Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
6762/17.8T8STB.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PROPRIETÁRIO DO VEÍCULO
ILEGITIMIDADE
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A constatação de erro de julgamento no âmbito da matéria de facto, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 662.º do C.P.C., impõe que se tenha chegado à conclusão que a formação da decisão devia ter sido em sentido diverso daquele em que se julgou, emergindo de um juízo conclusivo de desconformidade inelutável e objectivamente injustificável entre, de um lado, o sentido em que o julgador se pronunciou sobre a realidade de um facto relevante e, de outro lado, a própria natureza das coisas, o que se veio a verificar no caso em apreço, pois, no que tange à redacção de alguns pontos dos factos dados como provado e ao aditamento de outros, existiu erro notório na apreciação da prova (testemunhal e documental) carreada para os autos, o que, inexoravelmente, levou à alteração da factualidade apurada nos autos por parte deste Tribunal Superior.
- Estando demonstrado nos autos que a viatura (…) não era propriedade da A. na data do acidente, mas sim de um terceiro (v.g. a marca importadora, tratando-se de um Peugeot), forçoso é concluir que a A., naquela data, não sofreu quaisquer danos que sejam indemnizáveis e mereçam a tutela do Direito – cfr. artigo 483.º do Código Civil.
- Assim sendo, resulta claro que a Autora não era detentora de legitimidade activa que lhe permitisse intentar a presente acção contra a R. seguradora, aqui apelante.
- Por isso, julga-se verificada a ilegitimidade da A., a qual, como excepção dilatória que é, acarreta a improcedência da acção e a absolvição da instância da R., o que aqui se determina para os devidos e legais efeitos – cfr. artigos 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea e), ambos do C.P.C..
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6762/17.8T8STB.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) – Comércio de Automóveis, Lda. intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum contra Seguradoras (…), S.A., peticionando a condenação da R. a pagar à A. as seguintes quantias:
a) a quantia de € 11.700,00 correspondentes ao valor venal do veículo;
b) Indemnização de € 10,00 por cada dia de privação do uso do veiculo desde a data do acidente até ao pagamento do valor venal e que, em 28/08/2017, ascende à quantia de € 8.280,00 e
c) Juros de mora que, à taxa legal de 4% ao ano, se vencerem sobre as quantias peticionadas desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
Alegou, em síntese, que em 15/05/2015, pelas 12hl0m, ao Km 25 do IC33, concelho de Santiago do Cacém, ocorreu um acidente envolvendo os veículos de matrícula (…), e de matrícula (…), decorrente da violação de normas estradais pelo condutor deste último veículo. Do acidente resultaram danos no veículo do A., tendo a R. declinado a sua responsabilidade no pagamento de tais danos.
Devidamente citada para o efeito veio a R. defender-se por excepção, sustentando a ilegitimidade da A. por não ser proprietária da viatura (…) à data do acidente, e por impugnação, pugnando pela sua absolvição, porquanto o acidente foi causado por culpa exclusiva do condutor da viatura actualmente propriedade da A.
Foi proferido despacho saneador e de selecção do objeto do litígio e dos temas de prova (sendo que um dos referidos temas elencados foi precisamente o de se vir a determinar se a A. é proprietária do veículo …).
De seguida, realizou-se a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, tendo sido proferida sentença pela M.ma Juiz “a quo”, a qual julgou a presente acção totalmente procedente, por provada e, em consequência condenou a R. a pagar à A. a quantia de € 11.700,00, correspondentes ao valor venal do veículo, a que acrescem juros de mora vencidos desde a citação e vincendos até integral e efectivo pagamento. Condenou ainda a R. a pagar à A. a indemnização de € 10,00 por cada dia de privação do uso do veiculo, desde a data do acidente até à aquisição de nova viatura pela A., relegando-se para execução de sentença a contabilização do numero de dias de privação e do valor total de indemnização.

Inconformada com tal decisão dela apelou a R., tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso visa submeter à apreciação do Tribunal Superior, tanto a matéria de facto, com a matéria de direito considerada pela Douta Sentença.
2. A douta sentença recorrida padece de um lapso de escrita na identificação do veículo que a Recorrida alega ser da sua propriedade.
