Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
88/19.0T8VRS.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: INCIDENTES DA INSTÂNCIA
PROCESSO
AUTONOMIA
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
TRIBUTAÇÃO
CUSTAS
Data do Acordão: 05/06/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: SUMÁRIA
Sumário:
I – O incidente processual é a ocorrência extraordinária, acidental, estranha, surgida no desenvolvimento normal da relação jurídica processual, que origine um processado próprio, isto é, com um mínimo de autonomia, ou dito de outro modo, uma intercorrência processual secundária, configurada como episódica e eventual em relação ao processo próprio da ação principal.
II – Nesta ótica, a arguição de nulidade de uma decisão não consubstancia atividade estranha ao normal andamento do processo e, como tal, não pode ser tributada como incidente nos termos do nº 4 do artigo 7º do Regulamento das Custas Processuais. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:

DECISÃO SUMÁRIA:

Recurso próprio, tempestivo e recebido no efeito devido, nada obstando ao seu conhecimento.
*
Ao abrigo do disposto no artigo 656º do Código de Processo Civil, atenta a simplicidade da questão a decidir, profere-se a seguinte Decisão Sumária:

I - RELATÓRIO
U…, Lda., veio recorrer da decisão que julgou parcialmente procedente o procedimento cautelar comum contra si instaurado por T…, SA e TU…,, Lda., requerendo a atribuição do efeito suspensivo ao recurso e oferecendo-se a prestar caução, alegando que a execução da decisão lhe causa um prejuízo considerável.
Foi proferida decisão a indeferir a pretensão da recorrente, tendo sido fixado ao recurso o efeito devolutivo.
Estando já os autos neste Tribunal da Relação, apresentou a requerida/recorrente um requerimento a arguir a existência de uma nulidade, sobre o qual recaiu o despacho do relator de 15.01.2020, do seguinte teor:
«Referência 219651:
Vem a recorrente “U..., Lda.” arguir uma nulidade processual, decorrente do facto de a secretaria judicial do Tribunal a quo ter remetido o processo a este Tribunal da Relação, sem que tivesse aberto conclusão à Sr.ª Juíza para esta se pronunciar sobre a arguição de nulidade “do despacho de indeferimento do efeito suspensivo do recurso interposto por aquela, assim como do indeferimento das nulidades da sentença invocada”.
E tem efetivamente razão a recorrente, pelo menos no que respeita à primeira das invocadas nulidades, pois estando em causa uma decisão sobre o efeito do recurso, e atenta a natureza incidental do requerimento de atribuição de efeito suspensivo ao recurso, nos termos do nº 4 do art. 647º do CPC, a decisão proferida é naturalmente impugnável nos termos gerais, pelo que os autos deviam ter aguardado o decurso do prazo de recurso daquela decisão antes de terem subido a esta Relação.
Assim, baixem os autos à 1ª instância, para que a Sr.ª Juíza a quo aprecie o requerimento de arguição de nulidades a que se alude supra.
Notifique.»
Baixados os autos à 1ª instância foi proferido o seguinte despacho:
«Fls. 240 a 241
O requerimento supra configura uma reclamação ao despacho judicial que admitiu o recurso interposto, tendo o admitido em termos distintos do pretendido pelo recorrente, designadamente quanto ao efeito que lhe atribuído, e, desse modo, constitui um incidente processual tributado nos termos da Tabela II ao Regulamento das Custas Processuais.
Assim sendo, notifique o reclamante para, em 10 dias, proceder à junção de documento comprovativo da taxa de justiça omitida, acrescido de multa de igual montante, mas não inferior a 1UC, nos termos do artigo 642 n.º 1 do CPC.»
Inconformada, apelou a requerida/recorrente, concluindo a respetiva alegação com as seguintes conclusões:
«A. Entende a aqui Recorrente que não há lugar a pagamento de taxa de justiça devida pela apresentação do requerimento datado de 16/12/2019, nos termos do art. 7.º n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais assim como da Tabela II anexa ao mesmo.
B. Sendo que, e como tal, também não há lugar ao pagamento à multa devida pela omissão do pagamento da taxa de justiça em questão nos termos do art. 642.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
C. Normas essas que se encontram violadas pelo despacho citado supra.
D. O despacho em questão labora em erro de julgamento quando assume que a invocação de nulidades tais como aquelas que foram efectuadas pelo requerimento datado de 16/12/2019 corresponde a um incidente processual.
