem de forma verosímil os actos praticados pelo Arguido.

Com efeito, LB relata que o marido da BB (cujo nome desconhece) mexeu-lhe no “pipi” com a mão, quando estavam no quarto daquele, o que terá ocorrido mais do que uma vez, mas em número de vezes que não consegue concretizar. Mais responde que também lhe mostrou a “pilinha” e, revelando sinceridade, afirma que não lhe mexeu em mais nenhuma parte do corpo.

CM também explicou que o Arguido por várias vezes que não sabe precisar, mas mais do que uma, quando se encontravam no quarto daquele, mostrou-lhe a “pilinha” e pediu-lhe para mexer neste órgão, o que fez. Questionada, responde que a “pilinha” estava mole e que viu “castanho”. É honesta ao responder igualmente que o Arguido não lhe mexeu em parte alguma do seu corpo nem lhe deu beijos.

De igual forma, RA, com apenas 4 anos de idade, responde que o Arguido mostrou-lhe a pilinha (o que aconteceu depois de ter feito anos), que não lhe pediu para fazer mais nada nem lhe tocou no corpo.

De assinalar que o discurso das referidas menores em nada coincide com uma história inventada, preparada ou, por qualquer forma, manipulada. As mesmas apenas se conheciam da casa de BB, pessoa que cuidava de crianças e a quem chamavam de “avó” e onde apenas se encontravam aos Sábados. Veja-se que LB e RA tinham, na altura, apenas 5 e 4 anos, respectivamente, tendo, todas elas, manifestado natural pudor e resistência em falar do sucedido.

Na sequência do relatado, as menores LB e CM fazem ainda menção a que o Arguido lhes oferecia chupas.

A circunstância das referidas menores não terem denunciado logo as situações de que terão sido vítimas não coloca em crise a veracidade dos factos que relatam. São por demais conhecidas as frequentes situações de abusos sexuais (e até de maus tratos e de violência doméstica) que se prolongam no tempo precisamente pelo sentimento de vergonha e, por vezes, até de culpa, experienciado pelas vítimas. Tal será tanto mais compreensível em vítimas tão novas, ao que acrescerá, obviamente, sentimentos de confusão.

SB, mãe de LB esclarece o período em que deixou a sua filha aos cuidados da D. BB, o que acontecia aos Sábados e alguns feriados, e que, um dia quando foi buscá-la, a mesma disse-lhe “ele hoje só me quer mexer aqui” apontando para a vagina. Mostrou-se descomprometida, ao responder que, apesar de tudo, tal situação não teve reflexos no comportamento da sua filha.

LM indicou as circunstâncias em que deixava a sua filha CM aos cuidados da D. BB e como, já depois da mesma ter deixado de frequentar a casa desta, veio a ser abordada pela mãe da LB por causa do que havia acontecido. Nessa sequência, falou com a CM que lhe respondeu que o Arguido lhe mostrava a “pilinha” e queria que lhe tocasse com a mão.

CC, mãe da menor RA, relata como deixou ambos os filhos aos cuidados da D. BB, desde que tinham apenas meses de idade e que, após ter tido conhecimento da situação, questionou o seu filho mais velho que lhe respondeu nunca ter assistido a nada. Já RA contou-lhe, com naturalidade, como o Arguido baixava as calças e pedia-lhe para lhe tocar na “pilinha”, mas já não quis responder se chegou, efectivamente, a tocar.

Releva-se isenta ao afirmar a D. BB foi mais do que uma ama, que foi uma avó e uma amiga.

Todas as supra referidas testemunhas revelaram-se, pois, sérias e verdadeiras, não se detectando, por parte das mesmas, qualquer esforço em implicar o Arguido nos factos ou em agravar a sua actuação. E, ao contrário do aventado pela Defesa, não estamos perante uma conspiração contra o Arguido nem qualquer manipulação das menores cujos depoimentos, como acima analisado, foram credíveis.

Veja-se que não existe qualquer ligação entre as mães das menores que apenas se conhecem, de forma superficial, de deixarem as suas filhas na ama, não decorrendo qualquer motivação para que três menores de 4, 5 e 8 anos de idade, construíssem a história que vieram relatar.

De referir que qualquer disparidade nos pormenores apenas revelam a espontaneidade das referidas testemunhas, sendo certo que é do conhecimento comum que quer a perspectiva quer a memória de cada pessoa não são, naturalmente, completamente coincidentes, facto inerente à condição de unicidade humana, situação que é ainda mais evidente em menores tão jovens.

Já a testemunha BB (companheira do Arguido) prestou um depoimento tendencioso e obviamente comprometido, não merecendo qualquer credibilidade. Confirmou os cuidados prestados quer às menores em questão quer a outras crianças e atribui toda a situação a uma conspiração ou, nas suas palavras, uma “tachada”. De resto, a nada assistiu, sendo certo que, ao contrário do que quer fazer crer, não podia estar a todo o tempo a vigiar os menores nem o seu companheiro se encontrava totalmente ausente de casa nos Sábados (quer as menores quer as suas mães confirmam ver o Arguido lá por casa quando iam deixar ou buscar as suas filhas).

