Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
461/16.6T8BNV.E1
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: FURTO DE VEÍCULO
CONTRATO DE SEGURO
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Atenta a natureza do seguro em causa, de qualificar como seguro de dano, sobre o lesado recai o ónus de alegação e prova do evento danoso, no caso o furto (sinistro), que corresponde à concretização do risco coberto pela garantia contratada (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CC).
Decisão Texto Integral: Proc. n. º 461/16.6T8BNV.E1
Comarca de Santarém
Instância Local Benavente – Secção Cível – juiz 1

I – Relatório
(…), residente no Bairro (…), Rua (…) – lote 2, em Benavente, instaurou contra (…) Seguros, pessoa colectiva n.º (…), com sede no Largo da (…), 45/52, Ponta Delgada, agora Seguradoras Unidas, SA, que aquela incorporou por fusão, a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 11.151,06, correspondente ao capital devido pela cobertura do furto, acrescida dos juros de mora vencidos no valor liquidado de € 255,41 e nos vincendos, e ainda no montante de € 5.500,00, prejuízo decorrente da privação do uso do veículo, também acrescido de juros de mora vencidos, que ascendem a € 141,04, e vincendos, quantias devidas pela ré ao abrigo do contrato de seguro com ela celebrado e que contemplava a cobertura facultativa de danos próprios decorrentes de furto ou roubo da viatura com a matrícula 97-(…)-02.
Citada a ré, apresentou contestação, peça na qual, reconhecendo a celebração do contrato de seguro e a contratação da referida cobertura, impugnou todavia que o sinistro que lhe foi participado se encontrasse coberto, uma vez que não ocorreu nenhum furto, antes tendo a autora celebrado com terceiro contrato de compra e venda da viatura que terá sido incumprido pelo comprador.
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Teve lugar audiência prévia e nela, não tendo sido alcançado o acordo das partes, foram saneados os autos e, determinado o respectivo prosseguimento, foi delimitado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, sem reclamação das partes.
Realizada a audiência de discussão e julgamento veio no seu termo a ser proferida douta sentença que, na parcial procedência da acção, condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 11.151,06 (onze mil, cento e cinquenta e um euros e seis cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal de juros civis, que desde de 04 de Março de 2016 a 16 de Junho de 2016 ascendem a € 127,09 (cento e vinte e sete euros e nove cêntimos), e vincendos até integral pagamento, absolvendo-a do mais peticionado.
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Dissentindo do decidido, apelou a ré seguradora e, tendo apresentado as suas alegações, formulou a final as seguintes necessárias conclusões:
1.ª A ora Apelante não se conforma com a douta sentença proferida nos autos.
2.ª Dos factos provados resulta que o veículo não despareceu, nem pereceu, tendo aliás sido encontrado volvidos menos de 60 dias após o seu alegado furto, bastando para tal invocar a data do alegado furto 15-9-2015 e a data do seu registo no nome de (…) de 19-10-2015.
3.ª O prazo de 60 dias para o pagamento do capital seguro, vertidos na sobredita condição – art.º 45º das condições gerais da apólice – não se completou, não existindo assim o pressuposto de facto para o pagamento da indemnização.
4.ª O sentido da existência da cobertura de furto ou roubo é repor, ressarcir ou reintegrar o património do segurado em virtude de ter ficado sem o veículo seguro, para o que lhe deve ser pago o valor do capital seguro, o que efectivamente não sucedeu no caso dos autos, pois a A. não ficou sem o seu veículo, decorridos que fossem 60 dias.
5.ª Entende a ora Apelante que a A. não pode, nem deve, ficar com o veículo seguro na sua posse e com o valor do 11.151.06 € do capital seguro, atendendo ao facto de que se a A. estava inclusive na posse dos documentos do veículo, cf. ponto T dos factos assentes, poderia e devia ter agido celeremente em relação à recuperação do bem, não se verificando o disposto na al b) do art.º 28.º e 45.º, n.º 4 das Cláusulas Gerais da Apólice juntas aos autos.
6.ª A ora Apelante entende que a razão de ser para o pagamento do capital seguro deixou de fazer sentido, sob pena de enriquecimento sem causa por parte da Apelada, na medida em que ficaria com o bem seguro e com o capital que a ele estava destinado em caso de furto.
