Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7679/19.8T8STB.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
VONTADE DO TESTADOR
USURA
Data do Acordão: 05/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não tendo o Apelante logrado demonstrar factualmente o preenchimento dos requisitos previstos nas disposições legais constantes dos artigos 2199.º, 2201.º e 282.º, n.º 1, do Código Civil, improcede necessariamente a pretendida declaração de nulidade de testamento e de anulabilidade de deixa testamentária a favor da Apelada invocadas pelo Apelante no tocante ao testamento outorgado pelo seu pai a 30/11/2018.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 7679/19.8T8STB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal
Juízo Local Cível de Setúbal - Juiz 3
Apelante: (…)
Apelada: (…)
***
Sumário do Acórdão
(da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)
***
Acordam os Juízes da 1 ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – RELATÓRIO
(…), casado sob o regime de separação de bens com (…), empresário, residente na Praceta (…), n.º 1, r/c, em (…), Porto, intentou a presente ação declarativa de impugnação de testamento contra (…), casada e residente na Rua (…), n.º 16, 9.º-F, em Setúbal, pedindo:
a) A declaração de nulidade da disposição testamentária referente ao usufruto relativo ao imóvel correspondente ao 9.º-A do prédio sito na Av. (…), n.º 24 e Praceta (…), n.º 10, em Setúbal, bem como:
b) A anulação do testamento outorgado pelo seu pai (…) em 30 de Novembro de 2018 a favor da Ré.
Para tanto, alegou, em síntese, ser filho único de (…), falecida em 25.03.2017 e do testador (…), falecido em 05.09.2019, acrescentando que por óbito dos seus pais, que foram casados no regime de comunhão geral de bens, não haviam, ainda, sido partilhados os bens deixados por herança da sua mãe, primeira a falecer, pelo que, quando o seu pai, testador, instituiu a Ré como herdeira da sua quota disponível e lhe deixou de legado o usufruto do imóvel em Setúbal, não podia dispor em exclusivo do bem que não lhe pertencia por inteiro, ferindo assim o testamento de nulidade, por ser nulo o legado.
Mais alegou ainda o Autor que o seu pai, testador, apenas dispôs a favor da Ré porque se encontrava gravemente doente e debilitado pelo cancro que lhe sobreveio em 2016, não estando na posse das suas capacidades e no livre exercício da sua vontade, ao deixar tal disposição testamentária a pessoa estranha à família, só podendo justificar-se tal por uma incapacidade acidental e/ou por estar o seu pai, testador, a ser vítima de coação moral por parte da Ré, que o isolou da família, para assim dispor do património daquele em vida e depois dela, sendo a verdadeira intenção do pai do Autora deixar tudo ao seu único e amado filho.
Tendo sido regularmente citada a Ré apresentou contestação onde se defendeu por impugnação, alegando não ser pessoa estranha à família, tendo passado de cuidadora a namorada do pai do Autor em Junho de 2017, fazendo com o mesmo vida de casal desde então e até à sua morte, acrescentando que este sempre manteve a plenitude das suas capacidades mentais, distanciando-se do Autor por sua livre vontade, sendo a Ré mera espectadora desse afastamento entre pai e filho.
Convidado para tal, o Autor concretizou os factos em que sustentou a causa de pedir da presente acção, apresentando petição inicial aperfeiçoada, nela esclarecendo os factos em que fundamentou a existência de uma incapacidade acidental do testador fruto da sua doença e depressão, de coação moral e de usura, que levaram o seu pai a testar a favor da Ré.
Convocaram-se as Partes para a realização de uma audiência prévia, onde foi definido o objeto do litígio e enunciaram-se os temas carecidos de prova.
Designou-se data para realização da audiência final, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“DECISÃO
Por todo o exposto, julgo a ação totalmente improcedente e, em consequência:
Declaro válido o testamento (e a deixa testamentária) outorgado por (…) em 30 de novembro de 2018 a favor da Ré.
Absolvo a Ré do demais peticionado.
Custas a cargo do Autor, pelo decaimento.
Valor da acção: € 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo).
Registe e Notifique.”
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Inconformado com a sentença o Autor apresentou requerimento de recurso dirigido a este Tribunal da Relação alinhando as seguintes conclusões:
“Conclusões:
(…)”
*
A Apelada respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
“Conclusões:”
*
O recurso foi recebido na 1ª Instância como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
Nesta instância foi proferido despacho pelo relator convidando o Apelante ao aperfeiçoamento das suas conclusões recursivas, tendo aquele apresentado novas conclusões, com o seguinte teor:
“1. O presente recurso vem interposto da sentença que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, declarou válido o testamento (e a deixa testamentária) outorgado por (…), pai do Apelante, a 30 de novembro de 2018 a favor da Apelada, deixando-lhe a quota disponível, a ser preenchida pelo usufruto do imóvel que correspondia à casa de morada de família dos pais do Autor/Apelante.
2. O que está em causa nestes autos é averiguarmos a real vontade do pai do Apelante e aferir se a mesma se encontra ou não viciada pela Apelada, e, sem prescindir, se a deixa testamentária é anulável por usura, considerando que:
- o de cujus era viúvo desde 25/03/2017, com 80 anos de idade, doente oncológico, tendo falecido decorridos pouco mais de 2 anos após a viuvez, a 05/09/2019, tendo o Apelante como único filho;
- a Apelada foi contratada para tratar da esposa do de cujus, e, após a morte desta, continuou a realizar as tarefas domésticas em casa do testador, assumindo também o papel de sua cuidadora, atenta a idade e doença do de cujus, como a própria Ré/Apelada reconhece e confessa, tendo, alegadamente, começado a morar, na casa do de cujus em fins de maio de 2017, sendo ele, testador, quem pagava todas as suas despesas, sustentando-a.
3. Entende o Apelante, com o devido respeito, que a douta sentença do Tribunal de Primeira Instância padece de nulidade, e contém factos incorretamente julgados, assim como faz uma aplicação errada do direito, motivo pelo qual o presente recurso abrangerá a impugnação da matéria de facto e de direito;
4. O Apelante considera que a sentença é nula porquanto, na audiência prévia foi fixado entre outros, o seguinte tema de prova n.º 6: “Passou a gerir a conta bancária do pai do Autor com gastos avultados”, e o Tribunal a quo não se pronuncia e nada refere quanto a este tema de prova, essencial, no entendimento do Apelante, para o objeto dos autos;
5. A douta sentença em crise nenhum relevo deu aos extratos da conta bancária do pai do Apelante, juntos aos autos, onde se encontram retratados movimentos de valor considerável ou com frequência diária incompreensível, pois o Recorrente não concebe como é que o seu pai, com 80 anos de idade, viúvo, doente oncológico, a fazer tratamentos num hospital público, realizou aqueles movimentos, designadamente através de caixas multibanco, até mesmo quando estava internado no Hospital;
6. Dos autos mostrou-se provado um facto totalmente desconsiderado pelo Tribunal a quo, e essencial nesta matéria, e que resultou da clara confissão da Apelada quanto ao uso e gestão que ela própria fazia, da conta bancária do pai do Apelante quando diz (minutos 11:45, 38:45, 44:24 do seu depoimento, cuja transcrição foi junta aos autos com as alegações) que tinha acesso à mesma, assim como ao cartão bancário, pelo que se impunha ao Tribunal de Primeira Instância apreciar tal questão, o que não fez, tendo indeferido o meio de prova requerido – notificação da Caixa Geral de Depósitos – o que fundamentou o respectivo recurso interlocutório/autónomo de tal decisão!
7. Motivo pelo qual se considera que a sentença é nula nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, já que a sentença se deveria ter pronunciado quanto a esta questão e da mesma não consta qualquer referência relevante;
Sem prescindir,
8. Entende o Recorrente, com o devido respeito, que os factos dados como provados sob os números 5, 16 a 19 dos factos provados, bem como as alíneas A), B) e D) dos factos não provados, não foram corretamente julgados, incorrendo a decisão em recurso em manifesto erro de apreciação da matéria de facto e de julgamento da qualificação jurídica da factualidade submetida à apreciação jurisdicional, como a seguir se demonstra;
9. No entendimento do Apelante, a sentença em crise incorre em clara violação do disposto no artigo 352.º do Código Civil, na valoração que faz do depoimento de parte da Apelada, o qual visa, segundo as regras processuais aplicáveis, obter a confissão de factos que sejam desfavoráveis à parte, o que ocorreu no caso sub judice, não tendo, no entanto, sido dados por provados factos que o deveriam ter sido, e essenciais à causa, o que é patente na motivação da sentença recorrida, nomeadamente as considerações vertidas a fls. 12 e 13;
10. Desde logo, mal andou o Tribunal a quo quando não deu como provado:
- o facto confessado pela Apelada, de que usava a conta bancária do de cujus assim como o seu cartão multibanco e de que passou a viver às custas do de cujus (minutos 11:45, 38:45, 44:24 do seu depoimento);
- que a Apelada não avisou o Apelante do estado de saúde do seu pai, nomeadamente do seu internamento que culminou na morte, incumprindo a obrigação assumida de informar o aqui Apelante, do que porventura viesse a acontecer com o seu pai (minutos 21:01 do seu depoimento);
- o facto de a Apelada ter confessado inequivocamente que vendeu o veículo da marca BMW, série 3, da propriedade do testador, e também do Apelante (por óbito da sua mãe) (minutos 34:24 e 38:02 do seu depoimento), alegadamente, na véspera do óbito, negando qualquer conhecimento ao Apelante, não obstante as suas interpelações (cfr. doc. n.º 2 junto com as alegações) e isto depois de várias versões dadas este episódio, como melhor se explicita na motivação;
11. Perante a confissão de tais factos, relevantes à apreciação do objeto da acção, designadamente quanto à invocada usura, impunha-se ao Tribunal a quo que os mesmos fossem dados como provados para daí retirar as consequências jurídicas pertinentes ao caso;
12. Mal andou o Tribunal a quo, incorrendo em manifesto erro de apreciação da matéria de facto, quando dá relevância ao referido pela Apelada de que acompanhava o de cujus “para todo o lado” e julga relevantes as fotografias juntas aos autos pela Apelada, por esta tiradas, estranhamente, ao pai do Apelante, aquando dos seus internamentos hospitalares e tratamentos oncológicos, para, na sentença concluir “… estando com ele em todos os momentos de alegria e tristeza no hospital e restaurantes” – cfr. fls. 13 da sentença – e, ao invés, por contraposição, não dá relevo algum às fotos do de cujus com o neto, na sua profissão de fé, no Porto (fls. 80 e 81) – cfr. 1º §, fls. 19 da sentença – quando elas também provam que o de cujus, já viúvo, foi a tal cerimónia (sem a apelada, como provado), e demonstrou ternura e carinho pelo seu neto, ou seja, que há um forte enquadramento familiar, totalmente ignorado pelo Tribunal a quo.
13. O facto n.º 5 – “5. (…) foi titular da conta n.º (…) junto da Caixa Geral de Depósitos até à sua morte”, dado por provado, foi incorretamente julgado, já que, repete-se, resulta expressamente confessado pela Apelada, que aquela usava o cartão e a conta do pai do Apelante, mas que não soube dizer para quem tinham sido efetuadas as diversas transferências, o que motivou que o Apelante requeresse a notificação da Caixa Geral de Depósitos para informar os beneficiários dessas transferências, atenta a usura invocada, o que não mereceu acolhimento pelo Tribunal a quo, razão pela qual, o Apelante, como já dito, recorreu desse indeferimento, ainda antes da prolação da sentença, e que aguarda a respetiva tramitação;
14. Ainda quanto a este facto, mal andou a sentença recorrida, julgando incorretamente os factos, ao desvalorizar as movimentações da conta bancária, apenas se referindo na sentença, a uma única transferência de € 1.100,00 de 24/05/2017 realizada a favor de um tal (…), para a considerar justificável pelo facto, diz-se na decisão em crise, de a Apelada ter explicado que o (…), beneficiário da transferência, era seu marido, e que havia uma relação cordial entre o de cujus, a Apelada e o seu marido, não tendo tal conclusão, qualquer suporte no depoimento da Apelada, já que esta, quando questionada sobre quem era o dito (…), referiu, aos minutos 39:28, que não sabia quem ele era, dizendo apenas que era seu “amigo recente”, acabando, por ser a testemunha da Apelada (…), a identificar o referido (…), aos minutos 27:07, como sendo o marido da Ré, e que este teria uma relação cordial com o de cujus (minutos 37:12 a 37:20);
15. O Tribunal a quo faz uma errada apreciação da matéria de facto, ao concluir no dispositivo da sentença, de que houve empréstimos entre o de cujus, pai do Apelante, e o marido da Apelada, dado que tal não tem qualquer suporte factual, nem resultou em momento algum da prova produzida, nem do depoimento de parte da Ré, nem do desta testemunha, (…), pois este disse aos minutos 38:30 a 38: 40 “… não tenho consciência sobre o dinheiro do (…) nem se ele emprestou ao marido da (…) e vice-versa”;
16. Como não julgou com perfeita apreciação dos factos, quando reputou como estando dentro dos parâmetros da normalidade, pois nenhuma menção é feita na sentença, uma mulher casada, viver com outro homem, e por isso adúltera, com a conivência e convivência do marido, o que, de acordo com as regras da experiência comum, não é concebível quando a Apelada alega que vivia maritalmente com o de cujus, tendo este facto relevância para a apreciação da invocada usura, e totalmente ignorado, facto relevante para a apreciação do facto n.º 16!
