Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
410/19.0T8OLH.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: SUPRIMENTOS
INSOLVÊNCIA
CASO JULGADO
MÁ FÉ
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O crédito decorrente de contrato de suprimento de que o recorrente é titular contra a recorrida não deixa de ser um crédito por suprimentos por ter sido reconhecido por sentença judicial.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Requerente: (…)
Recorrida / Devedora: (…) – Construção, Lda.

Os presentes autos consistem em processo de insolvência através do qual o Requerente peticionou se declare a insolvência da Requerida. Para tanto, alegou que detém crédito decorrente da condenação da Requerida a pagar-lhe o montante de € 201.584,75 (duzentos e um mil, quinhentos e oitenta e quatro euros e setenta e cinco cêntimos), no prazo de 90 (noventa) dias. Mais alegou que não são conhecidos quaisquer bens à requerida, tendo a mesma ocultado e dissimulado o seu ativo, num contexto em que aparenta ter cessado em definitivo a sua atividade, tendo, igualmente, interrompido os pagamentos a fornecedores e a instituições financeiras das quais era devedora e bem assim à Fazenda Pública e à Segurança Social. Considera ainda que a insolvência que vier a ser decretada deve ser qualificada de dolosa, já que a Requerida alienou, em 03/06/2016 (por valor muito abaixo do seu valor de mercado e, bem assim, por valor que se afigura igualmente inferior ao seu próprio valor aquisitivo) um imóvel, o que fez na sequência das interpelações para pagamento que lhe foram dirigidas pelo Requerente, que pretende que tal negócio seja resolvido em benefício da massa.
A Requerida deduziu oposição invocando que o Requerente já anteriormente havia instaurado no Tribunal da Comarca de Faro - Juízo do Comércio de Olhão ação idêntica à ora instaurada, à qual coube o n.º 406/17.6T8OAZ, e no âmbito da qual a requerida foi absolvida da instância por se ter aí considerado que o Requerente não tinha legitimidade para requerer a insolvência da requerida em face da natureza do crédito reclamado, já que se tratava de um crédito emergente de suprimentos. O Requerente instaura esta ação omitindo, de forma propositada, os factos que foram fundamento da decisão de absolvição da instância. A Requerida contraditou ainda a factualidade alegada pelo requerente (isto sem prejuízo de admitir a existência do crédito e a impossibilidade, em face da inexistência de património e da ausência de atividade, de proceder ao seu pagamento).

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida decisão, em sede de despacho saneador, conforme segue:
«Em face do exposto:
1) julgo procedente a exceção de caso julgado, e, consequentemente, absolvo a requerida (…) – Construção, Lda. da instância – cfr. artigos 278.º, al. e), 576.º, n.º 2, 577.º, al. i), 578.º, 579.º, 580.º, 581.º todos do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 17.º do CIRE.
2) julgo o requerente (…) litigante de má-fé, condenando-o, atenta o grau de censurabilidade da sua conduta, em multa processual que fixo em 10(dez) Ucs.»

Inconformado, o Requerente apresentou-se a recorrer, pugnando pela anulação da decisão recorrida, devendo os autos prosseguir para Audiência Prévia ou Julgamento conforme for decidido, absolvendo-o da litigância de má fé. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«A- Considerados assentes os 4 pontos dos “factos Provados” da sentença recorrida, verifica-se que ali não consta um facto importante e diferenciador, a saber:
- a sentença do processo 1563/16.4T8OAZ só foi proferida a 23/03/2018, cfr. consta da mesma, junta aos autos na PI como doc. nº 2, e tal sentença só transitou em julgado em Maio de 2018;
e
- a sentença no processo 406/17.6T80AZ foi proferida em 30/06/2016 e transitou em 25/07/2017, ou seja,
Conclui-se que o Recte quando propôs e Requereu a Insolvência da Rda no processo 406/17.6T8OAZ, ainda não tinha a sentença do processo 1563/16.4T8OAZ, facto que não consta assente como deveria.