3. A MMª Juiz do Tribunal “a quo” apreciou de forma incorreta a prova produzida, pelo que o facto provado n.º 2 deveria ter sido considerado como não provado e, como tal deve a exceção de ilegitimidade invocada pela Recorrente ser considerada procedente e, consequentemente, ser a Recorrente absolvida da instância.
4. A redação do facto provado n.º 21 deveria ser diferente, por forma a não incluir a expressão “o que afeta o bom serviço que gosta de prestar”.
5. Deveria ser adicionado um facto novo ao elenco dos factos provados com a seguinte redação “Ao salvado do veículo (…) foi atribuído o valor de € 1.888,00”.
6. Se atendermos aos elementos existentes no processo [Participação do Acidente, Declaração Amigável de Acidente de Trabalho, peritagem ao veículo, avaliação do valor venal e do salvado e todas as comunicações trocadas entre a Recorrida e a Recorrente] e requerimento de resposta à exceção de ilegitimidade apresentado pela Recorrida verificamos que existe um lapso na matrícula do veículo alegadamente da propriedade da Recorrida, sendo que a matrícula correta deste veículo é (…).
7. É patente que a referência feita na sentença ao veículo (…) resulta de um claro erro de escrita, o qual nos termos do disposto nos artigos 249.º do Código Civil e 614.º do Código do Processo Civil pode e deve ser retificado e, como tal, na douta sentença recorrida, onde se lê (…) deve passar a ler-se (…).
8. Da prova produzida nos presentes autos não é possível considerar como provado que o veículo (…), à data do acidente, era da propriedade da Recorrente.
9. Resulta da certidão do registo automóvel que a propriedade do veículo PT apenas foi registada em nome da Recorrida no dia 12/06/2017, ou seja, cerca de 2 anos após a ocorrência do sinistro. Acresce que, no caso em apreço, nem sequer se pode afirmar que o facto do veículo se encontrar na posse da Recorrida faz presumir a sua propriedade, uma vez que o veículo foi-lhe entregue à consignação.
10. Dos depoimentos das testemunhas (…) e (…) [minutos 01:10:12, 01:12:18 e 01:11:10], os quais ficaram gravados em ata no dia 14/11/2019 do minuto 14:32:33 ao minuto 15:20:48 não é possível concluir que o veículo (…) à data do sinistro era da propriedade da Recorrida
11. Não resultou demonstrado nos presentes autos que “À data do acidente, a propriedade do veículo automóvel (…) encontrava-se registada a favor da autora.”, devendo por isso o facto provado n.º 2 ser retirado do elenco dos factos provados.
12. Da prova produzida não resultou que a paralisação do veículo (…) tenha afetado o bom serviço que a Recorrida gosta de prestar aos seus clientes.
13. No caso em apreço, a Recorrida tem como atividade o comércio de veículos automóveis, pelo que, naturalmente tem na sua posse diversos veículos, os quais podem ser utilizados como viatura de cortesia e de demonstração, pelo que cabia à Recorrida demonstrar que a falta do veículo (…) afetou o serviço que costumava prestar aos seus clientes e que tal consubstanciou um prejuízo.
14. Do depoimento da testemunha (…), ao minuto 01:19:02, resulta que a Recorrida tinha outros veículos que podia disponibilizar.
15. Não basta a alegação genérica da Recorrida nos seus articulados e um depoimento genérico de um seu vendedor para se considerar que o serviço de cedência de veículos aos seus clientes ficou afetado devida à paralisação de um dos veículos.
16. Da prova produzida não resultou demonstrado que a paralisação do veículo PT afetou o bom serviço que esta gosta de prestar, pelo que a redação do facto provado deve ser alterada, passando o mesmo a ter a seguinte redação: “Desde o acidente que a autora está privada de um dos veículos de que dispunha para emprestar a clientes.”
17. A Recorrente alegou no artigo 47.º da sua Contestação que o salvado do veículo (…) foi avaliado em € 1.888,00, juntando para prova de tal facto o documento n.º 5.
18. Em momento algum a Recorrida coloca em causa a avaliação do veículo (…) efetuada pela Recorrente, aceitando de forma expressa o valor venal que foi atribuído ao veículo (…) pela Recorrente, pelo que tendo a Recorrida aceite a avaliação efetuada pela Recorrente ao veículo (…), resultou demonstrado nos presentes autos, através do documento n.º 5 junto com a contestação que ao salvado do veículo (…) foi atribuído o valor de € 1.888,00.