17. Em conclusão, o facto provado n.º 5 deverá ter a seguinte redação “5. (…) foi titular da conta n.º (…) junto da Caixa Geral de Depósitos até à sua morte, sendo que a mesma era gerida e utilizada por si e pela Apelada.”
18. Quanto ao facto provado n.º 16, “Apesar de idoso e fisicamente debilitado, (…) nunca deixou de pensar pela sua cabeça, tomar decisões de forma consciente, compreendendo o alcance dos seus atos e determinações”, não foi corretamente julgado, sendo certo que tal nada prova quanto ao facto de a vontade do testador, aquando da realização do testamento em causa, estar ou não viciada;
19. Entende o Apelante que ficou demonstrado nos autos que o seu pai, estava condicionado na sua vontade, desde logo porque se era uma pessoa determinada, que nunca deixou de pensar pela sua cabeça, não se percebe, como é que nunca assumiu perante o filho e seus amigos, a alegada relação marital com a Apelada, pois tal nunca aconteceu, como decorre do depoimento das testemunhas do Apelante, designadamente de … (minutos 18:36 a 19:00) e … (minutos 07:09 a 08:00), entre outras, para além das declarações do próprio Autor, para quem a Ré era uma empregada (min.25.08), e ainda das testemunhas da Apelada, nomeadamente (…) e (…), que se dizem amigos do de cujus e desconheciam a relação, sendo a Apelada para eles, empregada, ou “senhora da limpeza”, confessando a própria Apelada de que nunca foi apresentada como companheira (min. 31.11), conforme melhor explicitado na motivação do recurso;
20. Outro facto incorretamente julgado, a propósito desta matéria, prende-se com a justificação dada pela Apelada, não provada, para a realização dos três testamentos juntos aos autos – de que o de cujus pretendia deixá-la protegida, a viver na casa, pois o filho não aceitava a sua alegada relação com o pai – a qual não deveria ter merecido acolhimento pelo Tribunal a quo, pois que, provado que ficou que o de cujus era conhecedor na área de direito, se a sua vontade fosse esclarecida e espontânea, logo desde o primeiro testamento, de 17/08/2017, cinco meses depois de enviuvar, note-se, que tinha declarado o que pretendia, mas ao invés, faz um segundo testamento, passado um ano, em Julho de 2018, e outorga o último, o testamento impugnado – em que determina o usufruto do imóvel que não é só seu –, volvidos quatro meses, precisamente no período em que o pai do Apelante se encontrava a fazer os tratamentos de quimioterapia e imunoterapia, tal como resulta dos factos provados nºs 6 a 8 e 13 a 15, e por cada vez mais estar dependente da Apelada;
21. Quanto a esta matéria, a própria testemunha arrolada pela Apelada, Dra. (…), Notária, refere que o que originou a outorga dos três testamentos foi um engano, como resulta do seu depoimento (minutos 04:08 a 04:10), por isso, das duas uma, ou efetivamente o pai do Apelante não se encontrava bem e por isso não constatou que havia lapso na sua vontade, ou então não pretendia dizer o que disse, até porque, segundo o depoimento da Sra. Notária aquele estaria acompanhado por advogado, factos estes ignorados na sentença recorrida e que deveriam ter sido considerados a favor do Apelante;
22. Ainda quanto a este ponto n.º 16 dos factos provados, foi erroneamente valorado o episódio da venda, pela Apelada, do carro BMW, bem que integrava a herança por óbito da mãe do Apelante, já que a Apelada confessa numa primeira versão, que o pai do Apelante lhe disse para vender o carro e ficar com dinheiro, quando, a ser verdade, aquele não podia deixar de conhecer que legalmente o carro não pertencia, e tal não coincide com alguém capaz e com liberdade da vontade e conhecedor da leis, sendo por isso inconcebível tal instrução se ele estivesse nas suas capacidades plenas.
23. Nesta matéria, também mal andou o Tribunal a quo, quando ignora totalmente o facto relacionado com a subvenção vitalícia dos Cofres do Estado (doc. 5 da PI retificada), quando resulta desse documento que a beneficiária era a Apelada, mas para que isso acontecesse, a assinatura do pai do Apelante teria que ser reconhecida notarialmente, facto que não se verifica, sendo que a data aposta nesse documento é a de 27 Julho de 2018, note-se, poucos meses antes do testamento!
24. Este facto n.º 16 é ainda dado como provado com base no depoimento da testemunha, Dr. (…), um dos médicos assistentes do testador, arrolado pela Apelada, e cujo depoimento, no modesto entendimento do Apelante, não pode ser aceite como prova, pois tal testemunha, como médico, está obrigada a segredo profissional, tendo o Apelante comprovado nos autos, de que não foi requerido junto da Ordem dos Médicos o levantamento do sigilo, conforme se afere do documento junto no dia 06/04/2021, com a referência n.º 5672660, o que não foi devidamente valorado pelo Tribunal de Primeira Instância, que entendeu, mal a nosso ver, não haver qualquer violação de segredo médico;
25. Diz-nos o Ac. da Relação de Guimarães datado de 4/10/2017 que “Na verdade, o dever de sigilo não é invocável perante os herdeiros legais da falecida, pois que são estes quem, nos termos expostos, teriam legitimidade para dar o consentimento para, neste âmbito, ser levantado o dever de sigilo médico. …Tal legitimidade de desoneração, após a morte do paciente, transmite-se aos seus Herdeiros legais, o que significa que, uma vez que estes assim declarem, a testemunha Médica não poderia mais invocar o sigilo médico. …”cfr. artigo 135.º do CPP aplicável por força dos artigos 417.º, n.º 1 e 497.º, n.º 3, do CPC) – cfr. artigos 32.º e 35.º citados”;
26. Dos autos não consta que o de cujus tenha autorizado o médico em causa, a falar sobre alegados factos que aquele lhe possa ter dito, nem tão pouco resulta que o único herdeiro legal do falecido, o aqui Apelante, tenha autorizado esse clínico a depor sobre factos que não podia;
27. Deve, pois, o documento n.º 1 junto com a contestação e o depoimento prestado pela testemunha Dr. (…), ser considerada prova ilícita e por via disso não ser valorada;
28. Caso assim não se entenda, é de realçar o que esta testemunha diz, quando questionado se porventura considerava que a vontade do pai do Apelante estava moldada pela Apelada, aquele aos minutos 21:31 respondeu “as mulheres conseguem-nos levar à certa...”, ou seja, a própria testemunha não conclui que a vontade do de cujus não tivesse moldada;
29. Outro facto julgado incorretamente, a propósito deste facto provado n.º 16, prende-se com a ida da mãe do Apelante para o lar – tema de prova n.º 5 –, pois a Apelada, em sede de depoimento de parte, refere que foram os médicos da mãe do Apelante, que transmitiram ao seu pai que aquela tinha que ir para o lar, quando afinal resulta do depoimento da testemunha (…), aos minutos 05:21 a 05:30, que “o próprio (…) decidiu que ele não tinha mais condições”, o que o Apelante não entende, já que a vontade do seu pai sempre foi a de tratar da sua esposa em casa e a Apelada confessa que tinha sido contratada pelo de cujus para tratar da sua mulher (artigo 21.º da contestação) e disse várias vezes em audiência, que tinha ido para casa do de cujus, fazer limpezas e também cuidava da sua mulher (cfr. min. 0:01:36 e 0:55:37 do seu depoimento), apenas tendo surgido a decisão do de cujus de internar a esposa num lar, pouco tempo após a contratação da Apelada, e seguramente por influência desta!
30. O Tribunal a quo, quanto a esta matéria, fez tábua rasa do depoimento das testemunhas do Apelante, designadamente da … (minutos 18:36) e da … (minutos 07:54) e das próprias declarações do Apelante, como melhor explicitado na motivação do presente recurso.
31. Outro facto totalmente ignorado, e relevante quanto este facto n.º 16, prende-se com a referida convivência do de cujus com o marido da Apelada, pois pelas regras das experiência comum, só se pode conceber e aceitar que vivendo ele com uma mulher casada, só por indefeso e dependente da vontade desta, aceitaria o convívio do marido daquela, imposto pela Apelada, pois ficou provado, como resulta da motivação, que ele, de cujus, era um homem de bom porte moral, de família, com um bom enquadramento familiar e, se estivesse na plenitude da sua vontade, não aceitaria tal situação, como explicitado na motivação.
32. Conclui o Apelante que, conjugada toda a prova, conforme conclusões supra nºs 19 a 31, se impunha que o facto n.º 16 dos factos provados deveria dar-se como não provado e, em consequência, o facto da alínea B) dos factos não provados deveria dar-se como provado, passando a ter a seguinte redação “A Ré aproveitou-se da situação de fragilidade do testador para lhe manipular a vontade”;
33. Decorre do exposto ainda que deve ser aditado aos factos provados que “O Apelante desconhecia que o seu pai havia iniciado uma relação amorosa com a Apelada, já que esta nunca lhe foi por aquele comunicada”;
34. Consta ponto 17 dos factos provados que “(…) manifestou intenção de pôr o seu património imóvel em ordem após a morte da sua esposa (…)”;
35. Ora, tal facto foi erroneamente julgado e valorado pelo Tribunal a quo, pois não resultou provado nesses termos, nem das audiências de julgamento nem de qualquer documento, sendo mais uma conclusão a que o Tribunal de Primeira Instância chegou sem suporte legal ou factual, pois o que resultou inequivocamente provado foi que o testador, após a morte da sua esposa manifestou vontade de doar todos os seus bens ao filho, e tal vontade foi transmitida a diversas pessoas, nomeadamente às testemunhas … (minutos 14:15 a 15:00), … (min. 13:07 a 13:37, 16.24 a 16.40), tal como vai reconhecido no dispositivo da sentença, a fls. 16, e à (…) que depôs na sessão de 11/01/2021, aos minutos 26: 35 a 26:43, depondo ainda sobre este facto a testemunha … (min. 3.35 em diante), conforme explicitado em detalhe na motivação do presente recurso;
36. Conclui-se forçosamente que a redação do ponto 17 dos factos provados deverá passar a ser “(…) manifestou intenção de doar os seus bens ao seu filho, após a morte da sua esposa (…)”;
37. No ponto 18 dos factos provados consta que “Depois de ficar viúvo (25.03.2017), … começou a passar mais tempo com a Ré, que o apoiava, cuidava da lida doméstica, com quem partilhava refeições dentro e fora de casa e o acompanhava às consultas médicas, permanecendo no hospital sempre que este era internado”;
38. Este ponto deverá constar como provado com uma redação diferente, pois quem passou a passar mais tempo com o testador foi a Apelada, enquanto sua cuidadora, já que tal resulta provado inequivocamente do depoimento da Apelada que confessa que passou a viver na casa do de cujus (minutos 02:37 a 02:50), quer do depoimento de testemunhas por ela arroladas, ouvidas na sessão de julgamento de 07/04/2021, (…) aos minutos 0:04:52 e (…) aos minutos 0:02:25;
39. Acresce que, considera o Apelante, que não resultou inequivocamente provado que a Apelada permanecesse no hospital sempre que o pai do Apelante esteve internado, como se diz na douta sentença, pois tal facto apenas foi mencionado pela própria Apelada em sede de depoimento de parte, quando refere que está tudo nas fotos, e pelo clínico Dr. (…), cujo depoimento se entende que não deverá ser valorado, por violação do segredo médico;
40. Assim, o facto provado n.º 18 deverá ter a seguinte redação “Depois de o de cujus (…) ficar viúvo (25.03.2017), a Ré, enquanto sua cuidadora começou a passar mais tempo consigo, a qual, no cumprimento dos seus deveres, o apoiava, cuidava da lida doméstica, partilhava refeições dentro e fora de casa e o acompanhava ao hospital às consultas médicas e quando era internado.”