Mais descreve que a mãe da LB, num Domingo (um dia após lá ter deixado a menor aos seus cuidados) apareceu na sua casa, insultando o Arguido e acusando-o de ter violado a filha. Tal comportamento é consentâneo com o de uma mãe convicta dos abusos perpetrados sobre a sua filha.

Por fim, a testemunha de Defesa AB limita-se a relatar que deixou a sua filha aos cuidados da D. BB durante quase 10 anos, a qual chamava ”avós” a esta e ao seu companheiro, ora Arguido. Esta testemunha mostra-se satisfeita com o referido casal, com o qual mantém uma boa relação.

Ora, a circunstância de não ter havido queixas de outras crianças ou mesmo de haver pais satisfeitos com os cuidados prestados na casa de BB não implica necessariamente a impossibilidade dos factos relatados terem ocorrido, pelo que os depoimentos destas duas últimas testemunhas em nada ensombram os factos relatados pelas menores LB, CM e RA.

Note-se que os factos descritos não são susceptíveis de deixar vestígios físicos, pelo que a ausência de lesões traumáticas observáveis é compatível com o relatado pelas menores, não afastando, de modo nenhum, a possibilidade de terem ocorrido.

Assim e da conjugação de toda a prova supra mencionada (apreciada do modo acima referido), com as cópias dos assentos de nascimento de fls. 122/123, 124/125 e 126/127, bem como com as regras da experiência comum, dúvidas não se suscitam quanto aos factos descritos em 1. a 12.

Do mesmo modo e sendo certo que o Arguido não padece de qualquer incapacidade intelectual ou psíquica e considerando as regras da normalidade da vida e as circunstâncias supra enumeradas, resulta, com certeza, a intenção com que agiu e o conhecimento da ilegitimidade e proibição das suas condutas - factos provados em 13. a 17..

Os factos relativos à situação pessoal do Arguido assentaram no Relatório Social elaborado.

Por fim, foram tidos em conta os demais documentos juntos aos autos, designadamente, os relatórios periciais de fls. 14/17, 20/23 e 241/277 e o Certificado de Registo Criminal do Arguido.

Apreciando:

A)- da impugnação da matéria de facto:
A modificação da matéria de facto pode verificar-se, segundo o disposto no art. 431.º do CPP, além do mais, “se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º”.

Tem-se, aqui, em vista, a impugnação traduzida na análise da prova, de forma alargada, não obstante dentro dos limites decorrentes do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 desse art. 412.º, na medida em que, como vem sendo pacificamente entendido, o recurso é mero remédio jurídico, e não novo julgamento com repetição dos meios de prova produzidos em 1.ª instância - exceptuado o caso em que seja admissível a renovação da prova -, para despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo.

Já Cunha Rodrigues o salientava, in “Lugares do Direito”, Coimbra Editora, 1999, págs. 498/499, ao referir que o Código de Processo Penal assume claramente os recursos como remédios jurídicos e não como meios de refinamento jurisprudencial, não visando o único objectivo de uma «melhor justiça».

Também, segundo Damião da Cunha, in “A Estrutura dos Recursos”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8, Abril-Julho, 1998, págs. 259 e seg., os recursos configuram-se no Código de Processo Penal como um remédio e não como um novo julgamento sobre o objecto do processo (…) Assim, ao recorrente é exigido que apresente os pontos de facto que mereçam a censura de incorrectamente decididos (…) Não basta, porém, que no recurso manifeste a discordância e, bem assim, as provas (…) que não só demonstrem a possível incorrecção decisória, mas também permitam configurar uma alternativa decisória.

Ainda, a tal propósito, lê-se no acórdão do STJ de 10.03.2010, in CJ Acs. STJ ano XVIII, tomo I, pág. 219, Como o Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se de um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento (…) O objeto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento (…) A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção "cirúrgica", no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação (…) A juzante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.

Apresentando-se com uma finalidade processualmente específica e justificada, os contornos necessários à impugnação de facto nessa vertente ficaram devidamente explicitados no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2012, de 08.03, in D.R. I Série, n.º 77, de 18.04.2012.

No entanto, mesmo quando se considere a impugnação efectuada de forma processualmente válida, isso não equivale necessariamente à modificação da decisão de facto recorrida.

Não se bastará, para que venha a proceder, com a pretensão de dar-se como provada determinada versão, com base nas provas produzidas e diferentemente valoradas por quem recorre, já que a censura do tribunal ad quem não incidirá sobre a decisão do tribunal a quo que assente a sua convicção sobre a credibilidade da prova produzida, ou a falta dela, em elementos que relevam dos princípios da imediação e da oralidade, aos quais o tribunal de recurso não tem acesso, sem prejuízo dos limites do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127.º do CPP.