19. Nesta medida deve ser adicionado ao elenco dos factos provados um facto novo sob o n.º 32 com a seguinte redação “Ao salvado do veículo (…) foi atribuído o valor de € 1.888,00”.
20. Tendo em consideração a alteração à resposta à matéria de facto defendida pela Recorrente no capítulo anterior, a exceção de ilegitimidade ativa invocada pela Recorrente na sua contestação deve ser considerada procedente por provada e, consequentemente deve esta ser absolvida da instância.
21. Ad Cautelam, sempre se dirá, que no caso em apreço não se encontram preenchidos todos os pressupostos para que se verifique a responsabilidade civil extracontratual da Recorrente, nomeadamente não se encontra demonstrado que a Recorrida tenha sofrido um dano em consequência do presente sinistro.
22. Não tendo resultado demonstrado que o veículo (…) era, à data do sinistro, propriedade da Recorrida, não se pode afirmar que o seu património [valor do veículo] tenha sido afetado, sofrendo com isso a Recorrida um prejuízo.
23. Entende a Recorrente que dos factos que considera provados não resulta a existência de qualquer prejuízo para a Recorrida decorrente da paralisação do veículo (…), pelo que nenhuma indemnização pode ser atribuída à Recorrida a este título.
24. Tendo resultado como provado que o valor venal do veículo é de € 11.700,00 [facto provado nº 19] e que o valor do salvado é € 1.888,00 [facto a aditar ao elenco dos factos provados sob o nº 32], a indemnização a atribuir pela perda total do veículo PT é de € 9.812,00 [€ 11.700,00 - € 1.888,00].
25. Caso a Recorrente venha a ser responsável pelos danos decorrentes do presente sinistro, o que apenas se aceita por mera hipótese de raciocínio, a indemnização a liquidar à Recorrida ascenderá ao montante de € 9.812,00.
26. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 342.º e 483.º do Código Civil.
27. Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. Mui doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a Douta Sentença recorrida e, consequentemente absolver-se a Recorrente do pedido, fazendo-se assim a costumada Justiça.
Pela A. não foram apresentadas contra-alegações de recurso.
Atenta a não complexidade das questões a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável à recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela R., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se existe erro de escrita quanto à identificação correcta da matrícula de um dos veículos intervenientes no acidente dos autos (tendo em conta os documentos juntos ao processo), pelo que, onde se lê (…), deve passar a ler-se (…) – cfr. art. 614º do C.P.C.
2º) Saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como provada e não provada.
3º) Saber se a A., na data em que ocorreu o acidente dos autos (15/5/2015), não era proprietária do veículo com a matrícula (…) e, por isso, é parte ilegítima nesta acção, devendo a R., em consequência, ser absolvida da instância.
4º) Caso assim não se entenda, sempre inexiste factualidade para condenar a R. a indemnizar a A. pelos danos resultantes da privação do uso do seu veículo, bem como, atento o valor venal do veículo – € 11.700,00 – e o valor do salvado – € 1.888,00 – a indemnização a atribuir à A. pela perda total do veículo (…) deverá ser diminuída para o valor de € 9.812,00.

Antes de nos pronunciarmos sobre as questões supra referidas importa ter presente qual a factualidade que foi dada como provada no tribunal “a quo” e que, de imediato, passamos a transcrever:
1º Em 15/05/2015, pelas 12hlOm, ao Km 25 do IC33, concelho de Santiago do Cacém, ocorreu um acidente envolvendo os veículos de matrícula (…) e de matrícula (…) – (rectificada a redacção no presente aresto).
Eliminado (alterada a resposta de “provado” para “não provado” no presente aresto).
3º A responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do (…) encontrava-se transferida para a (…) – Companhia de Seguros, S.A., por contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…) – (rectificada a redacção no presente).
4º A responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do (…) encontrava-se transferida para a ré, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…).
5º No referido dia 15/05/2015, pelas 12h10m, o (…) circulava no IC 33, no sentido Grândola-Sines, e o (…) no mesmo IC 33, mas no sentido Sines-Grândola – (rectificada a redacção no presente aresto).
6º Ao km 25, o IC 33 compreende uma faixa de rodagem com a largura de 7,4m, com uma via de trânsito em cada sentido de circulação.
