Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1577/17.7T8ENT-A.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
DECLARATÁRIO
Data do Acordão: 02/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Interpretar os negócios jurídicos consiste em determinar o conteúdo das declarações de vontade neles contidas e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir em conformidade com tais declarações.
2 – O teor da declaração é o ponto de partida da interpretação. Ainda que o significado das palavras empregues na declaração seja aparentemente claro e inequívoco, pode não ser esse o sentido juridicamente relevante, designadamente, por não ter sido esse o sentido realmente querido pelas partes. Porém, tal conclusão terá de ter sempre por suporte a factualidade provada nos autos.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1577/17.7T8ENT-A.E1
(1.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
A sociedade Agro-Vínicola (…) e Filhos, Lda., (…) e (…), embargantes nos autos de execução movidos por (…), interpuseram recurso da sentença proferida pelo Juízo de Execução do Entroncamento, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, o qual julgou parcialmente procedentes os embargos de executado e consequentemente determinou que os juros de mora fossem contabilizados apenas desde a data da citação dos embargantes nos autos principais e ordenou o prosseguimento da execução após recálculo dos juros.

Na ação – oposição à execução – os executados pediram ao tribunal que julgasse a inexequibilidade do documento dado à execução e, subsidiariamente, que julgasse a inexequibilidade da obrigação por falta de vencimento e/ou por incumprimento do acordo de pagamento da própria exequente e, ainda, que julgasse a inexequibilidade dos juros liquidados.
Para tanto, os executados alegaram que o documento dado à execução é inexequível porquanto é omisso quanto à data de vencimento e porque o valor da obrigação exequenda não está determinado nem é determinável por simples cálculo aritmético, estando, ao invés, dependente de um “acerto de contas” que a exequente e os executados ainda não realizaram, o qual se relaciona com um acordo de pagamento celebrado entre a exequente e a sociedade executada que perdurou entre 2007 e 2014 e por força do qual a exequente ficou com a totalidade das vendas realizadas no estabelecimento comercial da segunda. Mais invocaram os executados a invalidade da garantia pessoal prestada pelos executados (...) e (...), porquanto no documento dado à execução não consta a “razão” ou a “causa” da obrigação assumida por aqueles executados pelo que por este motivo também o documento dado à execução não é dotado de força executiva contra aqueles executados.
Os embargos de executado foram liminarmente recebidos e a exequente/embargada foi notificada para contestar, tendo esta pugnado pela total improcedência dos embargos de executado.
Foi realizada audiência prévia e proferido despacho saneador no qual o tribunal a quo fixou o valor da causa, conheceu das exceções de inexigibilidade do título e da invalidade da garantia pessoal, julgando-as improcedentes, tendo, ainda, proferido despacho a fixar o objeto do litígio e temas de prova.
Foi realizada a audiência final, finda a qual foi proferida a sentença objeto do presente recurso.

I.2.
Os recorrentes formulam alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«a) Entendem os recorrentes que os factos dados como não provados, designadamente que:
- Que, em data que os Executados não conseguem precisar, mas no ano de 2007, foi celebrado, entre exequente e executada sociedade, um acordo de pagamento.
- Que o acordo aludido em 1 dos factos não provados compreendesse a seguinte operação:
a. A sociedade explorava um estabelecimento comercial de venda de vinhos, no Entroncamento, na Rua (...);
b. A sociedade fornecia os vinhos para tal estabelecimento já que o seu objeto social consiste, precisamente, na produção de vinhos;
c. A sociedade suportava os custos inerentes ao estabelecimento;
d. A exequente ficaria com a totalidade do produto da venda desses mesmos vinhos.
- Que o acordo aludido em 1 dos factos não provados tenha perdurado entre 2007 e 2014, ficando a exequente com a totalidade das vendas realizadas no estabelecimento da executada sociedade.
b) Deveriam ter sido dado como provados por entendem os recorrentes que a prova constante dos autos e produzida na audiência, nomeadamente, o depoimento das partes e testemunha (...), (...) e (...), nas partes transcritas e que aqui se dão por integralmente reproduzidas, permitia ao douto tribunal a quo ter fixado factualidade diversa.
c) Conforme resulta do seu depoimento, a própria embargada reconheceu e confessou que a cláusula 8 constante do título executivo: os juros e despesas bancárias e/ou de seguros relativos ao empréstimo atrás referido na cláusula terceira, suportados pela primeira, serão objeto de acerto de contas com o valor dos fornecimentos de vinho que a sociedade lhe forneceu e continuará a fornecer até integral pagamento do valor do empréstimo referenciado em 3. “significa que o pagamento da dívida assumida pelos embargantes será feito através de fornecimento de vinho”.
d) Mas, sendo a embargada médica de profissão e não comerciante de vinhos, tais fornecimentos têm que ser compreendidos e enquadrados na atividade do estabelecimento comercial de venda de vinho que a sociedade embargante explorava no Entroncamento, gerido de facto pelo ex-cônjuge da embargada, conforme devidamente esclarecido pelas testemunhas e partes.
e) As declarações do embargante (...) foram corroboradas pelo depoimento da testemunha (...), ouvida por determinação do douto Tribunal a quo ao abrigo do disposto no art.° 411.º do C.P.C..
f) Essa testemunha, para além de não ter qualquer interesse na causa, teve intervenção direta na factualidade relevante para os presentes, mormente no que concerne à atividade e destino das receitas do falado estabelecimento de venda de vinho.