41. Consta como provado no ponto 19 que “O contacto entre o Autor e o seu pai diminuiu de frequência, em comparação com a altura em que a mãe/esposa de ambos estava viva (…)”;
42. Entende o Apelante que o Tribunal a quo mal andou também quanto a este facto, já que em nada considerou as suas declarações de parte, nomeadamente o que disse aos minutos 02:01, que via o seu pai uma vez por mês, e aos minutos 21:17 realça que o contacto com o seu pai sempre se manteve, mesmo depois da morte da sua mãe, nem tão pouco valorou o Juiz a quo o referido pela testemunha (…) aos minutos 07:20 a 07:34 do seu depoimento, e também pela testemunha … (minutos 1:15:51);
43. O Tribunal a quo dá, erradamente, porque sem suporte probatório, como provado que os contactos do Apelante com o seu pai, diminuíram por comparação com a altura em que a mãe estava viva, unicamente com base no depoimento de parte da Ré, não valorando de forma alguma, o Tribunal a quo, as razões dadas pelo Apelante quanto à sua diminuição de visitas no ano de 2019, nem tão pouco as explicações para o sucedido nas épocas festivas, já alegadas sobejamente em sede de motivação do presente recurso;
44. O Tribunal a quo apenas valoriza, erroneamente, com o devido respeito, as afirmações da Apelada, claramente a seu favor, mais uma vez, em violação do disposto no artigo 352.º do CC, ignorando, ingenuamente, que a Apelada era a principal interessada em alegar e potenciar tal diminuição na frequência dos contactos entre pai e filho, para se aproveitar da situação, e ter caminho livre para a utilização do bens do de cujus e da sua conta bancária, e para tentar arranjar justificação à deixa testamentária em causa, o que salta à vista e se impõe concluir pelas regras da experiência comum;
45. Assim, o facto provado n.º 19 deverá, assim, ser dado como não provado, e por consequência a alínea A) dos factos não provados deverá ser considerada provada, com a seguinte redação: “Manteve-se o contacto entre o Autor e o seu pai (…), depois da morte da sua mãe”;
46. Consta na alínea D) dos factos não provados “que (…) estivesse numa situação de inferioridade relativamente à Ré, nem que a dependência dos seus cuidados fizesse com que aquele acedesse a todas as vontades da Ré”;
47. Tal facto, mais uma vez, foi incorretamente julgado por tudo o já supra exposto, nas conclusões n.º 19 a 32, e ainda porque mostrou-se inequivocamente provado nos autos que a mãe do Apelante ficou doente no Verão de 2016, como reconhece a Apelada aos min. 0:03:50 a 03:56, ano em que o testador tomou conhecimento de que padecia de cancro de pulmão, seguido do óbito da sua esposa em março de 2017, pelo que diz-nos o senso comum que um senhor doente oncológico, com cerca de 80 anos, viúvo após mais de 50 anos de casado, debilitado e deprimido, ficasse dependente de quem prestava os serviços como cuidadora;
48. Não foi devidamente valorado pelo Tribunal a quo que a Apelada, mais nova 40 anos, tivesse trocado a prestação de serviços de doméstica, pelos quais ganhava 5 €/hora, para ir viver com o testador, tal como resulta do seu depoimento, aos minutos 10:40, e por essa via, passar a ser dona e senhora de um apartamento na cidade de Setúbal, pelo qual nada pagava, e passar a dispor integralmente do rendimento do de cujus, de cerca de 2.200,00 euros por mês (mais subsídios de igual valor) para gastar a seu belo prazer, tendo ela, surpreendentemente, perfeito conhecimento do exato valor das pensões auferidas pelo testador, como resulta do que proferiu aos min. 0:18:09 do seu depoimento;
49. A própria Apelada reconhece várias vezes que, após a morte da mulher, o de cujus estava “muito abalado mesmo” – cfr. min. 0:08:13 a 0:08:38;
50. Tais factos, aliados aos que foram dados como provados sob os nºs 13 a 15, ou seja, aos tratamentos a que o testador foi submetido, impõem forçosamente que se conclua que o de cujus tenha ficado fragilizado, conforme resulta dos depoimentos de testemunhas do Autor, designadamente de … (minutos 11:06 a 11:11), … (minutos 08:03 a 08:10), … (aos minutos 01:07:58 a 01:09:17) e … aos minutos 34:05, e das testemunhas da Ré, … (minutos 06:46) e … (minutos 06:38 a 07:00);
51. Pelas regras da experiência comum, facilmente se conclui que o testador, estando assim debilitado físico e psiquicamente, pelos tratamentos hospitalares e pelo óbito da sua esposa, se deixasse levar pelos cuidados da Apelada, ficando dela dependente, submetendo-se às sus vontades, deixando-se “enfeitiçar” por ela, tanto mais que é 40 anos mais nova do que o de cujus;
52. Mal andou o Juiz a quo, a este propósito, quando nenhum relevo deu ao referido pela testemunha (…), quando refere que, todos conviviam, o testador a Apelada e o seu marido, para de seguida, referir que o marido da Apelada não lhe deu o divórcio porque acreditava que a iria reconquistar (minutos 28:56 a 29:25)!!;
53. Sendo forçoso concluir que a Apelada impunha tal convívio e que o testador nada podia fazer, vivendo subjugado à vontade da Apelada, já que, não está dentro dos parâmetros da normalidade, um senhor de 80 anos, de família, aceitar livremente na sua casa o marido da sua companheira, quando este ainda a quer reconquistar;
54. Mal andou o Tribunal a quo ao valorar incorretamente a obrigação, assumida pela Apelada junto do Apelante, confessada aos minutos 1:02:39 a 1:02:43, de o avisar, caso acontecesse alguma coisa com o seu pai, o que a Ré nunca observou, por decisão sua, claramente para o manter afastado, pois o pretenso afastamento do filho, Apelante, só a ela aproveitava, não só para melhor desfrutar da casa e dos rendimentos significativos do de cujus, por quem passou a ser sustentada, como também, sabendo ela da outorga dos testamentos, para ter justificação para os mesmos, alicerçando a deixa testamentária a seu favor, no alegado abandono do de cujus, o que é falso, como ficou provado;
55. O Tribunal a quo faz uma deficiente apreciação deste ponto da matéria de facto, pois a prova feita nos autos impõe, mais uma vez, que se presuma com toda a segurança, que o de cujus, pai do Apelante se encontrava numa situação de inferioridade relativamente à Apelada, já que dependia dela, enquanto sua cuidadora, como ela própria reconhece, ao ponto de ser ela a decidir, como confessado no seu depoimento de parte, não cumprir a aludida obrigação, e decidir não informar o Apelante sobre os internamentos do de cujus, nomeadamente quanto à ida à urgência do hospital, no dia 02/09/2019, que culminou com o óbito daquele, em 05/09/2019, único facto por ela comunicado, e, o que é grave também, nem mesmo quando o Hospital lhe ligou, a ela Apelada, no dia 03/09/2019, às 20:32 a informar da possibilidade de cirurgia, assumindo ela aqui sérias responsabilidades (cfr. pág. 6/24 do aludido relatório), mantendo o Apelante afastado, quiçá para ter tempo, entre outros, para ir proceder ao registo do veículo BMW em nome da sua amiga, o qual
veio a acontecer no dia 04/09/2019, o que foi totalmente desconsiderado pelo Tribunal a quo;
56. O facto constante na al. D) dos factos não provados deve pois ser dado por provado, com a seguinte redação: “Que as circunstâncias provadas, quanto à sua idade, doença e fragilidade, permitem com segurança presumir que (…) estava numa situação de dependência e inferioridade relativamente à Ré, e que a dependência dos seus cuidados fez com que aquele acedesse por vezes, a algumas vontades da Ré”;
57. Deve ainda ser aditado aos factos provados que “Ficou acordado entre Apelante e Apelada, a obrigação desta de comunicar ao Autor qualquer situação ocorrida com o seu pai, e que esta não cumpriu”;
58. Conclui o Apelante, que dos autos mostrou-se provado que a vontade real do seu pai não correspondia ao declarado no testamento ora em crise, por todos os fundamentos supra expostos, tanto mais que a ser verdade o que diz a Apelada, de que o motivo do testamento prende-se com o facto de o Apelante não aceitar a alegada relação do pai com a Recorrida, fosse alguma vez ele aceder à recomendação constante no testamento, quanto ao usufruto da casa de morada de família dos seus pais;
59. O Tribunal a quo mal andou, quando a este propósito, fez tábua rasa da confissão da Apelada, vertida no artigo 144º da sua contestação quando afirma “… a Ré entendeu que jamais seria obrigada a abandonar a casa onde viveu mais de dois anos com o pai do A. pelo que se manteve na mesma”, claramente o principal objetivo da Apelada que criou tal ilusão.
60. A prova deve ser apreciada no seu todo e de forma articulada conjugando todos os factos relevantes e deles retirar, só aí, do seu conjunto, as devidas ilações, pelo que de acordo com as regras da experiência comum, aliadas ao que foi provado e ao que deve ser dado por provado é totalmente inverosímil que o de cujus, homem de família e de bons costumes, com um bom enquadramento familiar, com filho, nora e netos, com quem mantinha relações dentro da normalidade, apesar da distância geográfica, tivesse outorgado o testamento em causa de livre e espontânea vontade, pretendendo beneficiar a Apelada do modo em que o fez, em detrimento do seu filho único, sem qualquer razão plausível que o justifique, para além de ter sido a sua empregada/cuidadora durante pouco mais de 2 anos, pois nada ficou provado nesse sentido, pelo que o testamento é nulo;
Caso assim não se entenda,
61. O testamento é anulável por usura, porquanto, no testamento, o consentimento deve ser perfeito, quer no sentido de ser completamente declarada a vontade de testar, quer igualmente no sentido de a vontade declarada estar em conformidade com a vontade real.