7.ª A ora Apelada deverá ficar ou com veículo, ou com o capital seguro, os dois é que manifestamente não pode ocorrer, sob pena de enriquecimento sem causa.
8.ª Verifica-se a violação do disposto no art.º 40 ponto 3 e 45.º ponto 5 das Condições Gerais da Apólice e art.º 473º do CC.
Concluiu requerendo a revogação da sentença recorrida.
Contra alegou a autora, pugnando pela manutenção do julgado.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se à autora assiste o direito de haver para si a indemnização fixada pela perda do veículo.
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II. Fundamentação
De facto
Não tendo sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, nem se vislumbrando razão para a sua modificação oficiosa, é a seguinte a factualidade a ter em consideração, agora lógica e cronologicamente ordenada:
1. A Autora, enquanto proprietária e legítima possuidora do veículo automóvel com a matrícula 97-(…)-02 de marca Chevrolet, celebrou com a Ré no dia 29 de Abril de 2011, contrato de seguro facultativo relativo a danos próprios do veículo de matrícula 97-(…)-02 ao qual foi atribuída a apólice nº (…).
2. Tanto das condições particulares da apólice, com efeitos a partir de 29 de Abril de 2015, como das que tem efeitos a partir de 29 de Abril de 2016, consta como cobertura de responsabilidade civil obrigatória o capital seguro de € 6.000.000,00, e como outras coberturas, choque, colisão e capotamento, incêndio, raio ou explosão, furto ou roubo, assistência em viagem, protecção jurídica, quebra isolada de vidros, fenómenos da natureza, actos de vandalismo, protecção de ocupantes, incapacidade temporária absoluta, despesas de funeral, despesas de tratamento, veículo de substituição – acidente, roubo avaria, responsabilidade civil obrigatória – danos materiais, danos corporais.
3. Das Condições Gerais do referido contrato consta, na parte II, respeitante ao seguro facultativo, o seguinte:
“ Artigo 40.º Enumeração das Coberturas Base e Definições (…): 3.“ Furto ou Roubo – O desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentado ou consumado). (…) 7. Perda Total – Desaparecimento do veículo (…).
Artigo 41.º - Objecto do Seguro – O presente contrato garante as coberturas referidas no artigo anterior, que podem ser contratadas isolada ou conjuntamente conforme estipulado nas Condições Particulares.
(…)
Artigo 43.º Exclusões 1. Salvo convenção expressa em contrário, ficam também excluídos: (…) l) Lucros cessantes ou perda de benefícios ou resultados advindos ao tomador do seguro ou ao segurado em virtude de privação do uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro ou provenientes de depreciação, desgaste ou consumos naturais; (…)
Artigo 44.º - Capital Seguro e Franquias: 1. Os valores máximos garantidos pelo segurador, bem como as franquias contratadas encontram-se expressos nas Condições Particulares. 2. Salvo convenção em contrário expressa nas condições particulares, aplicam-se ao presente contrato as seguintes regras: a) A determinação do capital seguro deve obedecer aos seguintes critérios: Veículos Novos – O capital seguro deverá corresponder ao seu valor em novo, tal como definido no número 6 do artigo 40.º. Veículos Usados – O capital seguro, deverá corresponder ao respectivo valor em novo, tal como definido no número 6 do artigo 40.º, deduzido da percentagem de desvalorização constante da tabela de desvalorização anexa ao presente contrato. B) Nas anuidades seguintes à da celebração do contrato, o capital seguro do veículo é automaticamente actualizado, de acordo com a tabela de desvalorização anexa ao presente contrato. (…) 6. As franquias não serão aplicáveis na cobertura do Furto ou Roubo, salvo convenção em contrário estabelecida nas Condições Particulares.
Artigo 45.º Ressarcimento dos danos:
(…) 4. Ocorrendo furto, roubo ou furto de uso e querendo o tomador do seguro usar dos direitos que o contrato de seguro lhe confere, deverá apresentar, logo que possível, queixa às autoridades competentes e promover todas as diligências ao seu alcance conducentes à descoberta do veículo e dos autores do crime. 5. Ocorrendo furto, roubo ou furto de uso que dê origem ao desaparecimento do veículo e que se prolongue por mais de 60 dias contados desde a data de participação dessa ocorrência às autoridades competentes, o segurador obriga-se ao pagamento da indemnização devida, nos termos do presente contrato.