B - A sentença deveria ter considerado provado o facto que:
“quando o A. propôs e Requereu a Insolvência da Rda no processo 406/17.6T8OAZ, ainda não tinha sido proferida a sentença do processo 1563/16.4T8OAZ, o que veio a alterar os factos e a perceção do A. sobre o seu crédito.”
C - É este o elemento diferenciador que se apresenta a concluir a V/EXAS, no sentido de não ser considerado caso julgado por existir esta diferença jurídica, porque quando o Recte instaura a ação de insolvência 406/17.6T8OAZ, fê-lo na convicção e fundamento no crédito por suprimento, este considerado como um crédito interno da empresa, de natureza contabilística e não firmada, sem exigibilidade e exequibilidade, e naquela data Certo, mas ainda Ilíquido ( desde logo por juros a contabilizar), e ainda NÃO Exigível, por falta de prazo e de natureza extrajudicial.
D - Ao ser proferida a sentença com transito no processo 1563/16.4 T8OAZ onze meses depois daquela sentença, o Recte forma a convicção e conclui que aquele reconhecimento alterou a tipologia do seu crédito, ou seja, este passou a ser um crédito certo, liquido e exigível, características que não possuía até essa data; passou a ser um crédito pecuniário reconhecido por sentença nos termos do artº 774º, 777º, 798º, 804º e 806º do Código Civil; passou a ser um crédito exigível à Sociedade, não por ser um suprimento, mas por ser uma obrigação jurídica pecuniária, deixando de ser aplicável o Código das Sociedades Comerciais, e passando a aplicar-se o Código Civil, facto que a sentença recorrida não considerou como provado, como deveria por força da Lei.
E - O Recte defende e conclui que a sentença proferida no processo 1563/16.4T8OAZ em maio de 2018, sana a ilegitimidade julgada no processo 406/17.6T8OAZ, pelo que não é de aplicar as normas dos arts. 278º, al. e), 576º, nº 2, 577º, al. i), 578º a 581º todos do Código Processo Civil, como aplicou.
F - O Recte defende e conclui que por força da sentença proferida no processo 1563/16.4T8OAZ deixou de ter um crédito por suprimento regulado pelo Código das Sociedade Comerciais, para passar a ser um crédito emergente de obrigação pecuniária regulado pelo Código Civil, devendo ser aplicados os artigos 774º, 777º, 798º, 804º e 806º do Código Civil, o que o Tribunal recorrido não aplicou.
G - O Recte defende e conclui que o seu crédito se alterou na forma e tipologia (mas não no valor), passando a assumir natureza de obrigação judicial cível, em vez de comercial, motivo em que fundamenta o recurso, concluindo não ser de considerar a exceção e consequências de CASO JULGADO.
H - Defende e conclui que no caso dos autos deve prevalecer e ser aplicado o disposto no artº 20º, nº 1, do CIRE sobre o artº 245º, nº 2, do CSC, e não o contrário como decidiu a sentença, por ser o CIRE o Código e legislação especial aplicável que derroga a legislação geral das Sociedades Comerciais, até porque o CIRE persegue interesse universais, públicos e interesses maiores quando comparados com os interesses menores e internos apenas atinentes às Sociedades Comercias.
I - Conclui-se que apesar do crédito do Recorrente ser um crédito civil (e não comercial) a partir do momento que foi reconhecido e determinado por sentença transitada, continuaria a ser um crédito classificado como subordinado perante a Insolvente, decorrente da sua relação especial enquanto sócio da Devedora, nos termos dos artº 48º, al. a) e artº 49º, nº 2, al. a), do CIRE, não beneficiando por isso, ou obtendo qualquer vantagem.
J - Conclui-se que não existe nem o Recte pretendia fraude à Lei, nem alcançaria nenhuma vantagem especial nos autos, uma vez que o seu crédito manteria inalterada a mesma classe de “subordinado” apesar do crédito do Recorrente ter deixado de ser por suprimentos, também este crédito subordinado nos termos do artº 48º, al. g), do CIRE.
K - O Recte não aceita ter usado de dolo ou negligência grave para cometimento dos factos de que foi acusado na sentença, previsto nas alíneas a) e b) do nº 2 do artº 542º do CPC, porquanto alegou e juntou a sua qualidade e o seu crédito logo no artº 1º da PI, e anexou logo os documentos nºs 1 (certidão de registo comercial) e doc. nº 2 (sentença), que comprovam a sua qualidade e o seu crédito.