Em concreto, nada impede à apreciação da visada impugnação, dado que o recorrente cumpriu o ónus de especificação, ao ter indicado os pontos de facto que considera incorrectamente julgados (pontos provados em 4 a 6, 8 a 10 e 12) e as provas respectivas que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa (declarações para memória futura das menores LB, CM e RA e depoimentos de SB, LM e AB, sem prejuízo dos relatórios periciais que menciona), aludindo, relativamente às mesmas e por referência à respectiva localização, aos excertos que entendeu pertinentes. Apela, ainda, por via da conjugação desses elementos, para a aplicação do princípio in dubio pro reo.

A impugnação versa, pois, a globalidade dos factos provados objectivamente atinentes ao apuramento da sua culpabilidade, que veio a ser fixada pelo tribunal a quo, preconizando, o recorrente, que os não teria praticado, sendo que, tal como refere, desde a primeira hora que pugna pela sua inocência ou, pelo menos, que não se tivesse enveredado pela isenção de dúvidas quanto à sua verificação.

Analisar-se-á, quanto necessário, a argumentação aduzida, não perdendo de vista a motivação por que o tribunal se pautou.

Para o efeito, procedeu-se à audição integral dos invocados meios de prova.

Assim, no tocante aos factos provados em 4, 5 e 6, de que teria sido vítima a menor LB, então com 5 anos de idade, o recorrente traz à colação excertos das declarações da menor e do depoimento da mãe desta, SB.

Quanto ao declarado pela menor (que se encontra transcrito de fls. 196 a 204), vem suscitar, para abalar a respectiva credibilidade, que:

- Não deixa de ser surpreendente, por um lado, como é que a menor não se lembra do nome do “marido da BB”, quando a própria afirma que ficava todos os sábados lá em casa, a não ser que o contacto e a presença do arguido não fosse assim tão frequente como este sempre alegou;

- a rapidez e prontidão, da resposta e a própria resposta surpreendente da menor à pergunta do Meritíssimo Juiz “E quem é a BB?” – “É uma senhora que um senhor me fez mal.” Não entendemos que seja uma resposta típica de uma criança de cinco anos, mas tão-somente uma ideia preconcebida e imposta à criança cuja mente é tão facilmente maleável, mormente pelos progenitores;

- das suas palavras não resulta que o Arguido tenha efetivamente despido a menor ou sequer que lhe tenha mostrado o pénis;

- denota-se grande sugestão de factos pelo Meritíssimo Juiz, aos quais a menor LB monocordicamente e sucintamente refere sim e não ou limita-se a repetir o dito do Juiz. Devemos ter em atenção a quantidade de vezes que a menor LB afirma “Não me lembro”. Ou ainda a pressão colocada à menor de que se “contar” o que aconteceu pode ir embora e não tem de voltar. Efetivamente, repare-se na forma dirigida e sugestiva como foram obtidas da menor LB algumas declarações para memória futura, com o próprio Meritíssimo Juiz que presidiu a essa diligência a substituir-se, frequentemente, à menor nas suas respostas.

- a menor não refere ter sido “premiada” com um chupa-chupa após a prática dos hipotéticos factos, mas tão-somente que lhe foi dado um chupa-chupa.

Sem razão, contudo, para infirmar o que, apesar da sua idade, logrou transmitir ao tribunal, em sintonia com o que ficou vertido na motivação de facto, de que “LB relata que o marido da BB (cujo nome desconhece) mexeu-lhe no “pipi” com a mão, quando estavam no quarto daquele, o que terá ocorrido mais do que uma vez, mas em número de vezes que não consegue concretizar. Mais responde que também lhe mostrou a “pilinha” e, revelando sinceridade, afirma que não lhe mexeu em mais nenhuma parte do corpo”.

Com efeito, embora não tivesse referido o nome do recorrente, a menor plenamente o identificou como sendo quem praticou os actos em causa, ou seja, o marido da BB, ao mesmo se reportando ao aludir a uma senhora que um senhor me fez mal, não se descortinando motivo para supor que a forma como se expressou, não só através dessa identificação, como também para descrever esses actos, revelasse adulteração da verdade.

Contrariamente ao alegado, a menor declarou que o recorrente a despiu, bem como lhe exibiu o pénis, além de que a oferta do chupa-chupa ocorreu depois desses actos,

Não surpreende que, por diversas vezes, a instâncias do juiz, tivesse transmitido que não se lembrava, uma vez que esse tipo de resposta se afigura como frequente na sua idade, sobretudo quando se trate de abordagem de assunto que inevitavelmente era para si estranho e incómodo.

Se alguma insistência se verificou nas perguntas do juiz, isso tem de ser visto como modo de ultrapassar a vergonha que a menor expressamente referiu e de obter tanto quanto viável o relato do que aconteceu, correspondendo a procedimento normal para as dificuldades reconhecidas à audição de criança vítima de abusos sexuais, sem que se perspective invocada sugestão na forma como decorreu a tomada de declarações.

Por seu lado, na vertente do que a menor terá contado à mãe, aparentemente reflectindo ainda actos do recorrente para além do que ali se deu por provado, como decorreu desse depoimento da mãe, o tribunal limitou-se a conferir prevalência ao que a menor declarou, assim tendo acautelado algum exagero que pudesse ter resultado do confronto a que esta tivesse sido sujeita por parte daquela, dado o melindre do que se tratava.