Artigo 46.º - Valor da indemnização e regra proporcional:
1. Em caso de perda total, o valor da indemnização corresponderá ao capital seguro à data do sinistro, nos termos do artigo 44.º, deduzido da franquia contratualmente aplicável e, se for o caso, do valor atribuído ao veículo após o sinistro.
4. Na parte referente às condições especiais, no que respeita ao Furto ou Roubo, correspondente à 004, consta o seguinte:
Artigo 1.º Definições“ Para efeitos da presente condição entende-se por (…) 2. Capital Seguro – Os valores máximos garantidos pelo segurador por anuidade e/ou período de vigência (…)
Artigo 2.º - Garantias e Coberturas – Por esta condição especial, o presente contrato garante os prejuízos ou danos materiais causados ao veiculo seguro em consequência de furto ou roubo, de acordo com o definido no número 3 do artigo 40.º das Condições Gerais da Apólice.
Artigo 3.º - Exclusões – Salvo convenção expressa em contrário nas condições particulares, são aplicáveis à presente cobertura as exclusões previstas nos artigos 5.º e 43.º das Condições Gerais da Apólice.
(…)
Artigo 6.º- Franquia – Salvo convenção expressa em contrário na condição particular à presente cobertura não é aplicada qualquer franquia. (…)”
5. Da condição especial 015, respeitante à privação do uso, consta o seguinte:
“ Artigo 2.º - Garantias e Coberturas por esta Condição Especial - o presente contrato garante os prejuízos decorrentes da privação do uso da viatura segura, durante o período de reparação, em consequência de danos emergentes de acidente de viação ou de furto ou roubo ocorrido com a mesma, que originem a paralisação temporária do veiculo seguro e desde que, simultaneamente, seja accionada qualquer das coberturas convencionadas nas condições especiais 002, 004, 005, 017, 018 e 019.
Artigo 3.º - Capital Seguro
1. O valor a indemnizar é a importância diária constante das condições particulares.
2. Salvo convenção expressa em contrário nas Condições Particulares, a privação do uso conta-se a partir do 3.º dia (terceiro) dia posterior ao início da reparação ou da participação às autoridades do furto ou roubo do veículo e termina com a reparação efectiva ou com a sua localização.
3. O período de privação do uso não poderá exceder o número de dias por anuidade, seguidos ou interpolados, especificados nas condições particulares.
Artigo 4.º Exclusões - Esta garantia fica excluída quando se verificar perda total da viatura.”
6. Da condição especial 090, respeitante veículo de substituição, consta o seguinte: “ (…)
Artigo 3.º - Garantias de assistência – veículo de substituição: (…)
2. Veículo de substituição em caso de Furto ou Roubo e tentativa de Furto ou Roubo
2.1. Em caso de Furto ou Roubo do veículo seguro, o segurador garante uma viatura de substituição até ao limite máximo de 60 dias por ano. O direito à utilização do veículo de substituição terminará na data da recuperação do veículo furtado ou roubado, ressalvadas as seguintes situações: (…) 2.3. Caso a viatura não tenha sido recuperada, mas o segurador assuma liquidar a indemnização antes do prazo máximo previsto nas condições particulares, o período de aluguer do veículo terminará na data do pagamento do valor seguro (…).”
7. O contrato de seguro identificado em 1. abrange a cobertura de furto ou roubo, com o capital seguro, a partir de 29 de Abril de 2015, de € 13.056,62, passando em 29 de Abril de 2016 para € 11.151,06.
8. No dia 11/09/2015 a filha da Autora, acompanhada pelo seu namorado, dirigiu-se a (…) levando consigo a viatura (…), tendo em vista celebrar negócio de venda do mesmo com a devida concordância da Autora.
9. Chegados ao local, à hora que tinha sido previamente combinada via telemóvel com o futuro comprador, o qual apenas conheciam pelo nome (…), este não se encontrava.
10. Nessa sequência, a filha da Autora telefonou para o telemóvel do tal indivíduo (…), que a informou que não poderia deslocar-se àquele local, informando que mandaria outra pessoa, um mecânico de nome (…).