g) Da análise conjugada dos depoimentos das referidas testemunhas, s.m.o., é imperioso concluir que:
1) A embargante sociedade era titular de um estabelecimento de venda de vinho sito no Entroncamento;
2) A partir de certa data – não concretamente apurada mas antes da outorga do título dado à execução – tal estabelecimento passou a ser gerido de facto pelo, atualmente, ex-marido da embargada/exequente que com ela vivia;
3) Do produto das vendas tal gerente de facto pagava as despesas de renda, água, luz e a sua comissão, depositando o excedente na conta bancária de que a embargada / exequente era titular no Millennium BCP;
4) Tais depósitos destinavam-se a amortizar a dívida que os embargantes / recorrentes têm para com a embargada;
5) Essa gestão assumida pelo ex-marido da embargada perdurou até, pelo menos, 2014;
6) Por decisão do ex-marido da embargada e com a concordância desta, o estabelecimento foi encerrado;
7) Nos termos da cláusula 8.ª do título executivo, os embargantes, devedores, comprometeram-se a pagar a dívida que têm perante a embargada com entregas de vinho, devendo, tendo em conta toda a prova produzida – designadamente as próprias declarações da embargada aqui reproduzidas –, considerar-se que, quando as partes referiram entregas de vinho, aludiam ao fornecimento de vinho ao citado estabelecimento, vinho esse que era vendido em benefício da embargada.
h) Mesmo que com as divergências inerentes à matéria e decorrentes de conturbadas relações familiares, as declarações – com carácter de confissão – da embargada, do embargante e, principalmente, da testemunha (...), ouvido por iniciativa do Tribunal ao abrigo do artigo 411.º do C.P.C. e interveniente direto nos factos que demonstrou isenção e equidistância relativamente às partes, expuseram uma factualidade que permitiam ao douto tribunal a quo dar por assente a matéria descrita na alínea anterior, ao contrário da matéria dada como não provada.
i) Foi feita prova dos factos elencados em g) e o douto tribunal a quo fez uma incorreta apreciação da prova o que levou, no entendimento dos recorrentes, à igualmente incorreta fixação dos factos não provados que deveriam integrar a matéria de facto assente.
j) Como é sabido, o princípio da livre apreciação da prova, estabelecido no art.° 607.º, n.º 5, do CPC, vigora para a 1.ª instância e, bem assim, para a Relação quando esta é chamada a reapreciar matéria de facto.
k) Assim sendo, é da competência do Tribunal da Relação a reapreciação de todos os elementos de prova, constantes dos autos e produzidos nas sessões de julgamento, com base na qual formará convicção própria e consignará a factualidade provada, coincidente, ou não, com a alcançada no douto tribunal a quo, exercitando assim, de facto e efetivamente, os poderes estabelecidos na Lei.
I) Tais documentos particulares tinham, atento o disposto no artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC na sua versão anterior (1961), lugar no leque de instrumentos a que a Lei geral atribuía força executiva.
m) Ainda assim, o art.° 43.º impunha a verificação de dois requisitos: “- um requisito de fundo: que deles conste a obrigação de pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético...; - um requisito de forma: que, quando se trate de documento assinado a rogo, a assinatura do rogado esteja reconhecida por notário ...” (José Lebre de Freitas, A Ação Executiva, Coimbra Ed., 5.a Edição, pg. 57).
n) Aos dois referidos requisitos, acresce um outro, comummente fixado pela jurisprudência, que consiste na exigibilidade da dívida, ou seja que a divida esteja vencida.
o) No caso em apreço, verifica-se que o documento dado à execução é omisso quanto a dois dos pressupostos inerentes à sua exequibilidade, designadamente:
- A data de vencimento;
- A determinabilidade da obrigação pecuniária.
p) No que concerne ao vencimento da obrigação, o documento dado à execução é totalmente omisso.
q) Em nenhuma parte dele consta a data do vencimento da obrigação ou o evento que determinaria esse mesmo vencimento, razão pela qual é inexigível a obrigação.
r) A ausência de fixação da data de vencimento está diretamente relacionada com a forma de cumprimento acordada – entrega de vinho – que, igualmente, determina a indeterminação do valor da obrigação e importa a insusceptibilidade da sua determinação por simples cálculo aritmético.
s) A determinação do eventual valor em débito está dependente de "acerto de contas" que credora e devedores terão que realizar.
t) Sendo esse "acerto de contas" insuscetível de atingir por simples cálculo aritmético.
u) As apontadas lacunas retiram ao documento dado à execução a sua força executiva.
v) Suscitada a exceção da inexigibilidade do título dado à execução em sede de petição de embargos, foi a mesma julgada improcedente no douto despacho saneador de fls ... pois entendeu o Tribunal a quo que a cláusula 8 desse mesmo título se referia tão somente aos juros, despesas bancárias e seguros relativos ao empréstimo que originou a dívida.
w) Porém, a aludida cláusula 8 do título executivo refere expressamente " ... até integral pagamento do valor do empréstimo referenciado em 3.",
x) Razão pela qual entendem os recorrentes que o acordo de pagamento firmado compreendia igualmente o capital em dívida.
y) Do documento dado à execução consta, no seu ponto 7., a seguinte expressão: "A segunda e terceiro outorgantes, pelo presente assumem aquela dívida que se obrigam a pagar à primeira”.
z) Sem que, porém, em qualquer parte do documento se aluda à razão ou à causa da "obrigação".
aa) Ora, tais declarações recognitivas desacompanhadas de qualquer outra explicação ou fundamento, carecem de força executiva.
bb) Nenhum sentido fazem tais declarações uma vez que sendo os intervenientes singulares os únicos sócios da recorrente sociedade e tendo sido esta a única beneficiária do valor em causa, nenhuma razão haveria para que somente dois dos três beneficiários dos proveitos da sociedade assumissem as suas "dívidas".
cc) Por falta de invocação da causa não pode o documento dado à execução ser dotado de força executiva, contra os recorrentes (…) e (…), já que ao mesmo não foi atribuída exequibilidade externa.
dd) Ao assim não ter entendido, tal como na suscitada exceção de inexequibilidade do título, conforme expresso no despacho saneador, e salvo o devido respeito, o Tribunal recorrido desrespeitou o disposto nos artigos 703.° e 713.° do Código de Processo Civil.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, proferindo-se Acórdão de procedência dos embargos deduzidos, assim se fazendo JUSTIÇA.»

I.3.