Aplicam-se-lhe, além das regras específicas previstas nos artigos 2200.º e 2201.º do CC, as regras gerais relativas à falta de vontade (artigos 244.º a 249.º do CC), ou seja, “o consentimento no testamento deve outorgar-se sem vícios na formulação da vontade”;
62. Dispõe o artigo 282.º, n.º 1, do Código Civil, que: "É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados";
63. Para que haja negócio usurário é necessário que se verifiquem, cumulativamente, os respetivos requisitos subjetivos e objetivos: - uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter de outrem; - a exploração dessa situação; - para obter para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados;
64. Ora, nos presentes autos, encontram-se reunidos todos os três requisitos, para a verificação do vício da vontade, designadamente, uma situação de inferioridade do declarante, a atuação consciente do declaratário ou de terceiro e o excesso ou a injustiça do proveito;
65. O Tribunal a quo decidiu mal ao ignorar que o pai do A. encontrava-se num estado de inferioridade relativamente à Ré, conforme supra defendido e fundamentado, não só pela sua provecta idade, como também pela viuvez recente e sobretudo por causa da sua doença oncológica, que ao longo dos dois últimos anos de vida se agravou, o que o tornaram mais dependente daquela, para se movimentar e praticar os atos mais elementares do seu quotidiano, associado ao facto da Ré tudo ter feito para o afastar a visita de familiares e amigos do de cujus, fazendo-lhe crer como que abandonado, resumindo-se aos amigos da Ré/Apelada, como se mostrou provado, melhor explicitado na motivação do presente recurso;
66. Tais circunstâncias merecem relevo por conduzirem a uma situação de enfraquecimento da vontade e de debilidade, as quais impedem que possa de forma livre formar e manifestar a sua vontade como deverá resultar os dos factos provados 16 alínea D) dos factos não provados, com a redação que se defende supra;
67. A Apelada confessa, que após a morte da esposa do de cujus, passou a residir na casa de morada de família dos pais do Apelante, e iniciou a suposta relação marital com o pai do de cujus, sendo por ele sustentada tendo ainda acesso à conta bancária daquele, usando-a sempre que queria – facto provado n.º 5, com a redação que se defende supra;
68. Mal andou o Tribunal a quo, quando desprezou em absoluto, que, dos extratos bancários juntos aos autos, resulta que de março de 2017 a setembro de 2019, 2 anos e meios, o de cujus recebeu a título de reforma e pensão de viuvez mais de € 80.000,00, e que à data da sua morte a conta bancária se encontrava com saldo negativo, o que não se percebe, atenta a sua idade e doença, tratada no Hospital público de Setúbal;
69. Como mal andou o Tribunal a quo, fazendo uma errada apreciação da matéria de facto, ao ignorar os movimentos que resultam de tais extratos bancários, a frequência dos levantamentos, por vezes no próprio dia do recebimento da pensão de reforma, ficando de imediato a conta com saldo negativo, muitos deles de valor avultado, como por exemplo os realizados em 14/05/2018, de € 4.000,00 (logo após um reembolso de IRS), em 19/07/2018, de € 1.600,00, em 17/08/2018, de € 1.400,00, em 19/09/2018, de € 1.600,00, em 19/10/2018, de € 1.400,00 e em 19/11/2018 de € 2.500,00, para citar alguns exemplos retirados no referido extracto, sendo que a este propósito, a Apelada apenas confessa que o pai do Apelante gostava de ter o seu dinheiro na carteira – cfr. min.0:51:03 a 0:51:54 do seu depoimento –, justificação que deu para os todos os levantamentos efetuados, não sendo minimamente credível nem lógica tal justificação.
70. Não havendo justificação lógica também para os levantamentos que ela própria Apelada efetuou aquando do internamento hospitalar do pai do Apelante de 17 a 29 de Janeiro de 2019 (cfr. relatório hospitalar junto a fls. 5398090), como se constata do referido extrato, de € 200,00 ou € 400,00 no mesmo dia, em 18/01/2019, 19/01/2019, 20/01/2019 e 21/01/2019, sem que a Apelada desse qualquer justificação, plausível para esse facto!
71. A Apelada confessou que vivia às custas do pai do Apelante, e ainda que tinha à sua disposição a conta bancária daquele, usando-a a seu belo prazer, mas não obstante, não soube dizer para quem tinham sido efetuadas as diversas transferências, apesar de confessar que também as fez, razão pela qual o Recorrente requereu a notificação da Caixa Geral de Depósitos para vir informar os autos dos beneficiários dessas transferências, já que é, da mais elementar justiça, saber-se para onde foram feitas essas transferências, o que foi indeferido, estando pendente o recursos interlocutório de tal indeferimento.
72. A Apelada também confessou que, na véspera da morte do de cujus, registou o veículo automóvel da marca BMW, pertencente à herança por óbito da mãe do Apelante, em nome de uma amiga para depois o vender, dele se apropriando, conforme resulta confessado pela Apelada, tudo constando de prova documental, designadamente, do processo-crime, cuja cópia foi junta com o recurso;
73. Mal andou o Tribunal ao desprezar o facto de a Apelada ter conhecimento do teor dos testamentos outorgados pelo de cujus, nomeadamente do último, como resulta da sentença, pág. 11, § 4, onde se lê que “…tanto o testador como a Ré ficaram cientes que era uma sugestão”;
74. Conclui-se, pois, inevitavelmente, pelo que ficou provado nos autos, face às inúmeras benesses de que a Apelada usufruiu, enquanto cuidadora do de cujus, durante pouco mais de 2 anos, com um significativo rendimento ao seu dispor, sem arcar com qualquer despesa, com “cama, tecto e roupa lavada”, como se diz, que a deixa testamentária em causa é desproporcional, e até ofensiva da moralidade, o de cujus tinha um bom enquadramento familiar, com filho e netos, e nem tão pouco se apurou quem eram os beneficiários das transferências, que a Apelada confessa que fez, podendo ser um deles, quiçá, o seu marido!!!!
75. Razão pela qual, entende o Apelante que a deixa testamentária deverá ser anulada por usura, pois estão claramente preenchidos os pressupostos de facto e de direito, sendo claramente o caso dos autos;
76. Também o Ac. Da RL datado de 28/02/2019, relativamente à usura diz que: “…A disposição testamentária na qual se instituiu uma pensão vitalícia no montante de € 1.700,00 a favor de pessoa, com quem o testador, pessoa idosa e doente, 40 anos mais velho, manteve uma breve relação adúltera, elaborado meses após o início desta relação, mantendo no entanto o testador a vivência com a sua esposa e família, sem qualquer projecto de vida com a beneficiária do testamento, nem vivência comum, tem de se considerar como usurária, constituindo um benefício manifestamente excessivo e um encargo injustificado para a herança.”
77. O Tribunal a quo fez uma errada interpretação da prova nem decidiu com perfeita observância dos factos e da lei aplicável, pelo que o pleito deveria ter sido resolvido de outra forma, e como se sustenta na motivação, e nas presentes conclusões, ocorrem razões e circunstâncias ponderosas que forçosamente determinam a revogação da decisão recorrida, julgando-se a ação totalmente procedente e anulado o testamento em causa, pelos motivos supra expostos.
Termos em que, sempre com o douto suprimento de V. Exas. Senhores Desembargadores, deverá o presente recurso ser julgado provado e procedente, revogando-se a sentença recorrida, fazendo-se assim, a habitual JUSTIÇA.”
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A Apelada respondeu ao aperfeiçoamento do seguinte modo:
“1. O douto Tribunal da Relação de Évora entendeu, e em nossa modesta opinião assertivamente, que as conclusões não cumpriam o disposto no n.º 1 do Artigo 639.º do Código de Processo Civil.
2. Com efeito, já em sede de contra-alegações, a Recorrida havia referido que as conclusões apresentadas pelo A./Recorrente, mostravam-se vastas, extensas e confusas, conforme se retira do último parágrafo do capítulo ‘Considerações Prévias’, incumprindo o dispositivo legal atrás referido.
3. Dando cumprimento ao douto despacho de aperfeiçoamento, proferido por este igualmente douto Tribunal o A. e ora Recorrente, veio apresentar novas conclusões, as quais, à semelhança das inicialmente apresentadas, manifestamente que continuam a não cumprir o previsto no n.º 1 do Artigo 639.º do Código Processo Civil.
4. Veja-se que as novas conclusões, tal como as anteriores, representam uma reprodução da matéria que havia sido alegada, as quais se estendem ao longo de 77 pontos e 17 páginas.
5. Cada conclusão evidencia um texto manifestamente confuso e com erros gramaticais que dificultam e por vezes impossibilitam uma interpretação segura da ideia e da pretensão que o A. e ora Recorrente pretende colocar ao Tribunal de recurso.
6. Se as anteriores conclusões eram confusas e de sintéticas nada tinham, as atuais enfermam do mesmo vício, não cumprindo manifestamente o previsto no já citado n.º 1 do artigo 639.º do Código Processo Civil.
7. Afigura-se, pois, que estamos na presença de um caso extremo de deficiente formulação das conclusões, sendo que após convite ao A. e ora Recorrente para reformular as mesmas, o vício mantém-se, pese embora tal oportunidade de reformulação das mesmas.
8. Ora, tem sido entendimento jurisprudencial que, após convite para aperfeiçoamento das conclusões, caso se esteja, como é o caso, numa extrema deficiente reformulação das mesmas, o recurso deve ser liminarmente rejeitado, conforme prevê a parte final do n.º 3 do Artigo 639.º do Código de Processo Civil.
9. Quanto ao demais, sem prescindir do que atrás se referiu, a R. e ora Recorrida conclui como em sede de contra-alegações, para onde remete.
Termos em que e sempre com o mui douto suprimento de Vossa Exa., atento o exposto, deve o recurso não ser conhecido por parte deste douto Tribunal.
Em qualquer caso, a R. e ora Recorrida reitera e conclui como em sede de contra-alegações.”
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Por despacho proferido pelo relator em 09/03/2022 foram recebidas as conclusões recursivas aperfeiçoadas, admitido o recurso e autorizada a junção aos autos dos dois documentos apresentados pelo Apelante com as alegações recursivas.
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Colheram-se os Vistos legais.
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II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que, in casu, importa apreciar as seguintes questões:
1-Nulidade de sentença;
2-Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
3-Reapreciação do mérito da sentença recorrida, centrado, designadamente, na alegada incapacidade acidental do testador devido a doença, depressão e coação moral exercida pela Apelada e em usura.
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III – FUNDAMENTOS DE FACTO
Consta da sentença recorrida o seguinte quanto à matéria de facto:
“Tendo presente a matéria assente por documento e acordo das partes, bem como o resultado da produção de prova e discussão da causa, consideraram-se provados os seguintes factos:
1. O Autor é filho de (…) e de (…), fruto do casamento de ambos.
2. No dia 25.03.2017 faleceu (…), com 77 anos e no estado civil de casada com (…).
3. No dia 05.09.2019 faleceu (…), com 81 anos e no estado civil de viúvo de (…).
4. Pela apresentação n.º (…), de 18.08.1989, (…) e (…) compraram o 9.º andar letra A do prédio sito na Av. (…), n.º (…), em Setúbal, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º (…), descrito na matriz predial urbana com o n.º (…).
5. (…) foi titular da conta n.º (…) junto da Caixa Geral de Depósitos até à sua morte.
6. No dia 17.08.2017 (…) declarou perante a Notária privada (…):
Que institui herdeira de um terço da sua quota disponível (…), casada com (…) no regime de separação de bens, natural do Brasil, residente na Rua (…), n.º 16, 9-F, em Setúbal.
Declarou ainda o outorgante:
Que este é o primeiro testamento que faz.
Assim o disse e outorgou.
7. No dia 19.07.2018 (…) voltou ao mesmo Cartório Notarial e declarou perante a Notária privada (…):
Que institui herdeira de um terço da sua quota disponível (…), casada com (…) no regime de separação de bens, natural do Brasil, residente na Rua (…), n.º 16, 9-F, em Setúbal.
Que deixa ainda à referida (…), o usufruto de seguinte imóvel:
Fração autónoma designada pela letra “R”, correspondente ao nono andar, letra A, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Av. (…), números (…), (…), (…) e Praceta (…), números (…) e (…), União das Freguesias de Setúbal (S. Julião, Nossa Senhora da Anunciada e Santa Maria da Graça), concelho de Setúbal, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o número (…), da freguesia de Santa Maria da Graça, anteriormente inscrito na matriz sob o artigo (…) da extinta freguesia de Santa Maria da Graça.
Que revoga expressamente o testamento por si outorgado em dezassete de agosto de dois mil e dezassete, neste Cartório Notarial e exarado a folhas quarenta e uma do Livro (…).
Assim o disse e outorgou.”
8. E finalmente, no dia 30.11.2018 (…) declarou perante a Notária privada (…):
Que institui herdeira da sua quota disponível a referida (…), casada com (…) no regime de separação de bens, natural do Brasil, residente na Rua (…), n.º 16, 9-F, em Setúbal.
Que é de sua vontade que a referida quota disponível comece a ser preenchida pelo usufruto do seguinte imóvel:
Fração autónoma designada pela letra “R”, correspondente ao nono andar, letra A, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Av., números (…), (…), (…) e Praceta (…), números (…) e (…), União das Freguesias de Setúbal (São Julião, Nossa Senhora da Anunciada e Santa Maria da Graça), concelho de Setúbal, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o número (…), da freguesia de Santa Maria da Graça, anteriormente inscrito na matriz sob o artigo (…) da extinta freguesia de Santa Maria da Graça.
Que revoga expressamente o testamento por si outorgado em dezanove de Julho de dois mil e dezoito, neste Cartório Notarial e exarado a folhas setenta e cinco do Livro (…).
Assim o disse e outorgou.”
9. Deste último ato foram testemunhas, que também abonaram a identidade, (…) e (…), ambos amigos de longa data do outorgante.