11. O mencionado (…), chegado ao local, entrou no veículo e sentou-se no lugar do condutor, fixando como pretexto que pretendia experimentar a viatura, a fim de avaliar qual o estado do motor e dos demais componentes.
12. A filha da Autora e o seu namorado entraram também no veículo, tendo todos dado “uma volta” com o carro em causa.
13. Regressados ao mesmo local, o aludido (…) estacionou o veículo e nessa sequência a filha da Autora e o namorado saíram do veículo, tendo aquele permanecido no interior do mesmo.
14. Aproveitando-se da oportunidade de se encontrar sozinho no veículo automóvel e depois de ter a certeza que este se encontrava em bom estado para ser conduzido, o referido (…) colocou-se em fuga no mesmo.
15. Nunca o (…) obteve consentimento para levar o veículo consigo.
16. No âmbito do negócio celebrado com o referido indivíduo que dava pelo nome de (…), foi depositado na conta da A. um cheque sacado sobre conta titulada por (…) na agência do Montepio de (…) no valor de € 12.550,00.
17. O referido cheque veio a ser devolvido com a menção de que havia sido revogado “por furto”.
18. No dia 15 de Setembro de 2015 a Autora apresentou queixa por furto do veículo (…) no posto da GNR de Benavente, indicando como suspeito (…), com residência em Espanha.
19. Em 21 de Setembro de 2015 a Autora participou à Ré, por escrito, o desaparecimento do veículo (…), juntando para o efeito participação do sinistro/auto de notícia.
20. Na data de 22 de Setembro de 2015 a Ré enviou uma carta à A., a confirmar a recepção da referida participação sinistro e informando que a A. poderia utilizar o serviço online – http://www.ps.csanet.pt/PortaldoLesado – usando os códigos de acesso para verificação do estado da participação.
21. Em 5 de Novembro de 2015 a Ré enviou uma outra missiva à Autora a comunicar que não possuía elementos para poder assumir a responsabilidade.
22. Em 23 de Novembro a Autora requereu à R., por escrito, que esta prestasse os devidos e necessários esclarecimentos sobre a que elementos se referia na sua missiva e que porventura se encontrariam, questionando ainda a Ré se constavam no processo de sinistro os depoimentos das testemunhas arroladas.
23. A R. não respondeu aos pedidos de esclarecimento.
24. No dia 24 de Fevereiro de 2016, por missiva entregue no portal do sítio da Internet que a Ré identificou, a Autora interpelou a Ré para que esta promovesse a resolução do sinistro no prazo de 8 dias.
25. A R. não respondeu.
26. A filha da Autora não entregou ao referido (…) o documento para registo automóvel.
27. Com base na falsificação da assinatura da Autora foi efectuada a inscrição do direito de propriedade sobre o veículo a favor de (…).
28. No dia 15/09/2015 a viatura já se encontrava registada em nome de (…), com seguro válido na Congénere (…) Seguros.
29. Posteriormente, no dia 19/10/2015, o veículo foi registado em nome de (…).
30. A Autora intentou a acção judicial de nulidade do Registo, por ter sido o mesmo efectuado com base em documentos falsos (falsificação de assinatura) com as demais consequências legais, aí pedindo a restituição da viatura, acção que correu termos nos autos na Comarca de Beja – Serpa – Inst. Local – Sec. Comp. Gen. – J1 – Processo: 19/16.0T8SRP.
31. No referido processo, em que figurou como A. (…), sendo demandados (…) e (…), foi proferida sentença, transitada em julgado em 21.03.2017, que julgou procedente a acção e, em consequência, declarou a nulidade do registo de aquisição por compra a favor do 1.º R. (…), sobre o veículo de matrícula 97-(…)-02, ordenando o cancelamento do respectivo registo, tendo ainda declarado a nulidade do negócio de compra e venda tendo por objecto a mesma viatura celebrado entre o 1.º R. como vendedor e o 2.º R como comprador, determinando, em consequência, o cancelamento do registo respectivo e a entrega da viatura à autora.
32. O veículo com a matrícula 97-(…)-02 era utilizado diariamente pela Autora para as suas deslocações, nomeadamente para consultas médicas, de lazer, e para se fazer transportar para o trabalho.