L - A Rda confessou na Contestação que não pagou nem paga esse crédito, sendo evidente, objetivo e confessado que não exerce qualquer atividade nem tem qualquer rendimento, pelo que a situação de insolvência da Devedora é reconhecida e comprovadamente real, atual e irreversível.
M - Conclui-se ser despropositado e infundado ser o A. condenado como litigante de má fé na defesa do seu interesse económico avultado, quando também o Tribunal “a quo” já falhou na contagem de prazos com todas as consequências daí resultantes e relevantes, nomeadamente prolação da Sentença de Insolvência, nomeação de Administrador Judicial, notificação ao Ministério Público, abertura do incidente de qualificação de insolvência culposa, e demais procedimentos legais decorrentes da declaração de Insolvência, atentos os factos que evidenciam gravidade da Devedora, e nem por isso o Tribunal atuou de má fé.
N - Também não atua de má fé quando a Reqda confessa na Contestação o seu débito ao Autor na ordem dos € 200.000,00 e este se veja obrigado a recorrer aos Tribunais para (tentar) fazer cumprir a Lei das Insolvências.
O - Crê-se que a Justiça não se impõe aos Cidadãos nem se faz respeitar, quando erra na sua conduta e profere uma sentença que seguidamente anula por falha sua na contagem dos prazos por diferente interpretação da Lei – aplicação das Dilação –, e depois condena o Cidadão que a essa Justiça recorreu, quando este alega, comprova, fundamenta e justifica a sua conduta, a sua lógica, o seu raciocínio, ainda que não mereça procedência.
P - Não deve ser o Recorrente condenado como litigante de má-fé, nem condenado ao pagamento da multa de 10 UC´s ou outra, devendo a sentença recorrida improceder nesta parte e ser revogada, por falta do elemento “dolo” ou negligência grave legalmente exigida pelo artº 542º, nº 2, do CPC.
Q - A condenação como mau litigante foi feita no Saneador Sentença, pelo que o A. não foi ouvido ou questionado pela Mertº juiz da causa quanto à sua situação económica e à repercussão desta condenação na sua vida, nos termos e para efeitos exigidos pelo artigo 27º, nº 4, do Regulamento das Custas Processuais, o que se invoca.
R - Quanto ao reflexo na tramitação da causa (artº 27º, nº 4, RCP, parte final), a conduta do A. não omitiu ou pretendeu omitir factos relevantes, nem sequer os ocultou, tendo até alegado logo no artº 1º da PI a factualidade de sócio e juntou a Certidão Comercial da Empresa, bem como a Sentença geradora do seu crédito, pelo que não impediu ou dificultou o seu normal andamento.
S - O que causou um volume excecional de trabalho nos autos foi a prolação de Sentença de Insolvência provocada por erro do Tribunal recorrido na contagem de prazos e Dilação, com avultada pratica processual desnecessária, mas não podendo, a final, vir a ser assacado ao A. por tudo quanto de mal se passou nos autos.
T - Quanto a situação económica do agente (artº 27º, nº 4, RCP, parte final), uma vez que a condenação como litigante foi feita em Saneador sentença, o Juiz da causa não conheceu a situação económica do A., pelo que não pode condenar como litigante de má fé, em violação do artº 27º, nº 4, RCP.
U - Considerando a situação de pobreza do A., a multa que eventualmente vier a ser condenado, teria de respeitar esta situação económica limite, e ser fixada pelo mínimo legal, 2 UC´s – valor que mesmo assim o A. não terá meios para pagar.
V - Quanto à a repercussão da condenação no património do A. (artº 27º, nº 4, RCP, parte final), a aplicação de multa de 10 UC´s, ou outra, faz incorrer o A. em situação de insolvência imediata, ou pelo menos iminente, que não lhe restará alternativa senão requerer a declaração da sua situação de Insolvência.