10. A Ré deixou o seu país de origem (Brasil) em 2008, altura em que veio para Portugal viver.
11. Entrou na vida de (…) em 2016, tendo sido contratada como empregada da limpeza e cuidadora informal da esposa deste.
12. Em 04.03.2016, a Ré, com 39 anos, casou civilmente com (…), com 60 anos, sob o regime de separação de bens.
13. (…) foi diagnosticado com um carcinoma pavimentocelular do pulmão (cancro do pulmão) em 07.03.2016 e foi seguido em oncologia médica pela Dra. (…) e o pelo Dr. (…), onde fez quimioterapia neoadjuvante com Carboplatina e Gemcitabina, com boa resposta clínica e imagiológica.
14. Em 04.07.2018 revelou progressão tumoral, fez 8 ciclos de imunoterapia (terapia de 2.ª linha com Nivolumab), iniciados em 11.09.2018 e concluídos em 20.12.2018, com boa resposta e quase resolução total do tumor, ficando desde janeiro de 2019 apenas em vigilância.
15. Esteve internado por provável toxicidade da imunoterapia em janeiro de 2019, controlada com medidas médicas, com melhoria progressiva do quadro clínico, recuperando total autonomia para as necessidades básicas de vida.
16. Apesar de idoso e fisicamente debilitado, (…) nunca deixou de pensar pela sua cabeça, tomar decisões de forma consciente, compreendendo o alcance dos seus atos e determinações.
17. (…) manifestou intenção de pôr o seu património imóvel em ordem após a morte da sua esposa (…).
18. Depois de ficar viúvo (25.03.2017), (…) começou a passar mais tempo com a Ré, que o apoiava, cuidava da lida doméstica, com quem partilhava refeições dentro e fora de casa e o acompanhava às consultas médicas, permanecendo no hospital sempre que este era internado.
19. O contacto entre o Autor e o seu pai diminuiu de frequência, em comparação com a altura em que a mãe/esposa de ambos estava viva.
20. Nos anos de 2018 e 2019, o Autor não veio passar o verão, nem o natal com o seu pai a Setúbal, nem o seu pai foi ao Porto visitar o filho e os netos.
21. (…) é recordado por amigos e familiares como um homem com uma personalidade muito forte e vincada, sempre determinado na sua vontade.
22. Foi inspetor na área do Direito do Trabalho durante mais de 30 anos, sendo uma pessoa culta e juridicamente instruída.
23. Três dias antes de falecer (em 02.09.2019), (…) deu entrada no Hospital de São Bernardo orientado, vígil, com consciência do tempo e do espaço, dependente das atividades diárias, taquipneico, com queixas de dor abdominal e diarreias agudas, vindo a falecer com um diagnóstico principal de insuficiência vascular aguda do intestino (trombose da mesentérica), depois de ter sido operado e transferido para a UCI.
24. O Autor é o único herdeiro legitimário dos seus progenitores.
25. A Ré não foi autorizada a acompanhar as cerimónias fúnebres de (…).
26. A Ré foi citada a 03.12.2019.
27. A presente ação deu entrada em 27.11.2019.

Não se provou que:
A) Que houvesse um contacto permanente entre o Autor e o seu pai (…) depois da morte da mãe do Autor.
B) Que a Ré se tenha aproveitado de uma situação de fragilidade do testador para lhe manipular a vontade.
C) Que (…) tivesse deixado de se comunicar por telefone com as suas irmãs ou restantes membros da sua família, por influência da Ré.
D) Que (…) estivesse numa situação de inferioridade relativamente à Ré, nem que a dependência dos seus cuidados fizesse com que aquele acedesse a todas as vontades da Ré.
*
A restante factualidade alegada não reproduz factos essenciais para as questões a decidir, podendo compreender factos instrumentais e/ou concretizadores (por maioria de razão probatórios e acessórios), que são considerados pelo Tribunal para formar a sua convicção (e serão escrutinados na motivação infra), mas não carecem de compor o elenco fáctico provado e não provado, considerando-se que, além do mais, alguns compreendem matéria conclusiva e/ou de direito.”
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1-Iniciemos este segmento do acórdão com a apreciação da questão atinente à invocada nulidade de sentença.
Nas suas conclusões recursivas aperfeiçoadas o Apelante arguiu a nulidade da sentença recorrida com fundamento no artigo 615.º, n.º 1, d), do CPC, sustentando que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre o “tema de prova n.º 6” consubstanciado em saber se a Apelada “Passou a gerir a conta bancária do pai do Autor com gastos avultados”, não tendo relevado os extractos da conta bancária do pai do Apelante e bem assim indeferido um meio de prova requerido com vista à prova de tal tema traduzido em notificação à Caixa Geral de Depósitos, decisão que viria a dar azo a recurso de apelação autónomo.
Na sua resposta ao recurso a Apelada concluiu no sentido de ser considerada improcedente tal nulidade, sustentando que o Tribunal recorrido pronunciou-se sobre todas as questões que lhe foram colocadas.
Apreciando:
Diz-nos o artigo 615.º do Código de Processo Civil que:
1- É nula a sentença quando:
[…]
“d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”
Relativamente à nulidade prevista na primeira parte da transcrita alínea d), concretamente a chamada “omissão de pronúncia”, diz-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª edição atualizada, Almedina, 2020, em anotação ao referido artigo 615.º, a páginas 764), que a omissão de pronúncia afere-se “seja quanto às questões suscitadas, seja quanto à apreciação de alguma pretensão”.
E acrescentam ainda que “[…] o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões de conhecimento oficioso”, não obrigando, todavia,“[…] a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com «questões» […]”.
Neste sentido saliente-se, entre vários outros , os acórdãos do STJ de 27/03/2014, proferido no Processo 555/2002 e de 08/02/2011, proferido no processo nº 842/04TBTMR.C1.S1 ( ambos acessíveis para consulta in www.dgsi.pt ).
Neste último aresto de 08/02/2011 ficou expresso, de forma bastante clara, o seguinte:
“Não há que confundir as questões colocadas pelas partes com os argumentos ou razões que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões em determinado sentido: as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões…”.
E acrescenta-se ainda no dito acórdão que “Se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.“
Revertendo ao caso concreto, percebemos que a questão de saber se a Apelada terá gerido com gastos avultados a conta bancária do pai do Apelante não integra o objecto essencial deste pleito, não se identificando com o pedido formulado na acção, com a causa de pedir e menos ainda com qualquer excepção invocada pela Apelada.
Com efeito, o pedido formulado na acção traduz-se em declaração de nulidade de disposição testamentária referente a usufruto de imóvel e anulação de testamento outorgado pelo pai do Apelante em 30/11/2018 a favor da Apelada, enquanto a causa de pedir (complexa), em incapacidade do testador para discernir e entender o alcance do seu acto devido a idade avançada, depressão, doença grave com sujeição a exigentes tratamentos com quimioterapia, bem como em dependência daquele da Apelada, pressões desta tendentes a levá-lo a testar a seu favor e em usura.
Verifica-se, assim, que os alegados gastos avultados decorrentes de alegada má gestão da conta corrente do pai do Apelante por parte da Apelada poderiam (poderão), quando muito, revestir particular interesse em sede de discussão da partilha de bens do de cujus, questão esta que não se enquadra no objecto do presente litígio.
Acresce sublinhar que para efeitos de apreciação da nulidade invocada pelo Apelante não há que confundir facto com questão que devesse ser apreciada pelo Tribunal a quo.
Se algum facto entendido como essencial, ou complementar de facto essencial, for desconsiderado ou deficientemente julgado a reação da parte que se considere afectada por tal apenas pode circunscrever-se ao nível da modificabilidade da decisão de facto, não tendo cabimento em sede de nulidade por omissão de pronúncia.
E menos cabimento tem ainda tratar como omissão de pronúncia a não consideração de meio de prova por virtude de o mesmo ter sido indeferido, impondo-se acrescentar a este propósito ainda, a talhe de foice, que o recurso de apelação autónoma interposto pelo Apelante do despacho proferido em 07/04/2021, que indeferiu a pretendida notificação à Caixa Geral de Depósitos para que revelasse as contas e os beneficiários de transferências realizadas a partir da conta do pai do Apelante no Verão de 2019, já foi apreciado na 2.ª Secção Cível deste Tribunal da Relação de Évora por acórdão datado de 10/03/2022 tendo sido negado provimento ao mesmo e confirmado o despacho recorrido.
Do exposto, decorre improcederem as conclusões recursivas no tocante à invocada nulidade de sentença.
*
2-Impugnação da decisão relativa à matéria de facto:
Dispõe o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que “A relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Diz-nos sobre este preceito o Conselheiro Fernando Pereira Rodrigues (“Noções Fundamentais de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição atualizada, 2019, págs. 463-464) o seguinte:
“A redação do preceito [662.º, n.º 1] não parece ter sido muito feliz quando manda tomar em consideração os “factos assentes” para proferir decisão diversa, que só pode ser daqueles mesmos factos considerados assentes, porque o que está em causa é modificar a decisão em matéria de facto proferida pela primeira instância.
[…]
A leitura que se sugere como mais adequada do preceito, salvaguardada melhor opinião, é que ele pretende dizer que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, “confrontados” com a prova produzida ou com um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Prevê, por seu turno, o artigo 640.º do CPC, que se debruça sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o seguinte:
1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b), do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”
A este propósito sustenta o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil“, 5.ª ed., 2018, Almedina, a páginas 168-169), que a rejeição total ou parcial respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nas seguintes situações:
“a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação“,
esclarecendo, ainda, que a apreciação do cumprimento de qualquer uma das exigências legais quanto ao ónus de prova prevenidas no mencionado n.º 1 e 2, a), do artigo 640.º do CPC, deve ser feita “à luz de um critério de rigor“.
Isto dito, apreciemos, então, no caso concreto, a impugnação relativa à matéria de facto apresentada pela Apelante.
Conforme resulta expresso das conclusões recursivas aperfeiçoadas o Apelante entende terem sido incorrectamente julgados os factos vertidos sob os pontos 5 e 16 a 19 do segmento da sentença recorrida destinado aos factos provados, bem como os vertidos sob as alíneas A), B) e D), do segmento da dita sentença destinado aos factos não provados.
Para além disso entende o Apelante que o Tribunal a quo deveria ter aditado ao segmento dos factos considerados como provados, com fundamento em confissão da Apelada efectuada em sede de depoimento de parte, que a mesma usava a conta bancária do de cujus, assim como o seu cartão multibanco e que passou a viver às custas do mesmo; que a Apelada não avisou o Apelante do estado de saúde do seu pai, nomeadamente do seu internamento que culminou com a sua morte; que ficou acordado entre Apelante e Apelada a obrigação desta comunicar ao primeiro qualquer situação ocorrida com o seu pai e, bem assim, que a Apelada vendeu o veículo de marca BMW, série 3, propriedade do de cujus e também do Apelante (por morte de sua mãe), na véspera da morte daquele, negando tê-lo feito, mais considerando ainda, com base no depoimento conjugado de algumas testemunhas, que deveria ter sido aditado igualmente ao elenco dos factos provados na sentença recorrida que o Apelante desconhecia que o seu pai havia iniciado uma relação amorosa com a Apelada, por aquele nunca lhe ter comunicado tal.
Como nota prévia e após comparação da matéria objecto da impugnação constante do segmento da motivação do recurso com a matéria objecto de impugnação constante do segmento das conclusões aperfeiçoadas verifica-se que nestas últimas o Apelante restringiu a extensão da impugnação, o que é admissível ao abrigo do disposto no artigo 635.º, n.º 4, do CPC.
Iniciando desde já a apreciação pela questão do aditamento factual verificamos que nenhum dos factos que o Apelante pretende sejam introduzidos no segmento dos factos considerados como provados da sentença recorrida foram, (ainda que com redacção diferente), reconduzidos a este segmento, ou ao segmento dos factos considerados como não provados.
Dito de outro modo, tais factos terão sido desconsiderados da decisão relativa à matéria de facto constante da sentença recorrida por não se consubstanciarem em factos essenciais à causa, ou seja, por não se traduzirem em factos estruturantes da causa de pedir.
Recordando o que supra já deixamos expresso quanto ao pedido e causa de pedir da presente acção percebemos que efectivamente nenhum daqueles quatro factos, cujo aditamento se pretende ao elenco dos factos provados, são estruturantes, ou sequer complementares, ou concretizadores, de factos estruturantes da causa de pedir.