Note-se também, a propósito da alegada questão de que SB soubesse da presença do recorrente na casa, que esclareceu que chegou a entrar aí quando deixava a filha, tendo constatado que aquele ali se encontrava, sendo que tal se mostra consentâneo com o que se deixou consignado, no acórdão, ainda que a título do depoimento de “BB (companheira do Arguido)”, de que “nem o seu companheiro se encontrava totalmente ausente de casa nos Sábados (quer as menores quer as suas mães confirmam ver o Arguido lá por casa quando iam deixar ou buscar as suas filhas)”.

Ainda, SB referiu, de relevante, que confrontou o recorrente com o sucedido e que este, baixando a cabeça, disse que era só a brincar.

Quanto aos factos provados em 8, 9 e 10, de que teria sido vítima a menor CM, então com 8 anos de idade, o recorrente alega, relativamente às declarações da menor, que foram dirigidas e sugestivas pelo Meritíssimo Juiz, situação, de todo, não confirmada pela devida análise do transcrito de fls. 185/195.

E tão-só o que a menor transmitiu veio a considerar-se como provado, sendo que, no tocante ao número de vezes do acontecido, o sentido do apurado não foi ampliado comparativamente ao que decorreu explicitado, nem mesmo por apelo ao relatório pericial de fls. 20/23.

Acerca do depoimento da mãe da menor, LM, que, como consta do acórdão, “veio a ser abordada pela mãe da LB por causa do que havia acontecido”, o recorrente manifesta reservas acerca do que apelida de coincidência relativamente a que esta sabia perfeitamente o seu local de trabalho.

Ora, sendo que resultou do depoimento de SB que corroborou esse contacto, também LM veio a esclarecer que só por uma vez se cruzou com aquela, num dia feriado, e que o conhecimento daquele local de trabalho teria tido origem em terceira pessoa, amiga, que sabia que a menor ficava na casa do recorrente, o que nada tem de estranho.

Bem como a delicadeza da matéria, na circunstância, justificava que o contacto tivesse acontecido.

Acerca da alegada dispersão na resposta de LM, quanto a saber se o recorrente se encontrava no quarto quando via a menor a sair do mesmo, não se vislumbra que assim seja ao verificar-se que a testemunha referiu que entrava sempre em casa para ir buscar a menor e, por diversas vezes, viu aquele a sair do quarto e, ainda, que acontecia que a menor daí saía muitas vezes.

Sobre a circunstância de ter referido que, quando era feriado, havia bastantes crianças, não serve para infirmar que os factos fossem improváveis, por facilmente visionados por terceiros, uma vez que, desde logo, não se conclui, em razão do apurado, que tivessem ocorrido forçosamente em dias feriado e, mesmo que assim não fosse, não se pode descurar que LM se reportou a que, muitas vezes, constatou que a porta do quarto estava fechada.

Relativamente ao provado em 12, de que teria sido vítima RA, então com 4 anos de idade, o convocado excerto das declarações da menor conflui para o que se deu por apurado, sem que se descortine fundamento para o recorrente o pôr em crise, alegadamente suportado em dificuldades daquela nas suas declarações, que não concretiza minimamente, sendo que, ainda, tendo em conta o relatório pericial de fls. 14/17, não se alcança diversa perspectiva.

Contrariamente ao invocado, e tal como o tribunal a quo sublinhou, “qualquer disparidade nos pormenores apenas revelam a espontaneidade das referidas testemunhas, sendo certo que é do conhecimento comum que quer a perspectiva quer a memória de cada pessoa não são, naturalmente, completamente coincidentes, facto inerente à condição de unicidade humana, situação que é ainda mais evidente em menores tão jovens”, pelo que a credibilidade das declarações das menores não se revela abalada, não se reputando razoável que o recorrente enverede por diferente raciocínio, com suporte que não consegue infirmá-las.

A tanto não invalida, de modo algum, o alegado depoimento de AB, mãe de criança que esteve aos cuidados da esposa do recorrente desde os 3 meses aos 3 anos de idade (não durante quase 10 anos como o recorrente refere).

Como de forma esclarecedora se consignou no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.04.2010, rel. Cruz Bucho, no proc. n.º 42/06.2TAMLG.G1, in www.dgsi.pt, É sabido que em matéria de “crimes sexuais” as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante (cfr. v.g. Ac. da Rel. do Porto de 6-3-1991, in Col. de Jur., ano XIII, tomo 2, pág. 287, Ac. do STJ de 2-2-2004 apud Ac. da Rel. de Coimbra de 9-3-2005, Col. de Jur. ano XXX, tomo 2, pág. 38 e Ac. da Rel. de Coimbra de 22-4-2009, proc.º n.º 376/04.0GAALB.C1, in www.dgsi.pt), pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais. Em função das especialidades dos crimes sexuais e do especial valor que as declarações do ofendido assumem no âmbito daquela criminalidade, quando o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha, seja ou não vítima, de maior ou menor idade, opostas, em maior ou menor medida, ao do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.