Na sua resposta às alegações de recurso, a exequente defendeu a improcedência do recurso e a manutenção da decisão.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Já neste tribunal de segunda instância foi proferido despacho pela relatora – notificado às partes – nos quais se dava a conhecer a intenção de não se conhecer do segmento do recurso que na parte em que é posta em causa a exequibilidade do título executivo e a validade da garantia pessoal prestada pelos executados/apelantes (…) e (…) em virtude de tais questões terem sido decididas em sede de despacho-saneador e relativamente ao qual não foi interposto recurso cujo regime seria o da apelação autónoma por força do disposto no artigo 644.º, n.º 1, alínea b), do CPC.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art. 608.º, n.º 2 e art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (arts. 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
In casu, as questões a decidir são as seguintes:
1 – Questão prévia: (in)admissibilidade do recurso quanto às questões da inexequibilidade do título dado à execução e da invalidade da garantia pessoal.
2 - Impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
3 – Repercussão da alteração da decisão relativa à matéria da causa no desfecho da oposição à execução.

II.3.
II.3.1.
Factos provados
O tribunal de primeira instância julgou provados os seguintes factos:
1. A de 22 de Julho de 2011, ... (primeira outorgante), ... (segunda outorgante), por si e na qualidade de legal representante da sociedade "Agro-Vinícola (...) e Filhos, Lda." e ... (terceiro outorgante) celebraram escrito designado de "Reconhecimento e Assunção de Dívida".
2. No âmbito da cláusula 1 do escrito aludido em 1, declararam as partes o seguinte: "Os outorgantes são os únicos sócios da sociedade "Agro-Vinícola (...) e Filhos, Lda.", sociedade por quotas, com sede na Av. (...), n° 25, Esq., Santarém, N/PC (...)".
3. No âmbito da cláusula 3 do escrito aludido em 1, declararam as partes o seguinte: "Por acordo de todos os outorgantes a primeira contraiu no Millennium BCP um empréstimo, n.° (...), no valor de € 441.725,00, em Julho de 2007, a pagar em 286 prestações mensais, garantido por hipoteca que incide sobre o seu prédio urbano, sito na Rua dos (...), n. ° 73, em (...)."
4. No âmbito da cláusula 6 do escrito aludido em 1, declararam as partes o seguinte: "A segunda outorgante na qualidade de sócia-gerente da mencionada sociedade reconhece que a sociedade é devedora à primeira outorgante das quantias acima referidas no total de € 469.100,00 (quatrocentos e sessenta e nove mil e cem euros (€ 441.725,00 + € 22.375,00).
5. No âmbito da cláusula 7 do escrito aludido em 1, declararam as partes o seguinte: "A segunda e terceiro outorgantes, pelo presente expressamente assumem aquela divida que se obrigam a pagar à primeira."
6. No âmbito da cláusula 8 do escrito aludido em 1, declararam as partes o seguinte: "Os juros e despesas bancárias e/ou de seguros relativos ao empréstimo atrás referido na cláusula terceira, suportados pela primeira, serão objeto de acerto de contas com o valor dos fornecimentos de vinho que a Sociedade lhe forneceu e continuará a fornecer até integral pagamento do valor do empréstimo referenciado em 3."
7. Por diversas vezes foram os executados interpelados no sentido de obter a cobrança, o que ocorreu, quer por telefone, quer por carta.

II.3.2.
Factos não provados
O tribunal de primeira instância julgou não provada a seguinte factualidade:
1. Que, em data que os Executados não conseguem precisar, mas no ano de 2007, foi celebrado, entre exequente e executada sociedade, um acordo de pagamento.
2. Que o acordo aludido em 1 dos factos não provados compreendesse a seguinte operação:
a. A sociedade explorava um estabelecimento comercial de venda de vinhos, no Entroncamento, na Rua (...);
b. A sociedade fornecia os vinhos para tal estabelecimento já que o seu objeto social consiste, precisamente, na produção de vinhos;
c. A sociedade suportava os custos inerentes ao estabelecimento;
d. A exequente ficaria com a totalidade do produto da venda desses mesmos vinhos.
3. Que o acordo aludido em 1 dos factos não provados tenha perdurado entre 2007 e 2014, ficando a exequente com a totalidade das vendas realizadas no estabelecimento da executada sociedade.

II.3.3.
Questão prévia
Dizem os apelantes que «fundamentam o presente recurso nas seguintes razões:
I. Reapreciação da prova.
II. Inexequibilidade do título executivo.
III. Invalidade da garantia pessoal (cfr. ponto C3 das alegações de recurso).
Os recorrentes pretendem assim que o tribunal de segunda instância (re)aprecie as questões que aqueles suscitaram em sede de oposição à execução, a saber, a inexequibilidade do documento dado à execução e a invalidade da garantia pessoal prestada pelos executados/embargantes/recorrentes (...) e (...).
Na sua petição de embargos de executado, os executados/apelantes alegaram que para que os documentos particulares tenham força executiva deles tem de constar, designadamente, uma obrigação de pagamento de quantia determinada, ou determinável por simples cálculo aritmético, e a data de vencimento da obrigação e que, no caso concreto, o documento dado à execução é omisso quanto à data de vencimento da obrigação e a determinação do eventual valor em débito está dependente de um “acerto de contas” ainda não realizado entre exequente e a executada.
Alegaram, ainda, que as declarações recognitivas desacompanhadas de qualquer explicação ou fundamento carecem de força executiva e que, no caso em análise, em nenhum ponto do documento dado à execução se alude à razão ou causa da obrigação assumida pela segunda e terceiros outorgantes.
Em sede de despacho saneador o tribunal de primeira instância conheceu das exceções de invalidade da garantia pessoal e de “inexequibilidade do título executivo” julgando ambas improcedentes.
Com efeito, extraem-se daquele despacho os seguintes segmentos:
«Da Inexequibilidade do título
Vieram os embargantes invocar a inexequibilidade do título porquanto, segundo alegam, o título dado à execução carece de data de vencimento e determinabilidade.