7º Sensivelmente ao referido km 25 do IC 33, o condutor do (…), que é uma autocaravana, efetuou uma manobra de ultrapassagem de um camião que seguia imediatamente à sua frente, invadindo, para o efeito, a via de trânsito em que circulava o (…) – (rectificada a redacção no presente aresto).
8º O condutor do (…) efetuou a manobra de ultrapassagem sem acautelar que a via de trânsito em sentido contrário de circulação se encontrava livre e desimpedida e que, por conseguinte, poderia efetuar a ultrapassagem sem risco de colisão com outros veículos.
9º Na sequência da descrita manobra, o (…) foi embater com a sua lateral esquerda na parte da frente do (…), fazendo com que o mesmo entrasse em despiste – (rectificada a redacção no presente aresto).
10º No momento do acidente, o tempo estava bom e havia boa luminosidade.
11º O tráfego no IC 33 era intenso nos dois sentidos de circulação, o que exigia acrescidas cautelas nas ultrapassagens.
12º A autora participou o acidente, remetendo, no próprio dia do acidente, à sua companhia de seguros, a declaração amigável de acidente.
13º Na sequência do embate, o (…) teve danos cuja reparação foi estimada pela ré, por carta que remeteu à autora em 08/06/2015, em € 15.533,58 e considerado em situação de perda total – (rectificada a redacção no presente aresto).
14º A Ré atribuiu ao veículo (…) o valor venal de € 11.700,00 (onze mil e setecentos euros) – (rectificada a redacção no presente aresto).
15º Por carta datada de 02/07/2015 e recebida pela autora em 10/07/2015, a ré declinou a responsabilidade do veículo seu segurado pela produção do acidente.
16º Por correio eletrónico de 22/07/2015, a ré reiterou não aceitar a responsabilidade do veículo seu segurado no acidente.
17º Não reparou o veículo da autora nem lhe pagou o respetivo valor venal.
18º Desde a data do acidente que o (…) se encontra imobilizado nas instalações da autora, num total de 828 dias – (rectificada a redacção no presente aresto).
19º A reparação é mais onerosa que o valor venal do veículo, que é de € 11.700,00.
20º O (…) era utilizado pela autora na sua atividade comercial, sendo uma viatura de demonstração e de cortesia comercial, sendo emprestada aos clientes para utilização durante a reparação dos seus veículos – (rectificada a redacção no presente aresto).
21º Desde o acidente que a autora está privada de um dos veículos de que dispunha para emprestar a clientes, o que afeta o bom serviço que gosta de prestar.
22º Foram intervenientes no acidente o veículo de matrícula (…), conduzido por (…), e o veículo (…), conduzido por (…).
23º O acidente ocorreu no IC3, ao Km 25, no Concelho de Santiago do Cacém, Distrito de Setúbal.
24º No local do acidente o IC3 comporta dois sentidos de trânsito,
25º Com uma via de circulação para cada sentido.
26º Nas circunstâncias supra descritas, o veículo (…) circulava no IC 3, no sentido Norte/Sul.
27º Pela via de circulação da direita, atento o seu sentido de marcha.
28º O veículo (…) circulava igualmente no IC 3, no sentido Sul/Norte,
29° Pela via de circulação da direita, atento o seu sentido de marcha.
30º No local a via de circulação tem uma largura de 7,40 metros.
31º Pelo que, cada via de circulação tem uma largura de 3,70 metros.
32º Ao salvado do veículo (…) foi atribuído o valor de € 1.888,00 – (aditado tal facto novo no presente aresto).

Apreciando, de imediato, a primeira questão suscitada pela R., ora apelante – saber se existe erro de escrita quanto à identificação correcta da matrícula de um dos veículos intervenientes no acidente dos autos (tendo em conta os documentos juntos ao processo), pelo que, onde se lê …, deve passar a ler-se … (cfr. artigo 614.º do C.P.C.) – haverá que dizer a tal respeito que, efectivamente, da análise do teor da participação de acidente elaborada pela GNR (cfr. doc. n.º 1 junto com a petição inicial), do teor da certidão da Conservatória do Registo Automóvel relativa à propriedade da referida viatura (cfr. doc. n.º 2 junto com a petição inicial) e ainda do teor da peritagem realizada à dita viatura (cfr. docs. nºs 2 a 5 da contestação), constatamos que a viatura actualmente propriedade da A., e que esteve envolvida no acidente dos autos, não tem a matrícula (…) sendo que a sua matrícula correcta é (…), pelo que, desde já, ao abrigo do estipulado no artigo 614.º, n.º 2, do C.P.C. (aplicável ex vi do artigo 666.º, n.º 1, do C.P.C.), determina-se a rectificação da sentença recorrida e, consequentemente, onde na mesma consta (…), deve passar a constar (…).