Na verdade, os ditos factos não acrescentam nada de relevante para a apreciação do pretendido, sequer para instrumentalmente contribuírem para elaborar juízos presuntivos, que, recordemos, se traduz essencialmente em saber se à data em que elaborou o terceiro testamento datado de 30/11/2018 favorável à Apelada, do qual consta a disposição testamentária respeitante ao usufruto do imóvel a favor da mesma, o testador se encontrava incapacitado de perceber o alcance do seu acto, ainda que acidentalmente, se o fez sob coacção moral exercida pela Apelada, ou se praticou tal acto de testar vítima de usura exercida pela Apelada.
Quando muito, poderiam alguns daqueles factos, no caso de resultarem demonstrados, revestir interesse em sede de discussão da partilha de bens do de cujus, mas não no âmbito de discussão da presente causa.
Destarte, entende-se que o Tribunal a quo andou bem ao não os canalizar para a decisão da matéria de facto descriminada na sentença recorrida, em face da sua impertinência, razão pela qual resulta prejudicada a tarefa de saber se efectivamente se provaram nestes autos como sustentou o Apelante.
Aqui chegados, passemos de seguida à análise da impugnação dirigida contra os factos considerados como provados e não provados.
Previamente, há que verificar se o ónus de obrigatória especificação foi devidamente cumprido pelo Apelante.
Na sua resposta às alegações de recurso do Apelante a Apelada entende não terem sido cumpridos os pressupostos constantes da alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Lendo atentamente o corpo, ou segmento motivatório, do requerimento de recurso apresentado pelo Apelante e, bem assim, o segmento das suas conclusões aperfeiçoadas somos levados a concluir que o Apelante cumpriu satisfatoriamente todos os requisitos prevenidos no n.º 1 e 2.º, a), do artigo 640.º, do CPC, uma vez que especificou os pontos de facto que no seu entender foram incorrectamente julgados, identificou minimamente os meios probatórios que no seu critério impunham decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo, assim como especificou a decisão que para si deveria ter sido proferida por este último sobre a matéria impugnada.
Posto isto, apreciemos do bem fundado da impugnação, deixando desde já presentes, a este propósito, as linhas orientadoras decorrentes do artigo 607.º, do CPC, designadamente dos respectivos nºs 4 e 5, que passamos a transcrever:
4. Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência.”
5. O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”
Conforme resulta, ainda, da parte final do n.º 2 do artigo 663.º do CPC, estes critérios devem ser observados na elaboração das decisões proferidas pelo Tribunal da Relação.
O Apelante começa por impugnar o facto reconduzido ao segmento dos factos considerados como provados vertido sob o ponto 5, que tem a seguinte redacção.
“5. (…) foi titular da conta n.º (…) junto da Caixa Geral de Depósitos até à sua morte.”
Entende o Apelante que tal facto foi incorrectamente julgado, entendendo que a redacção do mesmo deveria ser a seguinte:
“5. (…) foi titular da conta n.º (…) junto da Caixa Geral de Depósitos até à sua morte, sendo que a mesma era gerida e utilizada por si e pela Apelada.”
Indicou o Apelante como meios probatórios aptos a, no seu entender, sustentarem o seu entendimento, passagens do depoimento de parte prestado pela Apelada na audiência final.
Percebemos que o Apelante não considera incorrectamente julgado o que ficou vertido no ponto 5 dos factos considerados como provados na sentença recorrida, antes pretendendo que ao que ficou demonstrado se acrescente que a conta de que o pai daquele era titular era gerida e utilizada pelo próprio e pela Apelada.
Sucede que, conforme já acima tivemos ensejo de explicar, o pretendido aditamento (independentemente de ser demonstrável parcial, ou totalmente), não reveste pertinência para a discussão de mérito no caso em apreço atenta a estrutura do pedido e da causa de pedir que conformam o já supra identificado objecto do litígio na presente acção.
Pelo que, sem necessidade de mais considerandos, é de considerar improcedente a impugnação no tocante ao facto em apreço.
O Apelante impugna igualmente o facto vertido sob o ponto 16 do segmento atinente aos factos considerados como provados na sentença recorrida que tem a seguinte redacção:
“16. Apesar de idoso e fisicamente debilitado, (…) nunca deixou de pensar pela sua cabeça, tomar decisões de forma consciente, compreendendo o alcance dos seus actos e determinações.”
O Apelante considera este facto incorrectamente julgado entendendo que deveria ser canalizado para o segmento dos factos considerados como não provados, indicando como meios probatórios aptos a sustentarem a sua posição as suas próprias declarações prestadas na audiência final, bem como passagens dos depoimentos das testemunhas que arrolou e foram inquiridas na dita audiência, (…), (…), (…) e (…), a par de passagens do depoimento das testemunhas arroladas e igualmente inquiridas naquela audiência arroladas pela Apelada, (…), (…) e (…), acrescentando ainda que o depoimento da testemunha Dr. (…) e o documento n.º 1 junto com a contestação não podiam ter sido aceites como meio de prova, devendo tal depoimento ser considerado como prova ilícita e não valorado, visto ter debruçar-se sobre factos cobertos pelo segredo profissional de médico, não tendo sido requerido o levantamento do sigilo profissional junto da Ordem dos Médicos.
Vejamos o que ficou expresso quanto a este facto no segmento da sentença recorrida respeitante à motivação do juiz a quo:
“A referida factualidade que se deixou vertida supra, resultou provada e não provada por acordo das partes; através da prova produzida por declarações do Autor e da Ré; da prova testemunhal e, ainda, com base na prova documental que compõe os autos, todos os meios de prova alinhados entre si, analisados à luz da normalidade de vida e das regras da experiência comum.
Todos os documentos que compõem os autos foram analisados, sem exclusão de qualquer um, porém, houve documentos com maior impacto e relevância na formação da convicção do Tribunal, assim como também houve depoimentos, de entre as 15 testemunhas ouvidas, que ressoaram de forma mais intensa naquilo que ficou depois vertido em sede de factualidade provada e não provada, tendo-se ouvido pessoas da família, amigos do testador, do Autor e da Ré, profissionais que no desempenho da suas funções se cruzaram com o testador, sendo que todas as testemunhas
aditaram algum pedaço de informação da vida das pessoas envolvidas nesta ação, tendo, por isso, sido sempre consideradas, com mais ou menos relevância.
As partes também falaram, a Ré em sede de depoimento de parte e o Autor em declarações de parte, ambos com posturas colaborantes com o Tribunal, empenhados em esclarecer a verdade, muito apoiados no discurso contido nos respetivos articulados; sendo a Ré mais emotiva e o Autor
mais frio, sabendo que a Ré depôs sozinha na sala e o Autor fê-lo com a Ré presente, o que foi tido em conta.
[…]
No que respeita aos factos provados 13, 14, 15 e 16 [estado de saúde do testador], analisou-se, como não podia deixar de ser, toda a documentação médica que compõe os autos, as notas de alta da UCI e causa da morte nos cuidados intensivos de fls. 21verso a 23; a declaração médica assinada pelo Dr. (…) em 04.12.2019 que explica todo o historial do testador (fls. 58); os relatórios de urgência, internamento, nota de entrada na UCI e de alta clínica de fls. 138-169, alinhadas com as fotografias no hospital tiradas pela Ré com o testador, de fls. 64.
Além do mais, foi sobejamente esclarecedor o depoimento da testemunha (…), médico que fez o acompanhamento oncológico do testador no Hospital de São Bernardo, em que o Tribunal asseverou o facto provado 16, com sobeja importância, assim sedimentando a convicção sobre a capacidade, estado de compreensão e perceção do testador durante todo o tempo em que foi seguido na oncologia, ou seja, entre março de 2016 e o ano de 2019.
O Dr. (…), médico pneumologista oncológico no Hospital de São Bernardo em Setúbal, com os seus 69 anos, explicou ao Tribunal que acompanhou o testador pelo menos 3 anos, tendo este passado a ser seu paciente depois da biopsia que lhe detetou o carcinoma. Recordou o testador com vivacidade, dizendo tratar-se de uma pessoa diferenciada, embora também de um doente difícil, quase obstinado, que não queria ser operado, apesar de ter indicação médica para tal.
Como a quimioterapia não resultou, passou a 2.ª linha de imunoterapia que teve muito sucesso, com resultados excelentes, tanto que o paciente passou a ficar em vigilância, tendo-o visto em consulta em agosto de 2019 (antes de falecer) e ele encontrava-se bem.
O depoente e médico auxiliou o Tribunal a interpretar a documentação clínica que já estava nos autos, reportou-se com detalhe a todas as informações deste seu paciente na medida do que dos autos já constava, não se entendendo que tenha sido violado qualquer sigilo médico ou carecesse o mesmo de ser levantado, já que o seu testemunho foi sobretudo no sentido de analisar a documentação dos autos, “traduzindo-a” se quisermos para termos correntes.
Além do mais, sempre se entende que, atenta a discussão nos presentes autos, estar-se-á perante um consentimento presumido, nos termos do artigo 340.º, n.º 3, do Código Civil, que funciona como causa de justificação autónoma da eventual violação do sigilo.
No que se atém àquilo que foi a sua observação direta do estado de saúde do testador, a testemunha explicou que o testador não tinha qualquer afetação psicológica ou cerebral, não tinha quadro depressivo, nem nunca lhe foi pedido acompanhamento psiquiátrico.
Com relevo para a discussão da causa, o Dr. (…) disse ainda que recorda a ternura, cumplicidade e constantes cuidados que a Ré providenciou ao testador, quer nas consultas, quer nos internamentos, em que ficava com ele.
A testemunha foi muito espontânea quando se reportou à relação entre o casal, sendo que a pergunta que lhe foi feita era se a Ré falava muito nas consultas, eventualmente até por cima do testador, se “opinava” muito, sobrepondo-se àquilo que seria a voz do testador, mas o depoente afirmou logo que sendo o paciente uma pessoa difícil, quem se impunha era ele, havendo da parte da Ré uma atitude ternurenta, de dócil compreensão entre ambos e genuíno cuidado, sendo que o
testador em momento algum teve a sua capacidade de compreensão limitada ou diminuída.
No que se atém ao episódio que levou à morte do testador, o Dr. (…) explicou que foi uma situação aguda, podia ter acontecido em qualquer altura e não teve diretamente a ver com a patologia cancerígena, já que nesse tocante estava estável (significado de estar em vigilância).
Logo, ficou o Tribunal convencido de que, mesmo a fazer imunoterapia entre setembro e dezembro de 2018, o testador se encontrava bem, capaz e consciente de tomar decisões, nomeadamente quanto a dispor do seu património”.
Percebemos que o Tribunal a quo considerou como provado o facto vertido sob o ponto 16 estribando-se essencialmente no depoimento da testemunha (…), cuja razão de ciência assentou essencialmente na circunstância de ter acompanhado na qualidade de médico o testador durante cerca de três anos, que se espraiaram entre Março de 2016 e o ano de 2019, coincidindo com a fase final da vida daquele, conjugadamente com documentação médica junta aos autos cujo teor a dita testemunha teve ensejo de esclarecer em audiência final ao ser inquirido.
O referido depoimento foi analisado de forma crítica e especialmente valorado pelo Tribunal atendendo aos específicos conhecimentos derivados da profissão exercida pela testemunha e do acompanhamento regular que a mesma fez do testador no aludido hiato temporal de três anos.
Quanto à censura dirigida à validade do depoimento por parte do Apelante, que o cataloga de “prova ilícita”, entendemos não lhe assistir razão remetendo-se neste domínio para a explanação apresentada pelo Tribunal a quo evidenciada supra.
Aliás, a este propósito sempre se acrescenta ainda que se o Apelante entendia que estava em causa matéria acobertada pelo sigilo profissional de médico deveria ter suscitado a questão em sede de audiência final, aquando da prestação do depoimento da testemunha (…), que teve lugar na sessão ocorrida em 11/01/2021, ao invés de o fazer, como fez, através de um requerimento dirigido aos autos apenas em 06/04/2021, ou seja, nas vésperas da continuação da audiência final.