No que concerne à data de vencimento, alegam os Embargantes que o título é completamente omisso.
Já quanto à indeterminabilidade, alegam os Embargantes que a mesma está diretamente ligada à falta de data de vencimento e na medida em que, conforme resulta do artigo 8.º dado à execução, o pagamento do crédito da Exequente seria efetuado com o fornecimento de vinhos que a sociedade executada produzia e produz.
Assim, prosseguem os Embargantes, tal pagamento seria efetuado por acerto de contas, o que é insuscetível de fazer por simples cálculo aritmético, retirando ao título dado à execução a sua força executiva. […]
Cumpre apreciar.
[…]
Ora, compulsados os autos, constatamos que o título existe e encontra-se junto aos mesmos.
Não colhe a argumentação dos Embargantes quanto à alegada falta de vencimento.
As obrigações podem ter prazo ou não […].
No caso de não ter sido previamente estipulado prazo para o cumprimento de uma obrigação ela é exigível a todo o tempo com a interpelação do devedor, sendo que, de todo o modo, a propositura de uma ação sempre consubstancia formalização dessa vontade do credor exigir o seu direito.
No caso dos autos, a Embargada alega que interpelou os Embargantes para o pagamento e junta o respetivo documento, documento esse que não foi impugnado na presente diligência.
Assim, nenhum óbice há quanto à confissão de dívida em que não foi previamente determinado o respetivo prazo para cumprimento.
Por outro lado, não cremos, igualmente, que assista razão aos embargantes quanto à inexequibilidade do título propriamente dita.
Vejamos, conforme alegam os próprios executados, é a cláusula 8 do título junto aos autos que prevê que o pagamento de determinadas quantias seja feito por conta da produção e fornecimento do vinho.
Sucede, contudo, e conforme assinala a Embargada, que tais quantias são relativas a despesas bancárias e com seguros, quantias essas que não foram peticionadas nos autos.
Analisando o teor do requerimento executivo, constatamos que apenas é peticionado o valor do capital que os embargantes se assumem devedores, acrescidos dos respetivos juros.
Aqui chegados, temos que não nos suscita dúvidas a existência e plenitude do título junto aos autos, motivo pelo qual terá que improceder a exceção invocada pela Embargante […]» (negritos nossos).
No que respeita à invocada “invalidade da garantia pessoal”, o juiz a quo decidiu o seguinte:
«Do título junto aos autos resulta, de forma clara e transparente, que os ora embargantes assumiram a responsabilidade de uma dívida.
Não é legalmente exigível que da assunção de dívida resultem os fundamentos materialmente originários da mesma.
De todo o modo se diga que ainda que assim não fosse, resulta de forma clara do título o motivo pelo qual assumiram os Embargantes a dívida em apreço.
Por fim, a alegação de não faz sentido é, ela própria, destituída de sentido, já que carece de demais sustentação factual, por forma a que se posa equacionar a sua eventual subsunção jurídica.
Desta feita, terá também esta exceção que ser julgada improcedente, atenta a sua manifesta falta de fundamente legal. […]» (negritos nossos).
O despacho-saneador acima referido não foi objeto de recurso, cujo regime seria o da apelação autónoma, por força do art. 644.º, n.º 1, al. b), do CPC, aplicável ex vi art. 853.º, n.º 1, do CPC.
Como refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, 2018, pp. 205-206: «Por exclusão de partes, a al. b) reporta-se apenas ao despacho saneador que, não pondo termo à causa, conhece do mérito relativamente a uma parcela do processado (máxime aprecia uma qualquer exceção perentória ou conhece de alguns dos pedidos ou do pedido reconvencional) ou determina a extinção parcial da instância por qualquer outro motivo formal (em geral, mediante a declaração de procedência de alguma exceção dilatória) relativamente ao réu ou a algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos ou do pedido reconvencional.
A interpretação da al. b) comporta, contudo, uma dificuldade. Ao invés do que dispunha o art. 691.º, n.º 2, do CPC de 1961 (anterior à reforma de 2007), o CPC de 2013 não contém qualquer norma que delimite o conceito de decisão que incide sobre o “mérito da causa”, o qual é decisivo não apenas para a aferição da admissibilidade do recurso de apelação, como ainda para efeitos de admissibilidade do recurso de revista, nos termos do artigo 671.º, n.º 1. Na falta dessa definição, revela-se importante a intervenção do elemento histórico para concluir que conhece do mérito da causa o despacho saneador (mesmo sem pôr termo ao processo, nos termos da al. a)) que julga procedente ou improcedente algum ou alguns dos pedidos relativamente a todos ou a alguns dos réus ou julga procedente ou improcedente alguma exceção perentória, como a caducidade, a prescrição, a compensação, a nulidade ou a anulabilidade.»
O recurso previsto no art. 644.º, n.º 1, al. b), do CPC sobe em separado e, em princípio, com efeito meramente devolutivo.
Não sendo interposto recurso daquele despacho, no prazo legal, preclude a sua interposição e a decisão torna-se definitiva. Isto é, forma-se caso julgado (art. 619.º do CPC).
No caso sub judice, os executados/apelantes não interpuseram, no prazo legal, recurso do despacho-saneador na parte em que naquele se decidiu sobre as exceções perentórias invocadas, a saber, a inexequibilidade do título executivo e invalidade da garantia pessoal prestada por (...) e (...).
Pelo que o que ali foi decidido a respeito de tais exceções (perentórias) tornou-se definitivo.
Em sede de recurso da sentença final proferida no âmbito dos embargos de executado, os apelantes suscitam, de novo, as questões da inexequibilidade do título executivo e da invalidade da garantia pessoal com exatamente os mesmos argumentos que haviam invocado na sua petição de embargos.
Por conseguinte, e em face de todo o exposto, não se conhecerá do presente recurso no que àquelas questões respeita.

II.3.4.
Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Os apelantes defendem que o tribunal a quo julgou incorretamente os factos julgados não provados na medida em que tais factos deveriam integrar o elenco dos factos provados.