E como referido no sumário do mesmo acórdão, A experiência científica nesta área ensina que as vítimas de crimes sexuais tendem a não verbalizar o sucedido remetendo-se a um penoso silêncio, recatando a traumática experiência e quando a revelam fazem-no de forma sentida e muitas das vezes com retalhos de memória selectivos. É neste contexto muito especial, ademais agravado pela idade do menor (…) pelas suas limitadas capacidades intelectuais decorrentes da desordem de desenvolvimento da personalidade de que padece, que deve ser apreciado o depoimento da vítima.

Por seu lado, conforme Catarina Ribeiro e Celina Manita, in “Crianças vítimas de abuso sexual intra-familiar: significados do envolvimento no Processo Judicial e do papel dos magistrados”, na Revista do Ministério Público n.º 110, pág. 59/60, algumas investigações demonstram que as crianças não têm tendência a mentir (a situação em que a mentira é mais frequente nas crianças tem a ver com o evitamento do castigo e não com uma atitude de mentira deliberada) e, mais do que isso, não têm tendência a mentir mais do que os adultos…Contrariamente à ideia amplamente difundida de que a criança revela menos capacidade para testemunhar do que os adultos, os dados das investigações científicas têm vindo a demonstrar que as crianças revelam elevadas competências testemunhais e comunicacionais, bem como uma capacidade de discernimento superior à que frequentemente lhes é atribuída.

Em face do que ficou referido, afigura-se que o tribunal enveredou por avaliação da prova consentânea com os legais critérios, em sintonia com o art. 127.º do CPP, pese embora a discordância do recorrente, esta, porém, sem virtualidade bastante para outro trilhar de raciocínio que se tornasse exigível.

As considerações do recorrente, ao atribuir margem de suspeição e de ausência de fiabilidade às declarações das menores, não têm suporte na concreta avaliação, a que acresce que sempre seria contrário ao que se tem por normal que três crianças, com influência, ou não, das progenitoras, tivessem em comum a imputação dos actos ao recorrente e do modo como os relataram.

A motivação operada pelo tribunal adequa-se à prova produzida e examinada, a cuja descrição, no essencial, se reportou, resultando, pela sua conjugação, em convicção consentânea com a lógica e a experiência, no respeito pelos limites da liberdade de julgar.

Na verdade, segundo Germano Marques da Silva, ob. cit., Editorial Verbo, 1993, vol. II, pág. 111, A livre valoração da prova não deve (…) ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão.

Se assim é, consubstanciando-se a liberdade de apreciação numa liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo (…) capaz de impor-se aos outros (Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 194, págs. 202/205), cuja fundamentação decorre, em concreto, perfeitamente sustentada, os argumentos carreados pelo recorrente não impõem, quanto aos factos que impugna, outra decisão.

O mesmo se diga relativamente à restante factualidade, já que o acórdão não enferma de qualquer vício, pelo que a matéria de facto fixada se tem por assente.

Acrescente-se, por isso, que a aplicação do princípio in dubio pro reo, corolário da presunção da inocência consagrada no art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, acaba por não se justificar, perdendo sentido a sua invocação.

Consubstancia princípio vinculante e um dos direitos fundamentais do cidadão, significando que, enquanto não for demonstrada a sua culpabilidade, não é admissível a sua condenação, sendo que a dúvida relevante, séria, fundada e inultrapassável terá de ser sempre valorada em seu favor.

Funcionando, pois, como critério de decisão probatória, segundo o qual um non liquet na questão da prova é valorado a favor do arguido, essa ausência de realização da prova da verdade dos factos tem de assumir-se como razoável, objectivável e intransponível, e não meramente subjectiva, que brotasse como efeito de uma consciência indefinidamente hesitante ou exasperadamente escrupulosa, ou até de um deficiente estudo do material probatório (Cristina Líbano Monteiro, in “Perigosidade de Inimputáveis e in dubio pro reo”, Studia Jurídica 24, Coimbra Editora, 1997, pág. 53).

A visada aplicação teria de decorrer do carácter inconclusivo da prova que obstasse a que o tribunal tivesse atingido a convicção para além de toda a dúvida, o que, no caso vertente, não acontece.

Tal como retratado na motivação, não se vê que o princípio devesse ter sido trazido à colação, conclusão que, reanalisada a prova convocada ao recurso, se tem de manter.

Não se aceitam, assim, também, as reservas postas pelo Digno Procurador-Geral Adjunto.

Se é certo que as ancora em acertado entendimento geral acerca da aplicação daquele princípio, tendente à objectivação da dúvida como método, exigida ou imposta pela razão, não é menos verdade que se limita a concluir que o tribunal se bastou com a verosimilhança de depoimentos infantis, o que se reputa como precipitado e redutor da fundamentação da convicção que o mesmo reflectiu na motivação.

A impugnação improcede.