Na verdade, resulta do que ficou exarado em acta nessa data de 11/01/2021, que o Apelante estava na posse de elementos mais do que suficientes para levantar a questão, pois percebemos da leitura da dita acta que a testemunha em causa foi chamada para ser confrontada com o documento n.º 1 junto com a contestação, subscrito pela própria, pelo que não podendo ter deixado se se aperceber de tal propósito deveria o Apelante ter suscitado de imediato a sua oposição à prestação, ou à continuação da prestação, do depoimento com fundamento em possível violação do segredo médico por parte da testemunha.
Tal conduziria à interrupção da prestação do depoimento e provável desencadear do incidente prevenido no n.º 4 do artigo 417.º do Código de Processo Civil, que remete para as disposições constantes dos n.ºs 2 a 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal.
Mas nada disso foi feito, carecendo de cabimento estar, neste momento, a apreciar tal questão.
Aliás, caso tenha existido violação de segredo médico a reação possível situa-se nesta fase apenas ao nível disciplinar, não sendo de considerar inválido o depoimento em causa na base da invocada “prova ilícita”.
De resto, impõe-se ainda assinalar que os excertos de depoimentos salientados pelo Apelante, assim como as suas próprias declarações de parte, para além de também se situarem ao nível de prova não vinculada, sujeita, como tal, à livre apreciação do julgador orientada pela sua prudente convicção, bom senso e de acordo com as regras da experiência não permitem, a nosso ver, colocar em crise a motivação exposta pelo Tribunal a quo, desde logo porque nem sequer visam directamente o facto vertido sob o ponto 16, mas antes diverso circunstancialismo que nem sequer foi carreado para os factos provados, ou não provados, da sentença recorrida.
De todo o modo, ainda que algum desse circunstancialismo possa constituir factualidade instrumental, afigura-se-nos não ser apto a infirmar a demonstração do facto provado sob o ponto 16, ora em análise.
Dito isto, consideramos igualmente improcedente a impugnação no tocante ao facto vertido sob o ponto 16 dos factos considerados como provados na sentença recorrida.
O Apelante incluiu também na sua impugnação o teor do ponto n.º 17 dos factos considerados como provados na sentença recorrida, o qual tem a seguinte redacção:
“1. (…) manifestou intenção de pôr o seu património imóvel em ordem após a morte da sua esposa (…).”
Entende o Apelante ter o Tribunal a quo julgado incorrectamente o facto em apreço, considerando que a redacção do mesmo deveria passar a ser a seguinte:
“(…) manifestou intenção de doar os seus bens ao seu filho, após a morte da sua esposa (…).”
O Apelante invocou como meios probatórios aptos a sustentar a diversa solução que preconiza excertos dos depoimentos prestados na audiência final pelas testemunhas que arrolou (…), (…), (…) e (…).
O Tribunal a quo motivou de forma clara, sustentada e crítica a sua convicção quanto ao facto em apreço, nos termos que passamos a transcrever de seguida:
“Em relação à restante factualidade, nomeadamente descrita no facto provado 17 [intenção do testador de organizar o seu património]; nos factos provados 18 a 22 e 25 [relações interpessoais e familiares do e com o testador] e no facto provado 23 [últimos dias do testador], assim resultaram da ampla prova testemunha produzida, em que foram ouvidas 15 testemunhas, todas elas com uma visão mais ou menos individualizada da vida do testador e que foram curiais para considerar provados os factos que supra se elencaram, combinando os depoimentos entre si.
Embora tenham sido depoimentos longos, pormenorizados e, não diversas vezes, com informação lateral àquilo que era o objeto da causa, o Tribunal valorou cada um.
Começando pela testemunha (…) médica no Porto e cunhada do Autor (irmã da cônjuge do Autor), explicou que tinha uma muito boa relação com o testador, que apelidou de tio (…), privando com ele nas festas de família.
[…]
Mas, a bem da verdade, a testemunha viu o testador a última vez no verão de 2017, quando este foi a uma festa de família ao Porto, não tendo assim muita relevância, atendendo à circunstância de o momento interessante a analisar neste processo ser o da elaboração do 3.º testamento, ou seja, novembro de 2018, não podendo a depoente providenciar informações sobre essa altura temporal, nem qualquer altura do ano de 2018.
A testemunha expressou estranheza por o testador lhe ter verbalizado no funeral a intenção de doar todos os bens ao Autor, mas não fez caso por entender tratar-se de um homem toldado pelo luto.
[…]
E foi ouvida a cônjuge do Autor, (…) explicou toda a história de vida da sua família e da família do Autor…
[…]
Embora a testemunha tenha referido que o seu sogro lhe pediu para tratar da doação dos bens ao Autor, desejo que manifestou logo no funeral da sua sogra, pensou tratar-se de uma vontade de “organizar” os seus bens e deixar tudo tratado perante a constatação da fragilidade dos dias. Mas só no ano seguinte é que começou a tratar de legalizar o terreno de Portalegre, que era pertença da sua sogra, tendo feito escritura de habilitação de herdeiros por declaração em outubro de 2018, nada mais tendo feito em relação ao imóvel de Setúbal.
Esta testemunha não foi, porém, muito credível quanto à restante informação providenciada, não só porque trazia a sua versão decalcada da petição inicial, como era de tal forma ávida e sôfrega a responder às perguntas e em dar detalhes e datas sobre coisas que nem lhe eram perguntadas, que a sua fiabilidade acabou por ficar afetada, para além do seu óbvio interesse no desfecho da causa, o que também se considerou.
[…]
Foi ainda ouvido (…), amigo da Ré e do testador, que declarou ter vindo para Portugal em 2007 e ter sido ajudado pelo testador com os seus papéis para permanecer legalmente no país.
[…]
passou uma temporada em Portugal em maio de 2018 quando foi operado ao fémur, altura em que dialogou com o testador sobre a intenção de este proteger a Ré, tendo comunicado ao Tribunal que a intenção do testador e seu amigo (…) nunca foi deserdar o filho (aqui Autor), mas simplesmente proteger a Ré, pessoa que sempre cuidou dele até ao fim.
[…]
Por fim, foi ainda ouvida a testemunha (…), solicitadora que secretaria a mulher do Autor no seu escritório de advogados no Porto, que diz ter tratado da realização das habilitações de herdeiros que constam juntas aos autos a fls. 31-34, tendo sido testemunha de uma das escrituras para regularizar a propriedade de Portalegre pertencente ao testador e à esposa deste. No mais e apesar de ter feito uma explicação exaustiva dos conhecimentos jurídicos que achava que o testador possuía e a intenção deste de fazer uma doação em vida de todos os bens ao Autor, acabou por confirmar que tudo o que sabe foi porque a cônjuge do Autor lhe contou, não tendo, por isso, oferecido muita relevância neste tocante para formar a convicção do Tribunal.” (Itálicos nossos).
Impõe-se recordar, desde já, que a impugnação de pontos constantes da decisão relativa à matéria de facto visa infirmar factos que tenham sido considerados como provados na decisão recorrida, os quais, a proceder aquela, passarão a ser, total ou parcialmente, considerados como não provados, ou demonstrar factos considerados na decisão recorrida como não provados, que, a proceder a impugnação, passarão a ser considerados, parcial ou totalmente, como provados.
É esse o entendimento que decorre da previsão do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
Ora, a “impugnação” apresentada pelo Apelante contra o facto vertido no ponto 17 não coloca propriamente em causa o mesmo uma vez que nem sequer refere expressamente que deva ser considerado como não provado, sendo certo, ainda, que a redacção defendida pelo Apelante não contraria frontalmente a provada intenção do testador “pôr o seu património imóvel em ordem após a morte da sua esposa”.
De resto e apesar de a solução factual pretendida pelo Apelante para o facto vertido sob o ponto 17 ter correspondência no facto alegado pelo mesmo no artigo 28.º da petição inicial (e, no essencial, no artigo 9.º do aperfeiçoamento apresentado em 05/06/2020), certo é que não constando tal facto nem do acervo dos factos considerados como provados, nem do acervo dos factos julgados como não provados, impunha-se ao Apelante, se assim o entendia como relevante, integrar o dito facto nos factos a aditar à decisão relativa à matéria de facto da sentença recorrida, o que não fez, conforme se percebe da leitura dos pontos 10 e 57 das suas conclusões recursivas aperfeiçoadas, que não aludem a tal facto.
Do exposto, se decide julgar improcedente a impugnação apresentada pelo Apelante também quanto ao ponto de facto vertido sob o ponto 17.

O Apelante impugnou, ainda, o facto vertido sob o ponto 18 do segmento destinado aos factos considerados como provados, que possui o seguinte teor:
“18. Depois de ficar viúvo (25.03.2017), … começou a passar mais tempo com a Ré, que o apoiava, cuidava da lida doméstica, com quem partilhava refeições dentro e fora de casa e o acompanhava às consultas médicas, permanecendo no hospital sempre que este era internado.”
O Apelante pretende que seja conferida uma redacção diferente ao facto em apreço, pugnando pela seguinte:
“Depois de o de cujus (…) ficar viúvo (25.03.2017), a Ré, enquanto sua cuidadora começou a passar mais tempo consigo, a qual, no cumprimento dos seus deveres, o apoiava, cuidava da lida doméstica, partilhava refeições, dentro e fora de casa e o acompanhava ao hospital às consultas médicas e quando era internado.”
Sustenta a solução que preconiza em excerto do depoimento de parte da Apelada, assim como das testemunhas (…) e de (…), prestados em audiência final.
A nosso ver a pretendida modificação da redacção do ponto de facto ora em apreciação não reveste qualquer relevo atento o objecto do presente litigio, sendo certo, por outra banda, que o Tribunal recorrido não deixou de, também quanto a ele, expressar a sua convicção de forma analítica, crítica e concatenando entre si vários depoimentos prestados.
Aliás, sempre se acrescentará que a Apelada podia perfeitamente ter passado a viver na casa do testador mantendo, ainda assim, este último distanciamento físico e emocional relativamente a ela.
Termos em que também quanto ao facto vertido sob o ponto 18 do segmento dos factos considerados como não provados improcede a impugnação do Apelante.
Em sede de factos considerados como provados na sentença recorrida o Apelante impugnou, ainda, o que consta vertido sob o ponto 19, o qual possui a seguinte redacção:
“19. O contacto entre o Autor e o seu pai diminuiu de frequência, em comparação com a altura em que a mãe/esposa de ambos estava viva”.
Entende o Apelante que este facto deveria ter sido considerado como não provado.
Sustenta a sua posição em excertos das suas próprias declarações de parte, bem como dos depoimentos das testemunhas, que arrolou, … e … (cunhado e esposa, respectivamente, do Apelante).
Lendo a motivação plasmada na sentença recorrida percebemos, contrariamente ao defendido pelo Apelante, não ter o Tribunal a quo na formação da sua convicção quanto à prova deste facto assente a mesma unicamente no depoimento de parte prestado pela Apelada.
Com efeito, resulta do segmento da motivação o seguinte:
“A testemunha (…), empresária na área do alojamento local, disse conhecer muito bem o testador, vendo-o desfeito no funeral da Tia … (como tratou a mãe falecida do Autor), todavia, só privava com o mesmo quando o Autor se encontrava em Setúbal, tendo estado com ele cada vez menos, situando a última vez no verão de 2017.
A testemunha (…), também empresário, diz que privava mais com a família quando o Autor vinha a Setúbal, mas que por causa de uma doença pessoal do próprio Autor, não o viu nos anos de 2018, nem 2019, sendo que antes disso via o Autor com mais frequência (itálicos nossos).
Situando-se os meios probatórios invocados pelo Apelante também quanto a este ponto de facto no plano da prova não vinculada, pois de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 466.º do CPC, “O tribunal aprecia livremente as declarações de parte, salvo se as mesmas constituírem confissão” (confissão que no tocante a este facto, por não ser desfavorável ao Apelante em face da posição sustentada por si, não se aplica), não se prefiguram razões para desconsiderar os meios probatórios relevados pelo Tribunal a quo, na sentença recorrida, tanto mais que as testemunhas (…) e (…) para além de não possuírem relações familiares com o Apelante, até foram arroladas pelo próprio.
Do exposto, considera-se também improcedente a impugnação apresentada pelo Apelante no tocante ao facto vertido sob o ponto n.º 19 do segmento respeitante aos factos considerados como provados na sentença recorrida.
Aqui chegados, prossigamos com a abordagem da impugnação dirigida aos factos considerados na sentença recorrida como não provados, a saber os vertidos nas alíneas A), B) e C) do respectivo segmento.