E. Pois, um incidente corresponde a um processo secundário, episódico e eventual que surge durante o andamento do processo principal e que carece de decisão por forma a que este prossiga os seus trâmites com regularidade.
F. E, nesse sentido prevê o art. 1.º n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais quando refere que “Para efeitos do presente Regulamento, considera-se como processo autónomo cada acção, execução, incidente, procedimento cautelar ou recurso, corram ou não por apenso, desde que o mesmo possa dar origem a uma tributação própria” (sublinhado e negrito nosso).
G. E é essa tributação própria que a invocação das nulidades tal como foi efectuada pela aqui Recorrente no requerimento datado de 16/12/2019 não merece.
H. Ou seja, as nulidades processuais estão previstas nos arts. 186.º a 202.º do Código de Processo Civil prevendo o art. 195.º do mesmo diploma que a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
I. Assim, o que está em causa é garantir que a causa principal seja examinada e decidida sem irregularidades que possam influir na mesma.
J. E isto sem contar com o facto de as partes poderem, também, invocar nulidades de conhecimento oficioso tais como a falta de citação.
K. A invocação de uma nulidade processual corresponde sim à tramitação regular do processo principal não podendo dar origem a uma tributação própria.
L. Aliás a aqui Recorrente invocou uma nulidade processual junto do Venerando Tribunal da Relação de Évora, por requerimento datado de 21/12/2019, tendo o mesmo sido decidido sem que aquele Tribunal superior tivesse determinado a notificação da Recorrente para em 10 dias, proceder à junção de documento comprovativo da taxa de justiça omitida, acrescido de multa de igual montante, mas não inferior a 1UC, nos termos do artigo 642 n.º 1 do Código de Processo Civil interpretando correctamente as normas constantes dos arts. 7.º n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais assim como da Tabela II anexa ao mesmo e 642.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
M. E, não é demais referir que o princípio do Estado de Direito concretiza-se através de elementos retirados de outros princípios, designadamente, o da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos expressamente consagrado no art. 2.º da Constituição da República Portuguesa.
N. Sendo que no nosso caso em concreto, uma das partes processuais vê-se na contingência de invocar uma nulidade junto de um Tribunal Superior sem que lhe seja exigida a liquidação prévia de qualquer taxa de justiça (vide requerimento datado de 21/12/2019 e despacho datado de 15/01/2020) e, quando o faz junto do Tribunal de 1.ª Instância ver-se confrontado com uma notificação escudada num despacho que impõe não só o pagamento de tal taxa de justiça como ainda o pagamento de uma multa correspondente (vide requerimento datado de 16/12/2019 e despacho datado de 22/01/2020).
O. Pelo que a prolação de tal despacho, para além corresponder a uma incorrecta aplicação do art. 7.º n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais e do art. 642.º n.º 1 do Código de Processo Civil, corresponde ainda a uma violação do Princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos plasmado no art. 2.º da Constituição da República Portuguesa.
P. Sendo qualquer interpretação desses normativos que inclua a invocação de uma nulidade processual no âmbito do art. 1.º n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais será inconstitucional numa perspetiva material o que expressamente se invoca.
Q. E mais, caso assim não se entenda tal entendimento derivará numa desproporção excessiva entre as custas processuais e o serviço de justiça prestado sendo inconstitucional por violador do princípio da proporcionalidade e do direito de acesso à justiça (cfr. Arts. 2.°, 13.°, 18.° n.° 2 e 20.° da Constituição da República Portuguesa) inconstitucionalidade que expressamente se invoca.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Face às conclusões da recorrente, a única questão a decidir é de saber se, contrariamente ao que foi decidido, não é devida taxa de justiça pelo requerimento apresentado pela requerida/recorrente no qual arguiu a nulidade do despacho que indeferiu a fixação do efeito suspensivo ao recurso.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os que constam do relatório precedente.