X - Não é este o objeto nem a “ratio legis” da condenação como litigante, pelo que a Decisão deve ser revogada nesta parte ao violar o disposto no artº 27º, nº 4, do RCP por não ter considerado estas factualidades.
Z - Ainda que o A. tenha sido notificado para exercer o contraditório contra a eventual condenação como litigante, o que fez, o Mert. Juiz da causa não ordenou que comprovasse, alegasse ou indicasse a sua situação económica, razão pela qual o convite ao contraditório não sana esta ilegalidade do artº 27º, nº 4, do RCP, padecendo de erro na aplicação do Direito, bem como de vício de fundamentação, ao condenar o A. por Litigância de Má-fé sem observar todos os pressupostos do artº 27º, nº 4, do Regulamento das Custas Processuais,
AA - Todo o quantum resultante da aplicação da Má-fé, teria de respeitar a proximidade com os limites mínimos, pois esse quantum obedece a critérios de “prudente arbítrio” e razoabilidade, adequação e proporcionalidade, o que a Sentença não observou e por isso impõem-se a sua revogação.
AB - A omissão da Sentença recorrida nesta parte traduz-se em nulidade, nos termos do artº 195.º, nº 1, do CPC, o que se invoca com a consequente nulidade da sentença nesta parte.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
- do caso julgado;
- da litigância de má-fé.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1) Em 27 de Março de 2017 o ora requerente (…) instaurou contra a sociedade requerida processo de insolvência que deu origem ao Proc. nº 406/17.6T8OAZ do Tribunal Judicial da Comarca de Faro-Juízo de Execução de Olhão, tendo para o efeito alegado ser credor de um crédito, no montante de € 201.584,75 (duzentos e um mil, quinhentos e oitenta e quatro euros e setenta e cinco cêntimos), emergente de suprimentos, por si efetuados à sociedade.
2) No âmbito dos autos de insolvência mencionados em 1) foi declarada, por decisão datada de 30.06.2016 e transitada em 25.07.2017, a ilegitimidade do requerente para requerer a declaração de insolvência da requerida, em face do regime constante do art.º 245.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, tendo sido decidida a absolvição desta última, ou seja, da requerida, da instância.
3) No dia 01 de 2019, o ora requerente (…) veio novamente, com a instauração dos presentes autos, requerer a declaração de insolvência da sociedade (…) – Construção, Lda., alegando, nomeadamente, entre outros factos, ser detentor de um crédito, sobre a requerida, no montante de € 201.584,75 (duzentos e um mil, quinhentos e oitenta e quatro euros e setenta e cinco cêntimos), o qual se encontrava reconhecido por sentença já transitada em julgado e que havia sido proferida no âmbito do Proc. n.º 1563/16.4T8OAZ do Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo de Execução de Olhão.
4) Da decisão proferida no âmbito do Proc. n.º 1563/16.4T8OAZ, para a qual o requerente remete na petição que deu origem a estes autos, resulta que o crédito que aí foi declarado tem a sua origem em suprimentos efetuados à requerida, pelo ora requerente, na qualidade de sócio da mesma.

B – O Direito
Do caso julgado
Absolvida que foi a Recorrida da instância com fundamento na procedência da exceção dilatória do caso julgado, o Recorrente invoca que é distinto o crédito de que se arroga titular numa e noutra ação. Por força da sentença condenatória que veio a reconhecer o crédito e a condenar a Recorrida no respetivo pagamento, aquele que era um crédito por suprimento, um crédito interno da empresa, de natureza contabilística e não firmada, sem exigibilidade e exequibilidade, passou a ser um crédito certo, líquido e exigível, um crédito pecuniário reconhecido por sentença nos termos dos arts. 774.º, 777.º, 798.º, 804.º e 806.º do Código Civil; passou a ser um crédito exigível à sociedade, não por ser um suprimento, mas por ser uma obrigação jurídica pecuniária, deixando de ser aplicável o Código das Sociedades Comerciais, e passando a aplicar-se o Código Civil.
Ora vejamos.