B) - da atenuação especial da medida da pena:
Em sede de medida da pena, o recorrente preconiza que o tribunal a quo deveria ter usado da faculdade de atenuação especial prevista no art. 72.º do CP, por considerar existirem circunstâncias anteriores ao crime que diminuem por forma acentuada a necessidade da pena.

Para o efeito, apela que mantém uma vida familiar organizada, junto da companheira (…) afigura-se uma integração positiva no meio comunitário, sendo AA um elemento participativo em várias associações relacionadas com os seus interesses e ocupações, entre o clube recreativo local e outras organizações ligadas à caça e à pesca, expressando o sentido de preocupação pelo bem comum destes contextos, é um indivíduo de fácil trato e prestável, orientado primordialmente para a vida prática, do trabalho, família e dos hobbies, bem como à sua idade, este ano irá celebrar os 80 anos de vida, e sem mácula, a par, sempre se dirá, dos problemas de saúde graves que o arguido enfrenta de momento, mormente o cancro e a perda de visão e audição à data dos factos.

Tais factores constam, em parte, como provados, ou seja, excluindo os aludidos problemas de saúde, aceitam-se como devendo ser considerados, porque dados como assentes.

Já não, contudo, para consentirem a alegada atenuação especial.

Assim, sem que se tivesse debruçado expressamente nessa faculdade, que se reflectiria na medida abstracta das penas para os crimes cometidos pelo recorrente, o tribunal explicitou:

- a cada um dos crimes de Abuso Sexual de Criança previsto e punível pelo artigo 171º, nº 1 do Código Penal, prisão de 1 a 8 anos de prisão.

- a cada um dos crimes de Abuso Sexual de Criança previsto e punível pelo artigo 171º, nº 3, al. a) do Código Penal, prisão até 3 anos de prisão”.

Ora, conforme Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias Editorial, 1993, pág. 305, princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção, tratando-se da consagração de circunstâncias excepcionais, que funcionam como “válvula de segurança” perante a multiplicidade e a diversidade de situações que a vida real revela e a que o legislador, apesar da preocupação de abarcá-las quanto possível, não consegue dar resposta suficientemente justa mediante a previsão abstracta das medidas das penas.

Visa, então, casos que revestem uma fisionomia particularmente pouco acentuada em termos de gravidade da infracção, seja por via da culpa/ilicitude, seja por via da necessidade da pena e, como se lê no sumário do acórdão do STJ de 29.04.1998, in CJ Acs. STJ, ano VI, tomo II, pág. 191, A atenuação especial da pena deverá ter lugar quando, na imagem global do facto e de todas as circunstâncias envolventes, a culpa do arguido e a necessidade da pena se apresentam especialmente diminuídos. Ou, por outras palavras, quando o caso não é o “caso normal” suposto pelo legislador, quando estatuiu os limites da moldura correspondente ao tipo de facto descrito na lei e antes, reclama, manifestamente, uma pena inferior, o que se impõe em nome dos valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade.

O seu carácter eminentemente excepcional não pode ser esquecido, sob pena das finalidades da punição se verem postergadas, pelo que não é suficiente um quadro em que as atenuantes sejam importantes, mas sim que estas sejam de molde a concluir-se que, só através da “correcção” à medida da pena, se obtém uma solução justa, sempre, contudo, sujeita à acentuada diminuição da ilicitude do facto ou da culpa ou das necessidades punitivas.

Ponderados tais aspectos, é manifesto que é de rejeitar que o recorrente deva beneficiar dessa atenuação extraordinária.

Com efeito, nem o alegado serve para sustentá-la, uma vez que as suas condições pessoais não apresentam peculiar recorte que afaste a premência de protecção das finalidades da punição, nem outros factores a atender, como sejam, o grau da ilicitude dos factos e da culpa, confluem para justificar atenuante específica, antes pelo contrário.

Aliás, bem sublinhou o tribunal:
É consabido que a natureza dos crimes praticados pelo Arguido- Abuso Sexual de Menor e o bem jurídico violado nos crimes em questão (a autodeterminação sexual de crianças) – e a frequência de condutas deste tipo, bem como o conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam na comunidade e que constitui um factor de desestabilização social pela insegurança, com reflexos nas famílias, pelos traumas que gera e pelos valores culturais que ofende gravemente, tornam especialmente elevadas as necessidades de prevenção geral, exigindo uma resposta punitiva firme.

Há ainda a considerar o grau de ilicitude dos factos e a culpa, atendendo ao seu modo de execução, o lapso de tempo em que os mesmos ocorreram e a idade das vítimas. Designadamente, as vítimas eram muito jovens, contando, à data da prática dos factos, LB com 5 anos de idade, CM com 8 anos de idade e RA com 4 anos de idade. Tal ilicitude é ainda mais elevada no que se refere às condutas dadas como provadas em 4. em que o Arguido, por diversas vezes, mexeu na vagina de LB com a sua mão”.

E ainda, “apesar da integração social e familiar que revela, o certo é que não demonstrou qualquer capacidade de auto censura” e “não obstante não ter antecedentes criminais, são muito fortes as exigências de prevenção especial que se fazem sentir no caso em apreço”.