33. A Ré nunca entregou à Autora um veículo de substituição.
34. A Autora não tinha condições de económicas para suportar o custo do aluguer diário de um veículo automóvel com características idênticas às da viatura (…).
35. Em 26 de Outubro de 2015 a Autora comprou à filha a viatura automóvel com a matrícula 82-(…)-16, no valor de € 5.500,00, tendo feito entrega do montante de € 1.500,00.
36. Até à data da propositura da acção, em 16.06.2016, a A. não recuperou o veículo.
37. O veículo (…) foi entregue à A. pelo 2.º R na acção identificada em 30 no dia 14.11.2017.
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Factos Não Provados:
a) A filha da A. e o namorado saíram do veículo a fim de todos conversarem.
b) O (…), antes de se colocar em fuga, de uma forma inusitada e agressiva solicitou à filha da Autora o documento para registo automóvel.
c) A filha da A. apenas teve tempo de asseverar que não lhe entregava nenhum documento e para que saísse imediatamente do carro.
d) E foi aí, nesse instante, que o tal (…), bruscamente, sem qualquer autorização, colocou-se em fuga ao volante do veículo em apreço.
e) No dia 31 de Maio de 2016, aquando da Audiência Prévia realizada nos referidos autos, a Autora tomou conhecimento que o veículo se encontrava na posse de um indivíduo de nome (…), residente na Rua (…) – nº 35, r/c, Esq., 7800-061 Beja, portador do BI (…) e NIF (…).
f) O aluguer de veículo com características idênticas às do seu veículo rondaria em média os € 45,00 diários.
g) Sendo que, com a privação do uso do veículo, a Autora ficaria impedida de se deslocar com o mesmo para trabalhar, de se deslocar em passeio, etc..
h) Pelo novo veículo a A. pagou € 5.500,00.
i) A Autora recebeu o valor correspondente à venda de € 12.500,00, por cheque alegadamente furtado.
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De Direito
Da indemnização pela perda da viatura
Está assente nos autos sem discussão das partes que nos termos do contrato de seguro celebrado a ré garantiu o ressarcimento do dano correspondente ao desaparecimento da viatura (…) por força de furto ou roubo, tal como apurado está que o veículo foi subtraído à autora por terceiros no referido dia 11 de Setembro 2015, conforme participação efectuada à seguradora no dia 21 desse mesmo mês. Dissente todavia a apelante da interpretação que na sentença foi feita da factualidade apurada à luz da cláusula 45.ª das condições gerais, defendendo nesta via de recurso que não se mostra preenchida a respectiva previsão, posto que o paradeiro do veículo foi apurado antes de decorrido o prazo de 60 dias ali previsto.
Mas não tem razão, desde logo porque a factualidade apurada e que se encontra definitivamente fixada, não apoia a tese que defende.
Tal como referido na sentença apelada, tendo o contrato em causa sido celebrado em 29 de Abril de 2011, data em que se encontrava já em vigor o DL 72/2008, de 16 de Abril, diploma que instituiu o regime jurídico do contrato de seguro, é o mesmo regulado pelas estipulações da respectiva apólice que não sejam proibidas pela lei, subsidiariamente pelas disposições do RJCS e, por último, pelas disposições da lei comercial e da lei civil (art.ºs 11.º e 4º do RJCS).
Em causa está, como acima enunciado, a interpretação do n.º 4 da cláusula 45.ª das condições gerais contratadas. Atenta a natureza do seguro em causa, de qualificar como seguro de dano, sobre o lesado recai o ónus de alegação e prova do evento danoso, no caso o furto (sinistro), que corresponde à concretização do risco coberto pela garantia contratada (cf. art.º 342.º, n.º 1, do CC).
Resulta da factualidade apurada ter a autora/apelada feito prova da subtracção do veículo, crime que denunciou às autoridades policiais a par da exigida participação à ré no prazo contratualmente fixado. Defende todavia a apelante que a viatura não estava desaparecida, uma vez que desde 15/9 se encontrava registada a favor de terceiro, identificado no registo correspondente.
A este respeito dir-se-á, antes de mais, que nada nos autos evidencia que a autora tenha tomado conhecimento, nessa data ou dentro do aludido período de 60 dias, da existência dos sucessivos registos e da identidade dos terceiros que fizeram inscrever a seu favor o direito de propriedade sobre a viatura e, mais decisivamente, que dentro daquele período tenha tomado (ou pudesse ter tomado) conhecimento do paradeiro desta.