Analisando agora a segunda questão levantada pela R., ora apelante – saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como provada e não provada – importa referir a tal propósito que sustenta aquela a sua pretensão tendo por base, nomeadamente, os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas (…) e (…), ouvidos em audiência de julgamento, bem como em diversos documentos juntos pelas partes aos presentes autos.
Ora, a este respeito, o n.º 1 do artigo 662.º do C.P.C. estipula o seguinte:
- “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Por sua vez, o artigo 640.º do C.P.C. especifica ou concretiza qual o ónus que incumbe ao recorrente quando pretender impugnar a matéria de facto, sendo que a alínea b) do n.º 1 do referido preceito legal é bem clara nesta matéria ao mencionar que o recorrente deve especificar quais os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, não se contentando o legislador nesta matéria com uma mera faculdade (como por exemplo “podiam dar lugar” em vez de “impunham”), mas antes consagrando um imperativo.
Ora, no caso dos presentes autos, houve gravação dos depoimentos testemunhais prestados em julgamento e, por isso, a R. podia impugnar, com base neles, a decisão da matéria de facto, seguindo, naturalmente, as regras impostas pelo citado artigo 640.º do C.P.C.
Com efeito, verifica-se que, como vimos supra, a recorrente indicou, nas suas alegações e conclusões de recurso, quais os concretos meios probatórios que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, identificando as testemunhas e concretizando ainda com exactidão as respectivas passagens da gravação dos depoimentos das ditas testemunhas, sendo que, por isso, deu cumprimento, nesta parte, ao estatuído no n.º 1, alíneas a), b) e c) e n.º 2, alínea a), do citado artigo 640.º do C.P.C.
In casu” – e após audição de todas as gravações da prova realizada nas sessões de julgamento – verifica-se que a R., desde logo, pretende que seja alterada a resposta dada ao ponto 2 dos factos provados, devendo o mesmo ter uma resposta negativa (“não provado”), uma vez que, na data em que ocorreu o acidente dos autos, a A. não tinha a propriedade do veículo (…), o qual lhe tinha sido entregue à consignação para venda e ainda não havia sido pago à sua verdadeira proprietária.
Ora, da audição da gravação dos depoimentos das testemunhas supra identificadas apenas resultou apurado que a marca importadora (tratava-se de um Peugeot) disponibiliza veículos à R. (como concessionária) para que esta possa utilizá-los – tendo ela o prazo de 6 meses para proceder ao pagamento do custo dos mesmos à marca – sendo que foi esse o procedimento normal e adequado que terá sido seguido com a viatura aqui em causa, com a matrícula (…).
Todavia, não foi apurado qual a data concreta em que tal viatura veio a ser efectivamente paga pela A. à marca importadora.
Com efeito, pela A. apenas foi junto aos autos documento (factura), que apresentou com o seu requerimento de 24/5/2018, onde consta que o veículo em causa lhe terá sido entregue à consignação, em 24/4/2015, pela (…) – Comércio e Aluguer de Veículos, S.A., tendo o acidente dos autos ocorrido em 15/5/2015 (ou seja, apenas 3 semanas após a viatura se encontrar na sua posse).