Nenhum fundamento existe, pois, para atender à pretensão do recorrente.

C) - da redução da medida da pena:
Reportando-se identicamente à, como refere, sua exemplar conduta anterior aos factos, mediante o que já antes se mencionou em B) quanto aos aspectos invocados, o recorrente entende que as penas parcelares são excessivas, levando a que se tivesse atingido a imposição da pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.

Contesta, aparentemente, a dimensão das exigências preventivas por que se enveredou na decisão, pugnando por pena única não superior a 5 anos de prisão.

Além do que já se deixou consignado, decorre do acórdão:
«Dispõe o artigo 71º que "a determinação da medida da pena dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes".
Segundo o modelo consagrado no artigo 40º do Código Penal, primordialmente, a medida da pena há-de ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida. Através do requisito da culpa, dá-se tradução à exigência de que aquela constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (limite máximo). Por último, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável - podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo elas que vão determinar, em último termo, a medida da pena. (Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, p. 227 e Anabela Rodrigues, in A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, p. 478 e ss. e, ainda, a título meramente exemplificativo, o acórdão do S.T.J., de 10.04..96, CJSTJ, ano IV, t. 2, p. 168).

Tendo presente o modelo adoptado, importa de seguida eleger, no caso concreto, os critérios de aquisição e de valoração dos factores da medida da pena referidos nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 71º do Código Penal.

Assim, será de considerar o seguinte:
(…)
Acresce que as referidas menores haviam sido confiadas aos cuidados da companheira do Arguido, a quem tratavam por “avó”, chegando, algumas delas, a chamar aquele de “avô” igualmente, pelo que as condutas de AA violam, de forma muito grave, a confiança depositada pelas respectivas famílias, agindo sempre com dolo directo.

Por outro lado, apesar da integração social e familiar que revela, o certo é que não demonstrou qualquer capacidade de auto censura, sendo baixo o sentido do impacto ou do dano nas vítimas.

E a veemente negação dos factos expressada pela sua companheira que se dedicava aos cuidados de crianças em sua casa em troco de compensação monetária apenas vem acentuar o perigo do Arguido voltar a praticar novos factos similares, sem que aquela proceda à sua reprovação. Veja-se que, já à data da prática dos factos, BB desenvolvia a actividade de ama sem que se encontrasse legalizada, o que fez durante largos anos sem que fosse inspeccionada ou tivesse qualquer tipo de controlo.

Tratando-se de um importante complemento para a economia doméstica do casal e gozando de boa imagem no meio comunitário, não fica afastada a forte possibilidade de BB voltar a receber em sua casa crianças para cuidar e, portanto, a possibilidade do Arguido (que, como vimos, não revela capacidade de auto-censura) voltar a ter acesso a crianças e praticar novos abusos como aqueles pelos quais vai ora condenado.

São também por demais conhecidas as necessidades de mães/pais que, em situação de quase desespero para poderem trabalhar e não encontrando outras alternativas, recorrem a este tipo de serviço de cuidados de crianças, desconhecendo, no caso concreto, as condutas do Arguido.
(…)

Deste modo e ponderando todas as considerações numa visão de conjunto, julga-se adequado aplicar ao Arguido as seguintes penas:

- 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão pela prática de cada um dos dois crimes de Abuso Sexual de Criança, previstos e puníveis pelo artigo 171º, nº 1 do Código Penal, de que foi vítima LB;

- 1 (um) ano de prisão pela prática do crime de Abuso Sexual de Criança, previsto e punível pelo artigo 171º, nº 3, al. a), com referência ao artigo 170º, ambos do Código Penal, de que foi vítima LB;

- 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão pela prática de cada um dos dois crimes de Abuso Sexual de Criança, previstos e puníveis pelo artigo 171º, nº 1 do Código Penal, de que foi vítima CM;

- 1 (um) ano de prisão pela prática do crime de Abuso Sexual de Criança, previsto e punível pelo artigo 171º, nº 3, al. a), com referência ao artigo 170º, ambos do Código Penal, de que foi vítima RA.».

Vejamos.
Como refere Hans Heinrich Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal, Parte General”, II, pág. 1194, o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena.

Segundo Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva” em “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, AAFDL, 1998, pp.25-51, e emCasos e Materiais de Direito Penal”, Almedina, 2000, pp. 31-51 (32/33), a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral.

Por respeito à salvaguarda da dignidade humana, a medida da culpa constitui limite inultrapassável da medida da pena e, como já aludia Claus Roxin, in “Derecho Penal, Parte General”, tomo I, tradução da 2.ª edição alemã e notas por Diego-Manuel – Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas, págs. 99/100, a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação relevem como desenlace uma detenção mais prolongada (…) não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva.

Ainda segundo Figueiredo Dias, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 3, 2º a 4º, Abril-Dezembro de 1993, págs. 186/187, o modelo de determinação da medida da pena comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o “quantum” exacto de pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente.