Por outro lado, mesmo conhecida a identidade do terceiro e até o eventual paradeiro da viatura, a verdade é que beneficiando aquele da presunção registral de titularidade do direito inscrito, fez a autora aquilo que lhe era exigível, instaurando a pertinente acção de reivindicação, o que ocorreu no ano de 2016, mostrando-se então já decorrido o aludido prazo de 60 dias, e vindo a recuperar o veículo, na sequência de prolação de decisão favorável, apenas em Novembro de 2017, tal como consta do ponto 37. Ou seja, conforme resulta dos factos assentes, o veículo só nesta data deixou de estar desaparecido, voltando à disponibilidade da autora, conforme correctamente se considerou na sentença apelada. Em sentido idêntico, o STJ tinha já feito notar, em acórdão de 8/5/2017, proferido no processo 07-A-686, disponível em www.dgsi.pt, que “a recuperação da coisa furtada não se preenche ou fica satisfeita com o simples conhecimento, por terceiros, do local onde está ou onde foi deposta, sem a simultânea relação entre esse conhecimento, a sua identificação e a efectiva possibilidade de o respectivo dono a reaver nessa qualidade” (é nosso o destaque).E tivesse a ré cumprido a obrigação contratualmente assumida, procedendo ao pagamento da indemnização devida à autora após o decurso do prazo de 60 dias, ao invés do censurável silêncio a que se remeteu e de que dão conta os factos vertidos nos pontos 22. a 25. após o envio da não menos lamentável comunicação referida em 21., que nada esclarece, e este ponto não estaria sequer em discussão.
Ainda a respeito da interpretação de cláusula similar, vale quanto se considerou no acórdão do TRG de 20/11/2014, proferido no processo 5620/13.0TBBRG.G1, também acessível em www.dgsi.pt, confirmado pelo acórdão do STJ de 5/5/2015[1], citado na decisão recorrida: “Na verdade, em nosso entender, o que o tomador do seguro pretendeu, ao celebrar o contrato, foi a cobertura do risco pelo desaparecimento da viatura segurada, enquanto subtraída à sua disponibilidade ou ao seu domínio, por razão do facto de dela deixar de poder dispor, parecendo-nos, por decorrência, não satisfazer os objectivos que o levaram a realizar um tal contrato que a viatura venha ser recuperada passado um longo período de tempo (…).
O que se nos afigura poderia assumir relevância para o segurado, satisfazendo plenamente os seus interesses contratuais, e que poderia ter o efeito de fazer cessar a razão de ser da atribuição de uma indemnização pela perda total do veículo, era a respectiva recuperação ter operado dentro do prazo contratualmente previsto, e em que se não considera existir ainda essa perda.
Na verdade, se se não der esta interpretação, qual será então o limite, em termos do decurso de um prazo razoável, para além do qual a recuperação da viatura já não pode ter o efeito ou ser considerada como um sucedâneo da restauração em espécie do património do lesado?
Ficaria sujeito a um evento futuro, contingente, e, portanto, incerto, que seria o do efectivo pagamento do montante indemnizatório, entendendo-se apenas por verificada a perda total resultante do desaparecimento, enquanto evento causal da indemnização, a partir desse momento, e mantendo, até então, a recuperação do veículo, mesmo que ocorrida passados ano, ou anos, com referência ao evento danoso, a sua relevância como factor prejudicante do direito à prestação indemnizatória? Ora, salvo o devido respeito, afigura-se-nos como inquestionável que não pode ter sido este o conteúdo que as partes pretenderam conferir à cláusula contratual em apreço, pois que, a assim suceder, resultaria incontornavelmente comprometido o equilíbrio e equidade contratuais decorrentes dos princípios da boa-fé ou da confiança, que valoriza os interesses legítimos que levaram cada uma das partes a contratar, ou seja, o nexo entre as prestações, sua interdependência ou sinalagma contratual.