Tais factos (não provados) são os seguintes:
«1. Em data que os Executados não conseguem precisar, mas no ano de 2007, foi celebrado, entre exequente e executada sociedade, um acordo de pagamento.
2. O acordo aludido em 1 dos factos não provados compreendia a seguinte operação:
a. A sociedade explorava um estabelecimento comercial de venda de vinhos, no Entroncamento, na Rua (...);
b. A sociedade fornecia os vinhos para tal estabelecimento já que o seu objeto social consiste, precisamente, na produção de vinhos;
c. A sociedade suportava os custos inerentes ao estabelecimento;
d. A exequente ficaria com a totalidade do produto da venda desses mesmos vinhos.
3. O acordo aludido em 1 dos factos não provados tenha perdurado entre 2007 e 2014, ficando a exequente com a totalidade das vendas realizadas no estabelecimento da executada sociedade».
Os recorrentes cumpriram os ónus previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que cumpre aferir se lhes assiste razão.
O art. 662.º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, dispõe que:
«A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»

No âmbito da impugnação da decisão de facto, a reapreciação da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância visa aferir se determinados factos foram incorretamente julgados, isto é, se foram julgados provados quando deveriam ter sido julgados não provados ou, inversamente, se foram julgados não provados quando deveriam ter sido julgados provados.
O Tribunal de segunda instância deve formar a sua própria convicção acerca dos elementos probatórios disponíveis (os indicados pelas partes e os obtidos oficiosamente) a qual deve ser obtida através de uma ponderação crítica dos mesmos, mas apenas quando sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova.
A segunda instância deve funcionar, pois, como um efetivo segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.
Feitas estas considerações de ordem geral, retornemos ao caso em análise.
Para sustentar os factos que entendem dever ser julgados provados, os apelantes indicam como meios probatórios os depoimentos da exequente/apelada, do executado/apelante (...) e da testemunha (...), depoimentos que foram objeto de apreciação pelo tribunal a quo da forma que se passa a transcrever:
«A prova testemunhal no seu todo (bem como de resto as declarações de parte) foi, no que concerne aos factos que se encontravam controvertidos, frágil, difusa e insuscetível de sustentação, nomeadamente, pelos documentos juntos aos autos. […] descrevendo, assim, as partes e testemunhas, um caminho de ocorrências instrumentais (que por esse mesmo motivo não foram levados à especificação que antecede) mas, é certo, pouco consubstanciados quanto aos factos essenciais e que importava apurar, nomeada e essencialmente, a existência de acordo de pagamento quanto à quantia exequenda.
[…] a Exequente prestou o seu depoimento de forma serena e segura, [...] pese embora não tenha sido completamente esclarecedora quanto à (in)existência de acordo de pagamento e respetivo objeto (tal como não o foi nenhuma da prova produzia a este respeito) afirmou de forma perentória que nunca o seu ex-marido lhe entregou dinheiro da venda de vinho da loja explorada pela sociedade executada.
O Executado (…), trabalhador agrícola e sócio da executada sociedade, em sede de declarações de parte (requeridas na decorrência da audiência de julgamento e após o depoimento de parte da Exequente, a que assistiu, na sala onde decorreu o julgamento) prestou as suas declarações de forma pouco consistente e ainda que não tenha demonstrado especial parcialidade. Assim, o executado não conseguiu responder de forma assertiva a basicamente nenhumas das concretas perguntas que lhe foram feitas e quanto à factualidade supra elencada. Note-se que é exigível que o executado que gere a sociedade executada tenha conhecimento quanto às questões que lhe foram colocadas e que se prendiam com a eventual existência de acordo de pagamento da dívida (de valor significativo) que confessadamente assumiu.
De acordo com as declarações de parte ora em análise, o reembolso do empréstimo feito pela Exequente seria feito à custa da venda de vinhos, venda essa a ocorrer na loja explorada pela sociedade, sendo ao ex-marido da Exequente que incumbia receber todo o produto da venda e proceder à subsequente entrega. Alegou o Executado que "não havia contas" e que "era um bocado desleixado", não tendo conseguido concretizar os eventuais montantes alegadamente entregues à Exequente, o período temporal em que teriam sido feitos ou a concreta forma como teriam ocorrido.
O Tribunal não conseguiu, em resultado das declarações de parte do Executado, formular qualquer conclusão quanto à existência de acordo de pagamento e respetivas condições.
[…]
A testemunha (…), reformado e ex-marido da Exequente, prestou um depoimento vago e com muitas lacunas, sem que o Tribunal lhe conferisse a credibilidade necessária para, do mesmo, retirar quaisquer conclusões.
Assim, a testemunha, que trabalhou no estabelecimento comercial explorado pela sociedade executada, não soube concretizar quaisquer elementos concretos quanto à existência ou contornos do empréstimo em apreço nos autos, tendo alegado que a ex -mulher sempre o afastou de tal questão, por considerar que se tratava de "coisas de família" (note-se que, tanto a testemunha como a Exequente declararam que, pese embora ainda vivessem juntos, o casamento havia já sido dissolvido à data dos factos em apreço nos autos).
No que concerne aos hipotéticos pagamentos à exequente, alegou a testemunha que acordou tudo com o cunhado, sendo impreciso e inconsistente no que concerne aos montantes alegadamente entregues (não soube precisar), nem quanto à eventual forma de entrega dos mesmos.
Não é crível que a testemunha não se recorde se, nomeadamente e num primeiro momento, fazia os depósitos no banco ou se entregava, por exemplo, o dinheiro em mão à Exequente, com quem à data ainda vivia.
Em rigor, a testemunha, pelo menos num momento inicial, não manifestou qualquer ideia concreta quanto à forma de entrega das aludidas quantias à Exequente, não sendo aqui despiciendo realçar que os Executados alegam que o acordo de pagamento teria perdurado de 2007 a 2014 e a que o valor do empréstimo suportado pela Exequente é considerável (mais de € 400.000,00).