E, a este respeito, haverá que ter presente que o contrato de consignação – como aquele que foi celebrado entre a A. e a marca importadora (Peugeot) da viatura sinistrada – caracteriza-se essencialmente pela entrega de coisas móveis pelo consignante ao consignatário para que as venda, ficando o último com a obrigação de lhas pagar ou, caso não as venda e não opte por ficar com elas, de lhas restituir. Neste tipo de contrato a transmissão da propriedade do consignante para o consignatário não ocorre logo com a celebração do contrato, o mesmo sucedendo com a obrigação de pagamento do preço, que não é um efeito essencial ou necessário do contrato, mas tão só um efeito alternativo à obrigação da devolução das coisas entregues. Acresce que, na falta de estipulação nesse sentido, a transferência da propriedade da coisa do consignador para o consignatário não ocorre. Uma tal vontade de transmissão exigirá das partes uma manifestação clara e expressa nesse sentido, o que, no caso em apreço, de todo, não ocorreu, sendo certo que o ónus de tal prova só à A. incumbia fazê-la (art.342º nº1 do Cód. Civil) – cfr., Acórdãos da R.C. de 20/4/2010 e de 16/3/2016, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Assim sendo, é entendimento pacífico dos nossos Tribunais Superiores que a prova do direito de propriedade de um veículo automóvel só pode ser feita através de documento emitido pela competente Conservatória de Registo Automóvel – cfr. Ac. do STJ de 10/7/2012, disponível em www.dgsi.pt.
Ora, “in casu”, resulta do teor da certidão da Conservatória do Registo Automóvel junta aos autos pela A. (cfr. doc. nº 2 da petição inicial) que a propriedade do veículo (…) apenas foi registada em nome da A. em 12/6/2017, ou seja, decorridos mais de 2 anos após a ocorrência do sinistro em causa.
Daí que, tendo sido registada a propriedade do veículo (…), a favor da A., no referido dia 12/6/2017, tal significa, inexoravelmente, que, à data do acidente dos autos – 15/5/2015 – o veículo em causa não era, de todo, propriedade daquela.
Deste modo, não tendo ficado demonstrado nos presentes autos que a A. fosse proprietária do veículo automóvel (…), na data em que ocorreu o sinistro aqui em debate, forçoso é concluir que o ponto 2 dos factos provados terá de obter uma resposta negativa – ou seja, “não provado” – o que aqui se determina para os devidos e legais efeitos.

Por outro lado, pretende a R. a alteração da redacção do ponto 21 dos factos provados, sustentando a eliminação da sua parte final, na qual é afirmado o seguinte: (…) o que afeta o bom serviço que gosta de prestar.
A este propósito, consta da audição da respectiva gravação que as testemunhas (…) e (…) referiram que a A., além do veículo sinistrado, tinha outras viaturas de cortesia para “test drive” a potenciais compradores e para emprestar a clientes.
Todavia, o facto indubitável da A. ter ficado privado do uso da viatura (…), em virtude do acidente dos autos, demonstra à evidência que tal falta afectou, necessariamente, o bom serviço que gosta de prestar, pois passou a ter menos uma viatura para “test drive” e/ou emprestar a clientes.
Assim sendo, sem mais delongas, mantem-se inalterada redacção do ponto 21 dos factos provados.

Por último, sustenta a R. o aditamento de um facto novo ao elenco dos factos provados, que passará a ser o ponto 32, com a seguinte redacção:
32 - Ao salvado do veículo (…) foi atribuído o valor de € 1.888,00.
Baseia a R. a sua pretensão no facto de ter alegado na sua contestação (cfr. artigo 47.º) que o salvado do veículo (…) foi avaliado em € 1.888,00, sendo certo que, para prova de tal facto, juntou aos autos em tal articulado o documento n.º 5.
Ora, tal documento, em momento algum, veio a ser impugnado pela A., pois esta não colocou em causa, de todo, a avaliação do veículo supra identificado efetuada pela R., quer se trate do valor venal atribuído a tal veículo (€ 11.700,00), quer se trate do valor atribuído ao respectivo salvado (€ 1.888,00).
Assim sendo, forçoso é concluir que deve ser aditada aos factos provados a matéria fáctica acima referida, que passará a ser o ponto 32 dos factos provados, o qual terá a redacção que se mostra transcrita supra.

Apreciando, de seguida, a terceira questão suscitada pela R., ora apelante – saber se a A., na data em que ocorreu o acidente dos autos (15/5/2015), não era proprietária do veículo com a matrícula (…) e, por isso, é parte ilegítima nesta acção, devendo a R., em consequência, ser absolvida da instância – haverá que dizer a tal respeito que, da factualidade apurada nos autos, resultou demonstrado, de forma inequívoca, que a A., à data do sinistro (ocorrido na data supra referida), não era a proprietária do veículo (…), sendo certo que este sofreu diversos danos que se traduziram em perda total – sendo que o valor venal do veículo foi fixado em € 11.700,00 – perda essa que se repercute, apenas, na esfera do proprietário de tal veículo.