Esta (a medida da pena) deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia óptima de protecção dos bens jurídicos, sendo que culpa e prevenção são (…) os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito ou de determinação concreta da pena) - o mesmo Autor, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime” cit., págs. 231 e 214.

Esse juízo de culpa, que na realidade constitui o suporte axiológico-normativo da punição, reconduz-se a um juízo de valor e apreciação, que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da sua validade lógica, ética ou do direito (acórdão do STJ de 10.04.1996, in CJ Acs. STJ ano IV, tomo II, pág. 168), isto é, à censura dum certo facto típico à pessoa do seu agente, entendida como censura ético-jurídica dirigida a um sujeito por não ter agido de modo diverso (Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, Almedina, 1971, vol. I, págs. 315 e seg.).

A confiança da comunidade na validade das normas, se não pode ceder em limites que lhe retirem sentido na ponderação e concordância prática das finalidades e exigências em presença, não poderá, do mesmo modo, constituir parâmetro que impeça a realização das finalidades de política criminal que justificam e conformam o regime penal.

Assim, essa validade é afirmada pela aplicação das penas adequadas, que traduza a interiorização e o respeito pelo sistema de valores fundamentais reconhecidamente aceites e, por isso, penalmente tutelados; mas, do mesmo modo, a comunidade deve sentir e compreender as opções de política criminal que se realizam através da formulação e aplicação do direito penal.

Devendo qualquer pena ter, quanto possível, um sentido pedagógico e ressocializador, a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e, em última análise, na comunidade, não pode ser descurada.

Os factores ponderados no acórdão apresentam-se adequadamente explicitados e valorados.

Sustentam, por um lado, a inegável necessidade geral da tutela do bem jurídico postergado, mormente atenta a sua natureza de bem pessoal e de importância reconhecida, tanto mais quando, no que aos abusos concerne, estando em causa crianças e com a idade das ofendidas, não só pelas exigências colocadas pela comunidade perante o tipo de actos praticados, como também pelas consequências que inevitavelmente se reflectem na vivência das vítimas nessa idade e, por outro, as prementes exigências de prevenção de futuros comportamentos similares que se fazem sentir, não obstante, quanto ao recorrente, a ausência de antecedentes criminais e a integração social que denota.

Se bem que com a avançada idade aquando dos factos e as condições de vida apuradas, as exigências de prevenção especial, contrariamente ao aparentemente aduzido, não se apresentem reduzidas, já que não se pode desvirtuar o desvalor negativo da personalidade manifestada nos actos, estes de gravidade insofismável, sem que, minimamente, tivesse demonstrado ter interiorizado a censura inerente.

Os objectivos de socialização não sobrelevam de modo a que se justifique que as penas parcelares se quedem por medidas inferiores às aplicadas.

Em presença dos aludidos limites legais, essas penas revelam-se proporcionais, não revelando qualquer excesso.

Não se divisa, pois, razão para que sejam alteradas.

No que respeita à pena única fixada, é pacífico, na esteira da doutrina e da jurisprudência, que, ao determiná-la, do que se trata é de avaliar unitariamente o conjunto dos factos e na sua correlação com a personalidade do arguido, como se os mesmos constituíssem um facto global e com a conexão com essa personalidade, numa apreciação de dimensão e conexão novas, ultrapassando a visão compartimentada que esteve na base da fixação das penas singulares (entre muitos, o acórdão do STJ de 14.10.2009, no proc. n.º 328/07.9GFVFX.L1.S1, in www.dgsi.pt).

Conforme Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime” cit., págs. 291/292), Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pruriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

Os crimes em concurso revelam-se lesivos de bens pessoais e de gravidade considerável, cuja ressonância ético-valorativa é, por demais, assinalável.

Mostram-se, como referido, inevitavelmente conexionados com personalidade de deficiente formação e sensibilização dos valores que, nas condições apuradas, se tornou visível.

O tribunal a quo sublinhou designadamente que “a moldura penal abstracta do concurso terá o limite máximo de 12 (doze) anos de prisão e um limite mínimo de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão” e “levando em consideração todas as circunstâncias já acima referidas, mormente as fortes necessidades de prevenção geral (pelos intensos sentimentos de repulsa que causa na comunidade e o forte alarme social), a elevada ilicitude dos factos e das exigências de prevenção especial, julga-se adequado condenar o Arguido na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão”.
A pena fixada não merece reparo, uma vez que reflecte justa ponderação dos factores relevantes para o efeito.

D) - da suspensão da execução da prisão:
Em conformidade com o disposto no art. 50.º, n.º 1, do CP, para que a pena de prisão pudesse ser suspensa na execução, necessário seria que não fosse superior a 5 anos, o que se reconduz a pressuposto formal para esse desiderato, em razão de exigências de política criminal e de preservação de defesa irrenunciável do ordenamento jurídico e eficácia do próprio sistema penal.

Fixada a pena única em medida superior, é esta insusceptível de suspensão da execução.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência,

- manter o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 4 UC.

Processado e revisto pelo relator.

24 de Setembro de 2019

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(Carlos Jorge Berguete)

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(João Gomes de Sousa)