Por outro lado, alegou a testemunha que não guardou (ou pelo menos não se recorda de o ter feito) qualquer registo ou documento dos alegados depósitos (a que a testemunha depois aludiu).
O depoimento desta testemunha entrou, ainda em contradição com as declarações de parte do Executado no que concerne à sua presença em reunião anual relativa à sociedade Executada (reunião onde, nomeadamente, se faria a conferência de contas desta), contradição que não foi sanada e sem prejuízo da acareação realizada e que consta dos autos.
[…]
Por outro lado, do próprio teor do título executivo se extrai conteúdo que contraria o propósito prosseguido pelos Executados de tentar convencer o Tribunal quanto à existência de um acordo de pagamento, feito por via da entrega das receitas da venda de vinhos. Atente-se que conforme resultou no facto provado em 6, no âmbito da cláusula 8 do escrito que consubstancia título executivo, declararam as partes que "Os juros e despesas bancárias e/ou de seguros relativos ao empréstimo atrás referido na cláusula terceira, suportados pela primeira, serão objeto de acerto de contas com o valor dos fornecimentos de vinho que a Sociedade lhe forneceu e continuará a fornecer até integral pagamento do valor do empréstimo referenciado em 3." (sublinhado e negrito nossos). Ou seja, de acordo com o expressamente declarado pelas partes (e não impugnado) o que seria pago através do fornecimento de vinhos eram os juros e despesas bancárias e/ou de seguros relativos ao empréstimo, apenas.»
Ouvidos os depoimentos gravados da exequente (...), do executado (...) e da testemunha (...) – este último ex-marido da embargada – resultou da conjugação dos mesmos que a primeira contraiu um empréstimo junto do Banco Millennium BCP para saldar dívidas da sociedade-executada (facto que, aliás, é corroborado pelo teor do título executivo) e que o embargante (...) e a sua mãe – esta última gerente da sociedade-executada – comprometeram-se, perante a primeira, a providenciar pelo pagamento das prestações relativas ao referido empréstimo, mediante o depósito, na conta da embargada junto do Millennium (e através da qual eram pagas as prestações do empréstimo) de certos montantes que resultariam da venda de vinho ocorrida num determinado estabelecimento da sociedade-executada, sito no Entroncamento, e produzido por esta última.
Resultou dos referidos depoimentos que ficou acordado que o produto da venda daqueles vinhos, depois de deduzidas as despesas inerentes ao funcionamento do dito estabelecimento, como a renda, a água e a eletricidade, mais a comissão do vendedor (no caso o ex-marido da embargada) seria afetado ao pagamento das prestações relativas ao empréstimo contraído junto do Millennium BCP. “Forma de pagamento” que a embargada terá aceite, pois que declarou em julgamento que «era-lhe indiferente a proveniência do dinheiro, o que queria era a prestação paga», tendo ainda referido que irmão (aqui embargante) lhe dizia que o produto da venda do vinho era para ela, apesar de também ter acrescentado «mas que isso nunca aconteceu».
A testemunha (...) igualmente afirmou que, a partir de 2008, e por determinação do ex-cunhado, «fazia contas e o dinheiro que sobrava, depois do pagamento das despesas da loja, era para ser depositado na conta da embargada, junto do Millennium» e o embargante (...) declarou que acordaram que o produto da venda do vinho fornecido pela sociedade executada no estabelecimento comercial sito no Entroncamento «era para abater na dívida», «a Casa fornecia vinho e o ex-cunhado dava o dinheiro à irmã» (sic).
Refira-se que a própria cláusula 8 do «reconhecimento e assunção de dívida», apresentado como título executivo, alude aos fornecimentos de vinho que foram efetuados pela Sociedade à primeira outorgante o que corrobora a tese dos executados/apelantes de que houve um acordo com a exequente que envolvia fornecimentos de vinho.
Pese embora nenhuma das referidas testemunhas – ou outras – tivessem aludido à data em que o acordo de pagamento foi firmado, considerando que o empréstimo junto do Millennium BCP foi contraído em julho de 2017 como resulta da cláusula 3 do «reconhecimento e assunção de dívida», o que nos parece lógico é que o acordo fosse prévio àquele empréstimo, afigurando-se-nos, pois, provável que tivesse sido firmado no ano de 2007.
Porém, a prova produzida já não permite concluir, como pretendem os apelantes, que o referido acordo «terá perdurado entre 2007 e 2014, ficando a exequente com a totalidade das vendas realizadas no estabelecimento da executada sociedade».
Assinala-se que quando os executados/embargantes alegam que a exequente «ficou com a totalidade das vendas» quererão significar que esta última «ficou com a totalidade do produto daquelas vendas». Porém, este facto foi contrariado pelo depoimento quer do executado (...) quer da testemunha (...) na medida em que ambos declararam que ao valor das vendas haveria que deduzir as despesas relacionadas com o estabelecimento comercial (renda, água, eletricidade) e a comissão do vendedor. Ou seja, em face do acordado, a exequente nunca ficaria com o produto integral das vendas do vinho fornecido pela sociedade executada pois haveria que deduzir àquele o valor dos encargos inerentes ao estabelecimento de venda de vinha, acrescidos da comissão do vendedor.