O DIREITO
O incidente processual, como o definiu o Prof. Alberto dos Reis[1], aceitando como exata a definição de Mortara, «é uma forma processual secundária que apresenta, em relação ao processo da acção, o carácter de episódio ou acidente».
Já no domínio do Código das Custas Judiciais, identificando como um dos tipos de situação incidental as ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide, que devam ser tributadas segundo os princípios que regem a condenação em custas, escrevia Salvador da Costa[2] que «deve ser entendida de harmonia com o espirito da norma, a que preside a ideia de moderação tributária, devendo, em primeiro lugar, verificar-se a extraneidade ao desenvolvimento normal da lide, isto é, ser a questão suscitada descabida no quadro da sua dinâmica, e, em segundo lugar, estar em causa um mínimo de autonomia processual em relação ao processado da causa.»
De igual modo, no âmbito da anterior redação do nº 8 do artigo 7º do Regulamento das Custas Processuais, que definia como procedimentos ou incidentes anómalos «apenas aqueles que, não cabendo na normal tramitação do processo, possam ter sede em articulado ou requerimento autónomo, deem origem à audição da parte contrária e imponham uma apreciação jurisdicional de mérito», escreveu o mesmo Autor[3] que «a anomalia dos referidos procedimentos ou incidentes decorre de se não compatibilizarem com a normal tramitação das ações ou dos recursos, assumirem autonomia de instrumento de formulação e implicarem o cumprimento do princípio do contraditório e a apreciação jurisdicional de mérito.
Escreveu-se a este propósito no Acórdão desta Relação de 20.01.2015[4]:
«(…), parece-nos que o critério definidor do carácter anómalo da atividade processual causada pelo sujeito ou outro interveniente processual deve centrar-se nas ideias enfatizadas por Salvador da Costa. A lei exigirá que o processado se apresente como estranho ao que seja o desenvolvimento do processo, ou seja, tal como ditado pela sequência processual expressamente traçada na lei de processo ou pelo que deva considerar-se decorrer do exercício dos direitos dos sujeitos e outros intervenientes face à dinâmica da própria lide. Por outro lado, a atividade processual desencadeada deve assumir autonomia e relevância face ao normal processado da causa, pois este está abrangido pela tributação que é própria do processo».
Foi também este o entendimento seguido no Acórdão da Relação de Coimbra de 20.03.2019[5], onde se escreveu:
«Afigura-se-nos, pois, que será o não cabimento na tramitação normal do processo a ditar a natureza anómala do incidente. Dito de outro modo, estranho ao desenvolvimento da lide será o requerimento/arguição que se distancie da normalidade da tramitação, dando corpo a uma atividade ou conduta processual entorpecedora da ação da justiça. Ao invés, as questões que surjam no seio da dinâmica normal do processo e que não revistam um “caráter descabido” devem ser consideradas abrangidas na tributação específica da causa e não já objeto de tributação autónoma.»
Revertendo ao caso concreto, não se vê que o requerimento de arguição de nulidade traduza uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal da lide determinante de um grau sensível de perturbação do normal andamento do processo.
Na verdade, a nulidade foi suscitada no momento processual apropriado, sem que a sua invocação resulte totalmente descabida ou dilatória - surgindo antes, independentemente do respetivo mérito, fundamentada -, não tendo dado causa a um acréscimo anormal da atividade processual, tão pouco a uma excessiva demora na tramitação processual.
Conclui-se, assim, que a arguição da nulidade em causa não consubstancia atividade processual manifestamente impertinente, inútil, estranha ao normal andamento do processo e, como tal não pode ser tributada como incidente nos termos do nº 4 do artigo 7º do Regulamento das Custas Processuais, antes devendo ser encarada como abrangida pela tributação própria do processo.
O recurso merece, pois, provimento, devendo os autos baixar à 1.ª instância a fim de ser cumprido o despacho do relator de 15.01.2020.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos nos termos acima referidos.
Sem custas, em face da procedência do recurso e da não oposição das recorridas.

*
Évora, 6 de maio de 2020
Manuel Bargado (relator)
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[1] In Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3.º, p. 563.

[2] Código das Custas Judiciais, 8ª edição, 2005, Almedina, p. 168.

[3] Regulamento das Custas Processuais, 2011, 3ª edição, Almedina, p. 218.

[4] Proc. 43/11.9TANIS-A.E1, in www.dgsi.pt.

[5] Proc. 171/16.4GASEI-A.C1, in www.dgsi.pt.