(…) Com efeito, que sentido ou que coerência teria que se estipulasse um prazo contratual razoavelmente curto para que a seguradora desse cumprimento a todos os pressupostos de que depende a satisfação da indemnização ao segurado, designadamente, processamento de averiguações, avaliações e outras diligências necessárias à liquidação do sinistro, e que, por outro lado, se não conferisse ao segurado o correspectivo direito de, uma vez decorrido esse prazo, exigir da seguradora o pagamento da indemnização, com a consequente obrigação desta de a pagar, e se permitisse que, em face da recuperação do veículo, mesmo que ocorrida um largo período de tempo, após o decurso desse prazo, tivesse o efeito de extinguir o direito indemnizatório.
Ao ser estipulado tal prazo, o que se pretendeu reconhecer é que, uma vez decorrido o mesmo, o segurado deixou de ter interesse objectivo na recuperação do veículo, ficando a seguradora constituída na obrigação de indemnizar, porquanto, se entendeu como razoável e suficiente para que se operasse o vencimento desse direito, que o segurado não se visse obrigado a suportar a privação da utilização do veículo por um período de tempo mais prolongado, conferindo-se assim segurança jurídica às relações contratuais entre as partes. (…)”.
Tal é, afigura-se, o sentido com que a referida cláusula negocial deve valer, tendo ainda em atenção que nos movemos no domínio das cláusulas contratuais gerais pré-dispostas pela contraente seguradora donde, em caso de dúvida, dever prevalecer o sentido mais favorável à autora aderente, nos termos prescritos pelo art.º 11.º, n.º 2, do DL n.º 446/85, de 25/10.
Deste modo, e em suma, considerando que a viatura segura se manteve desaparecida durante período muito superior a 60 dias, tinha a autora direito ao montante indemnizatório contratualmente fixado para a sua perda, conforme foi decidido e merece confirmação.
Argumenta a apelante que a autora não pode ficar com o veículo e com o montante indemnizatório destinado a compensar a sua perda, sob pena de enriquecimento. E tem razão porquanto, recebido o capital, fica eliminado o dano na esfera jurídica daquela. A solução passa pelo reconhecimento do direito da apelante a haver para si o veículo recuperado, nos termos em que tal foi reconhecido pela decisão recorrida, embora sem a condenação da autora na sua entrega por extravasar em absoluto do objecto da presente acção. Condenação que, identicamente, e por maioria de razão, não poderá ter lugar nesta Relação.
Improcedem, pelo exposto, todos os argumentos recursivos, impondo-se a confirmação da sentença recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando inteiramente a douta sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.
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Évora, 12 de Julho de 2018
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho
Conceição Ferreira
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[1] Com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/Civel2015.pdf, destacando-se os seguintes pontos:
“(…) III. Mas mesmo que assim fosse, a interpretação que a Relação fez da cláusula contratual em questão foi certa, pois que a segurada pretendeu, ao celebrar o contrato, foi a cobertura do risco pelo desaparecimento da viatura segurada por um período superior a 60 dias, não se podendo interpretar o prazo convencionado como de natureza meramente presuntiva, de perda definitiva do objecto seguro, não se vendo que os interesses da segurada tenham ficado sujeitos a qualquer evento futuro e imprevisível, não satisfazendo os objectivos e interesses que levaram a tomadora do seguro a realizar um tal contrato, a circunstância de a viatura poder vir a ser recuperada passado um longo período de tempo, concretamente mais de um ano após a subtracção.
IV. A levar-se a interpretação pretendida pela recorrente aos seus limites, então a cláusula em questão ficaria sem conteúdo útil e relevante, já que teoricamente sempre um veículo subtraído fraudulentamente poderia vir a ser recuperado pelo seu proprietário. E, nesta conformidade, o montante de indemnização fixado pelo desaparecimento de um automóvel nunca seria pago pela seguradora.
V. Se o prazo de 60 dias estabelecido no contrato fosse meramente presuntivo, a seguradora certamente que teria deixado bem expressa tal característica no contrato, tanto mais que estamos perante um contrato de adesão cujos termos foram naturalmente postos em cima da mesa pela seguradora e com a única possibilidade por parte da segurada de aceitar ou não os seus precisos termos, sendo também certo que, estando-se perante um contrato de adesão, se a interpretação conduzir a resultados ambíguos ou duvidosos, deverá prevalecer na interpretação o sentido mais favorável ao aderente (art. 11.º, n.º 2, do DL n.º 446/85, de 25-10) (…)”.