Ademais, a exequente/apelada tanto afirmou que «em 2008 houve pagamento do empréstimo, provavelmente derivado da venda de vinho» como declarou que «a mãe e o irmão nunca depositaram a totalidade da prestação mensal» e que «o irmão dizia-me que o produto da venda do vinho era para mim, mas nunca recebi vinho nenhum». Quanto ao embargante (...), o seu discurso foi, como salienta o juiz a quo, pouco consistente, nunca tendo conseguido, por exemplo, concretizar os eventuais montantes alegadamente entregues à exequente/executada, por força do acordo de pagamento firmado, proferindo afirmações vagas tais como «A Casa fornecia o vinho e o ex-cunhado dava o dinheiro à irmã … havia semanas boas e semanas menos boas; no fim do ano é que se via», acabando, inclusive, por reconhecer que os alegados acertos de contas feitos no fim do ano entre e ele e a exequente (os quais, aliás, a exequente nega perentoriamente terem acontecido) não estão refletidos em documentos. Quanto à testemunha (...), esta revelou desconhecer os concretos contornos do acordo celebrado entre a ex-mulher (embargada/exequente) e a sociedade executada, pese embora tivesse corroborado que havia um compromisso de pagamento do empréstimo com o dinheiro sobrante da venda do vinho realizada no estabelecimento do Entroncamento, sendo ele quem, «a partir de 2008, fazia as contas e entregava ao ex-cunhado o que fazia com a venda do vinho», não tendo contribuído, todavia, para o esclarecimento dos montantes dos pagamentos realizados à exequente/embargada, nem sobre a forma de entrega dos mesmos (por exemplo, tanto disse que era ele que entregava o produto da venda do vinho ao ex-cunhado para entregar no banco como o ex-cunhado mandava-o a ele depositar numa conta da irmã). Não se olvida que existem documentos nos autos – “guias de transporte” – relativas a vinho entregue pela sociedade-exequente na referida loja do Entroncamento, mas, como bem sublinhou o juiz a quo, «deles não se retira qualquer conclusão de pagamentos efetuados à Exequente». E não há nos autos qualquer documento, nomeadamente, bancário que reflita os depósitos alegadamente efetuados com o produto da venda do vinho.
Mais relevante, ainda, é que o «reconhecimento e assunção de dívida» apresentado como título executivo é a prova de que aquele acordo não terá sido cumprido. Explicando.
O referido acordo foi outorgado em 22 de julho de 2011, portanto quatro anos depois de a exequente ter contraído o empréstimo junto do Banco Millennium BCP para pagar dívidas da sociedade executada (cfr. cláusula 3).
Naquela data de 22 de julho de 2011 a executada (...) reconheceu, na qualidade de sócia-gerente da sociedade executada, que esta última é devedora à exequente da quantia de € 441.725,00, valor correspondente à soma do capital mutuado pelo Banco Millennium BCP à exequente, e do montante de € 27.375,00 que já tinha sido descontado no vencimento da exequente, fruto de uma penhora por dívidas da sociedade executada avalizadas por aquela – cfr. cláusulas 5 e 6.
Se houve um reconhecimento da existência da dívida supra referida e do respetivo montante, nos termos acima referidos, então é porque o acordo de pagamento firmado anteriormente e relacionado com o empréstimo do Millennium BCP foi incumprido (art. 349.º do CC).
As assinaturas apostas no documento acima mencionado não foram impugnadas pelos embargantes/executados (cfr. art. 374.º do Código Civil) nem foi arguida a falsidade do documento (art. 376.º do Código Civil), pelo que a dívida ali referida encontra-se plenamente provada.
Estando provado que, na data da subscrição do documento dado à execução (2011), a sociedade-executada devia ainda à exequente a totalidade do capital que o Banco Millennium mutuou à segunda, não há como julgar provado que aquele acordo de pagamento, celebrado quatro anos antes, foi cumprido através da entrega de valores resultantes da venda de vinho fornecido pela sociedade executada.
Pelo exposto, nada há a censurar ao tribunal a quo pelo facto de ter julgado não provado o facto em apreço (facto não provado n.º 3) que, por isso, assim se manterá.
Em conclusão deve ser julgado provado apenas que: «Em data não apurada do ano de 2007 foi celebrado um acordo de pagamento entre a exequente e a sociedade executada o qual compreendia o seguinte: (i) A sociedade explorava um estabelecimento comercial de venda de vinhos, no Entroncamento; (ii) A sociedade fornecia os vinhos para tal estabelecimento e suportava os custos inerentes ao estabelecimento e a exequente ficaria com a totalidade do produto da venda desses vinhos, após dedução das despesas da loja e da comissão do vendedor.»
*
Pelo exposto, procede parcialmente a impugnação relativa à decisão de facto, em consequência do que se determina que os factos não provados n.ºs 1 e 2 transitem para o elenco dos factos provados, com o seguinte teor:
- «Em data não apurada do ano de 2007 foi celebrado um acordo de pagamento entre a exequente e a sociedade executada o qual compreendia o seguinte:
(i) A sociedade explorava um estabelecimento comercial de venda de vinhos, no Entroncamento;
(ii) A sociedade fornecia os vinhos para tal estabelecimento e suportava os custos inerentes ao estabelecimento e a exequente ficaria com a totalidade do produto da venda desses vinhos, após dedução das despesas da loja e da comissão do vendedor.»

II.3.5.
O Direito
No presente recurso, os apelantes, para além, de invocarem as questões da inexequibilidade do título executivo e da invalidade da garantia pessoal – questões que, como dissemos supra, foram já decididas pelo tribunal de primeira instância e transitaram em julgado, não podendo, por isso, ser reapreciadas por este tribunal de primeira instância – impugnaram a decisão do tribunal de primeira instância relativa à matéria de facto.
Extrai-se das alegações de recurso que a única ilação que os apelantes pretendem retirar daquela impugnação da decisão sobre a matéria de facto se prende com a interpretação da cláusula 8 do documento intitulado «reconhecimento e assunção de dívida» (cfr. alínea 7) das conclusões de recurso).
Efetivamente, através da impugnação da decisão relativa à matéria de factos os apelantes pretendem levar o tribunal a concluir que o fornecimento de vinho previsto na cláusula 8 daquele documento abrange a dívida de capital ali reconhecida e cujo pagamento é reclamado na ação principal (execução) (cfr. parágrafos E.10, E.11, E.12 e E.17 da motivação de recurso). Para, desta forma, se concluir pela inexigibilidade da obrigação exequenda, na medida em que – sempre na perspetiva dos apelantes - o cumprimento da mesma não está dependente de uma interpelação do credor (in casu, da exequente), mas de um “acerto de contas” que, ainda, não ocorreu.