Ora, não sendo a viatura em causa propriedade da A. na data do acidente, mas sim de um terceiro (v.g. a marca importadora, tratando-se de um Peugeot), forçoso é concluir que a A., naquela data, não sofreu quaisquer danos que sejam indemnizáveis e mereçam a tutela do Direito – cfr. artigo 483.º do Código Civil.
Assim sendo, resulta claro que a A. não era detentora de legitimidade activa que lhe permitisse intentar a presente acção contra a R., ora apelante.
Deste modo, julga-se verificada a ilegitimidade da A., a qual, como excepção dilatória que é, acarreta a improcedência da acção e a absolvição da instância da R., o que aqui se determina para os devidos e legais efeitos - cfr. artigos 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea e), ambos do C.P.C.
Todavia, mesmo que assim não se entendesse, sempre se dirá que, no caso em apreço, não se mostram preenchidos todos os pressupostos para que se verifique a responsabilidade civil extracontratual da R., enquanto seguradora do veículo (…).
Com efeito, estipula o citado artigo 483.º do Código Civil que, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”, pelo que são pressupostos da responsabilidade civil extracontratual: a) o facto voluntário do agente (positivo ou omissivo); b) a ilicitude; c) a culpa; d) o dano; e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
In casu”, o veículo (…) foi considerado perda total em virtude do valor da reparação deste ser superior ao seu valor venal e, por via disso, não foi despendida qualquer quantia com a reparação de tal veículo, traduzindo-se o dano na perda do valor venal do veículo, dano esse que apenas se repercute na esfera do proprietário do veículo.
No caso dos autos, como vimos supra, não resultou demonstrado que a A. era a proprietária do veículo (…), à data do acidente, nem tão pouco que esta adquiriu o veículo após a data da ocorrência do sinistro e que tenha pago pelo mesmo o respetivo preço.
Ora, não resultando apurado que o veículo (…) era, à data do acidente, propriedade da A., não é possível afirmar, de todo, que o seu património – valor venal do veículo (€ 11.700,00) – tenha sido afectado e que, com isso, sofreu a A. um prejuízo.
E nem se diga que a A. veio a adquirir o veículo em causa posteriormente – em 12/6/2017 – e que por isso o seu património foi afectado. É que, para que tal acontecesse, seria necessário determinar se a A. despendeu algum montante para aquisição do veículo (…) e, em caso afirmativo, quando o fez e qual o concreto montante que terá despendido, o que, não será demais repetir, não ficou demonstrado nos presentes autos, sendo certo que era à A. que, indubitavelmente, cabia o ónus de tal prova – cfr. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.
Assim, desconhecendo-se se a A. despendeu algum montante para adquirir o veículo (…) é impossível determinar se esta sofreu algum prejuízo decorrente dos danos que o mesmo veio a sofrer no presente sinistro.
Nestes termos, pelas razões e fundamentos supra elencados, resulta claro que não ficou demonstrado nos presentes autos que a A. tenha sofrido um qualquer dano em consequência do presente sinistro, não se mostrando verificados, por isso, todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual a que alude o citado artigo 483.º, pelo que não poderá a R. ser condenada a liquidar à A. qualquer montante, a título de indemnização.
Deste modo, constata-se que a sentença recorrida não se poderá manter, de todo, e, em consequência, revoga-se a mesma, julgando-se a presente acção improcedente, por não provada, e absolvendo-se a R. da instância, atenta a ilegitimidade da A.
Ora, uma vez que se julgou improcedente a acção e a R. foi absolvida da instância julgo prejudicada a apreciação da quarta questão recursiva levantada pela R., aqui apelante (saber se inexiste factualidade para condenar a R. a indemnizar a A. pelos danos resultantes da privação do uso do seu veículo, bem como, atento o valor venal do veículo – € 11.700,00 – e o valor do salvado – € 1.888,00 – a indemnização a atribuir à A. pela perda total do veículo (…) deverá ser diminuída para o valor de € 9.812,00).
***

Por fim, atento o estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)

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Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto pela R. e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida nos exactos e precisos termos acima explanados.
Custas pela Autora.
Évora, 09 de Setembro de 2021
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás

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[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, n.ºs 32/33, pág. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, pág. 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, pág. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, pág. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3.º, p. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3.º, 1972, pp. 286 e 299).