O Recorrente instaurou contra a sociedade Recorrida o processo a que foi atribuído o n.º 406/17.6T8OAZ do Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo de Execução de Olhão com vista à declaração de insolvência da Recorrida. Nele invocou ser titular de um crédito no montante de € 201.584,75 emergente de suprimentos por si efetuados à sociedade. Tal processo culminou na decisão de absolvição da Requerida da instância, por ilegitimidade, com fundamento no disposto no art. 245.º/2 do CSC.[1]
A presente ação, instaurada a 01/04/2019, tem em vista a declaração de insolvência da Requerida, sendo que o crédito de que o Recorrente se arroga ascende ao montante de € 201.584,75, reconhecido por sentença já transitada em julgado e que havia sido proferida no âmbito do Proc. n.º 1563/16.4T8OAZ do Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo de Execução de Olhão. Crédito esse que decorre dos suprimentos efetuados pelo Recorrente à Requerida, que tinham sido alegados no Proc. n.º 406/17.6T8OAZ.
Certo é que se decidiu, por decisão transitada em julgado, pela absolvição da Requerida da instância com fundamento no regime inserto no artigo 245.º/2 do CSC já que o crédito invocado tinha origem em suprimentos.
Nos termos do disposto no artigo 580.º, n.º 1, do C.P.C., o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, repetição que se verifica quando a primeira causa foi já decidida por sentença que já não admite recurso ordinário. Constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, cuja verificação impede que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição do réu da instância – arts. 576.º, n.º 2 e 578.º do CPC.
Como ensinam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[2], “o caso julgado, tornando a decisão em princípio imodificável, visa exatamente garantir aos particulares o mínimo de certeza do Direito ou de segurança jurídica indispensável à vida de relação”. Assim, “o caso julgado visa essencialmente a imodificabilidade da decisão transitada e não a repetição do juízo contido na sentença. Não se pretende que os tribunais, doravante, confirmem ou ratifiquem o juízo contido na sentença transitada, sempre que a questão por ela julgada volte a ser posta, direta ou indiretamente, em juízo. O que essencialmente se exige, em nome do caso julgado, é que os tribunais respeitem ou acatem a decisão, não julgando a questão de novo”. Nas palavras de Manuel de Andrade[3], o caso julgado consiste em “a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objetivo ou à atuação dos direitos subjetivos privados correspondentes, mas também à paz social.”
«O trânsito em julgado, conforme decorre claramente do art. 628.º do CPC, ocorre quando uma decisão é já insuscetível de impugnação por meio de reclamação ou através de recurso ordinário. Verificada tal insusceptibilidade, forma-se caso julgado, que se traduz, portanto, na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu.
Segundo o critério da eficácia, há que distinguir entre o caso julgado formal, que só é vinculativo no processo em que foi proferida a decisão (cfr. art.º 620.º, n.º 1) e o caso julgado material, que vincula no processo em que a decisão foi proferida e também fora dele, consoante estabelece o artigo 619.º.
Do caso julgado decorrem dois efeitos essenciais, a saber: a impossibilidade de qualquer tribunal, incluindo o que proferiu a decisão, voltar a emitir pronúncia sobre a questão decidida – efeito negativo – e a vinculação do mesmo tribunal e eventualmente de outros, estando em causa o caso julgado material, à decisão proferida – efeito positivo do caso julgado.»[4]
Em consonância com o regime inserto no art. 620.º/1 do CPC, nos termos do qual as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, o art. 279.º/1 do CPC estabelece que a absolvição da instância não obsta a que se proponha outra ação sobre o mesmo objeto. Nestes termos, a absolvição da instância, que produz caso julgado meramente formal (art. 620.º do CPC), não obsta a que, entre as mesmas partes, o pedido deduzido se renove, fundado na mesma causa de pedir. Não se verifica, em ação subsequente, a exceção do caso julgado, sendo que só no mesmo processo o Tribunal está impedido de se pronunciar novamente sobre a questão decidida.[5] Porém, a repetição da causa com a falta do mesmo pressuposto que originou a absolvição da instância não deve ser admitida, pelo menos quando esteja em causa um pressuposto que coenvolva interesses materiais, como é o caso da legitimidade.[6]

Assim, não é de admitir a prossecução desta ação se esta consubstancia a repetição daqueloutra; se assim for, nem é de admitir a discussão, nesta ação, da questão ali decidida atinente à ilegitimidade do Requerente com fundamento no regime inserto no art. 245.º/2 do CSC.