Digamos que na versão dos executados/apelantes, o que está em causa não é a (in)exigibilidade da obrigação exequenda mas a sua (falta de) liquidez. Explicando: defendendo os apelantes que: (i) o acordo de pagamento envolvendo o fornecimento de vinho produzido pela sociedade executada previsto na supra referida cláusula 8 abrange, também, a dívida de capital reconhecida no documento dado à execução; (ii) esse acordo foi cumprido até 2014; e que (iii) ainda não foi realizado um acerto de contas, então, o alegado (mas não provado) cumprimento implicaria, eventualmente, a diminuição do valor da dívida da sociedade-executada para com a exequente/embargada. Mas, como (alegadamente) não foi realizado o referido “acerto de contas”, a obrigação exequenda ainda não está quantitativamente determinada, não podendo os executados cumprir a mesma. Dito de outra forma, a determinação do eventual valor em débito estaria dependente de um acerto de contas entre a credora e os devedores que ainda não foi realizado (cfr. conclusões constantes das alíneas g).7 e s)). Refira-se que os executados já haviam alegado a indeterminação, em termos quantitativos, da obrigação exequenda no art. 36.º da sua petição de embargos.
Porém, os factos provados não permitem retirar aquela ilação, isto é, que o pagamento da dívida de capital assumida pelos embargantes no documento apresentado como título executivo seria feito através do fornecimento de vinho.
Nuclear para a tese defendida pelos apelantes é, como dissemos, a interpretação da cláusula 8 do documento dado à execução.
Interpretar os negócios jurídicos consiste em fixar o sentido e o alcance dos mesmos, segundo as respetivas declarações integradoras.
Trata-se, pois, de determinar o conteúdo das declarações de vontade neles contidas e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir em conformidade com tais declarações.
Os princípios ou critérios interpretativos estão plasmados nos arts. 236.º e ss. do Código Civil, contemplando os arts. 236.º e 237.º regras legais gerais aplicáveis à interpretação das declarações negociais, tanto expressas como tácitas, quer elas respeitem a negócios jurídicos sujeitos a forma especial, quer não.
O art. 236.º do Código Civil, sob a epígrafe Sentido normal da declaração, dispõe que:
«1- A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declaratário, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2- Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.»
No normativo citado está consagrada a chamada doutrina da impressão do destinatário, aquela que dá tutela plena à legítima confiança da pessoa em face de quem é emitida a declaração[1]. De acordo com aquela doutrina, relevará o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde podia conhecer (art. 236.º, n.º 1).
O n.º 2 do art. 236.º estabelece, todavia, que sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida. Ou seja, o sentido querido realmente pelo declarante deverá prevalecer se o declaratário o conhecia e ainda que a formulação da declaração seja ambígua ou inexata. Dito ainda de outra forma, havendo coincidência entre o sentido almejado pelo declarante e o sentido compreendido pelo declaratário, é este o sentido decisivo, ainda que imperfeitamente explicitado (com as limitações decorrentes do art. 238.º do CC para os negócios formais) – Mota Pinto, ob. cit., p. 445.
Resta dizer que, quando a interpretação conduza a um resultado duvidoso, há que atender ao critério plasmado no art. 237.º, do CC: nos negócios gratuitos prevalece o sentido menos gravoso para o disponente e, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
No caso concreto, está em causa o sentido jurídico da cláusula oitava do documento dado à execução.
Sendo o ponto de partida da interpretação o teor da declaração, diremos que aquilo que foi expressamente declarado na cláusula n.º 8 do título executivo respeita apenas à forma de pagamento dos “juros e despesas bancárias e/ou com seguros” relativos ao contrato de empréstimo contraído pela exequente/embargada no Millennium BCP e não também à dívida de capital, a qual, sublinha-se não compreende apenas o valor do capital relativo ao empréstimo contraído pela exequente junto do Banco Millennium BCP, mas também o valor descontado nos vencimentos da exequente em virtude de uma penhora decorrente de incumprimentos da sociedade executada.
Não partilhamos o entendimento dos recorrentes quando afirmam que a expressão utilizada na parte final da referida cláusula oitava do documento dado à execução - «até integral pagamento do valor do empréstimo referenciado em 3» permite concluir que a dívida de capital está também incluída no “acerto de contas” ali previsto e resultante de fornecimento de vinho à exequente. Com efeito, não se diz ali que a sociedade continuará a fornecer vinho para integral pagamento do valor do empréstimo referenciado em 3 (ou seja, não é utilizada uma preposição para exprimir uma finalidade ou propósito) mas, tão só, que aquele fornecimento de vinho perdurará até integral pagamento do valor do empréstimo (ou seja, é utilizada uma preposição que indica termo ou limite temporal).
Como acima dissemos ainda quando o significado das palavras empregues na declaração seja (aparentemente) claro e inequívoco, pode não ser esse o sentido juridicamente relevante, designadamente, por não ter sido esse o sentido realmente querido pelas partes. Bastará que a isso leve a consideração de outros elementos ou circunstâncias atendíveis como, por exemplo, o contexto negocial em que a declaração surge, elementos preparatórios, a finalidade da declaração, a anterior e subsequente prática negocial entre declarante e declaratário, quando exista.
Todavia, temos de nos mover dentro do universo dos factos provados e, in casu, a factualidade provada não nos permite concluir que foi outro o sentido querido pelas partes.
Em face do exposto, teremos de concluir que apelação improcede, pois, os apelantes não lograram demonstrar que a obrigação exequenda não está quantitativamente determinada, bastando, por isso, e ao contrário do que sustentam, a sua interpelação para o cumprimento da mesma.

Sumariando:
(…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas de parte pelos recorrentes na presente instância recursiva, nos termos dos arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do CPC.
Notifique.
Évora, 27 de fevereiro de 2020
Cristina Dá Mesquita
José António Moita
Silva Rato


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[1] Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 2005, p. 444.