Considera o Apelante ter sido incorrectamente julgado o facto descrito na alínea A), sustentando que deveria ter sido considerado como provado.
Da mencionada alínea A) resulta não se ter provado o seguinte:
“A) Que houvesse um contacto permanente entre o Autor e o seu pai (…) depois da morte da mãe do Autor.”
O Apelante pretende que se considere provado que:
“Manteve-se o contacto entre o Autor e o seu pai (…), depois da morte da sua mãe.”
Para o efeito invocou como meios probatórios precisamente os que referiu como fundamento para impugnação do facto considerado como provado vertido sob o ponto 19, impondo-se ainda acrescentar que o Apelante entende dever considerar-se como provado o facto vertido sob a alínea A), com a redacção que apresentou, como contraponto da consideração como não provado do facto vertido sob o ponto n.º 19 do segmento da sentença recorrida atinente aos factos considerados como provados.
Sucede que, conforme apreciado supra, a impugnação apresentada contra o dito facto provado vertido sob o ponto 19 foi considerada improcedente.
De todo o modo, sempre se dirá que a solução proposta pelo Apelante para a alínea A) ora em apreciação nem sequer contraria frontalmente o facto provado vertido no aludido ponto n.º 19 dado que a redacção conferida na sentença recorrida a este último não exclui a manutenção de contactos entre o testador e o Apelante depois da morte da mãe deste último frisando apenas que o contacto diminuiu de frequência o que acarreta a indemonstração da existência de contactos permanentes entre os dois após o falecimento de (…).
Destarte, improcede a impugnação do Apelante no tocante ao facto considerado como não provado vertido na alínea A).
Impugnou, ainda, o Apelante, considerando-o incorrectamente julgado, o facto vertido sob a alínea B) do segmento da sentença recorrida destinado aos factos considerados como não provados.
Dessa alínea resulta que não se provou o seguinte:
“Que a Ré se tenha aproveitado de uma situação de fragilidade do testador para lhe manipular a vontade.”
Pretende o Apelante que se considere como provado que:
“A Ré aproveitou-se da situação de fragilidade do testador para lhe manipular a vontade”.
Para o efeito invocou como meios probatórios precisamente os que referiu como fundamento para impugnação do facto considerado como provado vertido sob o ponto 16., impondo-se ainda acrescentar que o Apelante entende dever considerar-se como provado o facto vertido sob a alínea B), com a redacção que apresentou, como contraponto da consideração como não provado do facto vertido sob o ponto n.º 16 do segmento da sentença recorrida atinente aos factos considerados como provados.
Sucede que, conforme apreciado supra, a impugnação apresentada contra o dito facto provado vertido sob o ponto 16 foi considerada improcedente.
Na conformidade exposta julga-se assim também improcedente a impugnação do Apelante dirigida contra o facto julgado como não provado na sentença recorrida vertido sob a alínea B).
Por fim, impugnou o Apelante o facto vertido na alínea D) dos factos considerados na sentença recorrida como não provados, considerando-o incorrectamente julgado naquela.
Dessa alínea resulta que não se provou o seguinte:
“Que (…) estivesse numa situação de inferioridade relativamente à Ré, nem que a dependência dos seus cuidados fizesse com que aquele acedesse a todas as vontades da Ré.”
Pretende o Apelante que se considere provado o circunstancialismo fáctico vertido na dita alínea com a seguinte redacção:
“Que as circunstâncias provadas, quanto à sua idade, doença e fragilidade, permitem com segurança presumir que (…) estava numa situação de dependência e inferioridade relativamente à Ré e que a dependência dos seus cuidados fez com que aquele acedesse por vezes a algumas vontades da Ré.”
Para o efeito invocou como meios probatórios que impunham a diversa solução que defende os mesmos que apontou na impugnação dirigida contra o facto provado vertido sob o ponto 16.
Ora, como facilmente se percebe, a redacção pretendida pelo Apelante recorrendo a expressões como “permitem com segurança presumir” não é apta a ilustrar devidamente factos concretos e naturalísticos antes revelando um juízo patentemente conclusivo e opinativo sobre factos reais, que não pode ser parte integrante e estruturante de um facto tido como essencial, ou mesmo como complementar/concretizador de um facto essencial.
Mas ainda que assim não se entenda sempre será de lembrar que a demonstração do facto considerado como não provado vertido sob a aludida alínea D) implicaria, no essencial, contradição com o facto considerado como provado vertido sob o ponto 16, cuja impugnação considerámos supra como improcedente, sendo certo, por outra banda, que a eventual prova de que o testador “acedesse, por vezes, a algumas vontades da Ré”, jamais poderia constituir premissa válida e segura para presumir que uma dessas vontades se identificasse com os termos do testamento outorgado em 30/11/2018, a cujo conteúdo alude o facto provado na sentença recorrida vertido sob o ponto n.º 8.
Na conformidade exposta considera-se improcedente a impugnação do Apelante dirigida contra a mencionada alínea D) do segmento dos factos considerados como não provados na sentença recorrida.
Termos em que resultam totalmente improcedentes as conclusões recursivas no tocante à suscitada impugnação dirigida contra a decisão relativa à matéria de facto, mantendo-se inalterado o segmento dos factos considerados como provados, assim como o segmento dos factos considerados como não provados, descriminados na sentença recorrida.
*
3- Reapreciação de mérito
Da invocada nulidade do testamento:
Pretende o Apelante que se declare a nulidade do testamento outorgado em 30/11/2018 pelo testador (…), pai do Apelante, a que alude o facto vertido no ponto 8 do segmento dos factos considerados como provados na sentença recorrida sustentando que se provou que a vontade do testador não correspondia ao declarado no testamento em apreço.
Preceitua o artigo 2199.º do Código Civil o seguinte:
É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.”
O artigo 2201.º do mesmo diploma legal prevê que:
É também anulável a disposição testamentária determinada por erro, dolo ou coação.”
Decorre, outrossim, do artigo 251.º do Código Civil que:
O erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247.º”.
Por seu turno, resulta do artigo 247.º do Código Civil o seguinte:
“Quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.”
Isto significa que o declarante tem de provar não só que existiu um erro, como ainda provar os requisitos de relevância do erro na declaração.
Sobre estes dois requisitos, que são cumulativos, refere Carlos Ferreira de Almeida o seguinte (“Contratos V Invalidade”, Almedina, 2018 - Reimpressão, pág. 124):
“1º a essencialidade do erro para o declarante, que se apura por um juízo de prognose pelo qual se conclua que o contraente em erro não teria contratado […] se se tivesse apercebido do erro, isto é, não celebrado o contrato ou não o teria celebrado com o conteúdo que resulta da sua declaração;
2º A cognoscibilidade dessa essencialidade pelo declaratário, isto é, que a outra parte saiba ou, nas circunstâncias concretas, esteja em situação de saber que a parte em erro não teria celebrado o contrato ou não o teria celebrado com o conteúdo que resulta da sua declaração.
[…]
O elemento contratual em erro pode ser qualquer um (pessoa, objecto, função ou circunstância); exemplos: Erro sobre a identificação da outra parte, sobre a quantidade ou qualidades do objeto (dinheiro ou outro), sobre o tipo contratual, sobre a data indicada como termo, sobre o local de cumprimento“.
Já do artigo 253º, n.º 1, do Código Civil decorre que:
1. Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante.”
No artigo 255.º do Código Civil estatui-se, sobre “coacção moral”, que:
1. Diz-se feita sob coação moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração.”
E no artigo 257.º, respeitante a “incapacidade acidental”, encontra-se previsto que:
1. A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário.
2.O facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar.”
Por fim, de assinalar que de acordo com o disposto no artigo 287.º do Código Civil:
1. Só têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece e só dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento.”
Aqui chegados e retornando ao caso vertente e concretamente aos factos considerados como provados na sentença recorrida, temos de convir que o Apelante não logrou conseguir demonstrar que na base do testamento outorgado em 30/11/2018 tenha estado um erro determinante da vontade do testador em fazê-lo da forma que o fez, nem que o mesmo tenha sido alvo de sugestão ou artificio doloso da parte da Apelada, assim como que esta tenha exercido coacção moral sobre aquele para que outorgasse o dito testamento pela forma que o fez.
Tão pouco resultou demonstrado que o testador estivesse incapacitado, ainda que acidental, ou transitoriamente, à data da outorga do dito testamento que teve lugar em 30/11/2018.
Diga-se, aliás, que da conjugação entre si da matéria factual vertida sob os pontos nºs 16, 21., 22.º, até resultou provado precisamente o contrário designadamente no tocante à questão do erro sobre a formação da vontade, bem como da invocada incapacidade acidental do testador.
Assim e no tocante à alegada ‘nulidade’ do testamento improcedem necessariamente as conclusões recursivas do Apelante.

- Da anulabilidade por usura da deixa testamentária.
No segmento reservado à matéria de direito das suas conclusões recursivas aperfeiçoadas invoca ainda o Apelante a anulabilidade da deixa testamentária (usufruto sobre imóvel), a favor da Apelante constante do testamento outorgado em 30/11/2018 com fundamento em usura.
Decorre do artigo 282.º, n.º 1, do Código Civil o seguinte:
É anulável, por usura, o negócio jurídico quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.”
Extrai-se desta norma a existência de requisitos objectivos e subjectivos, cumulativos entre si.
O requisito objectivo está previsto na parte final do preceito e traduz-se na “promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados” enquanto o requisito ou elemento subjectivo está previsto na restante parte do normativo em causa.
Ao abordar a parte final do preceito diz-nos Carlos Ferreira de Almeida o seguinte:
“É o requisito objetivo, que se aproxima da antiga lesão. Dito de outro modo para que um contrato seja usurário é necessário, além do mais, que no seu conteúdo se verifique desequilíbrio, por desproporção excessiva, ou vantagem injustificada de prestações (“promessa”) ou de atribuições patrimoniais não obrigacionais (“concessão”) – (obra cit., pág. 157).
E continua o referido Autor, a propósito do elemento subjectivo, com as seguintes considerações:
“Elemento subjetivo relativo ao lesado é, em alternativa, a “situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter”, que, de modo mais sintético, se pode dizer situação de inferioridade (ou debilidade ou vulnerabilidade), do declarante” (obra cit., pág. 159).
[…]
Os elementos subjetivos atinentes ao usurário são dois, ambos relacionais e causais: a exploração (por causa) da situação de inferioridade de outrem; e o aproveitamento dessa situação em seu benefício ou de terceiro.
[…]
É pacífico que todos estes requisitos, objetivos e subjetivos, se devem verificar com referência ao tempo da celebração do contrato (o que reforça a categorização da usura no elenco dos vícios de formação)” (obra cit., pág. 160).
Baixando de novo ao plano dos factos considerados como provados na sentença recorrida percebemos que da análise dos mesmos não resulta estarem preenchidos os requisitos objectivos e subjectivos da figura da usura, a que supra se acabou de aludir.
Com efeito a este propósito a tese do Apelante alicerça-se essencialmente na consideração como não provado do facto vertido sob o ponto n.º 16 do segmento dos factos considerados como provados e como provados os factos vertidos sob as alíneas B) e D) do segmento destinado aos factos considerados como não provados.
Ora, como já sabemos, a impugnação apresentada pelo Apelante relativa à decisão sobre a matéria de facto descriminada na sentença recorrida improcedeu na totalidade.
De resto, sempre se acrescenta que caso se venha a verificar em sede de partilha que a deixa testamentária de que é beneficiária a Apelada é passível de exceder aquilo a que legalmente a mesma pode aceder poderá/deverá funcionar o mecanismo da redução conforme expresso, aliás, na sentença recorrida, no âmbito de processo próprio para o efeito, que é o processo de inventário.
Pelo que improcedem necessariamente as considerações recursivas aperfeiçoadas no tocante também a esta última questão.
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V – DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta 1ª Secção Cível em negar provimento ao recurso de apelação interposto por (…) e, em consequência, decidem:
b) Confirmar a sentença recorrida;
c) Condenar em custas o Apelante – artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC.
*
DN
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Évora, 12/05/2022
José António Moita (Relator)
Mata Ribeiro (1º Adjunto)
Maria da Graça Araújo (2º Adjunto)