E a repetição da causa afere-se pelo regime instituído pelo art. 581.º do CPC: repete-se a causa quando se propõe ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir – cfr. n.º 1. A identidade dos sujeitos advém de as partes serem as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; a identidade do pedido da circunstância de numa e noutra ação se pretender obter o mesmo efeito jurídico; a causa de pedir, por sua vez, é idêntica quando as duas ações procedem do mesmo facto jurídico. Na verdade, a identidade da causa de pedir pressupõe que o ato ou o facto jurídico de onde o autor pretende ter derivado o direito é idêntico; haverá que procurar a identidade da causa de pedir na questão fundamental levantada nas duas ações.
Ora, o crédito de que o Recorrente se arroga ser titular é, numa e noutra ação, o mesmo crédito: o crédito no montante de € 201.584,75 emergente de suprimentos; crédito esse que veio a ser reconhecido por sentença judicial que condenou a Recorrida ao respetivo pagamento.
O contrato de suprimento encontra-se previsto nos artigos 243.º a 245.º do CSC. Nos termos do n.º 1 do art. 243.º do CSC, trata-se do contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência. Configura um contrato especial, típico e nominado, que se revela como uma modalidade especial de mútuo em que sobressaem duas notas caracterizadoras: ser a mutuária uma sociedade e o mutuante um seu sócio e ter o empréstimo carácter de permanência. Não sendo, pois, um contrato de mútuo com características especiais, assume-se como um contrato de tipo próprio, autónomo, em que concorrem elementos comuns ao contrato de mútuo mas há um elemento social a considerar, pois que na prestação do sócio, que «contrata por ser sócio», está presente o fim social.[7] O contrato de suprimento apresenta-se como um meio contratual especial de financiamento da sociedade pelos seus sócios.[8]
O negócio jurídico donde procede o invocado crédito de € 201.584,75 é o contrato de suprimento. O reconhecimento de tal crédito por sentença judicial não o autonomiza do negócio jurídico donde ele emerge.
Na verdade, a ação que correu termos sob o n.º 1563/16.4T8OAZ configura uma ação declarativa de condenação, pois «Diz-se condenatória toda a sentença que, reconhecendo a violação de um dever jurídico, cuja existência declara, determina o seu cumprimento.»[9] A sentença ali proferida operou o reconhecimento do pré-existente direito de crédito do Recorrente sobre a Recorrida, direito esse decorrente do contrato de suprimento celebrado entre as partes, determinando, em consequência, a condenação da Recorrida a cumprir a obrigação que para si emerge desse mesmo contrato de suprimento. Não configura uma ação de natureza constitutiva (cfr. artigo 10.º/2 e 3, do CPC), em que é a sentença que constitui o direito fundado em relações jurídicas anteriores.[10]
Por conseguinte, esta ação consiste na repetição da que correu termos sob o n.º 406/17.6T8OAZ. Logo, não cabe discutir nesta ação a questão naquela decidida atinente à ilegitimidade do Requerente com fundamento no regime inserto no art. 245.º/2 do CSC.
Termos em que improcedem, nesta matéria, as conclusões da alegação do recurso.

Da litigância de má-fé
Nos termos do n.º 1 do art. 542.º do CPC, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta pedir. Em face do disposto no n.º 2 do citado preceito, a litigância de má-fé, desde que revestida de dolo ou negligência grave, pode ser considerada sob dois aspetos:
- a má-fé material, que abrange os casos de dedução de pretensão ou de oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, a alteração da verdade dos factos ou a omissão de factos relevantes para a decisão da causa;
- a má-fé instrumental, relativa à omissão grave do dever de cooperação, ao uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais para conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, para entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
É certo que o juízo de censura que sustenta o instituto da litigância de má-fé radica na violação dos deveres de probidade, cooperação e da boa-fé previstos nos arts. 7.º e 8.º do CPC, deveres esses que se impõem às partes litigantes. A censura a coberto da litigância de má-fé pressupõe uma atuação dolosa ou com negligência grave consubstanciada, objetivamente, na ocorrência de alguma das situações previstas no art. 542.º/2 do CPC. “ Passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária: quer o dolo, quer a negligência grave, caracterizam hoje a litigância de má-fé, com o intuito, com se lê no preâmbulo do diploma, de atingir uma maior responsabilização das partes.”[11] A lide temerária ocorre quando se atua com culpa grave ou erro grosseiro. É dolosa quando a violação é intencional ou consciente. Mas será sempre de exigir que a prova de tal culpa ou do dolo seja clara e indiscutível.[12]
Na atual formulação, o instituto da litigância de má-fé visa permitir ao juiz, quando necessário, proceder a uma “disciplina” imediata do processo, oferecendo resposta pronta, ainda que necessariamente limitada, para atitudes aberrantes, iniquidades óbvias, erros grosseiros ou entorpecimento evidente da justiça.[13]
A jurisprudência mais recente vem apontando que a condenação por litigância de má fé só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com negligência grave, recomendando prudência e razoabilidade, na formulação do juízo sobre essa má fé. Na verdade, há que ser muito prudente no juízo sobre a má-fé processual e verificar se, no caso concreto, a atuação da parte cabe dentro desses comportamentos tipificados na lei.[14]
Alcança-se da petição inicial que instrui o presente processo que o Recorrente começou por identificar o seu crédito contra a Recorrida como sendo aquele que foi reconhecido no processo judicial indicado no art. 2.º daquele articulado. Daí se retira que o Recorrente alicerçou a sua pretensão, que renovadamente submeteu a juízo, na convicção de que o direito declarado na sentença judicial tinha natureza diversa daquele que tinha esgrimido no anterior processo de insolvência. Convicção essa que sustenta o presente recurso, nele evidenciando que não se tratou de ocultar ao Tribunal a informação da existência da anterior ação judicial e do desfecho da mesma mas antes que se tratou de exercer o alegado direito à declaração da insolvência da Recorrida com fundamento num crédito que, no seu entender, emergia da sentença judicial.
Perante o exposto, afigura-se que a conduta do Recorrente não reclama a sujeição a censura nos termos do instituto da litigância de má-fé.

As custas recaem sobre o Recorrente e a Recorrida na proporção de 8/10 para 2/10 (o que se afigura adequado atento o desfecho do recurso) – art. 527.º, n.º 1, do CPC.

Concluindo: o crédito decorrente de contrato de suprimento de que o Recorrente é titular contra a Recorrida não deixa de ser um crédito por suprimentos por ter sido reconhecido por sentença judicial.


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela parcial procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida no que respeita à condenação por litigância de má-fé, mantendo-se, no mais, a referida decisão.
Custas pelo Recorrente e pela Recorrida na proporção de 8/10 para 2/10.

Évora, 04 de junho de 2020
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] Tal preceito estatui que os credores por suprimentos não podem requerer, por esses créditos, a falência da sociedade. Todavia, a concordata concluída no processo de falência produz efeitos a favor dos credores de suprimentos e contra eles.
[2] Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 705 e 708.
[3] Noções Elementares de Processo Civil, 1993, p. 305 e 306.
[4] Ac. TRC de 20/10/2015 (Maria Domingas Simões, Adjunta neste coletivo).
[5] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, Vol. 1.º. 3.ª edição, pág. 551.
[6] Cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil, vol. II, pág. 16, secundado por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. e loc. citados.
[7] Cfr. Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, vol. II, págs. 99 e 125.
[8] Ac. TRP de 08/06/2004 (Alziro Cardoso).
[9] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 80.
[10] Para melhor esclarecimento, cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, pág. 32;
[11] Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. II, págs. 196 e 197.
[12] Ac. do STJ de 18/10/2018 (Ilídio Sacarrão Martins).
[13] Regime Jurídico da Litigância de Má-fé, Estudo de Avaliação de Impacto, DGPJ, Ministério da Justiça, novembro de 2010, in https://dgpj.justica.gov.pt/.
[14] Cfr. Ac. do STJ citado supra.